A HISTÓRIA DE JERUSALÉM, CIDADE SAGRADA QUE NUNCA ENCONTROU A PAZ

image
Jerusalém – Fonte – https://www.tes.com/lessons/jjBt6G2c39_e_g/human-geography-of-muslim-world-ch-16-17

POR THIAGO TANJI

FONTE – http://revistagalileu.globo.com/blogs/maquina-do-tempo/noticia/2017/12/historia-de-jerusalem-cidade-sagrada-que-nunca-encontrou-paz.html?utm_source=facebook&utm_medium=social&utm_campaign=post]

Uma das cidades mais antigas da humanidade, Jerusalém deveria ser um símbolo da tolerância e da busca pela paz — cristãos, muçulmanos e judeus consideram o local sagrado por abrigar símbolos que são pilares dessas religiões.

A realidade geopolítica, entretanto, revela o quanto ainda precisamos avançar para conquistar patamares mínimos de respeito e tolerância às diferenças: nesta quarta-feira (06 de novembro), o presidente norte-americano Donald Trump sinalizará a intenção de transferir a embaixada dos Estados Unidos para a cidade de Jerusalém. O que parece mero ritual burocrático esconde intenções capazes de trazer ainda mais instabilidade para a região.

Na prática, transferir a embaixada da Tel Aviv para Jerusalém seria uma confirmação de que o Estados Unidos reconhecem a cidade como capital de Israel, o que é contestado pelos povos palestinos e demais países muçulmanos do Oriente Médio. Analistas de diferentes correntes políticas são unânimes em afirmar que esse ato seria uma provocação capaz de arrastar a região para um novo período de guerra. 

1280px-counquest_of_jeusalem_1099
PINTURA RETRATA A CONQUISTA DE JERUSALÉM PELOS CAVALEIROS CRUZADOS (FOTO: REPRODUÇÃO)

Não seria a primeira vez que as diferenças dividem Jerusalém. Por sinal, nos últimos milênios foram raros os momentos em que a cidade alcançou a mensagem de paz e concórdia pregada pelas três maiores religiões monoteístas do planeta. Mais do que uma curiosidade, conhecer a história de Jerusalém nos ajuda a entender por que precisamos realizar uma análise atenta da realidade e fugir dos estereótipos de “mocinhos” e “vilões”. Durante séculos, afinal, as principais vítimas dessa guerra fratricida são pessoas inocentes de distintas origens e religiões. 

Do Reino de Israel à Diáspora

Com registros históricos de quase 5 mil anos, a cidade de Jerusalém tornou-se símbolo dos povos reunidos ao redor da religião judaica. De acordo com os livros sagrados do Torá (textos pilares da tradição judaica) e do Antigo Testamento da Bíblia (que também compartilha escrituras presentes na Torá), Davi fez da cidade a capital do Reino de Israel e Judá após uma conquista militar e reinou até 970 a.C 

Após um período de estabilidade, com a construção de um Templo Sagrado pelo rei Mesopotâmia (filho de Davi), Jerusalém foi invadida pelo Império Assírio em 722 a.C e parte do povo judeu foi tomado como escravo nas cidades da região da Mesopotâmia — que atualmente compreende parte do Iraque. Com as derrotas militares assírias e o fortalecimento do Império Persa, os judeus voltaram à terra e reconstruíram o Templo de Salomão, que havia sido destruído durante o ataque das tropas do Império Assírio. 

jerusalem_israel_jerusalem_-_muro_das_lamentacoes_5171715871
MURO DAS LAMENTAÇÕES, QUE CORRESPONDE ÀS RUÍNAS DO SEGUNDO TEMPLO DE SALOMÃO (FOTO: WIKIMEDIA COMMONS)

Um novo período de relativa paz seria encerrado no século 4 a.C com as conquistas militares de Alexandre, o Grande, que tomaram Jerusalém como parte do Império Macedônico. Revoltas populares buscavam maior autonomia da região, que jamais reconquistaria sua completa autonomia: no século I a.C, os romanos aram a istrar a região, colocando no poder um monarca alinhado com os interesses dos dominadores. É nessa época que dá-se início à narrativa do Novo Testamento: na região da Judeia controlada pelos romanos, nasce um judeu chamado Jesus que reúne seguidores e torna-se um mestre que inspiraria uma nova religião. 

Enquanto os seguidores de Jesus buscam espalhar seus ensinamentos nas décadas que seguem as narrativas bíblicas, uma nova guerra afeta a região: no ano 66 d.C, setores da população judaica lideram uma rebelião contra a dominação do Império Romano. A revolta é reprimida com violência pelos imperadores Vespasiano e Tito, resultando na destruição do Templo de Salomão — da construção, restou apenas o Muro das Lamentações, que é um dos símbolos sagrados para os judeus. 

A destruição de parte de Jerusalém culminou com uma política liderada pelo Império Romano de expulsar sistematicamente os judeus que viviam na região, em um período conhecido como Diáspora. Os imperadores trataram de sufocar a cultura judaica e as manifestações religiosas, mudando o nome de Jerusalém para Élia Capitolina. Apesar de outros períodos de revoltas judaicas durante o século 2 d.C, Roma exerceu sua hegemonia sobre a região. 

ercole_de_roberti_destruction_of_jerusalem_fighting_fleeing_marching_slaying_burning_chemical_reactions_b
PINTURA SOBRE A DESTRUIÇÃO DE JERUSALÉM PELAS TROPAS ROMANAS (FOTO: REPRODUÇÃO)

Tempos de Cruzadas

No século 4 d.C, o Império Romano foi convertido ao cristianismo, o que também influenciou definitivamente a cidade de Jerusalém. Após a divisão do império entre a istração ocidental e oriental (que ficou conhecido como Império Bizantino), a istração local tratou de reforçar os símbolos que representavam os episódios sagrados para os cristãos. Em 335, foi construída a Igreja do Santo Sepulcro, que corresponderia ao local onde Jesus teria sido crucificado, enterrado e depois ressuscitado. 

No século 7, um novo movimento religioso forneceria novos ingredientes culturais e políticos para a região. Influenciado pela tradição monoteísta judaico-cristã (Abraão, Moisés e Jesus são considerados profetas), o islamismo ganhou adeptos no Oriente Médio de maneira vertiginosa. Liderados pelo profeta Mohammed (chamado popularmente como Maomé na cultura ocidental), os ensinamentos uniram diferentes povos que viviam na região. 

siege-of-jerusalem-large-56a61c0f5f9b58b7d0dff604
Cerco de Jerusalém em 1099 – Fonte – https://www.thoughtco.com/crusades-siege-of-jerusalem-1099-2360709

Com o fortalecimento político e a organização istrativa de grupos unidos ao redor do Islã, houve uma expansão territorial por porções da Ásia, norte da África e até na Europa (com a conquista de territórios que atualmente correspondem a Portugal e Espanha). 

Em 638, líderes muçulmanos conquistaram a cidade de Jerusalém e territórios que faziam parte do Império Bizantino. Após a vitória militar, foram promulgadas leis que autorizavam os judeus a regressarem à cidade após os séculos da Diáspora, além de assegurar segurança religiosa aos cristãos que viviam na cidade. Por conta da influência judaico-cristã, Jerusalém foi considerada uma das três cidades mais sagradas do islamismo, sendo construído o santuário do Domo da Rocha, que até hoje marca a arquitetura local com sua grande cúpula dourada. 

Durante séculos, houve relativa estabilidade na região. Uma iniciativa liderada por nobres europeus e autoridades cristãs, no entanto, levaria Jerusalém para um novo período de guerras: em 1095, o Papa Urbano II fez uma convocação para que o território conhecido como Terra Santa voltasse ao domínio cristão.

Com a absoluta hegemonia ideológica e cultural na Europa, a Igreja Católica rapidamente conseguiu adeptos para dar início à campanha militar que ficou conhecida como as Cruzadas. Em 1099, Jerusalém foi conquistado pelas tropas cristãs, que promoveram um banho de sangue na cidade: muçulmanos e judeus foram massacrados e expulsos de suas terras. 

saladino-jerusalem
PINTURA SOBRE O MOMENTO EM QUE AS TROPAS CRISTÃS SE RENDERAM A SALADINO (FOTO: REPRODUÇÃO)

Décadas depois, a cidade retomou novamente às posses muçulmanas, com a campanha liderada pelo comandante militar Saladino — de acordo com os registros históricos, os judeus também foram autorizados a retornar para a cidade. 

Imperialismo britânico e guerra

Nos séculos seguintes, reinos originários da região da Turquia dominariam a região. Em 1517, o Império Otomano controlaria Jerusalém, durante um processo de expansão — em 1453, o sultão Mehmed II daria fim ao Império Bizantino e colocaria parte dos territórios asiáticos sob influência muçulmana.  

