A VISITA DO “AÇOUGUEIRO” ARTHUR HARRIS A NATAL E AO BRASIL

O Que Uma Das Mais Controvertidas Figuras da Segunda Guerra Mundial, Tido Por Muitos Como Um Implacável e Sanguinário Criminoso de Guerra, Veio Fazer em Nosso País e em Parnamirim Field?

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros  

Na tarde do dia 10 de agosto de 1945, uma bela sexta-feira de sol, o povo da cidade do Natal foi surpreendido pelo sobrevoo de duas grandes aeronaves estranhas e bastante chamativas.

E observem que durante grande parte da Segunda Guerra Mundial, os natalenses testemunharam a agem de milhares de aeronaves envolvidas naquele conflito e nessa época pouca coisa que voava ainda chamaria a atenção dos que aqui viviam. Mas aqueles dois aviões certamente fizeram as pessoas olharem para o céu!

Eles eram grandes quadrimotores, com duas grandes aletas elípticas na cauda onde ficavam os lemes que as guiavam. A parte de baixo das aeronaves era pintada de negro e na parte superior eram totalmente brancas[1]. Voando em um dia claro como aquele, aquelas aeronaves se destacaram bastante na paisagem.

Mas certamente para os natalenses que testemunharam o voo daqueles colossos aéreos, uma das coisas que mais deve ter chamado à atenção foi o ronco dos quatro motores que cada um daqueles majestosos aviões emitia. Pois era o inconfundível som dos motores Rolls-Royce Merlin, que equiparam e fizeram a fama de aeronaves inglesas como os caças Supermarine Spitfire e De Havilland Mosquito, além dos bombardeiros Vickers Wellington, Handley Page Halifax e os pesados Avro Lancaster. E as aeronaves que sobrevoaram Natal naquela sexta feira eram dois originais quadrimotores Avro Lancaster da RAF (Royal Air Force).

Bem, alguém deve ter se perguntado – Mas o que aqueles aviões estavam fazendo em Natal?

Enfim, a guerra na Europa já havia cessado desde abril, os combatentes da FEB e da FAB retornavam da Itália cobertos de glórias e no dia anterior os americanos haviam lançado uma superarma chamada “Bomba Atômica” na cidade japonesa de Nagasaki, depois de terem destruído dias antes e com o mesmo tipo de artefato outra cidade chamada Hiroshima!

Certamente quase ninguém em Natal sabia a razão da vinda daqueles pesados bombardeiros Lancaster, ou de quem viajavam neles. Mas um dos tripulantes era ninguém menos que Sir Arthur Harris, o comandante da toda poderosa força de bombardeiros da RAF.

Seguramente essa ainda é uma das figuras mais controversas de toda a História da Segunda Guerra Mundial. Tudo por causa das suas ordens que provocaram indiscriminados ataques aéreos contra as cidades alemãs e a morte de milhares de pessoas, a grande maioria delas civis. Certamente a ação de Harris que mais chamou a atenção do público ocorreu nos últimos dias do conflito, ao ordenar a total destruição da cidade alemã de Dresden. Um objetivo militar sem nenhuma importância concreta, repleta de refugiados que fugiam dos exércitos russos e que sofreu três dias de bombardeios devastadores.

Sir Arthur Travers Harris – Fonte – Wikipédia.

Mas o que esse homem veio fazer no Brasil e em Natal?

Um Militar Rude e Difícil, Mas que Inspirava Seus Comandados

Arthur Travers Harris nasceu em Cheltenham, sudoeste da Inglaterra, em 13 de abril de 1892. Seu pai era um engenheiro e arquiteto lotado no serviço público indiano e sua mãe uma típica dona de casa inglesa. Sua família vivia na Índia, mas Harris estudou na Inglaterra. Aos dezessete anos e contra a vontade do seu pai, largou tudo e foi para a colônia britânica da Rodésia, na África, atual Zimbábue. Ali tentou a sorte na mineração de ouro, na condução de diligências e na agricultura. Quando a Primeira Guerra Mundial eclodiu, ele se juntou ao 1º Regimento da Rodésia e lutou na vitoriosa campanha para dominar territórios alemães no sudoeste da África.

Harris retornou à Inglaterra em 1915 e decidiu se juntar ao incipiente corpo de aviadores do exército. Ali obteve sucesso como piloto, provando ser um combatente tranquilo e eficaz, sendo-lhe atribuídas cinco vitórias aéreas. Em 1918 se juntou à recém-fundada RAF como oficial de carreira e chegou a comandar um esquadrão. Foi lembrado como um oficial que buscava constantemente maneiras de aprimorar o desempenho tático e técnico de seus comandados, mas era também rigoroso e exigia altos padrões de desempenho de todos ao seu redor.

Com o fim da Primeira Guerra Harris serviu na Índia, Iraque e Irã. Durante esse período a RAF realizou bombardeios com gás e bombas de ação retardada contra as tribos iraquianas que se rebelaram contra o domínio britânico. O Comodoro do ar Lional Evelyn Oswald Charlton, chefe do Estado Maior da RAF no Iraque, ficou horrorizado ao visitar em 1924 um hospital que abrigava vítimas civis desses ataques aéreos. Ele então se opôs a essa política e ou a criticar abertamente tais ações de bombardeio, o que o levou a renunciar ao seu comando. Não descobri o quanto e como Arthur Harris participou dessas ações, mas sei que ao lhe perguntarem o que achava dos bombardeios, a sua resposta foi “-A única coisa que os árabes entendem é a força e a mão pesada“.

Entre 1928 e 29, Harris frequentou a Escola de Estado-Maior e foi tendo uma progressão normal na sua carreira. Ele defendeu abertamente a produção de bombardeiros que pudessem atingir a União Soviética. Acreditava que o comunismo era a principal ameaça à Grã-Bretanha e foi considerado um dos primeiros “Combatentes da Guerra Fria“. Acreditava também que a Inglaterra entraria em guerra contra a Alemanha Nazista e previu corretamente 1939 como o ano do início desse conflito.

Bombardeio noturno da RAF na Segunda Guerra Mundial – Fonte – Wikipédia.

Harris ou os primeiros meses da Segunda Guerra comprando aeronaves para a RAF nos Estados Unidos. Mas ele achou seu relacionamento com os americanos muito difícil. Disse a amigos que não gostava de ter que lidar com “um povo tão arrogante, que simplesmente se recusava a ouvir os conselhos técnicos dos britânicos”. Harris também reclamou que os americanos não iriam lutar, a menos que fossem empurrados para a guerra.

Em fevereiro de 1942, Harris foi chamado de volta a Londres para ser nomeado comandante em chefe do Comando de Bombardeiros. Embora muitos no Ministério da Aeronáutica o considerassem rude e inível, ele também era capaz de inspirar intensa lealdade naqueles que serviram com ele.

Harris herdou uma força de uns 400 bombardeiros em condições de combate e apenas um punhado eram quadrimotores novos. Nessa época as suas aeronaves eram capazes de modestos e imprecisos ataques contra áreas do oeste da Alemanha e o lançamento de inúteis panfletos com pedidos para as forças de Hitler encerrarem as suas ações de combate.

Heinkel 111, o principal bombardeiro dos alemães na Segunda Guerra, em ação nos céus da Polônia em setembro de 1939 – Fonte – Wikipédia.

Mas é bom que se registre que quem começou os bombardeios contra civis na Segunda Guerra foram os alemães. Aconteceu já no primeiro dia do conflito, 1º de setembro de 1939, quando Varsóvia, capital da Polônia, foi alvo de uma campanha irrestrita de bombardeios aéreos iniciados pela Luftwaffe, a força aérea nazista. Em seguida foi atacada com extrema violência a cidade de Roterdã, na Holanda, seguida de Coventry, Londres e outros centros urbanos britânicos. Isso apenas para citar alguns alvos da Luftwaffe.

Harris e seus comandados decidiram então dar o troco!

Tempestade de Fogo

Arthur Harris não foi o inventor da guerra aérea contra as cidades, nem o comandante de unidades de bombardeiros que fizeram mais vítimas na Segunda Guerra Mundial e nem sequer o criador do conceito de bombardeamento estratégico. Mas ele foi um dos primeiros oficiais generais a aplicar esse conceito.

Foi o general italiano Giulio Douhet, que argumentou em sua influente obra “O Comando do Ar“, publicada em 1921, que o bombardeio estratégico — particularmente contra populações civis e a infraestrutura existente — poderia destruir a vontade de lutar de uma nação. O italiano acreditava que, ao infligir terror e destruição suficientes do ar, o moral da população civil entraria em colapso, forçando o governo inimigo a capitular. Chamou essa prática de “a mais alta arte da guerra aérea“, que provocaria nos inimigos “o esmagamento de todas as forças materiais e morais de um povo“.

Já seu colega britânico Hugh Trenchard defendia a ideia de decidir futuras guerras pelo ar, bombardeando alvos civis na retaguarda do inimigo.

Com o desenrolar da Segunda Guerra, a RAF ou a realizar ataques noturnos, mas os resultados foram decepcionantes. As perdas continuaram inaceitáveis ​​e a precisão dos bombardeios era péssima. Harris então buscou aperfeiçoar as táticas de bombardeamento de uma forma até então inimaginável: com base em critérios cientificamente estabelecidos, sua equipe selecionou as cidades na Alemanha que poderiam ser mais facilmente incendiadas do ar, realizando o chamado “Bombardeamento de área” e sem se importar com a precisão.

Esquadrilha de Lancaster durante a Segunda Guerra.

Seus pilotos aprenderam a lançar sua carga mortal nos centros densamente povoados, com ataques que concentravam muitos bombardeiros para destruir o máximo que pudessem e sobrecarregar os serviços de uma cidade. Harris também decidiu apostar as reservas do Comando de Bombardeiros em ataques de peso sem precedentes: centenas de aeronaves contra um único objetivo.

O primeiro-ministro britânico Winston Leonard Spencer Churchill e sua equipe aérea de alto escalão acreditava que o bombardeio de área desaceleraria a produção bélica alemã, destruiria o moral da frente interna e talvez levasse a uma revolta dos trabalhadores contra o regime nazista.

