MONTE DAS TABOCAS – O COMEÇO DA DERROTA DOS HOLANDESES NO BRASIL

Autor – Hermes Leôneo Menna Barreto Laranja Gonçalves*

Fonte – Revista BELLUM

Resumo: Este artigo versa sobre a Batalha do Monte das Tabocas, travada entre milícias portuguesas, compostas por elementos nascidos nos domínios portugueses e locais, e tropas regulares holandesas, da Companhia das Índias Ocidentais (WIC), em 3 de agosto de 1645, no interior de Pernambuco, no Brasil. O texto começa com um breve resumo da evolução do conflito, situado no Nordeste da então possessão portuguesa do Brasil, e destacando, inclusive, o caráter local, e peculiar, da resistência apresentada pelos portugueses, e nativos, aos agressores estrangeiros. Tais invasores, antigos parceiros comerciais dos portugueses, em face da absorção pela Espanha, seus inimigos, de Portugal, em 1580, decidiram pela ocupação das principais zonas produtoras de açúcar no Brasil, o que foi efetivado a partir de 1630. A seguir, já após a Restauração de Portugal, ocorrida 1640, a narrativa a a tratar das providências portuguesas, mesmo que de forma clandestina, haja vista a paz aparente entre Portugal e Holanda, para recuperar os territórios ocupados pelos holandeses. Dentre elas, está o apoio velado, em homens e armas, à sublevação, sobretudo de Pernambuco, contra os invasores estrangeiros. A partir daí o texto discorre sobre os eventos ocorridos logo após a eclosão da revolta ostensiva contra os holandeses, em meados de junho de 1645, culminando com a batalha, vencida de forma inesperada, pelos patriotas apoiados nas alturas do chamado Monte das Tabocas. Longe de despreparados militarmente, as milícias de Tabocas, adestradas pelo militar português Antônio Dias Cardoso, haviam se preparados por meses para apresentar valor militar suficiente para enfrentar as bem adestradas tropas holandesas. Finalizando, o artigo a então a tratar das consequências imediatas do combate nas Tabocas, destacando que foi o começo de uma longa série de vitórias das milícias locais, que, anos depois, já com apoio aberto da Coroa portuguesa, culminaram na rendição dos holandeses, na Campina do Taborda, então nos arredores do Recife, em Pernambuco.

De Formião, filósofo elegante, vereis como Anibal escarnecia, quando das artes bélicas, diante dele, com larga voz tratava e lia. A disciplina militar prestante não se aprende, Senhor, na fantasia, sonhando, imaginando ou estudando, senão vendo, tratando e pelejando (Os Lusíadas, Canto X, estrofe 153)

Conforme descrito na estrofe de Camões que abre este artigo, o ideal seria sempre buscar o conhecimento militar por meio da coleta oportuna de ensinamentos práticos no campo de batalha. Em tempo de paz, na (grata) impossibilidade de realizar essa tarefa com as duras experiências bélicas reais, entre outras possibilidades, os pesquisadores na área militar não devem esquecer-se de outro campo fecundo de ensinamentos doutrinários: a história militar.

Neste ponto, é sempre bom destacar que grandes chefes militares, como Napoleão Bonaparte, sempre instigavam seus principais oficiais a ler, e reler, os grandes clássicos militares em busca da exata noção dos princípios imutáveis da guerra.

Luís de Camões – Fonte – httpswww.cnc.pt450-anos-da-publicacao-de-os-lusiadas

Assim sendo, um dos conflitos militares de grande valor para o estudo da Arte da Guerra, em um ambiente operacional dentro do Brasil, vêm sendo as chamadas “Guerra Brasílicas”, ocorridas entre 1624 e 1654. Nesse longo conflito, dentre outras, as batalhas dos Guararapes (abril de 1648 e fevereiro de 1649) vêm sendo destacadas por historiadores militares, brasileiros e portugueses, por sua grande importância para a vitória da Restauração de Portugal (1640-1668), após a conturbada União Ibérica (1580-1640).

Contudo, tais vitórias não foram concretizadas nem rápida nem facilmente, tendo demandado uma longa preparação por parte dos patriotas portugueses empenhados, pelo menos, desde 1645, na libertação do Nordeste do Brasil do jugo holandês.

O longo conflito entre as Províncias Unidas dos Países Baixos (Holanda), representadas pela Companhia das Índias Ocidentais, e Portugal, em terras brasileiras, uma verdadeira “Guerra dos 30 anos no Brasil”, teve suas origens remotas quando os portugueses, após o desastre militar ocorrido em Alcácer-Quibir (1578), acabaram caindo sob o jugo espanhol. A Espanha, após a União Ibérica, e então sob a dinastia dos Habsburgos, tornou-se um verdadeiro império global, com inimigos diversos, dentre eles a República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos (1581-1795), entidade política hoje conhecida como Países Baixos, ou, mais simplesmente, a Holanda.

Filipe II de Espanha, Filipe I de Portugal em 1570 – Fonte -Philip_II_by_Alonso_Sánchez_Coello

Esta, em face da sua antiga inimizade com a Espanha, acabou por iniciar hostilidades com Portugal, agora submetida à Coroa de Espanha. Nessa lógica, em termos práticos, os portugueses, e seus vastos territórios ultramarinos, em especial o Brasil, ficaram proibidos de comerciar com os holandeses, antigos aliados e parceiros comerciais de longa data, o que lhes acarretou enormes prejuízos.

Dentre o vasto leque de parcerias comerciais frustradas pela união das coroas espanhola e portuguesa, destacou-se a da comercialização do açúcar de cana produzido por engenhos por todo o Brasil, com destaque para os da sua região Nordeste. Estes, por terem sido originalmente financiados pelo capital holandês, foram um exemplo do arranjo econômico mutuamente satisfatório que havia entre Portugal e Holanda – até 1594, ano em que os holandeses começam a cobiçar abertamente as riquezas do Brasil – em especial o açúcar e o pau-brasil (Simonsen, 2005).

Mapa ilustrado das antigas refeituras holandesas de Pernambuco e Itamaracá, durante a ocupação holandesa do Nordeste do Brasil (1630-1654). Ano de 1662. Fonte: Atlas of Mutual Heritage.

Não obstante, os holandeses, ao se verem privados dos lucros que tradicionalmente obtinham com sua antiga parceria açucareira, e às turras com os novos senhores de Portugal, planejaram uma série de ações hostis contra a zona açucareira do Brasil: inicialmente, sem sucesso, na Bahia e, com algum lapso, invadindo um setor, até então, menos defendido, a Capitania de Pernambuco (Daróz, 2010). Cabe mencionar que as ações hostis levadas a cabo, foram realizadas por um braço comercial das Províncias Unidas, chamado Companhia das Índias Ocidentais (WIC), criada na esteira de um empreendimento similar (a Companhia das Índias Orientais), que foi usado, com sucesso por comerciantes holandeses para incursões militares contra territórios hispano-portugueses no Oriente (Ilhas Molucas, Java e outras antigas possessões ibéricas).