A história de disputas ao redor do território só retornaria à cena após 500 anos: durante a expansão colonial dos países europeus em territórios da África e da Ásia e os episódios que culminaram com a Primeira Guerra Mundial, o Império Britânico tomou Jerusalém do Império Otomano em 1917. O território, conhecido como Palestina, ficaria sob istração política do Reino Unido — populações árabes (de religião muçulmana) e judeus conviviam no território.

1385302847
Ingleses em Jerusalém – Fonte – https://www.haaretz.com/jewish/this-day-in-jewish-history/.-1.630999

A relação entre os dois povos começou a escalar em tensão à medida em que grupos judaicos iniciavam um movimento político que ficou conhecido como sionismo: em um cenário de antissemitismo histórico na Europa (que culminaria com a política deliberada de extermínio durante o regime nazista na década de 1940), membros da comunidade judaica defendiam o retorno das populações historicamente dispersas após a Diáspora para as cidades que faziam parte do antigo reino de Israel. 

Em busca de independência, grupos judaicos organizaram movimentos de resistência contra os britânicos, além de buscarem expulsar os árabes que viviam na região. Em 1946, um ataque terrorista com bombas destruiu parte do Hotel King David, localizado na cidade de Jerusalém, e matou 91 pessoas. Os autores? Uma organização paramilitar de inspiração sionista chamada Irgun, que desejava atingir funcionários do Reino Unido que istravam a Palestina. 

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, os britânicos ensaiavam entregar as suas antigas possessões coloniais e promover autonomia da região. Recém-criada em 1947, a Organização das Nações Unidas (ONU) propunha um plano de partilha da Palestina, com a criação de um Estado judeu e um árabe — as cidades de Jerusalém e Belém ficariam sob controle internacional. Apesar de nações árabes mostrarem-se contrárias à proposta, a maioria dos países presentes na conferência concordaram com a partilha. 

hagana-940x693
MILÍCIAS PARAMILITARES JUDAICAS (FOTO: REPRODUÇÃO)

A diplomacia não deu resultados, entretanto: em 1948, quando o mandato britânico se encerraria sobre a região palestina, israelenses e palestinos iniciaram uma guerra pelo controle do território. Em 14 de maio, David Ben-Gurion declarou a independência do Estado de Israel, não reconhecendo a soberania das cidades que deveriam fazer parte do futuro Estado árabe. Apesar das intervenções militares de nações aliadas dos muçulmanos, Israel conseguiu defender-se e avançar em conquistas militares pela região. 

A cidade de Jerusalém foi dividida entre a istração judaica e o governo árabe da Jordânia — Israel considerava a porção oeste da cidade como capital do país. Após uma nova escalada de tensões na década de 1960, que resultou em uma nova guerra entre Israel e os países árabes, as tropas judaicas também anexaram a porção leste de Jerusalém. 

171206130942-trump-jerusalem-announcement-exlarge-169
Fonte – http://edition.cnn.com/2017/12/06/politics/american-evangelicals-jerusalem/index.html

Desde então, tratados de paz tentam costurar um acordo que garanta a soberania de Israel, mas também promovam a independência dos territórios palestinos (a maior parte dessas regiões está ocupada pelos israelenses). No entanto, a falta de diálogo e os episódios de movimentos paramilitares muçulmanos, que realizaram atentados terroristas pela região durante as últimas décadas, não fornecem um vislumbre sequer para uma solução a curto prazo. 

Após acompanhar todo esse relato, é possível entender o quão desastrosa será a medida de Donald Trump ao reconhecer Jerusalém como a capital de Israel. Tantas lições da História e parece que não aprendemos nada… 

JESUS ANTES DE CRISTO

181888_246716275437514_867419990_n
Jesus – Fonte – http://2.bp.blogspot.com/

Pesquisadores vão além da Bíblia e procuram pelo Jesus histórico – e o que não é mencionado no livro sagrado

Rodrigo Cavalcante

Fonte – http://tokdehistoria-br.informativoparaibano.com/noticias/religiao/jesus-antes-cristo-434985.phtml#.WF_PMPkrLIW

Cristo está em toda parte: nas obras mais importantes da história da arte, nos roteiros de Hollywood, nos letreiros luminosos de novas igrejas, nas canções evangélicas em rádios gospel, nos best-sellers de autoajuda, nos canais de televisão a cabo, nos adesivos de carro, nos presépios de Natal. Onde você estiver, do interior da floresta amazônica às montanhas geladas do Tibete, sempre será possível deparar com o símbolo de uma cruz, pena de morte comum no Império Romano à qual um homem foi condenado há quase 2 mil anos. Para mais de 2 bilhões de pessoas esse homem era o próprio messias (“Cristo”, do grego, o ungido) que ressuscitara para redimir a humanidade.

07-natal-nascimento-de-jesus-pinturas
Nascimento de Jesus – Obra de Lorenzo Costa (1460 – 5 de Março de 1535) foi um pintor italiano do Renascimento. Nasceu em Ferrara, mas se mudou para Bolonha quando tinha 20 anos. Neste quadro, chama atenção os detalhes da cidade ao fundo, a pose do bebê deitado sobre o braço – Fonte – http://khristianos.blogspot.com.br/2015/12/a-natividade-por-pintores-famosos.html

Embora o mundo inteiro (inclusive os não cristãos) esteja familiarizado com a imagem de Cristo, até a bem pouco tempo os pesquisadores eram céticos quanto à possibilidade de descobrir detalhes sobre a vida do judeu Yesua (Jesus, em hebraico), o homem de carne e osso que inspirou o cristianismo. “Isso está começando a mudar”, diz o historiador André Chevitarese, professor de História Antiga da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos especialistas no Brasil sobre o “Jesus histórico” – o estudo da figura de Jesus na história sem os constrangimentos da teologia ou da fé no relato dos evangelhos. Embora tragam detalhes do que teria sido a vida de Jesus, os evangelhos são considerados uma obra de reverência e não um documento histórico. Chevitarese e outros pesquisadores acreditam que, apesar de não existirem indícios materiais diretos sobre o homem Jesus, arqueólogos e historiadores podem ao menos reconstituir um quadro surpreendente sobre o que teria sido a vida de um líder religioso judeu naquele tempo, respondendo questões intrigantes sobre o ambiente e o cotidiano na Palestina onde ele vivera por volta do século I.

Nazaré, entre 6 e 4 a.C.

Uma aldeia agrícola com menos de 500 habitantes, cuja paisagem é pontuada por casas pobres de chão de terra batida, teto de estrados de madeira cobertos com palha, muros de pedras coladas com uma argamassa de barro, lama ou até de uma mistura de esterco para proteger os moradores da variação da temperatura no local. Segundo os arqueólogos, essa é a cidade de Nazaré na época em que Jesus nasceu, provavelmente entre os anos 6 e 4 a.C., no fim do reinado de Herodes. Isso mesmo: segundo os historiadores, Jesus deve ter nascido alguns anos antes do ano 1 do calendário cristão. “As pessoas naquele tempo não contavam a agem do tempo como hoje, por meio da indicação do ano”, explica o historiador da Unicamp Pedro Paulo Funari. “O cabeçalho dos documentos oficiais da época trazia apenas como indicação do tempo o nome do regente do período, o que leva os pesquisadores a crer que Jesus teria nascido anos antes do que foi convencionado.”

jc-ducio
Imagem do século 13 de Jesus sendo apresentado aos rabinos | Crédito: Duccio di Buonis – Fonte – http://tokdehistoria-br.informativoparaibano.com/noticias/religiao/jesus-antes-cristo-434985.phtml#.WF_PMPkrLIW

Se você também está se perguntando por que os historiadores buscam evidências do nascimento de Jesus na cidade de Nazaré – e não em Belém, cidade natal de Jesus, de acordo com os evangelhos de Mateus e Lucas –, é bom saber que, para a maioria dos pesquisadores, a referência a Belém não a de uma alegoria da Bíblia. Na época, essa alegoria teria sido escrita para ligar Jesus ao rei Davi, que teria nascido em Belém e era considerado um dos messias do povo judeu. Ou seja: a alcunha “Jesus de Nazaré” ou “nazareno” não teria derivado apenas do fato de sua família ser oriunda de lá, como costuma ser justificado.

Mesmo que os historiadores estejam certos ao afirmarem que o nascimento em Belém seja apenas uma alegoria bíblica, o entorno de uma casa pobre na cidade de Nazaré daquele tempo não deve ter sido muito diferente do de um estábulo improvisado como manjedoura. Como a residência de qualquer camponês pobre da região, as moradias eram ladeadas por animais usados na agricultura ou para a alimentação de subsistência. A dieta de um morador local era frugal: além do pão de cada dia (no formato conhecido no Brasil hoje como pão árabe), era possível contar com azeitonas (e seu óleo, o azeite, usado também para iluminar as casas), lentilhas, feijão e alguns incrementos como nozes, frutas, queijo e iogurte.