Em 1942 o Comando de Bombardeiros Britânico ou a contar com a parceria da formidável Oitava Força Aérea dos Estados Unidos, com suas tripulações e seus bombardeiros quadrimotores B-17 e B-24, que uniram forças aos bombardeiros ingleses Wellington, Blenheim, Stirling, Halifax e Lancaster.

Não demorou e a destruição das cidades alemãs logo ultraou o alcance e a ferocidade que a Luftwaffe havia feito em Varsóvia, Roterdã, Coventry ou Londres. As cidades de Lübeck, Rostock e Colônia foram as primeiras urbes alemãs a serem quase que totalmente destruídas por bombardeios. Em Hamburgo, outra “primeira vez” foi alcançada em 1943: em uma tempestade de fogo de proporções apocalípticas, cerca de 40.000 pessoas, a maioria delas civis, morreram queimadas. Nesse período, em apenas dez dias, mais civis foram mortos na Alemanha do que na Grã-Bretanha durante toda a Segunda Guerra.

A partir do verão de 1944, a RAF e os americanos conseguiam incendiar qualquer cidade alemã do ar, como Trier, Essen, Heilbronn, Stuttgart e Darmstadt. A sequência de ataques e seus resultados são inúmeros e seria até enfadonho listá-las nesse texto.

Já sobre os quadrimotores Lancaster, pode-se considerá-lo um dos maiores aviões de guerra de todos os tempos. Transportava uma carga normal de bombas de 6.300 kg e chegou a ser utilizado por 56 esquadrões do Comando de Bombardeiros da RAF. As tripulações dos Lancaster realizaram 156.000 surtidas sobre a Europa ocupada pelos nazistas e lançaram 681.645 toneladas de bombas. Com isso ajudaram a matar cerca de 600.000 pessoas, a maioria mulheres e crianças, e mais de um terço das moradias urbanas da Alemanha foram destruídas.

Três Lancaster da RAF em 1942– Fonte – Wilipédia.

Harris compreendeu as implicações sombrias do que lhe era exigido e dedicou-se à sua tarefa ingrata e nada glamorosa com vigor e por isso ganhou o apelido de Butcher (Açougueiro). Some-se a tudo isso o fato que mais de 55.000 homens das tripulações do Comando de Bombardeiros Britânico morreram e um total de 10.321 aeronaves foram perdidas em 389.809 surtidas.

O Controverso Herói de Guerra

No entanto, como comentamos anteriormente, Arthur Harris é mais conhecido pelo bombardeio à cidade alemã de Dresden, ocorrido entre 13 e 15 de fevereiro de 1945.

Poucos dias depois desse terrível e cruel ataque, ele teria dito a um dos secretários de Churchill: “– Dresden? Esse lugar não existe mais!”

Um dos dois únicos Lancaster em condições de voo na atualidade – Fonte – Wilipédia.

Com a destruição terrivelmente eficiente da velha cidade barroca alemã, que custou a vida de 25.000 pessoas, Harris havia ultraado um determinado limite na barbárie. Tanto que a necessidade do ataque a Dresden tão no fim da guerra tem sido muito debatida desde então.

A questão é que, em meio ao horror da Segunda Guerra Mundial, bombardear algumas cidades matando centenas de milhares de civis para desacelerar a produção bélica não parecia algo extraordinariamente cruel, especialmente se encerrasse a guerra mais cedo. Mas, ao final da guerra, quando os alemães estavam claramente prestes a se renderem em algumas semanas ou dias, o ataque a Dresden causou indignação e muitas vozes aram a reclamar dos ataques indiscriminados às cidades alemãs e das mortes de tantos civis.

Dresden, vista parcial do centro da cidade destruído, do outro lado do Rio Elba, até o bairro de Neustadt. No centro da imagem, estão a praça Neumarkt e as ruínas da Frauenkirche – Fonte – Bundesarchiv.

O primeiro-ministro Winston Churchill havia defendido o bombardeio da Alemanha e trabalhado em estreita colaboração com o Harris por três anos, mas em 1945 estava perpetuamente preocupado com o bombardeio de civis. Após Dresden e diante da reação indignada dos países neutros ao ataque, Churchill se distanciou do chefe do Comando de Bombardeiros, primeiro internamente e depois também em relação aos Aliados.

No fim das contas Arthur Harris nunca fez nada além de cumprir os desejos do seu Primeiro Ministro. A sua contribuição foi a consistência assassina, a determinação férrea, a crueldade para com seus próprios homens e também para com as vítimas alemãs.

O primeiro-ministro britânico Winston Churchill. 

E o que Arthur Harris fez diante das repercussões negativas e das críticas?

Deu uma esticadinha até o Brasil!

No Grande País Tropical

A razão divulgada nos jornais brasileiros para o comandante inglês sair da distante e fria Inglaterra para o nosso caliente e varonil país, seria assistir no Rio de Janeiro ao desfile da chegada do 2º escalão da Força Expedicionária Brasileira. Ao menos isso foi o que publicou com destaque os jornais cariocas, mas Harris só chegou três dias depois que nossos pracinhas da FEB desfilaram pelas ruas do Rio e ninguém explicou a razão da sua não participação!

Independente disso, no dia 25 de julho de 1945, três quadrimotores Lancasters B.III partiram da base da RAF de St. Mawgan, na Cornualha, no extremo sudoeste da Inglaterra. Eram as aeronaves com os indicativos NX687, NX688 e NX689, todas do 156 Squadron.

Os Lancaster que trouxeram Arthur Harris aop Brasil., estavam pintados com o esquema da “Tiger Force”.

Após paradas para reabastecimento e descanso em Rabat, no Marrocos, e na cidade de Bathurst, então capital da colônia inglesa da Gâmbia e atualmente conhecida como Banjul, o primeiro dos três quadrimotores ingleses chegou ao Recife na tarde do dia 27 de agosto, faltando dez minutos para as quatro horas.

Foi o Lancaster NX687 que aterrissou no Campo do Ibura, ou Ibura Field para os americanos, onde um grande número de autoridades e populares aguardava o “Grande Herói Inglês”. Mesmo depois de nove horas de voo, Harris e seu séquito só desembarcaram depois que os funcionários do Serviço Nacional da Malária dedetizaram totalmente a aeronave.

Desembarque no Campo do Ibura, em Recife.

Ao finalmente desembarcar, Harris foi recebido por Etelvino Lins de Albuquerque, Interventor Federal em Pernambuco, e pelo brigadeiro Ajalmar Vieira Mascarenhas, comandante da 2ª Zona Aérea da FAB. Depois das solenidades de praxe, seguiram em cortejo pelas ruas da capital pernambucana até o Grande Hotel, onde atualmente funciona o Fórum Thomaz de Aquino Cyrillo Wanderley, do Tribunal de Justiça de Pernambuco, na Avenida Martins de Barros, 593, bairro de Santo Antônio.

Às quatro e meia chegou o segundo Lancaster e devido a um problema mecânico o terceiro avião ficou de aterrissar em Recife só no outro dia. Um dado interessante é que na chegada da segunda aeronave desembarcou no Campo do Ibura um oficial inglês alto, de boa aparência, falando português fluentemente com os oficiais brasileiros e que trazia pela mão uma criança.

Harris discursando para as autoridades brasileiras, tendo a sua esquerda o capitão da RAF Walter Pretyman como seu tradutor. A direita de Herris está o brigadeiro Eduardo Gomes.

Esse oficial era o capitão Walter Frederick Pretyman, um londrino de família pertencente ao mais fino High Society britânico, antigo estudante da Universidade de Oxford, que havia desembarcado no Brasil em 1923 e se apaixonou pelo país. Aqui Walter Pretyman morou no Rio de Janeiro, se tornou um empresário de sucesso no ramo açucareiro na cidade carioca de Campos e foi um dos fundadores da poderosa Usina Santa Cruz. Também no Rio ele foi um dos fundadores e assíduo frequentador do Gávea Golf and Country Club e um dos pioneiros do jogo de polo em nosso país[2].

Pretyman era muito ativo na alta sociedade carioca, com amizades entre muitos oficiais das forças armadas brasileiras e membros do governo de Getúlio Vargas. Com a entrada da Inglaterra na guerra ele voltou para Londres em 1942 e se alistou na RAF. Quis o destino que se tornasse um dos membros do staff de Arthur Harris no Comando de Bombardeiros e foi Pretyman que articulou a vinda deste chefe britânico ao Brasil.

Arthur Harris obsevando de binoculos uma corrida de cavalos no Jockey Club no Rio de Janeiro, tendo ao seu lado Walter Pretyman e o Ministro da Aeronáutica Salgado Filho.

Seu entrosamento com o comandante dos bombardeiros era tanto, que Harris deixou que o capitão Pretyman trouxesse no Lancaster a sua filha Cristina, nascida no Brasil e com cinco anos de idade em 1945. Nessa época Pretyman era viúvo e poucos anos depois se casaria com a paranaense Vera Sá Souto Maior.

Visitando o Rio, Petrópolis, São Paulo e Porto Alegre

No dia 28 de agosto, com a esquadrilha britânica já completa, partiram do Recife às nove da manhã em direção ao Rio de Janeiro. Na chegada fizeram um sobrevoo sobre a Cidade Maravilhosa, chamando a atenção dos cariocas e depois pousaram no Aeroporto Santos Dumont.

Quem primeiro se entendeu com Arthur Harris na pista do aeroporto foi o gaúcho Joaquim Pedro Salgado Filho, Ministro da Aeronáutica. Pelos próximos doze dias o inglês iria conhecer muita coisa no Brasil e aproveitar a estadia.

Sentados da esquerda para direita estão Donald Saint Clair Gainer, Getúlio Vargas, Arthur Harris e Salgado Filho. O capitão da RAF Walter Pretyman está em pé e de costas, atuando como tradutor. Junto com ele nessa função está o brigadeiro da FAB Antônio Appel Neto, visível no reflexo do espelho e com uniforme claro.

Logo Harris teve um encontro protocolar com Getúlio Vargas e os tradutores foram o capitão Walter Pretyman e o brigadeiro da FAB Antônio Appel Neto.

Depois o comandante inglês e Sir Donald Saint Clair Gainer, Embaixador do Reino Unido no Brasil, ofereceram as autoridades brasileiras um concorrido jantar na Embaixada Britânica.