É interessante também notar que, desde a primeira incursão holandesa (1624-1625), o ataque à praça-forte de Salvador, já haviam ocorrido menções a uma forte resistência aos invasores por meio de uso de táticas de fustigação (ataques inesperados, desgastantes e mortíferos) pelos habitantes locais (Varnhagen, 1872). Tal estado de coisas privou aos invasores a possibilidade de firmarem o domínio sobre a Zona do Recôncavo, ou seja, as áreas de produção de alimentos para a subsistência no entorno da então cidade-fortaleza e capital do Brasil seiscentista.

Enfraquecidos pela resistência montada pelos habitantes locais, as forças holandesas mantiveram posição enquanto puderam ser reabastecidos por via marítima, o que permaneceu inalterado, até que uma forte armada de naus portuguesas, espanholas e napolitanas, a comando de D. Fadrique de Toledo, proveniente da Europa, nos primeiros meses de 1625, iniciou um bloqueio total a Salvador, forçando os holandeses à rendição (Ibid.).

Bandeira da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais ou Companhia Neerlandesa das Índias Ocidentais (em neerlandês: West-Indische Compagnie ou WIC)- Fonte – Wikipédia.

Apesar dessa derrota inicial, os holandeses não desistiram, e, financiados com recursos obtidos por meio de incursões corsárias contra os transportes de prata espanhóis na região do Caribe, logo voltaram a atacar. Em 1630, mais experimentada, e em maior número, a WIC tentou nova incursão, desta feita na já referida Capitania de Pernambuco. Para tal ofensiva, organizaram uma força militar com 54 navios de guerra, e entre 6.200 e 7.200 militares, com os quais desembarcaram, sem muita resistência inicial, na praia do Pau Amarelo (situada a cerca de 16 quilômetros ao norte de Olinda). Rapidamente, ocuparam Olinda e, posteriormente, o porto do Recife, mais ao sul (Freire, 1675 e Jesus, 1679).

Mais importante, sem perda de tempo, e, sem dúvida, tentando evitar o ime surgido na ocupação de Salvador, as forças holandesas ampliaram a sua área de ocupação para o interior, buscando: dominar a região dos engenhos de açúcar (a chamada Zona da Mata) e garantir fontes de abastecimento alimentar para suas posições litorâneas.

Apesar do sucesso inicial avassalador, a resistência ibérica se fez notar por meio de diversas ações do mestre de campo general (tenente-general) de Pernambuco, Mathias de Albuquerque, com destaque para o incêndio dos depósitos de açúcar do Recife. Além disso, conseguiu manter vívida a reação local ao invasor, sobretudo por meio das chamadas “companhias de emboscada” ou “companhias de assalto” (Barroso, 2019, p. 16).

Olinda na época dos holandeses no Nordeste do Brasil – Fonte – John Ogilby’s atlas America Being the Latest, and Most Accurate Description of the New World, London, 1671, p. 504

Como visto acima, essas pequenas unidades de guerra irregular tiveram sua origem imediata na defesa popular apresentada anteriormente em Salvador, sendo novamente ativadas por Mathias de Albuquerque no famoso Arraial Velho do Bom Jesus – cujas fundações estão hoje situadas nos arredores do Recife – e que mantém em suspenso a vitória completa dos holandeses (Vianna, 1948).

Tais companhias de emboscadas, durante cerca de cinco anos, em que pese suas limitações de efetivos e de meios, conseguiram manter o invasor em constante sobressalto, impedindo seu livre trânsito pelas estradas, atacando patrulhas, destacamentos e comboios inimigos, impedindo assim a pacificação do território (Freire, 1675).

Esses grupamentos de milicianos locais e portugueses, reforçados por indígenas e negros escravos (libertos ou não), utilizaram ao máximo táticas de guerrilhas ancestrais do Velho Mundo, mescladas com táticas de uso corrente pelos indígenas brasileiros. Aliaram, ainda, um elevado conhecimento do terreno, e do clima tropical, para maximizar o efeito de suas ações de interdição e atrito contra o invasor.

Recife no tempo dos holandeses no Nordeste do Brasil – Fonte – Rerum in Brasilia et alibi gestarum by Caspar Barlaeus

Mesmo assim, sem apoio da metrópole, e sitiado por forças holandesas superiores, o Arraial Velho, cercado, rendeu-se em 1635, tendo Mathias de Albuquerque escapado com parte significativa dos habitantes originais de Pernambuco (cerca de 7.000 pessoas) para a Capitania Real da Bahia. No caminho, cercaram e ocuparam o forte de Porto Calvo, tendo então capturado, julgado e executado Domingos Fernandes Calabar, responsável pela traição que gerou a derrocada portuguesa naquele ano.

Deste momento em diante, até 1645, os holandeses conseguiram um arranjo político e militar que lhes permitiu obter vários anos de estabilidade na região (governo de Maurício de Nassau). Com isso, inclusive e gradualmente, ampliaram seu controle territorial sobre a região nordeste brasileira, culminando com uma nova incursão a Salvador (1638) e a breve ocupação do Maranhão (1641 a 1643).

No ano de 1645, contudo, já com o domínio holandês politicamente bastante desgastado, um grupo de patriotas nascidos dentro e fora do antigo Estado do Brasil, em plena Guerra de Restauração entre Portugal e Espanha (travada entre 1640 e 1668), decidiram reacender a luta contra os invasores holandeses no nordeste brasileiro. Essa luta, acesa desde 1624, pelo menos, haveria de se arrastar por quase mais uma década, tendo demonstrado o elevado valor militar dos combatentes portugueses, nascidos, ou não, em Portugal.

Antônio Dias Cardoso, Cavaleiro da Ordem de Cristo,foi um dos principais líderes contra os holandeses, em detalhe do quadro de Victor Meirelles – Fonte – Wikipédia.

Contudo, mesmo com a Restauração de Portugal, efetivada em 1640, o Reino liberto tentou aos poucos retomar a autonomia que perdera por 60 anos. Na realidade, de imediato, não teve condições políticas, nem, especialmente, financeiras, de lutar abertamente por suas territorialidades perdidas enquanto sob jugo espanhol.

Mesmo assim, de forma velada, as autoridades portuguesas em Salvador buscaram manter vivo o espírito de resistência pernambucano, o que fizeram por meio do envio clandestino de recursos, suprimentos e homens de armas, como, por exemplo, um destacado militar chamado Antônio Dias Cardoso.