331259776
O que seria a alimentação típica no tempo de Jesus – Fonte – http://dailylifeinthetimeofjesus.weebly.com/daily-life-at-the-time-of-jesus.html

De acordo com os arqueólogos, o consumo de carne vermelha era raro, reservado apenas para datas especiais. O peixe era o animal consumido com mais frequência pela população, seco sob o sol, para durar. A maioria dos esqueletos encontrados na região mostra deficiência de ferro e proteínas. Essa parca alimentação é coerente com relatos como o da multiplicação dos pães, no Evangelho de Mateus, no qual os discípulos, preocupados com a fome de uma multidão que seguia Jesus, mostram ao mestre cinco pães e dois peixes, todo o alimento de que dispunham.

Se alguém presenciasse o nascimento de Jesus, provavelmente iria deparar com um bebê de feições bem diferentes da criança de pele clara que costuma aparecer nas representações dos presépios. Baseados no estudo de crânios de judeus da época, pesquisadores dizem que a aparência de Jesus seria mais próxima da de um árabe (de cabelos negros e pele morena) que da dos modelos louros dos quadros renascentistas. Seu nome, Jesus, uma abreviação do nome do herói bíblico Josué, era bastante comum em sua época. Ainda na infância, deve ter brincado com pequenos animais de madeira entalhada ou se divertido com rudimentares jogos de tabuleiro incrustados em pedras. Quanto à família de Jesus, os pesquisadores não acreditam que ele tenha sido filho único. Afinal, era comum que famílias de camponeses tivessem mais de um filho para ajudarem na subsistência da família. Isso poderia explicar o fato de os próprios evangelhos falarem em irmãos de Jesus, como Tiago, José, Simão e Judas. “As igrejas Ortodoxa e Católica preferiram entender que o termo grego adelphos, que significa irmão, queria dizer algo próximo de discípulo, primo”, diz Chevitarese.

835592106
Vestuário no tempo de Jesus – VESTUÁRIO – No primeiro século a roupa era muito mais simples do que é hoje. A maioria das roupas eram feitas de lã, embora o linho também fosse usado (feito de linho cultivado na área de Jericó ou importado do Egito). Tanto os homens como as mulheres usavam normalmente uma túnica e um manto. A lei judaica exigia que o manto tivesse bordas unidas aos seus quatro cantos. Cada borda era para incluir um cordão azul e foi concebido como uma forma de ajudar as pessoas a se lembrar de manter a Lei de Deus. Para ocasiões especiais uma longa roupa conhecida como ‘estola’ era usada. Eram usados geralmente sandálias de couro (ou talvez de madeira) – Fonte – http://dailylifeinthetimeofjesus.weebly.com/daily-life-at-the-time-of-jesus.html

Assim como outros jovens da Galileia, é provável que ele não tenha tido uma educação formal ou mesmo a chance de aprender a ler e escrever, privilégio de poucos nobres. Ainda assim, nada o impediria de conhecer profundamente os textos religiosos de sua época transmitidos oralmente por gerações.

Política, religião e sexo

Desde aquele tempo, a região em que Jesus vivia já era, digamos, um tanto explosiva. O confronto não se dava, é claro, entre judeus e muçulmanos (o profeta Maomé só iria receber sua revelação mais de cinco séculos depois). A disputa envolvia grupos judaicos e os interesses de Roma, cujo império era o equivalente, na época, ao que os Estados Unidos são hoje. E, assim como grupos religiosos do Oriente Médio resistem atualmente à ocidentalização dos seus costumes, diversos grupos judaicos da época se opunham à influência romana sobre suas tradições. Na verdade, fazia séculos que os judeus lutavam contra o domínio de povos estrangeiros.

770146556
Ocupações no tempo de Cristo – Os principais trabalhos masculinos eram ser fazendeiros, artesãos, ou pescadores. As mulheres aprendiam a cozinhar e os deveres domésticos. Elas também memorizavam as escrituras, mas era proibido para elas ler ou escrever. Os mais afortunados teriam aprendido um ofício de seu pai – como ocorreu com o próprio Jesus. Muitos dos que não tinham um emprego estável seriam trabalhadores ocasionais, cujo salário diário dependia do capricho daqueles que contratavam um grupo de trabalhadores todas as manhãs. Alguns indivíduos tinham uma vida de mendicância ou mesmo de escravidão – Fonte – http://dailylifeinthetimeofjesus.weebly.com/daily-life-at-the-time-of-jesus.html

Antes de os romanos chegarem, no ano 63 a.C., eles haviam sido subjugados por assírios, babilônios, persas, macedônios, selêucidas e ptolomeus. Os judeus sonhavam com a ascensão de um monarca forte como fora o rei Davi, que por volta do século 10 a.C. inaugurara um tempo de relativa estabilidade. Não à toa, Davi ficaria lembrado como o messias (ungido por Javé) e, assim como ele, outros messias eram aguardados para libertar o povo judeu (veja quadro na pág. 33).

A resistência aos romanos se dava de maneiras variadas. A primeira delas, e mais feroz, era identificada como simples banditismo. Nessa categoria estavam bandos de criminosos formados por camponeses miseráveis que atacavam comerciantes, membros da elite romana ou qualquer desavisado que viajasse levando uma carga valiosa.

Além do banditismo, havia a resistência inspirada pela religião, principalmente a dos chamados movimentos apocalípticos. De acordo com os seguidores desses movimentos, Israel estava prestes a ser libertado por uma intervenção direta de Deus que traria prosperidade, justiça e paz à região. A questão era saber como se preparar para esse dia.

romanempire7
Mosaico do século XII, existente na Catedral de Cefalù, na Sicília, Itália – Fonte – http://www.teslasociety.com/hagiasophia.htm

Alguns grupos, como os zelotes, acreditavam que o melhor a fazer era se armar e partir para a guerra contra os romanos na crença de que Deus apareceria para lutar ao lado dos hebreus. Para outros grupos, como os essênios, a violência era desnecessária e o melhor mesmo a fazer era se retirar para viver em comunidades monásticas distantes das impurezas dos grandes centros. E Jesus, de que lado estava?

É quase certo que Jesus tenha tido contato com ao menos um líder apocalíptico de sua época, que preparava seus seguidores por meio de um ritual de imersão nas águas do rio Jordão. Se você apostou em João Batista, acertou.

O curioso é que, para a maioria dos pesquisadores, incluindo aí o padre católico John P. Meier, autor da série sobre o Jesus histórico chamada Um Judeu Marginal, o movimento apocalíptico de João Batista deve ter sido mais popular, em seu tempo, do que a própria pregação de Jesus. Os historiadores acreditam que é bem provável que Jesus, de fato, tenha sido batizado por João Batista nas margens do rio Jordão, e que o encontro deve ter moldado sua missão religiosa dali em diante.

romanarmyengineers
Representação moderna dos soldados romanos – Fonte – http://www.instonebrewer.com/visualSermons/Jesus%2BChildren/_Sermon.htm

Apesar de não haver nenhuma restrição para que um líder religioso judeu tivesse relações com mulheres em seu tempo, ninguém sabe ainda se entre as práticas espirituais de Jesus estaria o celibato. Da mesma forma, afirmar que ele teve relações com Maria Madalena, como no enredo de livros como O Código Da Vinci, também não aria de uma grande especulação.

Uma morte marginal

O pesquisador Richard Horsley, professor de Ciências da Religião da Universidade de Massachusetts, em Boston, é categórico: a morte de Jesus na cruz em seu tempo foi muito menos perturbadora para o Império Romano do que se costuma imaginar. Horsley e outros pesquisadores desapontam os cristãos que imaginam a crucificação como um evento que causara, em seu tempo, uma comoção generalizada, como naquela cena do filme O Manto Sagrado em que nuvens negras escurecem Jerusalém e o mundo parece prestes a acabar. Apesar de ter sido uma tragédia para seus seguidores e familiares, a morte do judeu Yesua deve ter ado praticamente despercebida para quem vivia, por exemplo, no Império Romano. Ou seja: se existisse uma rede de televisão como a CNN, naquele tempo, é bem possível que a morte de Jesus sequer fosse noticiada. E, caso fosse, dificilmente algum estrangeiro entenderia bem qual a diferença da mensagem dele em meio a tantas correntes do judaísmo do período – assim como poucas pessoas no Ocidente compreendem as diferenças entre as diversas correntes dentro do Islã ou do budismo.

jesus-crucifixion-copia
Fonte – http://allchristiannews.com/wp-content/s/2016/03/Jesus-Crucifixion.jpg

Os pesquisadores sabem, no entanto, que Jesus não deve ter escolhido por acaso uma festa como a Páscoa para fazer sua pregação em Jerusalém. A data costumava reunir milhares de pessoas para a comemoração da libertação do povo hebreu do Egito. No período que antecedia a festa, o ar tornava-se carregado de uma forte energia política. Era quando os judeus pobres sonhavam com o dia em que conseguiriam ser libertados dos romanos.