Arthur Harris apreciando um belo churrasco, junto com o brigadeiro Appel Neto.

Em outro momento Harris participou de um evento especial no grill-room do mundialmente famoso Casino da Urca. O “grill” era um grande salão com um bem estruturado palco para apresentações e recebia grandes atrações e shows. Harris não ficou só no Rio, visitou também a cidade de Petrópolis, onde se hospedou no Hotel Quitandinha, o maior cassino hotel da América do Sul. Depois seguiu de avião para São Paulo e na sequência para Porto Alegre, onde Salgado Filho o ciceroneou na capital dos gaúchos e visitaram a Base Aérea de Canoas.

Nessas visitas, para deleite dos brasileiros, Harris deixou de lado o tradicional chá inglês e publicamente se fartou de café brasileiro de primeira qualidade.

Em nome da RAF o inglês homenageou a figura de Santos Dumont, colocando uma coroa de flores no monumento existente em frente ao terminal de ageiros do aeroporto que homenageia o nosso Pai da Aviação.

Nesse dia os quadrimotores Lancaster foram abertos para a visitação pública e o comparecimento dos cariocas foi enorme.

Como não poderia deixar de ser em se tratando de uma personalidade estrangeira, mesmo sendo um controverso herói de guerra, o governo brasileiro outorgou a Harris a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, a mais alta honraria que o Brasil concede a cidadãos estrangeiros. Mesmo sem achar que Harris merecia receber uma medalha dessas, eu até entendo as razões diplomáticas para o governo lhe entregar esse belo regalo. Só não entendi mesmo foi porque os aviadores da RAF Alan John Laird Craig, Charles Cranston Calder e Robert Martin Brown Cains foram igualmente agraciados com essa comenda[3].

Finalmente em Parnamirim Field

Na manhã de 10 de agosto duas aeronaves Lancaster da RAF decolaram para Natal, onde chagaram na parte da tarde. Não encontrei nos jornais nenhuma informação sobre o destino do terceiro avião.

Após sobrevoarem a cidade do Natal, os Lancaster aterrissaram em Parnamirim e Harris foi recebido pelo Desembargador João Dionísio Filgueira (então Interventor Federal Interino do Governo do Rio Grande do Norte)[4], o coronel norte-americano William David (Subcomandante da Divisão do Comando de Transporte Aéreo para o Atlântico Sul)[5], o coronel John M. Price (Comandante da Base Americana em Natal)[6], Jaime Wanderley (Representante de José Augusto Varela, então Prefeito de Natal), o major Salvador Roses Lizarralde (Comandante da Base Aérea de Natal) e outras autoridades brasileiras e americanas.

Em síntese a visita de Arthur Harris a Parnamirim foi rápida e pouca coisa em termos de informações eu consegui sobre o que aconteceu. Sabemos que ele percorreu as dependências da grande base, que houve um jantar no casino dos oficiais, que ele e seu séquito não vieram para Natal (pernoitaram na base) e que no outro dia pela manhã partiu para os Estados Unidos.

Apesar de parecer uma visita rápida, protocolar e simplória, o que mais me chamou a atenção foi encontrar várias declarações que Arthur Harris fez aos jornalistas brasileiros sobre a importância de Natal e sua grande base aérea para o esforço de guerra. Trago aqui duas destas declarações que foram publicadas em jornais cariocas.

Tal como muitos militares de renome e prestígio que atuaram na Segunda Guerra Mundial e estiveram em Parnamirim Field, como os generais Dwight D. Eisenhower, Mark Clark, Willis Crittenberger e outros, o inglês Arthur Harris sabia o valor daquela base e desejou conhecer esse local que ajudou as forças aliadas a ganhar a guerra contra o nazi fascismo.

As suas impressões sobre esse local eu não consegui encontrar. Mas, quem sabe, como Harris era um estrategista de mão cheia, talvez ele tenha pensado que os americanos iriam continuar por aqui depois de construir aquela cara e enorme base aérea e não entregariam nada aos brasileiros. Então, em um possível e futuro conflito contra os soviéticos, estar presente em Parnamirim Field poderia ser interessante para a RAF!

Bem, se ele assim pensou isso logo se desvaneceu, pois Harris deixou à RAF em 15 de setembro de 1945. Isso aconteceu em meio a uma disputa com o novo primeiro-ministro inglês Clement Attlee. Amargurado, ele foi viver na África.

Criminoso de Guerra?

Após a sua temporada africana e logo depois que Winston Churchill retornou ao poder na Grã Bretanha em 1951, Arthur Harris voltou ao seu país de origem.

Foi quando recebeu a oferta de ser agraciado com um título de nobreza, situação que ele recusou. Mas em 1953 aceitou um título mais modesto de baronete. No final das contas Harris nunca foi homenageado no mesmo nível de outros heróis de guerra britânicos, como os generais de exército Bernard Law Montgomery e Harold Alexander, ou comandante de caças da RAF Hugh Dowding.

Arthur Harris então se estabeleceu definitivamente com a sua família em Oxfordshire, aproveitando uma aposentadoria tranquila, porém ativa. Mas na década de 1960 a opinião pública britânica se voltou fortemente contra Harris e ele ou a ser visto por muitos como um “criminoso de guerra“.

Enfim, Arthur Harris foi um criminoso de guerra?

Não há uma resposta simples para isso: de acordo com critérios objetivos, a destruição seletiva dos centros urbanos alemães não era justificada militarmente e, portanto, era uma violação grave das leis da guerra. Por outro lado, essa violação não relativizou a culpa exclusiva de Hitler pela Segunda Guerra Mundial, nem pelos crimes de guerra da Wehrmacht e das tropas SS, e muito menos pelos assassinatos de milhões de judeus, eslavos, deficientes, homossexuais, ciganos e outros grupos de seres humanos.

Harris trabalhando no Comando de Bombardeiros.

Apesar disso, no entanto, o horror em relação à figura de Arthur Harris permaneceu. E ele ajudou bastante em tudo isso!

O ex-comandante dos bombardeiros lançou um livro com as suas memórias da Segunda Guerra. Intitulado “Bomber Offensive”, veio com muitas justificativas para as suas ações e entre estas existe a seguinte agem: “Apesar de tudo o que aconteceu em Hamburgo, o bombardeio era um método de guerra relativamente humano“.

Arthur Harris provavelmente nunca se considerou um humanitário, mas sim um comandante militar encarregado de matar alemães, fossem eles soldados ou civis.

Quando Arthur Harris faleceu, uma aeronave Lancaster sobrevivente realizou um sobrevoo sobre o cemitério onde acontecia o sepultamento.

Faleceu discretamente no dia 5 de abril de 1984, oito dias antes de completar 92 anos. Um preservado Lancaster sobrevoou o seu sepultamento e anunciou a homenagem final da RAF ao último de seus grandes comandantes da Segunda Guerra Mundial.

Quando foi decidido erigir uma estátua de Harris do lado de fora da igreja de St. Clement Danes, em Westminster, Londres, houve amplas objeções e severas críticas.

O homem se foi, mas a controvérsia que o cercava ainda persiste.

NOTAS ————————————————————————


[1] Essas pinturas brancas existentes nesses aviões Lancaster que vieram para o Brasil foram feitas para os Avro Lancaster do Comando de Bombardeiros Britânico que estavam destinados a atacar alvos no Japão. Essa foi uma oferta de Winston Churchill aos Estados Unidos para que 40 esquadrões de Lancaster fossem disponibilizados para uso na área do Oceano Pacífico e esse grande grupo de bombardeiros foi denominado “Tiger Force”. Durante a Segunda Guerra o esquema padrão do Comando de Bombardeiros Britânico em ação na Europa era a parte inferior preta e a parte superior com tons verde e marrom. Já nos Lancaster da “Tiger Force” a parte inferior preta foi mantida, mas a parte superior foi pintada de branco para refletir o calor. Com o lançamento das bombas atômicas sobre o Japão e a rendição desse país, a ideia da “Tiger Force” foi colocada de lado.

[2] Em 1926 Walter Pretyman sagrou-se campeão com a sua equipe em um badalado torneio de polo no Rio e a taça de vencedor foi entregue pelo então Presidente da República Arthur Bernardes.

[3] E ainda sobre essa história da entrega dessa comenda existe uma situação interessante. Antes da chegada de Arthur Harris ao Brasil, esteve em nosso país o general norte-americano Mark Clark, que foi o comandante do 5º Exército dos Estados Unido, que atuou na Campanha da Itália e tinha sob seu comando a Força Expedicionária Brasileira (FEB). Ocorre que Clark, que inclusive nessa ocasião veio ao Brasil para assistir a chegada do 1º escalão da FEB no Rio, não recebeu essa mesma honraria e desconheço a razão disso. Clark só veio a receber essa comenda em maio de 1975, das mãos do Presidente Ernesto Geisel.

[4] Dionísio Filgueira estava recepcionando o comandante Arthur Harris em razão da ausência de Natal do general Antônio Fernandes Dantas, o Interventor Federal do Rio Grande do Norte na época.

[5] O Comando de Transporte Aéreo (em inglês Air Transport Command – ATC) era o setor da Força Aérea do Exército dos Estados Unidos (United States Army Air Force – USAAF) que durante a Segunda Guerra Mundial organizou e operou os transportes aéreos do exército americano em todo o mundo.

[6] Essa base aérea era a famosa Parnamirim Field, que se subdividia em uma base área da força aérea do exército americano e outra da marinha dos Estados Unidos, que trabalhavam em parceria com a base aérea brasileira, a chamada Base Aérea de Natal, todas na mesma região. O coronel Price havia assumido esse posto recentemente, substituindo o coronel Léo F. Post.  

1943 – O CAMINHO DO PRESIDENTE FRANKLIN ROOSEVELT PARA A CONFERÊNCIA DO POTENGI EM NATAL

Rostand Medeiros – IHGRN

Nas primeiras horas de uma manhã de quinta-feira, dia 28 de janeiro de 1943, o tempo na pequena e bucólica capital potiguar estava frio e nublado. Já fazia alguns dias que a chuva caia com certa frequência em todo o Rio Grande do Norte. Uma situação que animava a todos os potiguares depois de uma seca terrível.