Segundo assentamentos existentes, o mestre de campo Antônio Dias Cardoso, Cavaleiro da Ordem de Cristo, teria nascido no Porto, por volta da virada do século XVII, filho de pais com origem fora da nobreza, tendo vindo jovem para o Brasil para tentar a sorte nas lides castrenses (Bento, 2013). Por relato de cartas-patentes de 1648 e 1656, existentes no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (situado em Lisboa), temos que esse renomado militar português teria servido no Brasil, de forma contínua e sempre de armas na mão desde 1624.

Carta-patente de promoção a mestre de campo concedida por El Rei de Portugal em 4 de maio de 1656. Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

Ao longo desse longo período, foi sendo sucessivamente promovido a alferes, ajudante, capitão, sargento mor e, finalmente, mestre de campo, sempre por meritórios serviços na guerra contra os holandeses. Nesse documento, há referências a seus destacados serviços, provavelmente, sob o comando de Matias de Albuquerque, “em varios asaltos, emboscadas e recontros que se lhe ofereçerão junto da villa de Olimda nas fortificações do Reçife e outras estançias adonde proçedeo com vallor conhecido” (sic) (Lisboa, 1648), e depois, sob João Fernandes Vieira e Francisco Barreto, quando “procedendo nellas (pelejas e batalhas) cô valor conhecido signalandosse nas mais das ditas ocasioens recebendo nellas feridas de que sua vida correo grande perigo e na aclamação da liberdade daquelas Capitanias […] que demais trabalhou” (Lisboa, 1656).

Por essa destacada folha de serviços, ainda servindo no Brasil, em dezembro de 1644, ou começo de 1645, foi designado pelo Governador do Brasil, então sediado em Salvador, para se infiltrar na Capitania de Pernambuco, “acompanhado por 60 homens escolhidos”, a fim de prover apoio militar, ainda que de forma velada, aos patriotas que então começavam a querer se insurgir contra o domínio holandês (Netscher, 1942, p. 223).

A partir dessa histórica infiltração, Antônio Dias Cardoso e seus homens começaram a instruir, nas matas que cercavam alguns engenhos na Zona da Mata pernambucana, o que pode ser considerado como o núcleo militar dos patriotas em armas para a libertação de Pernambuco e das demais capitanias subjugadas pelo invasor estrangeiro. Em paralelo, em meados de 1645, a paz relativa nas áreas ocupadas pelos holandeses, rapidamente caminhou para o conflito militar aberto.

João Fernandes Vieira – Fonte – Wikipédia.

O ponto inicial dessa conflagração começou justamente quando as forças patriotas, comandadas por João Fernandes Vieira (natural da ilha da Madeira) e pelo já referido sargento mor Antônio Dias Cardoso, conseguiram atrair um considerável contingente holandês para um combate nos termos desejados pelas forças locais. Tal atração se deu justamente pela constatação dos holandeses acerca da presença de uma força insurgente significativa, nos arredores do Recife, o que levou a uma ofensiva militar.

Em 3 de agosto de 1645, uma força holandesa com cerca de 1.500 holandeses e indígenas tapuias, comandados pelo coronel Hendrik van Haus, avançou sobre posições dos chamados “rebeldes” na região hoje conhecida por Monte das Tabocas, sendo surpreendidos pelo terreno (que desconheciam) e pelo número, ímpeto e audácia das milícias patriotas que realizaram seguidas emboscadas desmoralizantes sobre suas tropas (Jesus, 1679).

Esquema gráfico mostrando movimentos militares holandeses e as posições portuguesas anteriores ao confronto de 3 de agosto de 1645. Fonte: Google Earth, com esquemas esboçados pelo autor.

Segundo o historiador brasileiro, coronel Claudio Rosty, em Tabocas, dos cerca de 1.200 patriotas em presença, somente cerca de 200 teriam armamento de fogo, estando os demais “armados” de forma improvisada (flechas, piques com pontas tostadas, terçados e mesmo pedras) (Rosty, 2002). Por outro lado, aparentemente, os cerca de 700 holandeses, e mais outros tantos indígenas aliados, estavam muito mais bem armados e equipados, do que os patriotas, muito embora Nestscher alegue que essa tropa era a última unidade móvel, fora das fortificações, e carecesse de pagamentos e o mínimo suprimento bélico (inclusive munições) (Netscher, 1942).

Conforme o frei Rafael de Jesus, na época da batalha o Monte das Tabocas, situado a cerca de 40 quilômetros do centro do Recife, tinha uma configuração vegetal que lhe deu o nome: cheio de tabocas, ou seja, renques de bambu grossos, em linhas sucessivas, com agens limitadas para o prosseguimento rumo ao topo (Jesus, 1679). A primeira linha de tabocas então distaria cerca de 1.000 metros do curso do rio Tapacurá, após uma campina, e, segundo Santiago, acompanharia a trilha em aclive para o alto do monte (Santiago, 1984).

Vista recente do Rio Tapacurá, a montante do local de travessia holandês, onde hoje existe um pequeno açude. Fonte: Instituto Histórico e Geográfico de Vitória de Santo Antão.

ado este primeiro tabocal, depois de um descampado de menor extensão, haveria um segundo renque que ascendia quase ao topo do monte. Por sinal, o cimo, à época estava com densa cobertura de árvores e, em sua orla, mais um renque dos já citados tabocais (Jesus, 1679).

No caminho para a presa, que julgavam certa, os holandeses avançaram meio que temerariamente, tendo, ao cruzar o rio caudaloso, provavelmente diminuído consideravelmente (por ação da umidade) sua pretensa superioridade de fogos. Além disso, com fardas e apetrechos molhados, o solo úmido e barrento (pesado), deve ter atritado bastante a necessária coesão das linhas batavas.

Tanto Santiago como Jesus apontaram que os patriotas fizeram uma emboscada inicial na transposição do curso d´água, o que só tornou mais instintiva a reação dos holandeses ao que se mostrou ser uma isca para as emboscadas principais que transcorreram mais adiante (Santiago, 1984).

Primeiras emboscadas da Batalha do Monte das Tabocas. Ilustração de Alcebíades Miranda Júnior.
Fonte: História do Exército Brasileiro, Estado-Maior do Exército Brasileiro, 1ª edição, 1972.

Com isso, após o rio, e depois de um provável dificultoso avanço pela campina barrenta, quase na primeira linha de tabocas, os atacantes foram acometidos por sucessivas emboscadas, de variados pontos (provavelmente por uma mescla de fogos, flechas e mesmo pedras). Tendo então reduzida a capacidade de fogos, após uma provável pausa para reajuste de seus dispositivos, os homens de Van Haus avançaram pelas poucas agens disponíveis na primeira linha de tabocais, rumo ao segundo descampado, já diante de aclive considerável.