Para a elite judaica que vivia em Jerusalém, contudo, as manifestações anti-Roma não eram nada bem-vindas. Afinal, como ela se beneficiava da arrecadação de impostos da população de baixa renda, boa parte dela tinha mais a perder que a ganhar com revoltas populares que desafiassem os dirigentes romanos, cujos estilos de vida eram copiados por meio da construção de suntuosas vilas (espécie de chácaras luxuosas) nas cercanias de Jerusalém.

The Crucifixion by Tintoretto, 1565
Fonte – https://pradoshmitter.files.wordpress.com/2009/12/the_crucifixion_tintoretto_1565.jpg

A própria opulência do Templo do Monte de Jerusalém, reconstruído por Herodes, o Grande, parecia uma evidência de que a aliança entre os romanos e os judeus seria eterna. A construção era impressionante até mesmo para os padrões romanos, o que fazia de Jerusalém um importante centro regional em sua época.

Em meio às festas religiosas, o comércio da cidade florescia cada vez mais. Vendia-se de tudo por lá, incluindo animais para serem sacrificados no templo. Os mais ricos podiam comprar um cordeiro para ser sacrificado e quem tivesse menos dinheiro conseguia comprar uma pomba no mercado logo em frente. A cura de todos os problemas do corpo e da alma (na época, as doenças eram relacionadas à impureza do espírito) ava pela mediação dos rituais dos sacerdotes do templo.

92-giotto-the-crucifixion
Representação da crucificação de Cristo através do pintor italiano Giotto di Bondone (1266 – 1337) – Fonte – http://art-now-and-then.blogspot.com.br/2014/05/art-and-jesus-crucifixion.html

Não é difícil imaginar a afronta que devia ser para esses líderes religiosos ouvir que um judeu rude da Galileia curava e livrava as pessoas de seus pecados com um simples toque, sem a necessidade dos sacerdotes. A maioria dos pesquisadores concorda que atos subversivos como esses seriam suficientes para levar alguém à crucificação.

Quase tudo o que os pesquisadores conhecem sobre a crucificação deve-se à descoberta, em 1968, do único esqueleto encontrado de um homem crucificado em Giv’at há-Mivtar, no nordeste de Jerusalém. Após uma análise dos ossos, eles concluíram que os calcanhares do condenado foram pregados na base vertical da cruz, enquanto os braços haviam sido apenas amarrados na travessa. A raridade da descoberta deve-se a um motivo perturbador: a pena da crucificação previa a extinção do cadáver do condenado, já que o corpo do crucificado deveria ser exposto aos abutres e aos cães comedores de carniça. A idéia era evitar que o túmulo do condenado pudesse servir de ponto de peregrinação de manifestantes. De qualquer forma, a descoberta desse único esqueleto preservado prova que, em alguns casos, o corpo poderia ser reivindicado pelos parentes do morto, o que talvez tenha acontecido com Jesus.

O que aconteceu após sua morte?

Para os pesquisadores, a vida do Jesus histórico encerra-se com a crucificação. “A ressurreição é uma questão de fé, não de história”, diz Richard Horsley.

1463pierodellascatheresurrectionfrescopinacotecacomunalesansepolcro
A ressurreição de Cristo na visão do italiano Piero della sca (1415 — 1492) – Fonte – http://www.jesus-story.net/painting_resurrection.htm

Tudo o que os historiadores sabem é que, apesar de pequeno, o grupo de seguidores de Jesus logo conseguiria atrair adeptos de diversas partes do mundo. E foi um dos novos convertidos, um ex-soldado que havia perseguido cristãos e ganhara o nome de Paulo, que se tornaria uma das pedras fundamentais para a transformação de Jesus em um símbolo de fé para todo o mundo. Com sua formação cosmopolita, Paulo lutou para que os seguidores de Jesus trilhassem um caminho independente do judaísmo, sem necessidade de obrigar os convertidos a seguirem regras alimentares rígidas ou, no caso dos homens, ser obrigados a fazer a circuncisão. A influência de Paulo na nova fé é tão grande que há quem diga que a mensagem de Jesus jamais chegaria aonde chegou caso ele não houvesse trabalhado com tanto afinco para sua difusão.

Mesmo para quem não acredita em milagres, não há como negar que Paulo e os outros seguidores de Jesus conseguiram uma proeza e tanto: apenas três séculos após sua morte, transformaram a crença de uns poucos judeus da Palestina do século I na religião oficial do Império Romano. Por essa época, a vida do judeu Yesua já havia sido encoberta pela poderosa simbologia do Cristo: assim como os judeus sacrificavam cordeiros para Javé, o Cristo se tornaria símbolo do cordeiro enviado por Deus para tirar os pecados do mundo. Desde então, a história de boa parte do mundo está dividida entre antes e depois de sua existência.


SAIBA MAIS –

isisnursinghorus
Fonte – http://www.crystalinks.com/isis.html

Nossa Senhora de Ísis

De onde pode ter se originado uma das mais belas imagens cristãs

Se você acha que conhece a imagem acima, é bom dar uma olhada com um pouco mais de atenção. À primeira vista, ela parece, de fato, representar a Nossa Senhora embalando o menino Jesus. Mas não é. A imagem da estátua é uma representação da deusa egípcia Ísis oferecendo o peito a seu filho Hórus. Apesar de não haver como provar que as imagens de Nossa Senhora tenham sido inspiradas diretamente em representações como essa, os pesquisadores sabem que o cristianismo sofreu, em seus primórdios, a influência de diversos cultos que faziam parte dos mundos egípcio e greco-romano. “Desde seu início, o cristianismo tinha uma diversidade assombrosa”, diz o professor de Teologia Gabriele Cornelli, da Universidade de Brasília. Na região do Egito, por exemplo, prevalecera o chamado cristianismo gnóstico, cujos textos revelam um Jesus bem mais parecido com um monge oriental. Alguns historiadores acreditam até que alguns cristãos gnósticos possam ter sido influenciados por missionários budistas vindos da Índia.

O luxo que vem de Roma – Diferentemente de Jesus, nobres judeus viviam muito bem, obrigado

Para a elite judaica que vivia na Palestina do século I, levar uma vida com requinte e elegância era sinônimo de viver como os romanos. Escavações arqueológicas em Jerusalém e outras cidades indicam uma clara influência da arquitetura e da decoração de Roma no interior das mansões. Para criar uma atmosfera palaciana, era comum, no interior das casas, a reprodução de afrescos e desenhos decorativos com motivos florais e geométricos. Em ambientes maiores, as colunas no estilo romano eram indispensáveis, assim como o uso de mármore para o acabamento dos detalhes – quem não podia pagar pelo mármore usava uma tinta de cor parecida para manter a aura palaciana. Fontes, vasos vitrificados e pisos de mosaico colorido também faziam parte do sonho de consumo dos novos ricos de Jerusalém, que costumavam receber os amigos influentes recostados confortavelmente no triclinium, espécie de divã usado na hora das refeições. Resquícios da importação de vinhos e outros ingredientes nobres da cozinha mediterrânea, como o garum, um molho especial de peixe típico da cidade de Pompéia, também foram encontrados no interior das mansões. Algumas delas deviam ter uma vista privilegiada para o Templo de Jerusalém, de onde os nobres podiam assistir confortavelmente à movimentação dos peregrinos ou mesmo à condenação à morte de rebeldes judeus.

ÍNDIOS PROTESTANTES NO BRASIL HOLANDÊS

15323496
Com a recém-conquistada colônia holandesa, a Igreja Cristã Reformada, nome da Igreja Protestante na Holanda, inicia sua expedição missionária com os índios do Brasil holandês. Além da pregação religiosa na língua nativa, outras iniciativas pretendiam a tradução da Bíblia para o tupi.

Autor – Frans Leonard Schalkwijk 

Três vezes a igreja protestante foi implantada no Brasil Colônia, três vezes foi expulsa pelos portugueses católicos. Primeira vez: a igreja reformada dos ses no Rio de Janeiro (1557-1558); segunda, a dos holandeses na Bahia (1624-1625); terceira, a dos holandeses, alemães, ibéricos, ingleses, ses e índios no Nordeste, quase 30 anos depois. ]

Área de ocupação do Brasil holandês - Fonte - nl.wikipedia.org
Área de ocupação do Brasil holandês – Fonte – nl.wikipedia.org

A história da igreja protestante indígena durante a Ocupação holandesa do Nordeste (1630-1654) está registrada em vários arquivos, especialmente em Amsterdã e Haia, na Holanda.

No século XVII, Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco constituíam os três principais centros urbanos do Brasil Colônia. A riqueza produzida pelo açúcar brasileiro ajudava a Espanha a consolidar o seu domínio, enquanto procurava estrangular a jovem República dos Países Baixos – ou seja, a Holanda. 