Em meio ao tempo frio, a cidade ia acordando tranquila. Se havia alguma movimentação eram daqueles que iam até as padarias comprar pão novo e quentinho, ou seguiam até no Mercado Público da Avenida Rio Branco, ou pegavam os bondes pintados de amarelo que circulavam por uma cidade com poucos automóveis, ou ainda a movimentação dos ônibus que partindo do bairro da Ribeira para o interior.

Quadro assinado pelo presidente Franklin Delano Roosevelt e entregue a tripulação do cruzador USS Omaha, que participou ativamente no apoio ao presidente na Gâmbia, quando da sua agem para a Conferência de Casablanca.

Nessa quinta-feira, nas margens do rio Potengi, mais precisamente na área da praia da Limpa, começou uma movimentação. Vários militares americanos isolavam a região e mantinha uma vigilância mais intensa na área da base de hidroaviões da empresa aérea Pan American Airways e da nova base da marinha americana, ainda em construção, onde até recentemente havia funcionado uma base de hidroaviões da empresa alemã Deutsche Lufthansa.

Apesar da movimentação, creio que isso foi percebido sem maiores anormalidades para a população que morava nas poucas casas que havia nas proximidades, pois forças militares dos Estados Unidos utilizavam o território potiguar como parte do esforço de guerra Aliado desde dezembro de 1941, através de acordos com o governo brasileiro. Esses militares aproveitavam o privilegiado ponto estratégico do Rio Grande do Norte para facilitar o transporte aéreo e a caça e destruição de submarinos nazifascistas no Atlântico Sul.

Boeing 314 Clipper, tendo a bordo o presidente Franklin Roosevelt toca o rio Potengi as 07:50 de 28 de janeiro de 1943 – Fonte – NARA.

E porque naquela manhã de 28 de janeiro de 1943 houve essa movimentação dos militares estrangeiros nessa região de Natal?

As 07:50, vindo do Atlântico, um grande hidroavião Boeing B-314, conhecido como Clipper, tranquilamente amerissou no calmo rio Potengi. Na sequência aquela máquina prateada movimentou-se com seus quatro motores até depois da área conhecida como o da Pátria. Talvez nesse momento, devido a sua elevada localização em relação à beira do rio, esse hidroavião pode ter chamado a atenção de alguns moradores da Rua da Misericórdia e da região da Praça João Tibúrcio, onde se localiza a colonial igreja de Nossa Senhora do Rosário e seu antigo cruzeiro.

Natal recebia esse modelo de hidroavião na base da Pan American desde os primeiros anos da década de 1940 e a visão daquele tipo de aeronave no rio Potengi nada tinha de inédito. Mas não tão cedo da manhã!

Na sequência o hidroavião deslocou-se pelo rio até a estação da Pan American e foi amarrado no flutuante que servia de atracadouro. Nesse momento, se houvesse algum natalense nas proximidades, provavelmente veria sair daquela máquina vários civis e militares que tratavam com muita deferência um dos ageiros, que claramente possuía deficiências de locomoção. Ali estava Franklin Delano Roosevelt, o presidente dos Estados Unidos, que desembarcava em Natal para um encontro histórico com o presidente brasileiro Getúlio Dorneles Vargas.   

E qual foi o caminho de Roosevelt até Natal? Onde ele esteve e o que ele fez antes de chegar à capital potiguar?

A Viagem Secreta

Roosevelt não foi o primeiro presidente dos Estados Unidos a voar em uma aeronave, honraria que coube ao seu primo Theodore, ainda em 1910. Mas o voo de 1943 foi o primeiro trajeto internacional realizado por um presidente daquele país no exercício do cargo e desde a gestão de Abraham Lincoln que um presidente dos Estados Unidos não seguia ao encontro de suas tropas em uma área tão próximo de um front de guerra.

O staff da Casa Branca organizou secretamente a viagem do presidente Roosevelt e planos para o transporte por via terrestre e aérea foram traçados. Naquele voo, além da questão ligada a limitada mobilidade do presidente Roosevelt devido as consequências da poliomielite que ele contraiu em 1921, havia a tônica em relação foi a segurança. Grupos compostos por agentes do serviço secreto, bem como assessores militares, partiram no final de 1942 para reconhecer o caminho e garantir sua segurança. Dessa maneira, os arranjos foram aperfeiçoados ao longo da rota que o presidente seguiria pela América do Norte, Caribe, América do Sul, até o continente africano.

Base de Parnamirim Field, em Natal, Rio Grande do Norte, no ano de 1943. Foi uma das maiores e mais importantes bases aéreas do esforço estratégico aliado para derrotar as forças do Eixo – Foto – Ivan Dmitri/Michael Ochs Archives/Getty Images.

Certamente esse pessoal esteve em Natal, mas aram totalmente despercebidos. Além da secretíssima natureza da sua missão, em janeiro de 1943 a cidade de Natal abrigava muitos homens de várias unidades militares norte americanas. Para que o leitor tenha uma ideia do volume desse pessoal na capital potiguar, estavam na cidade três esquadrões de busca e destruição de submarinos, com mais de 30 aeronaves e centenas de homens (eram o VP-83, VP-74 e o recém-chegado VP-94), além de todo um aparato de apoio ao transporte aéreo. Havia também muitas unidades de apoio e sempre dois ou três navios americanos estavam ancorados no rio Potengi.

Em 9 de janeiro, perto das 22h, o presidente e sua comitiva deixaram a Casa Branca de forma discreta e seguiram de carro por três quilômetros até a Union Station, a principal estação ferroviária de Washington. A composição era composta por um luxuoso vagão dormitório modelo Pullman, denominado “Ferdinand Magellan”, além de um vagão de bagagem e um vagão especial para o pessoal do Exército.

O vagão presidencial “Ferdinand Magellan”, preservado no Gold Coast Railroad Museum, em Miami, Flórida.

A tripulação do trem foi especialmente selecionada, onde incluíram cinco mensageiros do USS Potomac para ajudar no que fosse necessário. Como forma de distrair algum improvável espião, o trem partiu em direção norte, como se estivesse indo para Hyde Park, mas parou em um desvio ao sul de Fort Meade, no estado de Maryland. Ali ficou aguardando por uma hora enquanto os oficiais da Linha da Costa Atlântica liberavam os trilhos para o sul e então o trem seguiu para Miami.

A composição chegou à capital da Flórida cerca de uma e meia da manhã do dia 11 de janeiro, na área da Military Junction, um antigo depósito ferroviário que serviu como estação exclusiva para militares durante a Segunda Guerra Mundial. Desse lugar o grupo seguiu discretamente para a base da Pan American Airways em Dinner Key, na região de Coconut Grove, sudeste de Miami, um local mundialmente famoso na época por ser a principal base de hidroaviões civis dos Estados Unidos. Com o declínio do uso desse tipo de aeronaves na aviação comercial, a base de Dinner Key foi desativada, mas ainda é possível ver o terminal que recebia os hidroaviões, além da área ser um local muito bonito.

Antes do amanhecer John C. Leslie, gerente de operações da Pan American nas áreas do Atlântico e Pacífico, estava com tudo pronto para receber o grupo de Washington.

O Dixie Clipper (NC 18605) que transporto o presidente Roosevelt e assessores próximos.

Foram utilizados nessa missão dois hidroaviões Boeing 314 Clipper, sendo o Atlantic Clipper (NC 18604) destinado ao pessoal de apoio e o Dixie Clipper (NC 18605) pelo presidente Roosevelt e assessores próximos. Os pilotos foram Howard M. Cone Jr. (Dixie Clipper) e Richard W. Vinal (Atlantic Clipper), ambos do quadro de oficiais da reserva da Marinha, experientes pilotos com títulos de Masters of Ocean Flying (maior classificação de piloto comercial do mundo na época) e engenheiros aeronáuticos formados na Universidade de Seattle. Os dois pilotos e suas tripulações receberam o presidente e sua equipe e logo todos embarcaram.

O jornalista Tony Reichhardt, da revista Air & Space (edição de 18 de janeiro de  2013), comentou que em uma ocasião o piloto Howard Cone, falecido em 1969,  relembrou que a tripulação do Clipper ficou “muito surpresa ao saber a identidade do nosso convidado”, e que o presidente foi um “excelente ageiro”. Na aeronave que voou o presidente só houve um pedido especial – que uma das camas fosse equipada com um colchão de casal.

Os pilotos dos hidroaviões foram Howard M. Cone Jr. (Da esquerda e pilotou o Dixie Clipper) e Richard W. Vinal (a direita e pilotou o Atlantic Clipper).

Em suas memórias John C. Leslie lembrou que até esse dia ele não tinha ideia do quanto Franklin Roosevelt era severamente deficiente devido à poliomielite. Foi necessária a colocação de uma rampa especial da doca para a aeronave e o presidente teve de ser carregado para a cabine de ageiros. Às seis da manhã, o Dixie Clipper taxiou nas águas calmas da Flórida e decolou e meia hora depois foi à vez do Atlantic Clipper. Vale ressaltar que o Atlantic Clipper foi utilizado como centro de comunicações, com equipamentos e pessoal capacitados para manter o presidente em contato constante com Washington e as estações de guerra no exterior.

Roosevelt iniciou então sua longa viagem com destino à cidade de Casablanca, no Marrocos, acompanhado por Harry Lloyd Hopkins, conselheiro de política externa e diplomata, de William Daniel Leahy, almirante e chefe de gabinete pessoal do presidente, Ross T. McIntire, contra almirante e atuando como médico, John McCrea, capitão e assessor naval e Arthur Shelton Prettyman, o ajudante afrodescendente do presidente, além de agentes do Serviço Secreto. 

Roosevelt em Belém do Pará

Sobre a montanha Bonnet à l’Evêque, a Citadelle Laferrière, ou Citadelle Christophe, sobrevoada pelo hidroavião que levava o presidente Roosevelt em janeiro de 1943.

Segundo informa a própria Casa Branca, a pedido de Roosevelt o Clipper sobrevoou o Haiti e nessa agem circularam sobre a montanha Bonnet à l’Evêque, onde no topo foi possível visualizar a bela Citadelle Laferrière, ou Citadelle Christophe, uma grande fortaleza construída por Henri Christophe, o líder negro da independência da antiga colônia sa do Haiti no início do século XIX. Roosevelt havia visitado o local em 1917, quando ainda era secretário adjunto da Marinha.