Esquema da Batalha do dia 3 de agosto de 1645, no Monte das Tabocas, onde se destaca: o avanço holandês (vermelho), as emboscadas portuguesas e o contra-ataque de João Fernades Vieira (azul). No canto superior direito, detalhe com a visão do monte a partir do leste.
Fonte: Google Earth, com esquemas esboçados pelo autor.

A partir daí, os holandeses sofreram novas emboscadas de desarticulação, persistindo na subida monte acima, com suas linhas bastante desarticuladas, quando então foram contra-atacados pelos defensores, provenientes do alto do monte. Estes se lançaram num decidido combate corpo-a-corpo com a tropa holandesa, já desequilibrada, que acabou por recuar.

É narrado que o destemido coronel Van Haus repetiu por mais três vezes o assalto inicial. Na quarta, e última, tentativa, já no lusco-fusco (e tendo sido o tempo inteiro fustigado por novas emboscadas), mesmo assim, quase tomou o cume. Contudo, nessa altura, a tropa estrangeira, com o moral abalado por insucessos contínuos ao longo da jornada, se desmoralizou, e começou a abandonar o campo de batalha, cruzando de volta o rio para longe dos resolutos defensores (Daróz, 2016).

Quando a noite caiu, os defensores mantiveram, e melhoraram, suas posições no campo de batalha, se preparando para os eventuais novos ataques que poderiam vir no dia seguinte. Nesse ponto, João Fernandes Vieira, mandou patrulhas percorrerem os arredores de onde transcorrera o centro da batalha, tendo os portugueses “achado 50 olandeses, que davão guarda a mais de quatrocentos feridos, que desmayados pella falta de sangue, & pello trabalho da marcha, não poderão ar avante na conserva dos seus” (Jesus, 1679, p. 305-306).

Com o raiar do dia e com a confirmação do abandono do campo pelos holandeses, ficou patente a vitória dos locais (Ibid.), com o que, com o sucesso confirmado, os patriotas, senhores do campo de batalha, capturaram grandes quantidades de mosquetes, arcabuzes, espadas, outros armamentos e, sobretudo, pólvoras e munições (Daróz, 2016).

A partir deste e de outros reveses inesperados (com destaque para o combate da Casa Forte de Rita Gomes), e até as batalhas dos Guararapes, os holandeses praticamente deixaram de atuar no interior do Nordeste brasileiro, tendo ficado s a algumas cidades e fortes litorâneos, com destaque para as localidades de Olinda, Recife e Itamaracá.

Após as batalhas dos Guararapes, entre 1649 e 1654, as forças patriotas sitiaram o centro de gravidade político holandês na região, ou seja, o binômio Olinda-Recife, sufocando essas de serem reabastecidas de víveres e outros insumos, salvo pelo mar.

Desse modo, surgiu um ime, pois graças à hegemonia naval holandesa no mesmo período e sem artilharia de sítio (pesada), não havia como as forças patriotas, sem armamentos e equipamentos adequados, investirem essas cidades fortificadas. Segundo Castro (2022), isso perdurou até que uma frota portuguesa conseguiu cortar as comunicações holandesas, levando à rendição do esquema defensivo montado pela Companhia das Índias Ocidentais, na Campina do Taborda, em 1654.

Vista aérea recente, de norte para sul, do cume do Monte das Tabocas. Fonte: Imagem aérea de Djalma Andrade.

Voltando ao Monte das Tabocas, no que tange às inovações táticas apresentadas pelos patriotas no episódio, pode-se dizer que elas surgiram tanto das circunstâncias (exército de patriotas sem recursos) quanto da natureza do ambiente operacional (clima quente, úmido e coberto de florestas, campinas e zonas alagadiças) que os envolvia. Além disso, aquele núcleo inicial de combatentes aproveitou o melhor conhecimento geográfico e a maior resistência de seus integrantes a um clima tropical do que seu inimigo europeu, apesar do apoio prestado por índios tapuias e potiguaras ao holandês.

Vista aérea do Monte das Tabocas, com a seta indicando a direção do ataque principal holandês, sobre a várzea do Rio Tapacurá, em 3 de agosto de 1645. Fonte: Imagem aérea de Djalma Andrade.

Enquanto os holandeses, mais por hábito do que por adestramento, combatiam, quase que atavicamente emassados no seu típico batalhão seiscentista, os luso-brasileiros, até por conta da carência de armamentos de ponta, foram forçados a combater em ordem aberta. Era observação comum pelos holandeses que a tática patriota era romper os “quadrados” holandeses e, a partir daí, partir para a luta corpo-a-corpo na qual a tropa local tinha grande vantagem, até mesmo pelo pouco equipamento em face das agruras do clima (Rosty, 2002).

Outra observação holandesa reveladora é que a artilharia holandesa quase sempre era inútil nas refregas, em menor ou maior escala (tornado-se assim um estorvo), haja visto que as peças visavam molestar linhas de soldados em ordem cerrada, coisa que raramente viam os patriotas perfazer em campo aberto (Netscher, 1942).

Mais uma vez é razoável presumir que tal superioridade organizacional, em que pese a penúria dos patriotas, possa ter prestado um desserviço ao invasor, ao menos naquele momento. Senão vejamos: segundo Jesus (1679), o tempo na época da batalha estava muito instável e chuvoso, com o que o caudal do rio Tapacurá, normalmente vadeável, estava bastante forte e elevado. Segundo consta, a tropa holandesa provinha da vila de São Lourenço, distante pelo menos 20 quilômetros à nordeste do Monte das Tabocas, tendo avançado, decididamente, para esmagar os patriotas, cujas posições estimavam estar no chamado Engenho do Covas. Não os encontrando ali, foram atraídos para a nova posição, distante cerca de 15 km mais adiante (Jesus, 1679).

Vista recente da várzea entre o Rio Tapacurá e o sopé do Monte das Tabocas, palco principal dos combates de 03 de agosto de 1645. Fonte: Foto de Jones Pinheiro

Dos variados relatos dessa batalha, podemos destacar alguns princípios da guerra ali utilizados que, com ligeiras variações, também estarão presentes, igualmente, nas 1ª e 2ª batalhas dos Guararapes, como por exemplo: surpresa, ofensiva, segurança e unidade de comando. Além disso, os patriotas empregaram um judicioso uso do terreno (para forçar o combate), agressividade nas ações ofensivas, amplo emprego de operações de inteligência e psicológicas, exploração das agruras do clima local, sem esquecer a notável ação de comando e capacidade de liderança evidenciadas pelos comandantes, em todos os níveis (Rosty, 2002).