OS CONFLITOS DA COROA DE CASTELA

Embora o Brasil tivesse nascido como colônia portuguesa, a partir de 1580 Portugal havia ado a fazer parte da União Ibérica, comandada pela Espanha. O Brasil, em conseqüência, foi envolvido nos conflitos internacionais da coroa de Castela.

Na Holanda, pouco depois de 1500 a casa de Habsburgo chegou ao poder e reuniu as possessões alemãs, espanholas e holandesas nas mãos de Carlos V. Foi quando eclodiu, na Europa, a Reforma Protestante (1517). 

Tropas holandesas e um engenho nordestino em 1664
Tropas holandesas e um engenho nordestino em 1664

O sucessor de Carlos V, Filipe II, rei da Espanha, decidiu eliminar os protestantes de suas terras, o que levou à Guerra dos 80 Anos (1568-1648).

Com a derrota da armada espanhola, em 1588, o poder da Espanha entrou em declínio, enquanto a Holanda ganhou impulso, especialmente porque recebeu milhares de refugiados ses, belgas, espanhóis, alemães, poloneses. Tinha início a Idade de Ouro dos Países Baixos. 

O trono espanhol, em represália, fechou seus portos para os holandeses, que foram obrigados a singrar os oceanos, considerados até então considerados mares territoriais ibéricos. 

A Igreja Cristã Reformada (Protestante) também crescia com o afluxo de refugiados perseguidos por sua fé religiosa. Nessa Primeira Guerra Mundial, o vigoroso comércio ultramarino holandês organizou duas grandes companhias – a das Índias Orientais e a das Índias Ocidentais – para fortalecer a cooperação entre as empresas e se proteger dos espanhóis.

Brasão do Brasil holandês
Brasão do Brasil holandês

O Atlântico era a área da Companhia das Índias Ocidentais, cuja diretoria era composta de 19 membros, os chamados Senhores XIX, representantes das cidades cooperadoras, das quais Amsterdã era a principal.

Cientes de que as maiores riquezas da inimiga Espanha provinham das Américas, estes senhores começaram a pensar na conquista de parte das colônias americanas como forma de estancar a fonte de sustentação econômica das forças espanholas. 

Nesse contexto, a Bahia parecia presa fácil, e a cidade de Salvador foi tomada. Conquista, entretanto, perdida um ano depois (1624-1625). Os holandeses, porém, decidiram prosseguir com a empreitada, agora voltada para Pernambuco. O sucesso do projeto deu início ao Brasil Holandês (1630-1654).

Edificação da Companhia das Índias Ocidentais em Amsterdam
Edificação da Companhia das Índias Ocidentais em Amsterdam

Durante esse período, tem lugar um capítulo pouco conhecido da história eclesiástica brasileira, a da Igreja Cristão Reformada, nome da Igreja Protestante na Holanda. Era uma igreja do Estado, situação das igrejas no Ocidente, seja nos países católicos, seja nos protestantes. A Igreja Cristã Reformada veio para o Brasil sob a bandeira holandesa, e foi expulsa com ela. 

Na medida que os holandeses ampliavam o território conquistado, eram implantadas congregações reformadas. Durante algum tempo, existiram 22 igrejas protestantes no Nordeste, sendo que a do Recife era a maior, contando, inclusive, com uma congregação inglesa e uma sa. Esta se reunia no templo gálico, que tinha no conde Maurício de Nassau seu membro mais ilustre e o pastorado era exercido pelo espanhol Vicentius Soler.

Na leitura dos documentos da época, surge uma igreja cercada de pessoas dispostas a expulsá-la de sua terra como a religião dos invasores.

Bandeira do Brasil holandês
Bandeira do Brasil holandês

Entretanto, para os índios, os holandeses não eram invasores, mas sim libertadores, o que levou a missão reformada no Nordeste a fazer uma opção preferencial pelos indígenas. Para os holandeses, as tribos aculturadas constituíam os brasilianos e as não-subjugadas os tapuias. 

Filipe Camarão: O líder dos Potiguares recebeu honrarias do Rei Português por sua lealdade aos interesses lusos.

O primeiro contato entre os brasilianos e a Companhia das Índias Ocidentais ocorreu em Salvador. Com a perda da cidade, em 1625, o almirante da frota holandesa seguiu para o norte e aportou na baía da Traição, cerca de nove quilômetros ao norte da Paraíba. 

Os índios locais, da tribo potiguar, viram nos holandeses os seus libertadores do jugo português e muitos quiseram embarcar quando a frota partiu. Apenas seis jovens índios conseguiram seguir para a Holanda, enquanto a tribo procurava refúgio na mata para fugir da vingança dos portugueses.

unnamedOs seis índios potiguares – entre eles o índio Pedro Poti – permaneceram durante cinco anos nos Países Baixos, onde foram alfabetizados e instruídos na religião reformada. Pouco depois da invasão de Pernambuco, alguns desses índios foram enviados de volta ao Brasil para servirem de línguas (tradutores) no contato com seus compatriotas nas aldeias nordestinas.

O sistema de aldeamento dos índios foi iniciado pelos padres católicos e continuou com os holandeses. Por volta de 1639, o Rio Grande abrigava cinco aldeias de brasilianos, a Paraíba sete, Itamaracá cinco e Pernambuco quatro. O trabalho da igreja reformada teve início em cima do trabalho realizado pelos padres católicos. 

Os índios tinham aprendido algumas orações, a confissão apostólica, conheciam os nomes de Jesus e de Nossa Senhora, e tinham sido batizados; quanto ao mais, mantinham suas crenças animistas. Cedo a Igreja Reformada começou a evangelizar os indígenas, com apoio do governo, que precisava dos guerreiros na luta contra os portugueses.

Mas, apesar dos esforços, os holandeses não conseguiram estabelecer um método ideal de evangelização. Entretanto, os documentos registram anotações sobre batismos. No Presbitério de 1637, por exemplo, surge a questão do batismo de filhos de brasilianos e de africanos de pais já batizados pelos padres católicos. A Igreja Cristão Reformada reconheceu o batismo da Igreja Católica Romana, e decidiu que os filhos de pais batizados poderiam receber o sinal da aliança desde que seus pais confessassem a Jesus Cristo.

Mapa da região de Itamaracá
Mapa da região de Itamaracá

Em 1638, índios da Paraíba pediram ao Presbitério um predicante próprio. Nestas alturas, o Presbitério decidiu atender ao pedido dos indígenas e deslocar um pastor para as aldeias para pregar a palavra de Deus, istrar os sacramentos e exercer a disciplina eclesiástica, lembrando as três marcas da verdadeira igreja, conforme o artigo 29 da Confissão Belga. Esse plano recebeu o apoio do governo, sob a liderança de Nassau. 

APESAR DOS ESFORÇOS, OS HOLANDESES NÃO CONSEGUIRAM ESTABELECER UM MÉTODO EFICIENTE DE EVANGELIZAÇÃO

Convidado, o pastor David à Doreslaer mudou-se da capital da Paraíba para a aldeia de Maurícia. O trabalho do pastor Doreslaer teve sucesso, pois foi elogiado pelos representantes do Presbitério do Brasil em carta aos Senhores XIX, enquanto Nassau comunicava que os próprios índios expulsaram os padres das aldeias. 

Doreslaer e o pastor inglês Johannes Eduardus ampliaram o trabalho missionário e deram início ao ministério da educação. O primeiro professor protestante entre os índios foi o espanhol Dionísio Biscareto, casado com uma holandesa. Biscareto foi nomeado professor em Itapecerica, a maior aldeia da região de Goiana. Para as aldeias paraibanas, foi indicado o professor inglês Thomas Kemp.

Nederlands-Brazilie_Frans_Post_1637-470x370

Em 1640 começou o trabalho de brasilianização, movimento idealizado pelo pastor Soler, da Igreja sa no Recife. Ele conheceu um brasiliano razoavelmente experimentado nos princípios da religião, e no ler e escrever, capaz de instruir os índios. O pastor Eduardus, por sua vez, lembrou a existência de índios em idênticas condições em Goiana. 

Assim, solicitaram ao governo que esses índios fossem nomeados professores nas aldeias, com um salário mensal de 12 florins, soldo de um cabo do exército. Esses dois índios foram os primeiros professores indígenas da Igreja Protestante na América do Sul.

Em livro publicado em 1651, Pierre Moreau cita um jovem ministro britânico que traduzira as Santas Escrituras para a língua brasiliana. Tudo indica que o hábil lingüista era o pastor Eduardus. Mas o que foi traduzido? Provavelmente apenas trechos bíblicos, mas, até hoje, não foram encontrados registros sobre o assunto nos arquivos. O que fica evidente é o interesse da Igreja Cristã Reformada em entregar aos índios a mensagem bíblica em sua própria língua.