As quatro da tarde o Clipper presidencial chegou à antiga colônia inglesa da ilha de Trinidad, atual Trinidad e Tobago. O grupo desembarcou na Base Operacional Naval, onde seguiram por 15 minutos até um isolado hotel operado pela Marinha. Era o Macgueripe Beach Hotel, localizado na pequena baía Macqueripe, a noroeste da ilha de Trinidad e até hoje um lugar preservado e deslumbrante.

Baía Macqueripe, a noroeste da ilha de Trinidad.

No outro dia, terça-feira 12 de janeiro de 1943, os hidroaviões decolaram com destino a Belém, capital do Pará, único ponto no Brasil onde Roosevelt esteve em sua ida a Casablanca.

No caminho o presidente leu, almoçou, cochilou, jogou paciência e olhou para as grandes florestas do Brasil, 2.700 metros abaixo. Quando eram quase duas e meia da tarde a aeronave cruzou a linha do Equador, provavelmente sobre o Amapá ou sobre a ilha do Marajó. Como a bordo se encontravam oficiais navais com larga experiência no mar, Roosevelt havia sido Secretário da Marinha e aquele hidroavião quando amerissava na água se deslocava tal como um barco, foi organizada uma festa que seguiu as mais antigas tradições marítimas e era conhecida como “Festa de Netuno”, ou “Cerimônia de Travessia de Linha”, ou ainda “Festa do Equador”. Alguém se fantasiou de Netuno, o deus dos mares, para dar “permissão para cruzar” a linha equatorial. Outra pessoa enfrentou um interrogatório de Netuno para obter sua bênção e até foi lavrado um documento em nome da “Antiga Ordem das Profundezas”. Hoje em dia, em um tempo onde muitas tradições se perdem rapidamente, não sei se esse tipo de comemoração ainda acontece nos navios pelo mundo afora, mas durante a Segunda Guerra era ainda bem popular. Existem até fotos de tripulações de submarinos alemães realizando esse tipo de evento em plena luz do dia e com muita gente fantasiada.

As 15:30 o Boeing 314 com Roosevelt e seu grupo amerissou na baía do Guajará, após terem voado quase 2.000 quilômetros. O presidente desembarcou e foi recebido pelo vice-almirante Jonas Howard Ingram, Comandante da Força Naval do Atlântico Sul, cuja base ficava em Recife. Junto a ele estava o brigadeiro general Robert LeGrow Walsh, Comandante Geral das Forças Armadas dos Estados Unidos na área do Atlântico Sul. A base do general Walsh era em Natal e sua casa de repouso ficava na Avenida Getúlio Vargas, próximo a conhecida Ladeira do Sol, onde hoje se situa o prédio do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Norte.

Roosevelt não circulou por Belém, provavelmente nem foi visto por alguém da cidade, pois ficou fortemente protegido por militares na área de Val-de-Cans, palestrando com seus oficiais. Talvez preparando o seu encontro com Getúlio Vargas em Natal, após o retorno do Norte da África. Enquanto isso os Clippers recebiam carga máxima de gasolina para o voo transatlântico.

Pouco antes das sete horas da noite os hidroaviões decolaram para a cidade de Bathurst (atual Banjul), capital da Gâmbia, em um percurso sem escalas de quase 3.900 quilômetros e completados em 19 horas.

Testemunhando a Miséria Provocada Pelo Colonialismo Britânico

Naquele dia 13 de janeiro, por volta das quatro e meia da tarde, as aeronaves sobrevoaram a foz do rio Gâmbia. O segredo deles foi guardado com tanta perfeição que a chegada foi aceita como um voo de rotina. Quando o presidente desembarcou, ele cumprimentou o capitão Cone e sua tripulação pela excelente viagem. Essa foi a última vez que os tripulantes viram ou ouviram falar do presidente e do seu grupo por duas semanas. Mas as ordens dos aviadores da Pan American eram para esperar e os dois Clippers ficaram em Bathurst.

O cruzador de escolta USS Memphis (CL-4).

No rio cercado de manguezais havia dois navios de guerra. Um maior, com quatro chaminés e aspecto meio antiquado, e um menor, com uma chaminé e com jeito de ser uma construção mais recente. Ali estavam respectivamente o cruzador de escolta USS Memphis (CL-4), lançado ao mar em 1920, e o destroier USS Somers (DD-381), com apenas seis anos no mar.

O destroier USS Somers (DD-381).

Oito dias antes em Recife, Pernambuco, através da ordem número 041643, emitida pelo almirante O. M. Read, Comandante da 2ª Divisão de Cruzadores (Commander Cruiser Division Two – ComCruDiv 2) da marinha americana, os dois navios partiram para a Gâmbia. Foi o prático Nelson Campos que com calma e tranquilidade tirou o Memphis do porto. A frente dessa nave o ágil USS Somers seguia abrindo caminho e caçando submarinos inimigos.

Esses navios chegaram à foz do rio Gâmbia em 10 de janeiro, mas a travessia Atlântica não ocorreu sem incidentes. O USS Omaha levava hidroaviões Vought OS2N-1 Kingfisher e no dia 8, no meio do caminho, os oficiais decidiram catapultá-lo para realizar uma patrulha em busca de submarinos inimigos. A patrulha não deu em nada, mas ao amerissar houve um problema e o hidroavião foi considerado perdido. Os aviadores Thomas A. Wood e M. Loeffler foram salvos e na sequência o USS Somers abriu fogo com um dos seus canhões e afundou o que restava do Kingfisher.

Hidroavião Vought OS2N-1 Kingfisher.

Ainda havia claridade quando Roosevelt desembarcou do Clipper na Gâmbia, onde a Grã-Bretanha mantinha uma de suas mais antigas colônias africanas. Ele foi então recebido pelo capitão H. Y. McCown comandante do cruzador Memphis e sugeriu que se o presidente desejasse conhecer um pouco a região havia automóveis e barco para fazer um eio pelo rio, onde o oficial da marinha britânica E. F. Lawder poderia mostrar o que havia. Roosevelt determinou o eio de barco.

O diário oficial de sua viagem na época e recentemente publicado na Internet pela Casa Branca (o link está no final do texto) aponta que o eio demorou meia hora e que “muitos pontos de interesse foram observados ao longo da orla. Várias embarcações, incluindo um tender, petroleiros e barcaças” e que a população local “prestavam pouca ou nenhuma atenção às baleeiras que avam”. Em outubro de 1995, o historiador americano Donald Wright, professor de história na State University of New York, escreveu na revista American Heritage (Volume 46) que para o capitão George E. Durno, cronista oficial da viagem, o eio de baleeira pelo porto deu ao presidente “sua primeira boa olhada na cidade incrivelmente sórdida e infestada de doenças”. George Durno continuou: “Entre as docas encardidas havia inúmeras barcaças e barcos abandonados e enferrujados, literalmente repletos de crianças negras e seus pais – os barcos encalhados e ancorados aparentemente servindo de lar para uma parte da população da orla. Na brisa fresca da noite, o rio ao longo do centro de Bathurst cheirava a peixe podre e esgoto”.

Britânicos agindo como britânicos na África no século XIX – Fonte – https://medium.com/sunnya97/british-colonialism-and-social-change-in-the-metropole-4bd87996aeec

E no outro dia a coisa foi ainda pior!

Após uma noite tranquila no cruzador Memphis, o presidente americano e seus conselheiros acordaram antes do amanhecer, pegaram a baleeira até Bathurst e seguiram pela cidade por quinze quilômetros em direção a base aérea de Yundum, pertencente à RAF (Royal Air Force – Real Força Aérea). Informes apontam que enquanto ele ava de barco pelo rio e depois foi conduzido pelas ruas de Bathurst, o presidente Roosevelt – o líder que se preocupou em libertar sua gente da miséria provocada pela “Grande Depressão” de 1929, ajudando a prover seu bem-estar básico através do plano conhecido como “New Deal” – ao lançar seus olhos sobre a pior situação que o colonialismo britânico poderia apresentar, ficou extremamente consternado.

Donald Wright aponta em seu artigo que em 1943 Bathurst era uma das cidades mais insalubres e miseráveis do planeta. A maioria dos gambianos tinha malária, mas, de acordo com relatórios médicos britânicos, as doenças respiratórias foram “as que mais causaram danos”. A bouba era “moderadamente abundante”. Um em cada quatro residentes da maioria das aldeias mostrando “indicações óbvias (feridas abertas) de bouba tardia”. Vermes e infecções intestinais eram “quase universais”; vinte por cento dos gambianos tinham tracoma; a cegueira era “comum”. E havia mais: cada aldeia de qualquer tamanho tinha dois ou três leprosos, e a sífilis e a gonorreia eram quase epidêmicas em partes de Bathurst. As crianças pequenas enfrentavam o pior. Muitas tinham baços aumentados, a conjuntivite era crônica, doenças de pele parasitárias eram comuns, assim como as secreções nasais e a esquistossomose. Devido à prevalência de doenças e às condições higiênicas em geral, a taxa de mortalidade era muito alta e a expectativa de vida era de apenas 26 anos.

Roosevelt ficou horrorizado com a miséria que viu e essa experiência contribuiu para aumentar a crescente antipatia que o presidente dos Estados Unidos tinha pelo colonialismo praticado pelo Império Britânico e pela República da França. 

Douglas C-54 Skymaster

Por recomendação do subcomandante do Comando de Transporte Aéreo, brigadeiro general Cyrus R. Smith, o presidente Roosevelt e sua equipe embarcaram em dois aviões de transporte Douglas C-54 do Exército, movidos cada um por quatro motores Wright de 1.200 cavalos de potência e transportando até 26 ageiros. O avião presidencial foi pilotado por capitão Otis F. Bryan, de 35 anos.

Aqueles aviões voariam pelos mais de três mil quilômetros finais até Casablanca, sobre uma área do mundo onde ainda havia zonas de guerra ativa. Chegaram ao aeroporto Medouina às seis e vinte da noite de 14 de janeiro. No total, para participar da reunião, a viagem exigiu quarenta e seis horas entre três continentes e um oceano, além de vinte e seis horas de trem nos Estados Unidos.