Em face do acima exposto, de forma bem resumida, cabendo até maiores aprofundamentos, é lícito dizer que foi no Monte das Tabocas o ponto de partida para o processo que culminou nas chamadas batalhas dos Guararapes (já no contexto do comando militar vitorioso de Francisco Barreto de Menezes, o Conde do Rio Grande).

É certo que a formação dessa força militar efetiva, cujo cerne surgiu no Monte das Tabocas, baseou-se em um longo processo de aclimatação local de uma estratégia tão antiga como a guerra: a aproximação indireta. Esta, como bem é sabido da história militar, quase sempre foi o padrão histórico de resposta a agressores externos com grande capacidade militar frente a defensores menos preparados.

Vista da capela de Nossa Senhora de Nazaré, erguida nos anos 1960, conforme desejo nunca realizado de João Fernandes Vieira, líder da Insurreição Pernambucana (1645-1654).
Fonte: Instituto Histórico e Geográfico de Vitória de Santo Antão.

Logo, nos Guararapes consolidou-se uma doutrina autóctone, que traduziu para a geografia o clima e a personalidade dos locais, os grandes avanços doutrinários da chamada Guerra dos 30 Anos, na Europa. Por outro lado, podemos dizer que nas Tabocas, por sua vez, é que teria surgido o primeiro esboço dessa futura reação militar.

É que, como vimos, foi lá que o grande artífice do chamado “Exército Libertador”, o mestre de campo Antônio Dias Cardoso, testemunhou suas tropas improvisadas aplicarem, vitoriosamente, as técnicas de emboscada, guerrilha e “de matar”, que treinaram por meses, sob toda a sorte de dificuldades, homiziados contra a repressão holandesa nas chamadas matas do “pau brasil” (Bento, 2018).

Nessas verdadeiras oficinas doutrinárias naturais, Dias Cardoso trouxe para o aprendizado inicial das táticas, técnicas e procedimentos necessários para a vitória: capatazes, ferreiros, mascates, comerciantes, escravos libertos, índios, além de um bom número de milicianos portugueses.

Tal núcleo de insurgentes, aliás, que foi fundamental para a vitória no Monte das Tabocas, é considerado, igualmente, hoje em dia, pelos historiadores militares brasileiros, como “a célula mater do Exército Brasileiro, no solo hoje defendido pelo moderno Comando Militar do Nordeste” (Bento, 2013).

Hoje, ados quase quatro séculos daquelas históricas jornadas militares, o Exército Brasileiro, além de outros vultos históricos daquele período, vem buscando homenagear o heroísmo, a coragem, a abnegação e o conhecimento profissional, demonstrados pelo mestre de campo Antônio Dias Cardoso. Isto vem sendo executado por modos diversos, mas inclusive pela atribuição do nome, e da memória, desse personagem histórico como patrono do 1º Batalhão de Forças Especiais – “Batalhão Antônio Dias Cardoso” –, atualmente sediado em Goiânia, capital do estado brasileiro de Goiás.

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VARNHAGEN. Francisco Adolpho. Historia das lutas com os hollandezes no Brazil: desde 1624 a 1654. Lisboa: Typographia de Castro Irmão. 1872. Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/518737. o em 06 jun. 2023.

VIANNA, Helio. Estudos de História Colonial. São Paulo: Companhia Editora Nacional,1948.

*Hermes Leôneo Menna Barreto Laranja Gonçalves é coronel de Engenharia do Exército Brasileiro. Formado na Academia Militar das Agulhas Negras, cursou a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, onde concluiu o Curso de Comando e Estado-Maior, e, em paralelo, o Mestrado Acadêmico em Ciências Militares, este pelo Instituto Meira Mattos. Atuou como Oficial de Ligação para Assuntos Culturais e Doutrinários junto ao Exército Português entre julho de 2022 e junho de 2024. Atualmente exerce o cargo de chefe do Gabinete da Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural do Exército.

HISTÓRIA MILITAR DO RIO GRANDE DO NORTE – PARTE 2 – OS COMBATENTES

Felipe Nery de Brito Guerra – Publicada originalmente na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, 1927, Volumes XXIII e XXIV, páginas 228 a 239.

* Informação do Blog Tok de História – Como comentado anteriormente, busquei atualizar o centenário texto do Desembargador Felipe Guerra, sem, contudo, alterá-lo. Foi necessário também dividi-lo em duas partes, uma dedicada as lutas e outra aos combatentes potiguares, que será a nossa próxima publicação.. 

Entre seus filhos que mais se distinguiram por feitos militares é preciso citar que nos dois primeiros séculos da conquista, os Potiguares ILHA GRANDE, JACAÚNA, e o maior de tolos eles, Dom Antônio Felipe Camarão, chefe dessa valorosa tribo que, já em 1603, havia fornecido 800 guerreiros para pacificar os Aimorés, que se revoltaram na Bahia, e para dar fim aos Quilombos, que infestavam a região do Itapecuru, na mesma Capitania.

Retrato anônimo de Felipe Camarão, do século XVII, no Museu do Estado de Pernambuco– Fonte – Wikipedia.

Inquestionavelmente na grande crise da luta holandesa, o mais sério e grave perigo que ameaçou a integridade do Brasil, na frase de Silvio Romero, foi Camarão um dos mais valorosos generais, e o completo conhecimento que tinha, do teatro da luta, pode-se bem avaliar quão decisivo foi o papel que desempenhou na campanha. Não é esta a ocasião de escrever a vida de Camarão, já proficientemente estudada pelo desembargador Luiz Fernandes.

Cabe, porém, citar ligeiramente alguns episódios.

Camarão recebera ordens para estabelecer guerrilhas contra os holandeses entre Goiana e Itamaracá. “O terror que incutia o seu nome era tal que o general holandês Arciszewski (Krzysztof Arciszewski) saiu de propósito do Recife com mil soldados para destruir esse punhado de valentes guerrilheiros e prender seu chefe”.

Krzysztof Arciszewski- Fonte – Wikipedia.

Sobre o resultado da empresa disse o próprio general holandês: “Há mais de quarenta anos que milito na Polônia, na Alemanha e em Flandres, ocupando sem interrupção postos honrosos; mas só o índio Camarão veio abater-me o orgulho”.

Logo depois, seguiu Camarão para Alagoas guiando, através de 70 léguas de território dominado pelo inimigo, milhares de pessoas até Porto Calvo, onde se achavam as forças do general em chefe de então. Sob o comando do conde da Torre, auxiliou eficazmente a defesa da Bahia, recebendo ordens dele para percorrer os sertões hostilizando os holandeses. Portou-se de tal forma nessa excursão que, referindo se a ele, o inimigo chamou-o Anjo do extermínio.