Com a necessidade de um catecismo em língua tupi, o pastor Doreslaer organizou um livro de instrução que foi impresso na Holanda com o título Uma instrução simples e breve da Palavra de Deus nas línguas brasiliana, holandesa e portuguesa, confeccionada e editada por ordem e em nome da Convenção Eclesial Presbiterial no Brasil com formulários para batismo e santa ceia acrescentados. Embora o livro tenha sido criticado pelo Presbitério de Amsterdã, a Companhia das Índias Ocidentais mandou imprimi-lo em 1641 e, no ano seguinte, distribuiu-o no Brasil. 

Nederlands-Brazilié-Jan-van-Brosterhuisen-ca.-1645No terreno da assistência social, a Igreja Reformada enfrentava a caótica situação matrimonial existente na colônia, inclusive entre os índios. Muitos brasilianos casados viviam separados de suas esposas e não podiam casar-se novamente, embora muitos desejassem fazê-lo. 

O Presbitério, em 1638, foi de opinião que a parte desertora do casal deveria ser citada por edital público do juiz civil. Depois de determinado período, a parte abandonada deveria ser considerada livre da parte desertora, o que deveria ser aprovado pelo magistrado. Esta determinação, reconhecendo a fraqueza da natureza humana, representa o primeiro projeto de reconciliação ou divórcio legal na América do Sul. 

Os resultados práticos, entretanto, foram limitados, em razão das hesitações do magistrado, temeroso de conseqüências mais amplas. Na outra ponta, o problema da escravidão dos índios exigia solução urgente. 

Desde o início da chegada dos holandeses ficou claro que os indígenas, aculturados e não-aculturados, deveriam ser livres. A liberdade dos brasilianos seria um dos capítulos fundamentais da Constituição do Brasil Holandês e tratada nos Regulamentos de 1629, 1636 e 1645. 

WEBSITE_plaatje.04-Fregat-Boreas-voor-Elmira-invnr-A.20466-01_scheepsvaartmuseumOs holandeses não só precisavam dos índios na guerra contra os ibéricos, como sentiam profunda empatia pelos indígenas, pois, como eles, também estavam sendo oprimidos pela União Ibérica, a superpotência mundial da época. 

LIBERTAÇÃO DOS INDÍGENAS

Os Senhores XIX insistiram para que fossem postos em liberdade os brasilianos escravizados pelos portugueses em 1625, depois da partida da esquadra holandesa. Esta libertação demorou, e começou a se tornar concreta com o início do trabalho missionário. 

Em 1638, descobriu-se que os moradores portugueses de Recife ainda mantinham indígenas como escravos domésticos. Boa parte desses índios havia sido aprisionada pelas expedições punitivas levadas a efeito ao redor da baia da Traição, em 1625. O governo ordenou que todos os escravos fossem libertados imediatamente.

O governo holandês também combateu duramente a semi-escravidão, lembrando aos proprietários rurais, em Alagoas, que índios somente poderiam trabalhar nas lavouras por livre vontade e recebendo a devida remuneração. O sub-pagamento foi outra forma de exploração firmemente reprimida no Nordeste holandês. O governo determinou que os capitães que abusassem de sua autoridade fossem exemplarmente castigados. 

het-nederlandse-fort-cinco-pontas-bij-recifeOs índios, por sua vez, desejavam se transferir para as aldeias que possuíam missionários e, após intervenção do Presbitério, as autoridades promoveram as transferências para colaborar com o crescimento da igreja de Deus. 

Na história da luta da Igreja Reformada no Brasil em favor da libertação dos índios é necessário lembrar a lei do ventre livre de 1645, originária de consulta do pastor Kemp sobre a situação de brasilianos casados com escravas africanas e escravos negros casados com indígenas. 

Em resposta, as autoridades decidiram que a parte escrava do casal não se libertava pelo matrimônio, mas podia ser alforriada, e que os filhos resultantes desse tipo de casamento seriam considerados livres, reiterando que brasilianos, sem exceção, eram livres. 

EM RELAÇÃO À ESCRAVIDÃO DOS NEGROS AFICANOS, AS CONSCIÊNCIAS CRISTÃS ERAM PRIMITIVAS, CONSIDERAVAM-NA UM ESCRÚPULO DESNECESSÁRIO

Infelizmente, quanto à escravidão africana, na época as consciências cristãs era subdesenvolvidas. Quando o pastor Jacobus Dapper questionou se era lícito ao cristão negociar ou possuir escravos africanos, até o conde de Nassau afirmou que se tratava de escrúpulos desnecessários. 

Indios Tapuias Albert Eckhout 1640Nassau se conformava ao espírito de seu tempo, mas contrariava o pensamento do pai espiritual da Companhia, o belga Willem Usselinex, e do patriarca da Igreja Reformada, o francês João Calvino.

O derradeiro período da missão da Igreja Cristã Reformada começou com a realização de duas importantes assembléias, uma eclesiástica, outra política. A mesa da Assembléia Geral das Igrejas recebeu pedidos de tribos que queriam receber seus próprios obreiros. 

O professor Dionísio Biscareto foi ordenado pastor e dois brasilianos nomeados professores. Poucos meses antes da chamada insurreição pernambucana, em 1645, realizou-se a primeira grande assembléia indígena, com 120 representantes, em Itapecerica, na capitania de Itamaracá. 

brholandes_179Foram organizadas três câmaras,: a câmara de Itamaracá, dirigida pelo índio Carapeba; a de Paraíba, pelo índio Pedro Poti; e a do Rio Grande, pelo índio Antônio Paraupaba.

O teste final e violento da missão reformada veio com a eclosão da guerra de restauração portuguesa. Os documentos atestam a impressionante fidelidade dos brasilianos refugiados ao redor das fortalezas litorâneas. 

O mais famoso desses registros são as chamadas cartas tupis, trocadas entre dois primos colocados em campos opostos, o capitão-mór Filipe Camarão e Pedro Poti. Camarão era defensor do lado luso-católico na guerra; Poti, defensor do lado flamengo-reformado. Essa correspondência deixa claro a estreita vinculação entre fé e nação, igreja e Estado. Filipe Camarão escreveu: não quero reconhecer a Antônio Paraupaba, nem a Pedro Poti, que se tornaram hereges […]. 

Batalha dos Guararapes
Batalha dos Guararapes

Em resposta datada de 31 de outubro de 1645, dia da Reforma Protestante, Poti garante que seus índios viviam em maior liberdade do que os outros, ressaltando que os portugueses queriam apenas escravizá-los. 

Poti lembra a Camarão as matanças ocorridas na baia da Traição e em Sirinhaém, havia poucas semanas, quando os portugueses, após a rendição da frota holandesa, mataram perversamente 23 índios prisioneiros de guerra, quebrando as condições previamente acordadas. 

Confessou também ser cristão, crendo somente em Cristo, não desejando contaminar-se com a idolatria, e convidou seus parentes e amigos a ar para o lado dos piedosos, que nos reconhecem no nosso país e nos tratam bem. 

Ambos os primos não veriam o final dessa luta sangrenta: Camarão faleceu em 1648, depois da primeira batalha de Guararapes, e Poti no ano seguinte foi preso no cabo Santo Agostinho pelos portugueses. Segundo testemunho de Paraupaba, Poti foi lançado num poço, onde permaneceu durante seis meses. 

Insurreição Pernambucana
Insurreição Pernambucana

Retirado de vez em quando, padres se atiravam sobre ele, tentando obrigá-lo a abjurar a religião protestante. Poti, entretanto, resistiu bravamente na fé protestante, e foi embarcado para Portugal, para as câmaras de tortura do Santo Ofício, mas a viagem não acabou, atalhada pela morte.

A guerra de restauração aproximou ainda mais os índios dos holandeses e apenas o pacto com os brasilianos garantiu a resistência flamenga durante nove anos. 

Quando não houve mais condições de manter Recife, com as tropas luso-brasileiras às portas das fortificações e a armada portuguesa á entrada do porto, o Nordeste foi devolvido a Portugal. Terminava, também, a missão cristã reformada, impossível sem a proteção de um país protestante. 

Fonte – http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/indios_protestantes_no_brasil_holandes.html

A AVENTURA DO VERDADEIRO ROBINSON CRUSOÉ

Quando em 1719 Daniel Defoe publicou seu romance Robinson Crusoé não tinha ideia que este se tornaria mundialmente famosa e lembrada por muitas gerações. No entanto Defoe tinha lido alguns anos antes um livro escrito por um corsário, um certo Woodes Rogers, que narrou a aventura de um de seus marinheiros que afirmava ter ado mais de quatro anos abandonado em uma ilha deserta. O nome deste marinheiro era Alexander Selkirk.