A Conferência de Casablanca

O presidente Franklin Roosevelt e o primeiro-ministro britânico Winston Churchill em Casablanca. Uma situação interessante em relação a maneira como a imprensa fotografava Roosevelt, era a de sempre evitar uma exposição visual do seu problema de locomoção. Segundo o amigo José Henrique de Almeida Braga, pesquisador dos bons sobre o tema da Segunda Guerra e autor do ótimo livro “Salto sobre o lago – e a guerra chegou ao Ceará” (/2017/09/26/uma-otima-noticia-foi-lancado-um-livro-sobre-a-historia-da-segunda-guerra-mundial-em-fortaleza/), havia uma espécie de acordo para evitar esse tipo de exposição.

Nos dias atuais, segundo a versão divulgada pelo Governo dos Estados Unidos, a conhecida Conferência de Casablanca foi uma reunião ocorrida em janeiro de 1943, cujos atores principais foram o presidente Franklin Roosevelt e o primeiro-ministro britânico Winston Churchill e nessa ocasião tomaram importantes decisões que atingiram todo o mundo. E a escolha da mítica cidade marroquina de Casablanca não foi à toa, pois a conferência ocorreu dois meses após os desembarques anglo-americanos no norte da África sa.

Os debates se concentraram na coordenação da estratégia militar aliada contra as potências do Eixo ao longo do ano seguinte. Resolveram concentrar seus esforços contra a Alemanha na esperança de retirar suas forças da Frente Oriental e aumentar as remessas de suprimentos para a União Soviética. Inclusive o primeiro-ministro soviético Joseph Stalin havia recebido um convite, mas ele não conseguiu comparecer porque na época o Exército Vermelho estava engajado em uma grande ofensiva contra o Exército Alemão.

Embora as forças anglo-americanas começassem a concentrar pessoal e material na Inglaterra em preparação para um eventual desembarque no norte da França, ficou decidido que primeiro aconteceriam combates na área do Mediterrâneo. Seriam realizados desembarques na Sicília e depois na Itália continental, com o objetivo de tirar esse país da guerra. Os líderes também concordaram em fortalecer a campanha de bombardeio estratégico contra a Alemanha, entre outras decisões. 

Em meio à finalização dos planos estratégicos dos Aliados contra as potências do Eixo em 1943, um dos resultados mais notáveis ​​na Conferência de Casablanca foi a promulgação da política de “rendição incondicional”.

No último dia da Conferência, o presidente Roosevelt anunciou que ele e Churchill tinham decidido que a única maneira de garantir a paz no pós-guerra era adotar uma política de rendição incondicional. Roosevelt afirmou claramente que a política de rendição incondicional não implicava na destruição das populações das potências do Eixo, mas sim “a destruição nesses países das filosofias que se baseavam na conquista e na subjugação de outros povos”. Roosevelt queria evitar a situação que se seguiu à Primeira Guerra Mundial, quando grandes segmentos da sociedade alemã apoiaram a posição, tão habilmente explorada pelo partido nazista, de que a Alemanha não havia sido derrotada militarmente, mas sim “apunhalada pelas costas por liberais, pacifistas, socialistas, comunistas e judeus”.

Texto escrito pelo piloto Richard W. Vinal e o 1º engenheiro Fowler sobre a viagem dos Clippers com o presidente Roosevelt.

Segundo Donald Wright, em meio às reuniões, sobrou críticas de Roosevelt para o Colonialismo. Em um jantar em 22 de janeiro, em homenagem ao sultão do Marrocos Muḥammad ibn Yūsuf, futuro monarca Muhammad V, o presidente americano falou ousadamente sobre as esperanças de independência das possessões britânicas e sas, encorajou o sultão a declarar a independência marroquina da França e que desejava um esforço internacional no pós-guerra para acabar com o Imperialismo. Winston Churchill e Auguste Noguès, o general francês que tutelava o Marrocos, não puderam deixar de ouvir. O político inglês Harold Macmillan considerou a conversa “igualmente embaraçosa para os britânicos e ses”, enquanto o diplomata americano Robert Murphy achou o desempenho de Roosevelt “deliberadamente provocativo”. Em seu texto Donald Wright aponta que alguns presentes se perguntaram se o mau humor de Churchill naquela noite se devia mais à conversa do presidente com o sultão, ou a ausência de álcool no jantar em razão das leis da religião muçulmana.

Na Libéria

Na segunda-feira, dia 25 de janeiro, depois de onze dias no Marrocos, os aviões C-54 decolaram em direção a Bathurst às oito horas da manhã, cruzando a cadeia de montanhas Atlas durante o voo. Chegaram à capital da Gâmbia as 15:30 e Roosevelt seguiu para o USS Memphis.

No outro dia, para o viajante VIP só houve movimentação à tarde, quando o Ministro Residente da África Ocidental Britânica, Lord Swinton, subiu a bordo às 16h00 e conversou com o presidente. Em seguida, o presidente o convidou a acompanhá-lo para uma curta viagem pelo rio Gâmbia no rebocador de alto mar HMS Aimwell, de 560 toneladas, aguardando para receber o presidente.

Depois de uma noite tranquila, às seis horas da manhã de 27 de janeiro anunciaram a decolagem dos dois C-54 em Yundum Field, para uma viagem de inspeção até a Libéria, quase 1.300 quilômetros a sudeste de Bathurst.

A Libéria, uma república colonizada por escravos libertos dos Estados Unidos antes da Guerra Civil, foi importante para o esforço de guerra Aliado. Ao chegar no começo da tarde, Roosevelt foi saudado pelo presidente Edwin Barclay e uma excelente banda do Exército dos Estados Unidos tocou os hinos nacionais. A qualidade desses músicos militares se devia ao fato de muitos deles terem tocado na orquestra do cantor de jazz Cab Calloway. 

Depois os presidentes aram em revista um destacamento do Exército dos Estados Unidos formado por quinhentos soldados afrodescendentes que protegiam o porto de Monróvia, capital do país, e por onde avam milhões de libras de látex bruto. Roosevelt também visitou na Libéria uma grande plantação de borracha da empresa Firestone, que tinha cerca de vinte mil trabalhadores liberianos. Por volta das três e meia da tarde o grupo embarcou nos C-54 e retornaram a Bathurst.

Roosevelt ocupou seu assento no Dixie Clipper por volta das dez e meia daquela noite, para um longo voo através do Atlântico em direção ao Brasil. Minutos depois o Atlantic Clipper fazia o mesmo trajeto.

Em Natal e o Retorno Para os Estados Unidos

Durante a maior parte do voo sob o Atlântico Sul, o Clipper presidencial voou alto, em meio a muitas nuvens, que tornou a viagem um tanto desconfortável. Para reverter o problema os pilotos Howard M. Cone Jr. e Richard W. Vinal desceram seus hidroaviões para uma altitude de apenas 300 metros, o que tornou o trajeto mais confortável para o restante da rota, que atingiu quase 3.000 quilômetros entre a capital da Gâmbia e a capital potiguar.

Pouco antes de amerissarem no rio Potengi, alguém a bordo do Atlantic Clipper descobriu com entusiasmo que uma hélice estava parada. Ela havia sido interrompida por recomendação do engenheiro de voo ao capitão Vinal e que os reparos poderiam esperar até que pousassem. Quando já estavam em Natal, para evitar atrasos, o Atlantic Clipper foi substituído por outro hidroavião do mesmo modelo, batizado American Clipper.

Após o desembarque Roosevelt seguiu para o USS Humboldt (AVP-21), um navio que já foi confundido com “cruzador” e até “destroier”, mas que era apenas uma unidade de apoio naval leve de hidroaviões da Classe Barnegat. Ao menos aquele era um navio novo, colocado em serviço em outubro de 1941.

Para Roosevelt pouco importava o tipo de navio em que ele estava em Natal, o que importava realmente naquela nave de guerra de pequenas dimensões era o seu encontro com Getúlio Dorneles Vargas, o presidente brasileiro. Um encontro histórico, que, entre outras decisões, levou a efetiva participação de tropas brasileiras no teatro de operações na Itália e fez Natal entrar na mira da imprensa mundial.

Mas isso é outra história!

Enquanto Roosevelt permaneceu em Natal, na manhã seguinte os dois Clippers aceleraram para o norte, cobrindo mais de 3.900 quilômetros até Trinidad, aonde o presidente e seu grupo chegaram no dia seguinte, 29 de janeiro, após um voo sobre o continente sul americano em dois aviões C-54.

Finalmente, em 30 de janeiro, data do 61º aniversário do presidente Roosevelt, os Clippers presidenciais decolaram para os Estados Unidos. O capitão Cone o presenteou com duas cartas, uma de cada tripulação dos Clippers que participaram da viagem, cada uma contendo uma contribuição financeira individual para o Fundo do Baile de Aniversário do Presidente.

Comemoração do 61º aniversário do presidente Roosevelt no Clipper.

Pouco antes do meio-dia o presidente sentou-se para um jantar especial de aniversário, onde foi servido caviar, aipo, azeitonas, peru, ervilhas e café, além de um grande bolo de aniversário, que o presidente cortou com óbvio deleite. Então todos – exceto o capitão Cone, que obedecia aos regulamentos da Pan American – fizeram um brinde com champanhe ao presidente. Depois disso, o Chefe do Executivo foi surpreendido com presentes. Entre eles um portfólio de gravuras raras de Trinidad, uma caixa de cigarro entalhada e outros. Tão exultante estava o capitão Cone com todos esses eventos, que todas as anotações do dia no diário do Dixie Clipper foram escritas a lápis vermelho sob o título “Aniversário do presidente”.

No meio da tarde, os dois Clippers começaram a longa descida em direção à costa da Flórida, onde amerissaram na Base de Dinner Key. Lá o presidente elogiou os membros de ambas as tripulações por seu desempenho e de Miami seguiu de trem para Washington. Embora os tripulantes nunca soubessem qual seria seu próximo destino até pouco antes da decolagem, eles cumpriram a indicação mais responsável que qualquer companhia aérea poderia receber, exatamente de acordo com as ordens.

Rotas da Pan American Airways.