Juntou-se depois as forças de Luiz Barbalho, que haviam desembarcado em Touros, no Rio Grande do Norte, após a derrota sofrida pela esquadra do conde da Torre, guiando essas forças, com Vidal e Henrique Dias, por ínvios sertões em luta aberta contra os inimigos até a Bahia, onde chegaram “a tempo de poder livra-la de ser atacada e tomada pelas forças do almirante Lichthart (Jan Cornelisz Lichthart), já as suas portas“. Os holandeses haviam seguido de porto a coluna sem alcança-la, vingando-se cruelmente ao matar aqueles que, doentes ou estropiados, não podiam acompanhar a heroica retirada que assim caminhou cerca de quatrocentas léguas.

Quadro que mostra os fortes na foz do Rio Paraíba, capturados pelo almirante Lichthart em 1634 – Fonte – Wikipedia.

Regressando a Pernambuco ordenou Vital a Camarão que viesse prosseguir novas hostilidades no Rio Grande do Norte e vingar, nesta parte do Brasil, tantas crueldades não só dos selvagens, como dos próprios holandeses, que se bem que cristãos de nome, mais bárbaros se haviam mostrado que os índios.

Camarão cumpriu o seu mandato muito além do que se podia esperar; e conseguindo chamar a si um grande número de índios que estavam com o inimigo, chegou a dominar todo o sertão do norte até os confins do Ceará”. Assim se exprimiu o visconde de Porto Seguro, citado pelo desembargador Luiz Fernandes, que muito judiciosamente acrescenta: Acreditamos que esse fato reduzindo a força dos Tapuias, poderosos aliados dos holandeses, foi uma das causas determinantes do seu enfraquecimento e consequente perda das suas conquistas“.

Frota de guerra holandesa – Fonte – Wikipedia.

Esse homem superior ao cansaço, lutando da Bahia ao Ceará, esse general de gênio que soube aliar o esforço e a disciplina no cumprimento do dever à coragem do soldado, à estratégia do índio, gozando da férrea resistência do selvagem, pode ser colocado ao lado de Caxias, como um dos fatores da integridade nacional, sem desdouro para este general que ocupa o ponto culminante na história militar e política do Brasil.

Não houve uma só ação, diz Fernandes Pinheiro, em que se pleiteasse a causa da liberdade, em que os batavos não sentissem o peso do seu braço, empalidecendo ao ouvir seu nome aqueles mesmos que nas águas do Zuiderzee haviam submergido os brasões de Castela.

O indígena Antonio Felipe Camarão (ilustração de autor desconhecido/Domínio público) e, ao fundo, carta escrita por ele a Pedro Poti – Imagens: Arquivo de Eduardo Navarro.

Hoje, para bem se poder aquilatar o valor da intervenção de Camarão na guerra holandesa é suficiente refletir que, em uma época de arraigados preconceitos de raça, de nobreza e de religião, ele representante de selvagens, sobre os quais a qualidade de “humanos” havia sido objeto de controvérsias, recebia excepcionais distinções não só da parte dos que se achavam à frente da luta como também da parte da Côrte da Metrópole.

Assim, por carta regia de 1633 foi-lhe conferido brasão d’armas, 40$ de soldo e patente de Capitão-mor de todos os Índios do Brasil. Depois o rei da Espanha também lhe conferiu o Hábito de Cristo e o tratamento de Dom, e mais tarde foi recompensado cora a comenda lucrativa, na Ordem de Cristo dos Moinhos da Vila de Soure, em Portugal, com que eram galardoados os heróis lusitanos que se distinguiam por serviços em guerras na África, havendo excepção para Camarão, conforme diz o visconde de Porto Seguro: “Por faltarem serviços em África, ocorreram dúvidas e foi necessário dispensa da Cúria, de modo que a comenda só chegou a realizar-se a 3 de maio de 1641”.

De volta de suas excursões guerreiras, a junção de Camarão aos chefes da guerra era recebida como um desafogo. A sentinela, diz o historiador Southey, que teve a fortuna de anunciar a vinda de sete índios do regimento de Camarão, que traziam aviso da próxima chegada do seu comandante, deu Vieira dois escravos de alvissaras..

O indígena Antonio Felipe Camarão (ilustração de autor desconhecido/Domínio público) e, ao fundo, carta escrita por ele a Pedro Poti – Imagens: Arquivo de Eduardo Navarro.

O Brasil ainda está em dívida para com esse seu glorioso filho: falta-lhe um monumento digno, capaz de exteriorizar a gratidão nacional para com o mais genuíno representante da raça aborígene.

E Portugal? Os holandeses chegaram a dominar até Sergipe. A política portuguesa pensou seriamente — e manifestou em acordo — reconhecer o domínio holandês. Firmado essa dominação, teria a colonização portuguesa resistido a pressão holandesa do norte para o sul; a pressão espanhola ao sul; as ambições sas?

E se a bela língua de Camões se estende hoje a uma região cem vezes maior que Portugal, e é falada por uma população cinco vezes maior do que a do seu país de origem, deve a expulsão dos holandeses do Brasil, para qual o gênio de Dom Antônio Felipe Camarão teve preponderante e decisivo valor. Portugal acha-se assim também em dívida para com o grande Poti.

Dona Clara Camarão era mulher do índio potiguara Antônio Felipe Camarão (na gravura da direita), herói decisivo na guerra dosbrasileiros e portugueses contra o invasor holandês. Fonte – https://auniao.pb.gov.br/noticias/caderno_diversidade/clara-camarao

Dona Clara Camarão, legitima esposa de Felipe Camarão, tomou parte nas lutas e acompanhou seu marido nas horas de extremo perigo, batendo-se denodadamente ao seu lado. Da grande emigração de Mathias de Albuquerque, diz a história: “Nesta penosa emigração distinguiram-se pelos seus grandes feitos militares Felipe Camarão e sua mulher Clara Camarão”.

Na revolução do 1817, como já ficou dito, não foram os feitos guerreiros que imortalizaram a gloriosa tentativa. Assim diz o Capitão Alípio Bandeira no seu completo estudo histórico — O Brasil Heroico de 1817 — “o que constitui a gloria dos heróis de 1817 é o esforço valoroso com que trabalharam pela nossa autonomia política, são as reformas verdadeiramente liberais que eles tentaram implantar no governo que estabeleceram, são a lisura e o desprendimento, a lhaneza e a tolerância, em suma — a honesta fraternidade com que invariavelmente procederam”.