Na pequena Bristol de 1714, todo domingo se via ar pelas ruas um senhor vestido de preto. Por baixo do casaco, o inglês exibia mangas rendadas. Usava uma peruca volumosa e a espada atada à cinta. Entrava nas tabernas para conversar com os operários e marinheiros. Ninguém sabia seu nome, nem o que fazia nos outros dias da semana. Quando o domingo chegava ao fim, ele desaparecia.

Porto de Bristol – Fonte – http://gallery.e2bn.org

Esse comportamento bem peculiar lhe valeu a alcunha de “Gentleman Sunday”, o Cavalheiro Domingo. Almoçava invariavelmente na pensão Leão Vermelho, freqüentada por gente muito esquisita. Num domingo como outro qualquer, entrou nesse estabelecimento um homem vestido de pele de cabra, gorro e botas de cano alto. O Cavalheiro Domingo e o “selvagem” logo simpatizaram e fizeram amizade. aram a ouvir juntos o sermão noturno. Ambos eram crentes fervorosos.

Todos conheciam o tal selvagem. Os jornais de Londres já haviam relatado sua extraordinária aventura e ele mesmo contou-a minuciosamente ao Cavalheiro Domingo naquela noite. Seu nome era Alexander Selkirk. Nascido em Lower Largo, na região de Fife, Escócia,  em 1776, foi o sétimo filho de um próspero – mas turrão – artesão de peles. Não queria ser comerciante como o pai por nada neste mundo. Aos 19 anos, recebeu uma condenação por indecência pública por namorar na igreja e, ao invés de ir para alguma cela imunda, ele fugiu da cidade e se juntou a tripulação de um barco. Embarcou então em busca de novos horizontes.

Capitão William Dampier, antigo comandante de Selkirk. Esteve na Bahia em 1699 – Fonte – http://pt.wikipedia.org

Atraído pelo mar, Selkirk preferiu os corsários à Marinha Real Britânica. Apesar de mais arriscada, a carreira era mais bem remunerada. Ele participou da expedição dos capitães Thomas Strading e William Dampier numa campanha que prometia muito lucro.

Dampier era inglês, filho de um fazendeiro, tinha sido um marinheiro em um navio mercante desde que tinha dezessete anos e quatro anos mais tarde entrou na Marinha Real, onde participou de várias expedições pelos sete mares e deixou a Marinha após a perda de um barco. Virou corsário!

Depois de vários meses, no entanto, eles não fizeram nenhuma pilhagem. William Dampier, capitão de um barco chamado St. George, revelou-se melhor etnógrafo que pirata. Célebre explorador e navegante talentoso, escreveu diversas obras, entre as quais Discurso sobre os ventos, acerca das correntes e dos ventos marítimos, que seria utilizada depois pelo capitão James Cook e pelo almirante Horatio Nelson.

Barco semelhante ao que Selkirk navegou – Fonte – http://wamuseum.com.au

Selkirk atribuía à indecisão e à indolência de Dampier a ausência de butim. Já Thomas Strading, o capitão do barco Cinque Ports, foi acusado pro ele de ser autoritário e até mesmo ditatorial. Quando estavam navegando ao largo das ilhas Juan Fernández, um arquipélago do Pacífico, Selkirk instigou nada menos que um motim a bordo do navio.

MARES DO SUL 

O arquipélago vulcânico ficava a 650 km da costa do Chile. Sem praias de areia fina nem palmeiras, tinha apenas colinas altas e baías tristes, de terra escura. Descoberto em 1574, possuía flora e fauna sui generis. Lá as samambaias chegavam a vários metros de altura e as lagostas pesavam 10 kg. No século XVIII, era uma escala conhecida por todos os navegantes dos mares do sul. Os ingleses, que não dispunham de um único porto no Pacífico, predominantemente dominado pelos espanhóis, costumavam navegar seus corsários pelas águas do arquipélago.

No quadro “A batalha da baía de Vigo”, óleo sobre tela, de Ludolf Bakhuizen, feito em 1702, vemos um episódio da disputa pela sucessão do trono da Espanha opôs a Inglaterra ao país ibérico. Na ilha deserta, Selkirk quase foi pego pelos inimigos espanhois, que desembarcaram de surpresa.

Naquela época, a Guerra de Sucessão espanhola estava no auge na Europa, e os dois países se dilaceravam em todos os mares do globo. Quando os navios britânicos de Stradling e Dampier chegaram a uma das ilhas, no início de 1704, enviaram batedores para verificar se os inimigos hispânicos não estavam por lá. Em vez de espanhóis, encontram uma surpresa: foram recebidos por dois compatriotas. Tratava-se de tripulantes de um certo capitão Davis, que havia desembarcado lá sete meses antes – não era raro abandonarem naquelas ilhas os marinheiros em conflito com o comando: eles deveriam ficar esperando pacientemente a agem de outra embarcação que se dispusesse a recebê-los a bordo.

Selkirk na cabana da ilha – Fonte – http://wamuseum.com.au

Para sobreviver, os dois marujos encontrados pelos subordinados de Stradling construíram uma cabana e se alimentaram de carne de cabra, animal introduzido na ilha pelos espanhóis. A chegada do Cinco Portos pôs fim ao castigo dos dois e deu início ao de Selkirk.

Acreditando contar com a adesão de uma parte da tripulação ao seu motim, Selkirk decidiu desembarcar voluntariamente. Mas nenhum outro membro o seguiu. Decepcionado, ateve-se à certeza de que o São Jorge, normalmente alguns dias atrás do Cinco Portos, não tardaria a ancorar na ilha e acolhê-lo a bordo. Afinal, Selkirk tinha direito à imunidade penal por ter saído do navio por vontade própria. Ou seja, não seria declarado desertor, crime punido com a morte naqueles tempos.

O exilado na ilha e suas armas – Fonte – http://badassoftheweek.com

Abandonado à própria sorte, viu-se sozinho com um mosquete, chumbo, apenas uma libra de pólvora, um machado e um facão. Do baú de bordo ele pôde retirar algumas camisas, mudas de roupa e objetos pessoais, entre os quais a Bíblia de Edimburgo e uma coletânea de salmos. Os dois marujos resgatados pam à disposição de Selkirk os utensílios de cozinha e sua cabana. Ele não tinha a menor idéia que ia ar mais de quatro anos sozinho na ilha.

SOBREVIVÊNCIA

Sua preocupação inicial foi obter alimentos. Decidiu atacar as cabras herdadas dos marujos, já que na ilha não havia caça pequena nem pássaros. No início, tolerou a falta de sal e de pão, convencido de que a chegada do capitão Dampier era iminente. A exploração da ilha, o cuidado com a cabana e o descanso naquele asilo marinho ocuparam seus primeiros dias. Mas, com o transcorrer das semanas, foi obrigado a itir o óbvio: o São Jorge não despontaria no horizonte. Selkirk ficou arrasado.

Fotografia de 1874 mostra dois homens em caverna utilizada como abrigo por Alexander Silkirk durante os anos que permaneceu na ilha – Fonte – BIBLIOTECA DO CONGRESSO, WASHINGTON

Depois de um tempo, cabisbaixo, encontrou uma morada mais conveniente que aquela erguida à beira-mar, perigosa caso os espanhóis ancorassem na baía. Selkirk descobriu um platô elevado, de difícil o. Seria um observatório perfeito para vigiar o mar. A cavidade natural, atrás da qual se estendia um vale de vegetação exuberante e um pequeno córrego, foi o seu novo lar. O escocês demarcou dois espaços nessa caverna: um serviria de quarto e o outro, de cozinha. Construiu um galpão com galhos e cobriu o teto de varas de samambaias. Peles de cabra forravam as paredes do refúgio, escondendo a única janela e a porta. O marujo sabia que o inverno na região era chuvoso e frio.

Levou para lá tudo que tinha. Fez uma cama de galhos, mato seco e pele. Construiu também um redil para as cabras e assim reuniu um pequeno rebanho. Os filhotes nascidos em cativeiro eram menos ariscos. A seguir, tratou de procurar alimentação mais variada. As lagostas diversificaram agradavelmente seu cardápio. As focas do sul da ilha também lhe forneciam uma carne pouco saborosa, mas com óleo em abundância. Terminada a reserva de pólvora, o suboficial modificou seu método de caça. Às vezes tinha de ar horas à espreita dos animais, mortos com uma clava que fabricara. Examinando a flora, descobriu uma espécie de acetosa cujo suco servia de vinagre. Encontrou couve-rábano e nabo plantados por seus predecessores e conseguiu extrair pimenta-do-reino e pimenta-branca de plantas trepadeiras. Este condimento revelou-se precioso: quando sua última pitada de pólvora desapareceu, ele ou a fazer fogo girando uma vareta entre as mãos numa placa de pimenteira. Por fim, obteve o sal fervendo a água do mar.