E não havia dúvidas sobre o desempenho: os enormes hidroaviões percorreram mais de 20.000 quilômetros sem incidentes, durante 70 horas e 21 minutos em que estiveram no ar. Eles tocaram três continentes, cruzaram o Atlântico duas vezes e a linha do Equador quatro. A utilização dos Boeing 314 Clipper como aeronave principal nessa viagem presidencial se deveu por ser uma máquina que possuía uma estrutura excepcional, beleza, requinte, conforto, robustez, luxo e capacidade de voo. Apesar de terem sido construídos poucos exemplares e nenhum chegar inteiro até os nossos dias, marcou época e se tornou um clássico da aviação mundial.

Referências  –

https://www.whitehousehistory.org/the-wings-of-franklin-roosevelt-1

https://www.panam.org/explorations/681-1st-transatlantic-enger-flight

http://www.fdrlibrary.marist.edu/daybyday/daylog/january-12th-1943/

https://www.americanheritage.com/hell-hole-yours#1

https://history.state.gov/milestones/1937-1945/casablanca

https://www.panam.org/war-years/579-the-commodore-the-president-2

https://www.aviationarchaeology.com/src/USN/OS2U.htm

O VAGABUNDO DO MAR

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Desenho de Carlos Arthur Thiré.

A HISTÓRIA DO NAVEGADOR SOLITÁRIO INGLÊS QUE NAUFRAGOU EM UMA REMOTA ILHA BRASILEIRA, FOI SALVO POR UM TRANSATLÂNTICO ITALIANO E ACABOU PRESO NO RIO SUSPEITO DE SER COMUNISTA

Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte 

Era uma terça feira, 28 de março de 1939, e o transatlântico italiano MS Augustus navegava tranquilo em pleno Oceano Atlântico, a cerca de 530 milhas náuticas a nordeste de Natal. A bela nave seguia em direção ao Mar Mediterrâneo em meio a um mar calmo, com poucas ondas e muito sol típico de uma zona tropical.

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O MS Augustus

Por volta de uma e meia da tarde muitos ageiros percorriam tranquilos os decks da nave de 215 metros de comprimento, descansando depois do almoço. Alguns estavam sentados em cadeiras dobráveis se dedicando a leitura, outros conversavam em pequenos grupos e muitos observavam o mar na expectativa de avistarem algum peixe, uma baleia e os Rochedos de São Pedro e São Paulo. Eles haviam sido informados que este remoto local surgiria em breve a estibordo, ou seja, a direita do navio.

Conhecido hoje como Arquipélago de São Pedro e São Paulo, o local é uma parte pequena e bem isolada parte do território brasileiro, sendo um dos poucos lugares na Terra onde um cume oceânico subaquático rompe a superfície do mar. Formado por um pequeno grupo de ilhas que está apenas 18 metros acima das águas oceânicas e com uma extensão total de meros 4,5 hectares, era conhecido dos homens dos mares desde 1511, quando uma frota portuguesa com seis caravelas seguindo em direção as Índias, topou com o lugar sem querer. Deste encontro a caravela São Pedro bateu nas rochas e afundou e a caravela São Paulo salvou os sobreviventes do barco sinistrado e daí surgiu a sua denominação.

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Arquipélago de São Pedro e São Paulo na atualidade – Fonte – http://aurelioschmitt.blogspot.com.br

Perdidos no meio do grande Oceano Atlântico, ao longo dos séculos aquelas rochas não chamaram a atenção de exploradores, mas sim de grandes cientistas, entre eles o inglês Charles Darwin, que lá esteve na manhã de 16 de fevereiro de 1832, na primeira etapa de sua viagem ao redor do mundo a bordo do HMS Beagle.

Esquecidos e isolados em 1939 os então denominados Rochedos de São Pedro e São Paulo serviam, quando avistados durante o dia, como ponto de referência para verificação do posicionamento de navios através das cartas náuticas, bússolas e sextantes e, no caso de transatlânticos como o Augustus, um motivo de distração para seus normalmente entediados ageiros.

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Logo o transatlântico ficou a menos de dez milhas náuticas de distância e as rochas negras surgiram no horizonte. Alguns ageiros munidos de lunetas e pequenos binóculos se colocaram na amurada para observar aquele amontoado de pedras batidos pelas ondas. Em pouco tempo um burburinho em diferentes idiomas surgiu e braços apontavam em direção aos rochedos. De lá sinais luminosos provocados por um espelho nas mãos de um homem nu, que também agitava os braços intensamente, chamaram atenção de várias pessoas.

Quem era aquela pessoa?

Perdido nos Rochedos dos Santos

Na ponte de comando do Augustus a figura solitária naquelas rochas também chamou atenção dos oficiais que estranharam o fato. Eles sabiam que dificilmente alguém estaria ali praticando naturismo em num ponto tão isolado do Globo e também sabiam que a última missão oficial de qualquer espécie ocorrida nos Rochedos de São Pedro e São Paulo fora realizada em 1930.

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Naquele ano membros da Marinha do Brasil estiveram no local a bordo do navio tender Belmonte para a instalação de um pequeno farol aero marítimo e já fazia algum tempo que ele estava apagado. Tanto assim que a oficialidade do Augustus e de outros navios de cargas e ageiros que avam pela região só se aproximavam do local durante o dia e com tempo bom, pois além de tudo as correntezas na área eram fortes.

Logo o comandante do Augustus enviou uma mensagem telegráfica para a Capitania dos Portos de Recife, para a Polícia Marítima e para o Presídio Político de Fernando de Noronha para informar sobre o fato.

O coronel Nestor Veríssimo, diretor do presídio, informou que nenhum detento havia se evadido da instituição que comandava e o comandante Humberto Areia Leão, capitão do porto de Recife, imediatamente comunicou ao então Ministério da Marinha. Mas foi Renato Medeiros, inspetor da Polícia Marítima, que conseguiu a informação de que o transatlântico italiano MS Conte Grande era esperado para os próximos dias em Recife e, como normalmente acontecia com os navios que faziam esta rota entre o Brasil e a Europa, aria próximo aos Rochedos de São Pedro e São Paulo. Através da ajuda de Etelvino Lins, então Secretário de Segurança Pública, o inspetor Renato Medeiros conseguiu enviar uma mensagem urgente ao Conte Grande para que investigasse o caso.

Mas foram os membros da imprensa recifense que conseguiram informações mais seguras sobre o solitário homem nos rochedos.

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O transatlântico italiano MS Conte Grande

Um oficial do paquete nacional Santarém, da empresa Lloyd Brasileiro e que se encontrava há uma semana no porto de Recife, informou que na sua última travessia vindo de Lisboa havia encontrado no meio do mar um pequeno barquinho a vela, com pouco mais de cinco metros e meio de comprimento e uma pequena bandeira britânica no diminuto mastro. O capitão do Santarém parou sua nave mista de ageiros e cargas e procurou ajudar o navegador solitário. Este agradeceu o apoio, informou que se dirigia para Natal e alegou que nada lhe faltava naquela verdadeira casca de noz que enfrentava os mares. O velejador parecia com saúde, aparentava está com as faculdades mentais corretas e o Santarém continuou seu rumo em direção a capital pernambucana.

Seria o homem nos Rochedos de São Pedro e São Paulo o mesmo navegador solitário?

Salvo

O Conte Grande era uma nave muito conhecida no Brasil e extremamente respeitada pela nossa sociedade, que nessa época utilizava intensamente o transporte marítimo.

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Saída do escaler para busca o náufrago.

A nave possuía muito luxo nos seus 200 metros de comprimento e desde 1932 fazia a linha entre a Itália e a América do Sul. A oficialidade do navio italiano acatou o recebimento das mensagens transmitidas pelas autoridades de Recife e pelo Augustus e informou que realizaria uma parada nos rochedos.

Por volta das cinco e meia da manhã de 31 de março os motores do Conte Grande ficaram girando em baixa rotação para manter a posição, enquanto um escaler era baixado com quatro marinheiros, um enfermeiro de bordo e sob o comando de um oficial do transatlântico.  Houve um fato narrado nos jornais que mostra bem as características das questões relativas ao pudor existente na época – Devido ao estado de nudez do náufrago o navio foi deixado a uma distância relativamente grande dos Rochedos de São Pedro e São Paulo e o pessoal a bordo do escaler teve de remar dobrado, mas conseguiram realizar a tarefa.

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Retorno do escaler.

Para surpresa geral aquele homem jovem e cabeludo falou em perfeito italiano. Ele estava muito fraco e foi examinado, teve sua nudez coberta com um roupão branco e foi levado para o Conte Grande. Sua chegada causou verdadeiro frenesi a bordo, mas ele foi mantido isolado devido ao seu estado de saúde.

Logo se soube que o estranho se chamava Michel Formosa, era filho do inglês Francis Reynold Formosa e mãe italiana, havia nascido em Paris, morava na ilha mediterrânea de Malta, era técnico de rádio e falava fluentemente cinco idiomas. Formosa contou que havia feito economias para realizar o sonho de adquirir um pequeno barco e conhecer o mundo singrando os mares.

Sozinho no Atlântico

O solitário navegador conseguiu seu intento no ano anterior, batizando a pequena nave de O. K. e partiu da ilha de Malta, na época parte do Império Britânico, no dia 2 de outubro de 1938.

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Percorreu com certa dificuldade a parte da costa africana banhada pelo Mar Mediterrâneo, mas ultraou o Estreito de Gibraltar e ou a navegar no Oceano Atlântico. Sua primeira parada foi na cidade marroquina de Tânger, depois Las Palmas, (Arquipélago das Canárias), na sequência Bathurst (Atual Banjul, capital da Gâmbia), Bissau (Atual capital da República da Guiné-Bissau) e outros locais da África Ocidental.

Partiu em março na direção do Brasil com a ideia de chegar a Natal, cidade que comumente aparecia em noticiários de jornais e revistas que comentavam feitos e realizações aeronáuticas na Europa.

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Para Formosa o porto de Natal lhe aparecia como um ponto de apoio pequeno, limitado, mas muito bem localizado no extremo nordeste da América do Sul. Para ele pouco importava as dimensões do nosso porto, ou o tamanho de Natal. Para quem buscava atravessar o Oceano Atlântico em um veleiro com apenas cinco metros e meio de comprimento, o que importava era chegar vivo!