Depois de abafado o movimento, nenhuma revolução no Brasil fez tantos mártires quanto a de 1817. Segundo a citada obra do Capitão Alípio Bandeira, foram fuzilados quatro patriotas, enforcados nove, supliciados em horrorosas prisões por mais de três anos e meio cerca de trezentos, e por mais de um ano cerca de duzentos!

Do Rio Grande do Norte, além do nobre chefe André de Albuquerque, estúpida e barbaramente assassinado em Natal, além de Miguelinho, o puro e evangélico mártir, ambos riograndenses, fornece a história numerosa lista de patriotas martirizados nos cárceres, sendo talvez João Francisco Fernandes Pimenta, com o ardor de seus vinte anos, a encarnação mais forte e mais ativa do guerrilheiro e lutador que, nos sertões do Rio Grande do Norte, durante meses, zombou de forças legalistas que o perseguiam.

Bênção das bandeiras da Revolução de 1817, óleo sobre tela de Antônio Parreiras– Fonte – Wikipedia.

Estudando a história da revolução de 1817 no Rio Grande do Norte, fica-se certo de que se o governador de então, José Ignacio Borges, talvez inclinado aos ideais da revolução, tivesse os mesmos sentimentos ferozes e sanguinários daqueles que dirigiram a reação em Pernambuco e Bahia, muito mais elevado teria sido o número dos mártires riograndenses.

Considerando que grande número de pessoas de destaque daquele tempo, no sertão do Rio Grande do Norte, principalmente em Portalegre, Patu, Martins, Pau dos Ferros, Apodi e Campo Grande, estiveram implicados na revolução, em comunicação direta com os chefes do movimento em Recife, é de supor, com bons fundamentos, que duas causas concorreram para diminuir o número daqueles mártires riograndenses.

A primeira foi o espirito de benevolência, de camaradagem e amizade reinante entre os sertanejos do Rio Grande do Norte, naquela época principalmente, oriundos de pequeno número de famílias, já então ligados por entrelaçamentos e afinidades, formando quase que uma só família: não houve delações; o esforço de cada um e de todos foi salvar o amigo das garras tigrinas das Juntas Militares.

O Carmelita Miguel de Almeida e Castro, conhecido como Frei Miguelinho, era potiguar de Natal e teve participação ativa na revolta de 1817 em Pernambuco. O quadro mostra seu julgamento em Salvador, onde foi condenado a morte pelo fuzilamento e a pena cumprida no dia 12 de junho de 1817. É nome de cidade em Pernambuco e muito cultuado no Rio Grande do Norte– Fonte – Wikipedia.

A segunda causa deve ser procurada na coragem nobre e santa de Miguelinho, em seu elevado espirito.

Sabendo que no dia seguinte seria encarcerado, não se abateu, não se entregou a inúteis fraquezas; ou a noite queimando papeis e documentos capazes de comprometer a sorte de seus amigos. Ao entrar em casa disse Á sua irmã em lagrimas, as memoráveis palavras: “Mana, nada de choros; estás órfã. Tenho enchido os meus dias. Logo virão buscar me para a morte; entrego te à vontade de Deus, nele terás um pai que não morre mais aproveitemos a noite. Imita-me. Ajuda-me a salvar a vida de milhares de desgraçados”.

Miguelinho durante alguns anos fora professor no Seminário de Olinda. Muitos vigários do Rio Grande do Norte haviam sido seus discípulos e, naturalmente, continuavam amigos do mestre. O seminarista José Ferreira da Motta, de Portalegre, e que então cursava o seminário de Olinda, correspondeu-se diretamente com seu pai, capitão José Ferreira da Motta. Seguiu imediatamente, disfarçado em boiadeiro a entender-se com os chefes em Recife, o sargento Mór Manoel Fernandes Pimenta. Teve assim a revolução, que depois relacionou-se com os chefes do movimento em Natal, fortes ramificações pelo sertão. Não foram relativamente numerosos os sertanejos que padeceram nos cárceres. É de supor que a noite de vigília de Miguelinho, queimando papeis, o amargurado Horto da vítima votada ao sacrifício, tenha redimido muito sofrimento e evitado muita lagrima em seu torrão natal.

Quadro de um combate de forças de cavalaria, como os que ocorreram durante a Guerra do Paraguai – Fonte – Wikipedia.

Durante a guerra do Paraguai foram inúmeros os contingentes enviados do Rio Grande do Norte. Muitos de seus filhos lá cumpriram o seu dever, derramaram o sangue, perderam a vida. Entre os riograndenses, já mortos (em 1927), que ocuparam postos de destaque no Exército, acham-se:

– José Xavier Garcia de Almeida, engenheiro militar e brigadeiro José Correia Telles, natural do Assú, praça em 1856, fez toda a campanha do Paraguai a começar pela do Uruguai. Cavaleiro da Ordem de Aviz, recebeu a medalha argentina da comemoração da guerra. Fez parte da junta governativa de Alagoas em 1891, Coronel em 1894, foi reformado como general em 1897 e faleceu no mesmo ano.

Nota sobre José Pedro de Oliveira Galvão após a Guerra do Paraguai.

– José Pedro de Oliveira Galvão, praça em 1862. coronel efetivo em 1895. Fez a campanha do Paraguai. Senador pelo Rio Grande do Norte, por seis anos, faleceu em 1896.

Coronel Fonseca e Silva, anos após a Guerra do Paraguai– Fonte – Wikipedia.

– Francisco Victor da Fonseca e Silva, natural de São Gonçalo, praça em 1865, reformou-se com a graduação de general de divisão, vindo a falecer em 1905. Fez também a campanha do Paraguai. Como comandante da força policial da então Província do Rio de Janeiro foi um dos auxiliares da revolução de 15 de novembro de 1889. Foi deputado à Constituinte Republicana pelo Estado do Rio de Janeiro, e, ainda, deputado da primeira legislatura da Câmara Federal pelo mesmo Estado. Eleito, depois, deputado pelo Rio Grande do Norte, representou este Estado na quarta e quintas legislaturas.

– Antônio da Rocha Bezerra Cavalcante, fez com distinção, a campanha do Paraguai, falecendo no posto de general, reformado.

Foto de combatentes da Guerra do Paraguai. O terceiro sentado da esquerda para a direita, é o Coronel Joca Tavares e seus auxiliares imediatos, incluindo José Francisco Lacerda, mais conhecido como “Chico Diabo” (terceiro em pé, da esquerda para a direita), que matou o ditador paraguaio Solano Lopez. Imagem: Wikipedia, Domínio Público. In: Salles, Ricardo. Guerra do Paraguai: memórias & imagens. Rio de Janeiro: Edições Biblioteca Nacional, 2003. ISBN 85-333-0264-9 (p.180)

– Francisco de Paula Moreira. Fez a campanha do Paraguai. Tomou parte na organização republicana do Estado, como deputado à Constituinte. Faleceu no posto de Coronel, reformado.