Ilha Juan Fernandez – Fonte – http://.tripod.com

Na ilha, só não havia nativos. Ela ficava muito longe da costa para que os índios mais próximos, os araucanos, se aventurassem em suas embarcações de tronco de árvore. As duas únicas visitas que Selkirk recebeu foram dos marinheiros inimigos. Na primeira vez, ao voltar da caçada, detectou pegadas na praia e ficou louco de alegria. Mas logo ouviu vozes falando em espanhol. Apavorado, só se salvou graças à falta de disposição dos marinheiros para perseguir aquele selvagem branco mal-cuidado. ou a noite inteira trepado numa árvore, aguardando a partida dos inimigos. O segundo desembarque não o surpreendeu: ele viu os espanhóis atracarem e se escondeu na floresta.

APEGO À RELIGIÃO

A vida se esvaía monotonamente. Com exceção das cabras, seus únicos companheiros eram os ratos e os gatos, fugidos de algum navio. Não lhe restou outro refúgio senão a Bíblia. Após um período de depressão, ele entregou-se ao misticismo. Observando escrupulosamente os domingos – mais precisamente, os dias que supunha domingo –, celebrava a missa para si próprio. A crença em algo superior revelada pela solidão nunca mais desapareceria.

Fonte – http://etc.usf.edu

Já fazia quatro anos e quatro meses que Selkirk vivia na ilha. O capitão Dampier, do São Jorge, não havia aparecido. Ao menos não até aquele momento. Mas foi justamente este homem, tão aguardado, que acabou salvando nosso aventureiro. Depois do São Jorge, Dampier voltara à Inglaterra arruinado por suas aventuras. Sua sede por novos ares levou-o a embarcar novamente em 1708, dessa vez como subordinado do capitão Woodes Rogers, no Duke. Dampier conduziu o navio ao arquipélago Juan Fernández na noite de 31 de janeiro de 1709. Os marinheiros ingleses ficaram alarmados: na escuridão, uma fogueira brilhava na praia e eles não tinham visto nenhum barco espanhol. No dia seguinte, Thomas Dover, médico e imediato do Duke foi encarregado da exploração. Acompanhado de homens armados, ele desembarcou e descobriu um Selkirk saltitante na praia.

Selkirk reencontra outras pessoas depois de quatro anos – Fonte – http://www.telegraph.co.uk

Ele contou sua história a Dampier, que o informou do naufrágio do Cinco Portos pelas mãos dos espanhóis. O resto da tripulação estava presa em algum lugar do litoral de Lima e ninguém o procurou porque ele era dado como morto. Stradling, o capitão que não o perdoou, conseguira fugir numa embarcação sa.

Nas duas semanas que os ingleses aram na ilha, Selkirk mostrou-lhes seu pequeno mundo. Matou cabras e renovou suas nassas, os cestos de vime feitos para pegar peixes. Assim, os marujos se recuperaram rapidamente dos ataques de escorbuto.

O caminho para casa – Fonte – http://www.nationalarchives.gov.uk

O barbeiro devolveu-lhe a cara de civilizado. Na primeira noite a bordo, ele não conseguiu dormir: perdera o hábito do balanço do navio. Tampouco ava usar sapatos nos pés. Nomeado segundo suboficial, Alexander Selkirk finalmente deixou a ilha no dia 14 de fevereiro de 1709. Desembarcou na Inglaterra em 1711, com a bolsa recheada de 800 libras. Podia reiniciar a vida.

RETORNO INCÔMODO

Voltou ao lar paterno, na Escócia, mas não conseguiu se readaptar. Arrumou uma pequena gruta atrás da casa e ou a levar uma vida reclusa, tendo como única companhia os gatos que criava. Sem se misturar com os habitantes da aldeia, ele ava os dias no mar, pescando, ou a vagar pelo mato. Interrompeu a solidão voluntária no dia em que conheceu Sophia Bruce, com quem se casou. O casal foi morar em Londres, mas não tardou para que se espalhassem boatos de violência doméstica. Lá, em 1713, Selkirk conheceu o ensaísta Richard Steele, que narrou sua aventura no The Englishman. Selkirk teve um breve momento de celebridade. Mesmo porque o capitão Rogers também o havia mencionado em Uma navegação ao redor do mundo, publicado anteriormente.

Retrato de Daniel Defoe, gravura, autor desconhecido, 1870

A mesma história foi contada por Selkirk ao Cavalheiro Domingo na pensão Leão Vermelho de Bristol, pouco antes de retornar ao mar. Seria exatamente por suas mãos que ele ganhara notoriedade.

O cavalheiro misterioso também era uma figura à parte. Nascido 50 anos antes, filho de um chapeleiro de uma família de puritanos integristas – os dissenters, partidários de Oliver Cromwell –, foi educado para ser pastor. Mas, com o retorno da monarquia e o triunfo do anglicanismo, viu-se perseguido, malquisto na pátria britânica. Tendo retomado o negócio do pai e, posteriormente, montado uma perfumaria, percorreu toda a Inglaterra e viajou à Escócia, à Alemanha, à França, à Itália e à Espanha. Seus fracassos mercantis geraram tantas dívidas que nunca pôde pagá-las. Por isso, escondeu-se em Bristol e só saía aos domingos: os credores não podiam perseguir os devedores no Dia do Senhor.

Dez anos e muitas peripécias depois, inclusive uma agem pela prisão, ele se inspirou livremente na aventura de Selkirk para produzir uma obra-prima da literatura mundial.

A vida real de Selkirk já inspirava escritores em 1835 – Fonte – http://en.wikipedia.org

Seu personagem já havia partido novamente para o mar e, algum tempo depois, faleceu, aos 44 anos. Antes, ele deserdou a infeliz Sophia Bruce, de quem não se separou oficialmente, em benefício de sua segunda esposa, s Candis. Ao relato do marinheiro, o Cavalheiro Domingo acrescentou a história do índio Will, ao qual deu o nome de Sexta-feira. Ele teria sido esquecido na ilha mais de 20 anos antes.

Robinson Crusoé desembarca em ilha deserta, litogravura, Karl Offter, século XIX, Berlim, Alemanha © AKG IMAGES/LATINSTOCK

O escritor transformou o desembarcado num náufrago. Adicionou antropófagos e situou a ilha no Atlântico, nas proximidades do litoral do Brasil, e não no Pacífico original. Por fim, rebatizou o escocês. Deu-lhe um primeiro nome muito comum na região natal de Selkirk e colocou um sobrenome similar ao de um colega de escola que se tornara ministro. Para a posteridade, Alexander Selkirk ou a ser Robinson Crusoé. O Cavalheiro Domingo se chamava Daniel.

UMA ILHA DESERTA MUITO FREQUENTADA

O primeiro Robinson do arquipélago de Juan Fernández foi um índio misquito, Will, esquecido por seu capitão em janeiro de 1681. Ele viveu lá até abril de 1684. O náufrago seguinte, cujo nome não se sabe, o sucedeu durante cinco anos.

Ilha Juan Fernandez – Fonte http://www.destination360.com

Quando Selkirk desembarcou em 1704, dois marinheiros do capitão Davis moravam lá havia sete meses. Em 1741, o almirante Anson permaneceu na ilha por três meses. Em seu relato, ele apresenta o local como um verdadeiro paraíso perdido. No século XVIII, o arquipélago serviu de prisão de criminosos perigosos, alojados em cavernas. Cem anos depois, durante a guerra de independência do Chile, foi utilizado como cadeia de presos políticos.

Cruzador alemão Dresden, afundado pela sua tripulação em Juan Fernandez em 1915 – Fonte – http://www.comunajuanfernandez.cl

A colonização iniciou-se em 1877, dirigida pelo barão suíço Alfred de Rodt, que levou seu papel tão a sério que um grande número dos 500 habitantes eram seus descendentes. A ilha ainda conheceria outro “Robinson”: Hugo Weber, marinheiro do Dresden, navio alemão que, em 1915, perseguido por quatro couraçados ingleses, preferiu ser posto a pique na baía a se entregar. Entre os que se salvaram estava Wilhelm Canaris, futuro chefe da contra-espionagem nazista. Quando os marinheiros retornaram à Europa, Weber optou por ficar na ilha, instalando-se nos montes. Recluso na solidão, viveu por 30 anos intrigando os habitantes, que o consideravam espião. Com esse pretexto, as autoridades chilenas o expulsaram em 1945.

Placa erguida pela Marinha britânica em homenagem a Selkirk no arquipélago Juan Fernández. Corajoso, o marujo ainda voltou ao mar após a experiência traumática – Fonte – BIBLIOTECA DO CONGRESSO, WASHINGTON

Atualmente, pela excepcional riqueza de sua fauna e flora, o arquipélago de Juan Fernández foi declarado parque natural pelo Estado chileno e reserva mundial da biosfera pela Unesco.

Yvan Matagon é diplomado em história medieval. Trabalhou no arquivo do castelo de Dourdan e atualmente é bibliotecário da cidade de Troyes, na França

FONTE – http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/a_aventura_do_verdadeiro_robinson_crusoe.html