Durante sua travessia atlântica o navegador Formosa ou uma parte do tempo apreciando o mar, noutra dormindo, ou lendo livros sobre o Novo Mundo. Enfrentou dois dias de forte tempestade, mas o O. K.  ou bem a pressão. Em outro momento um nevoeiro muito forte, acompanhado de uma calmaria intensa o deixou em meio a um mundo com poucas referências visuais e um intenso silêncio.

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Um dia viu um navio brasileiro de carga e ageiros chamado Santarém, que veio em sua direção e aconteceu o contato narrado anteriormente. Para Formosa o melhor deste encontro no meio do mar foi saber que seguramente estava na rota certa. Mas no rápido encontro o navegador solitário britânico esqueceu-se de perguntar aos oficiais do Santarém se o farol dos Rochedos de São Pedro e São Paulo estava funcionando.

Queria Vir a Natal

Na madrugada de 26 de março o mar engrossou, e o vento se tornou mais e mais forte. As vagas invadiam continuamente o deck do barquinho a vela e tornava a navegação muito difícil. À noite a situação só piorou e a visibilidade se tornou mínima. Por volta da meia noite, já bastante cansado, Formosa vislumbra no meio da chuva o que lhe pareceu ser o cume de uma montanha. Ele sabia que o continente estava ainda muito longe e não havia visto a luz do farol de São Pedro e São Paulo. Logo escutou as ondas batendo nas pedras e tentou mudar o rumo, mas foi tarde demais.

Uma forte onde lhe arrancou o lema e o pequeno O. K. bateu forte em uma pedra e começou a afundar. Com o impacto Michel Formosa foi jogado para fora do veleiro e só não morreu por um impacto contra as rochas porque, de alguma forma, foi levado para um ponto no meio das pedras onde pode se agarrar e sobreviver sem maiores problemas. Ele saiu da água em meio a uma forte escuridão, muito frio e percebeu que estava nu.

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O fim do O.K. nas pedras de São Pedro e São Paulo.

Horas depois a chuva e o vento amainaram e o sol começou a despontar no horizonte trazendo luz e calor. Logo começou a compreender a natureza hostil dos Rochedos de São Pedro e São Paulo, onde água doce só era encontrada em pequenas frestas. Havia muitos pássaros e seus ovos, mas isso não daria para muita coisa.

Conforme o sol foi subindo no horizonte ele conseguiu divisar através das águas muito transparentes, a cerca de 10 metros de profundidade, o casco do O. K. e achou que valia a pena mergulhar para trazer coisas que pudessem lhe ajudar a sobreviver. Conseguiu chegar ao casco, mas logo percebeu a presença de tubarões rondando a área e se assustou.

Na superfície começou a explorar a maior das ilhotas, denominada Belmonte em honra ao navio da Marinha do Brasil que trouxe os construtores do pequeno farol em 1930.

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Michel Formosa com marcas no rosto das bicadas dos pássaros dos Rochedos de São Pedro e São Paulo. Luta pela sobrevivência.

Encontrou alguma madeira podre e um interessante pedaço grosso de espelho do agora inútil farol, que se estivesse em funcionamento teria evitado em todo o problema que agora vivia. Refletindo raios do sol conseguiu fazer uma fogueira e assou algumas aves marinhas que capturou em meio a uma luta que lhe deixaram feias marcas no rosto. Comeu também alguns ovos destas aves e esta foi sua única alimentação.

Quatro dias depois de chegar aquele esquecido local, viu surgir no horizonte um grande navio de ageiros. Com o coração aos pulos foi atrás do espelho do velho farol e ficou refletindo a luz do sol em direção ao navio, que foi ando, ando, diminuindo de tamanho, até que sumiu. Nessa hora, já debilitado pela falta de alimentação adequada e do medo de morrer a míngua naquele fim de mundo, Formosa se desesperou.

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O que ele não sabia era que seu esforço de visualização obteve êxito e sua presença nos rochedos desencadeou várias mensagens telegráficas que culminaram na chegada do Conte Grande e no seu salvamento.

No Rio e na Delegacia do Caçador de Comunistas

Depois de se recuperar, ser barbeado, ter o cabelo cortado, Michel Formosa foi contemplado com muito apoio e atenção a bordo do transatlântico italiano.

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Ele recebeu roupas, cigarros e já ou a dar entrevistas a alguns jornalistas que estavam a bordo e retornavam da Europa. Como todo bon vivant europeu que se prezasse naquela época, Formosa ou a curtir o momento plenamente. Por conta da empresa de navegação ou a tomar uns drinkzinhos no restaurante do navio, conversou com meio mundo de pessoas que estavam a bordo narrando sua epopeia e dizendo que o objetivo de sua viagem solitária era “dar a volta ao mundo”, com ideias de chegar até no Japão. Apareceu sorridente em fotos, com um cigarro pendurado no canto da boca, em uma imagem típica de ator canastrão francês.

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Logo, no dia 4 de abril, surgiu diante do Conte Grande a figura emblemática do Pão de Açúcar e a bela Baía da Guanabara.

Após o navio ancorar, já previamente avisados, subiram a bordo dois agentes da Polícia Marítima e Michel Formosa saiu escoltado para o conhecido Palácio da Polícia, na Rua da Relação, no centro da cidade. Ali ficava a sede da 2ª Delegacia Auxiliar, sob o comando do Dr. Linneu Chagas d’Almeida Cotta, muito conhecido por participar das investigações que culminaram na prisão de vários envolvidos na conhecida Intentona Comunista de 1935. Entre estes detidos figuravam os alemães Henry Berger e Olga Benário, além do então estudante baiano Carlos Marighella, este último detido em maio de 1936.

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O estrangeiro Formosa não estava entendendo nada sobre a razão de está ali. Na sua mente, sem deixar de ter certa lógica, ele era um ex-náufrago, que havia perdido tudo que tinha nos Rochedos de São Pedro e São Paulo e não poderia resolver aqueles problemas burocráticos apresentando o que não tinha.

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Michel Formose, já não tão sorridente, prestado declarações.

Para piorar a situação, certamente irritado com tudo aquilo, o inglês primeiramente se negou a responder qualquer coisa sobre si mesmo, falando apenas “No Entiendo” aos questionamentos feitos. Depois, sem saber o tamanho do perigo em que estava se metendo, partiu para responder com certa dose de ironia as perguntas do Dr. Linneu Cotta.

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Michel Formosa entre policiais.

Um jornalista narrou que a muito custo o estrangeiro comentou que era inglês e o delegado, depois de participar das investigações contra Henry Berger e Olga Benário, estava considerando tudo que Formosa dizia como sendo mentira, já o enquadrando como “extremamente suspeito” de ser comunista e ele acabou preso.

Ao ser informado da situação do ex-náufrago, a Embaixada Britânica no Rio, que na época ficava na praça XV de novembro, através do Vice Consul Noel Cameron Robinson, tratou de enviar com extrema urgência um telegrama para a legação britânica em Bathurst e saber a real situação de Michel Formosa.

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O ex-náufrago em liberdade.

Mesmo em uma época de comunicações limitadas, para sorte do súdito britânico preso, Bathurst confirmou no mesmo dia que o navegador solitário havia estado lá em 2 de fevereiro e que a sua situação era legal.

Sabedores do extremo perigo que o imprudente súdito de sua majestade corria se fosse acusado oficialmente de ser comunista no Brasil, os diplomatas britânicos prontamente entregaram um documento oficial sobre a situação do preso ao delegado Cotta, que soltou Formosa.

O Destino do “Vagabundo do Mar” na Guerra

Após sair do xilindró o navegador solitário inglês ainda foi notícia dos jornais cariocas por algum tempo, principalmente em “A Noite”. Inclusive durante semanas este periódico publicou uma serie de quadrinhos, produzidas pelo renomado cartunista Carlos Arthur Thiré, trazendo as aventuras de Michel Formosa.

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Comentou-se que através da “Editora S.A. A Noite” seria publicado o livro “O Vagabundo do Mar”, onde Formosa narraria sua epopeia marítima.

Notícias posteriores sobre Michel Formosa, que muitos periódicos afirmaram se chamar Michel Formose, comentou que através da ajuda do pessoal da equipe de remo do Fluminense Football Club seria conseguido um barco para ele continuar sua viagem. Mas parece que tudo ficou só nas promessas, pois as notícias sobre Michel Formosa desapareceram dos jornais cariocas.

Certamente a eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 3 de setembro de 1939, mudou tudo na vida deste homem. Em algum momento ele retornou a Europa, onde embarcou a serviço em navios de carga e em um deles, pouco mais de dois anos depois de sua aventura nos Rochedos de São Pedro e São Paulo, encontrou a morte.

KINGSTON HILL PRIMROSE HILL
S.S. Kingston Hill

No dia 8 de junho de 1941 o S.S. Kingston Hill seguia solitariamente no Oceano Atlântico. Com quase 130 metros de comprimento era um navio novo, lançado no mar pelo estaleiro escocês William Hamilton & Co. apenas seis meses antes. Transportava naquela viagem 8.300 toneladas de carvão e 400 toneladas de carga geral e pouco depois de uma da manhã este navio foi atingido por dois torpedos vindos do submarino alemão U-38.

u-38
O U-38 preparando-se para partir.

Esta nave de guerra era comandada pelo Korvettenkapitän (capitão de corveta) Heinrich Liebe, um dos quinze melhores comandantes de submarinos alemães, com um total de 34 navios afundados e um danificado durante seu tempo como comandante. Apenas para efeito de comparação em toda Segunda Guerra o Brasil teve 35 navios afundados e danificados por submarinos nazifascistas.

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Placa com os nomes dos mortos do navio Kingston Hill.

O Kingston Hill levou quase uma hora e meia para afundar, onde catorze membros da tripulação morreram e 48 sobreviveram. Entre os mortos constavam o capitão do barco e os bombeiros de bordo Daniel Taylor e Michel Formosa, que lutaram arduamente para tentar extinguir o fogo e salvar a nave. O nome de Michel Formosa consta em uma placa de bronze no memorial de Tower Hill, em Londres, junto com outros treze companheiros do seu barco que tiveram o mar como túmulo.

Ironicamente este ataque ocorreu a cerca de 520 milhas náuticas ao norte dos Rochedos de São Pedro e São Paulo.