Antônio Florêncio Pereira do Lago

– Antônio Florêncio Pereira do Lago. Foi um distintíssimo rio-grandense-do-norte que morreu no posto de coronel, reformado. Nascido em 1827, bacharelou se em ciências físicas e matemáticas e pertenceu ao corpo do Estado-Maior de primeira classe. Oficial da Ordem da Rosa, cavaleiro da Ordem de Cristo e da de São Bento de Aviz, foi condecorado, ainda, com a medalha da campanha do Uruguay em 1851 e com a da guerra do Paraguai. Exerceu com brilho comissões do Ministério da Guerra e do da Agricultura. Por ordem do Governo fundou a colônia do Alto Uruguai.

Escreveu várias obras e trabalhos oficiais, entre os quais “Relatório dos estudos da comissão exploradora dos rios Tocantins e Araguaia”. Ilustre e esquecido brasileiro que honra a sua pátria e é uma legitima glória de sua corporação. O visconde de Taunay traçou o retrato de sua personalidade: “Lago, isto é, a prudência, a força, a reflexão, o sentimento apurado de dever; Lago, a personificação do bom senso, mas, ao mesmo tempo, a tenacidade levada ao extremo da teima. Alto, gordo, então simples capitão, mas com proporções para ser general, tem ele fisionomia, franca e simpática. Possui inteligência, ilustração e, sobretudo, consciência. Reto e leal, é amigo as deveras, mas também inimigo decidido”.

No posto de capitão de engenheiros fez parte do Corpo de Exercito que seguiu para Mato Grosso, e que escreveu a heroica e dolorosa pagina que é a Retirada de Laguna. O visconde de Taunay escreveu que a expedição de Mato Grosso escapou de completo aniquilamento devido á energia e ao estoicismo de Pereira do Lago que, nos momentos mais cheios de angustia, perigo e desalento, conseguia com seu exemplo, sua calma e coragem, levantar o espirito de todos. “Oficial do maior valor moral, nunca foi apreciado na medida de seus méritos”, ainda repetia Taunay, em 1896, em seu livro “Viagens de Outrora”.

Pereira do Lago faleceu na idade de 65 anos, no posto de coronel, reformado, 1º de janeiro de 1892.

– Padre Amaro Theó Castor Brasil, que seguiu de Campo Grande (RN) com mais dois irmãos e dois parentes para o Paraguai, onde fizeram toda a campanha como Voluntários da Pátria, e voltaram como oficiais. Um deles, José Lucas Barbosa prestou depois valiosos serviços nas3 lutas e na organização do Acre, onde foi comandante da Guarda Nacional.

– Ulysses Olegário Lins Caldas e João Percival Luiz Caldas, eram irmãos, ambos do Assú, seguiram como Voluntários da Pátria para o Paraguai. O primeiro, ardente e destemido jovem de 18 anos, encetou seus os na campanha como herói, e assim continuou até cair fulminado por uma bala no coração, nas avançadas de Curuzu, em novembro de 1866. Galgando trincheiras inimigas, arrebatando canhões, morreu pouco depois de completar vinte anos e alcançara o posto de tenente e por distinção o Hábito de Cavalleiro da Imperial Ordem do Cruzeiro. A ordem do dia do Exército em campanha, de 4 de setembro de 1866, referindo-se ao assalto de Curuzu, citando o nome de alguns oficiais, diz: “…que quais leões, se lançaram sobre as baterias inimigas, chegando ao ponto de subir sobre sua artilharia, como fez este último oficial, com uma intrepidez que a todos surpreendeu”. Este último oficial, que “a todos surpreendeu com sua intrepidez” era, na citação, Ulysses Caldas.

O Barão de Porto Alegre liderando as tropas em Curuzu, pintura de Victor Meirelles– Fonte – Wikipedia.

– Alexandre Baraúna Mossoró. Filho da cidade de Mossoró, humílimo e obscuro herói, soldado da quinta companhia do terceiro batalhão de infantaria, fez a campanha do Uruguai. Tomou parte no assalto de Paissandu. Ferido, continuou a bater-se encarniçadamente. Novo ferimento lhe vasou uma vista; mandam-no retirar-se do combate e ele continua a bater-se. Terceiro ferimento inutiliza-lhe o braço direito. Empunha então a arma com a mão esquerda, pois “com o canhoto ainda pôde dar uma lição aos gringos“, conforme grita ao comandante; escala a trincheira e cai lutando ainda, do lado oposto, em meio dos inimigos, sendo então morto! O seu comandante cerca de veneração o cadáver do herói. Ao espirar, vêm-lhe à lembrança sua mãe e seu torrão natal: “minha mãe… viva o Mossoró!…” Indômito filho do povo não menos herói, mais infeliz, porém, do que o corneta Jesus ainda não teve a consagração condigna, nem mesmo da poesia, a imortalizar lhe o nome!

– Ponciano Souto, natural do Assú, Voluntário da Pátria que fez toda a campanha do Paraguai, voltando como capitão, e faleceu em 1882, em Bananal, São Paulo, como tabelião vitalício.

João Mafaldo, do Martins, alferes, morto no assalto à cidadela de Canudos.

Nota sobre o batalhão de potiguares na Guerra de Canudos, no Jornal “A República”, 10 de dezembro de 1897.

José da Penha, de Angicos, sincero republicano, escritor, polemista e tribuno, absorvido e sacrificado, infelizmente, pela politicagem que o vitimou no posto de capitão, a 19 de fevereiro de 1914, em Iguatu (Ceará).

Theophilo Guerra, jornalista, e cronista das secas. Quando cadete em Minas Geraes, levantou uma “questão militar,’ não se sujeitando, em serviço local, ao cominando de oficial de polícia. Submetido, então, a conselho de guerra, foi absolvido. Faleceu no posto de alferes..

São esses os traços gerais da história militar do Rio Grande do Norte, que poderia comportar largo desenvolvimento, mas não é possível em ligeira “introdução” nomear todos aqueles, numerosos, que no cumprimento do dever, souberam honrar a Pátria.

As figuras culminantes desta história são — Camarão, Pereira do Lago e o obscuro soldado Baraúna Mossoró. Sofredores, incansáveis, superiores ao desalento e aos revezes, tenazes na luta, devotados, estoicos, são bem tipos representativos desta população martirizada pelas secas, oferecendo sempre sobre humana e tenaz resistência a desapiedados golpes da natureza, sem abandonar o ingrato e querido solo, que, afinal, será conquistado.

FELIPE GUERRA.

Agosto—1920. (Socio effectivo)