AS BATALHAS ENTRE CLEMENTINO QUELÉ E LAMPIÃO EM SANTA CRUZ DA BAIXA VERDE – PE

Lampião, o Rei do Cangaço
Lampião, o Rei do Cangaço

“HOJE SÓ SE SALVA QUEM AVÔA”

Autor – Rostand Medeiros

Em um dia de agosto de 2006, uma sexta feira, na cidade pernambucana de Santa Cruz da Baixa Verde, em Pernambuco, tivemos a oportunidade de conhecer um homem, nascido em 1912, que pela sua lucidez e saúde, foi como encontrar um verdadeiro tesouro da história oral do cangaço.

Clementino José Furtado, o Clementino Quelé.
Clementino José Furtado, o Clementino Quelé.

Seu nome era Antônio Ramos Moura, sua residência uma casa ampla no sitio Conceição e o assunto foi os dois ataques perpetrados por Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, e seus cangaceiros, contra a casa do seu antigo parceiro, Clementino José Furtado, o Clementino Quelé, que após estes embates se tornou um dos mais esforçados perseguidores do “Rei do Cangaço”.

Antônio Ramos Moura, então com doze anos, foi testemunha destes episódios e detalhou vários aspectos de sua vida na época e rememorou inúmeros fatos. 

A Santa Cruz 

O atual município de Santa Cruz da Baixa Verde está localizado na região do Sertão do Alto Pajeú, na fronteira com a Paraíba. Fica distante 455 quilômetros de Recife, possui um agradável clima serrano e a cidade se caracteriza por concentrar na atualidade a maior quantidade de engenhos de rapadura de Pernambuco. Já as origens do local são oriundas do antigo “sítio Brocotó” e a atual denominação tem origem na ação de um missionário nordestino que possui uma história extraordinária.

Nascido em 5 de agosto de 1806, na Vila de Sobral, Ceará, José Antônio Pereira Ibiapina teve uma origem confortável. Mas devido a participação do seu pai Francisco Miguel Pereira na insurgência conhecida como Confederação do Equador, este foi fuzilado em 1825, e o irmão Alexandre seguiu preso para a ilha de Fernando de Noronha, onde morreu pouco tempo depois. Ibiapina teve que assumir e manter financeiramente a família.

Imagem mais conhecida do Padre Ibiapina - Fonte - http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=852&Itemid=1
Imagem mais conhecida do Padre Ibiapina – Fonte – http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=852&Itemid=1

Algum tempo depois ingressou no Curso de Direito do Recife, concluindo em 1832. No ano seguinte exerce o cargo de professor substituto de Direito Natural na Faculdade de Olinda. Depois foi eleito Deputado Geral e nomeado, em dezembro, Juiz de Direito da Comarca de Campo Maior, no Ceará. Concluídos os trabalhos legislativos, em 1837, Ibiapina voltou para o Recife e resolve exercer a advocacia. No entanto, ele a a trabalhar efetivamente na profissão no estado da Paraíba. Em 1840 volta ao Recife e continua sua luta junto aos tribunais.

A partir de 1850 Ibiapina resolve abandonar seus trabalhos forenses e inicia um período dedicado à meditação e exercícios de piedade. Após três anos de meditação e reflexão, Ibiapina decide-se pelo sacerdócio. Nesse sentido, em 12 de julho de 1853, aos 47 anos de idade, ele se torna o Padre Ibiapina. Logo após sua ordenação, o Bispo Dom João da Purificação o nomeia Vigário Geral e Provedor do Bispado, além de professor de Eloquência do Seminário de Olinda.

Mas contrariando seus superiores, opta pela vida missionária. Padre Ibiapina começou então seu trabalho missionário pelo interior do Nordeste. Em diversas vilas construiu casas de caridade, destinadas a moças pobres. Em cada lugar ele pregava, orientava, promovia reconciliações, construía açudes, igrejas, cemitérios, cacimbas e cruzeiros. Um destes cruzeiros foi erguido no sítio Brocotó e ficou conhecido como Santa Cruz, sendo esta a denominação na época do cangaço.

Região serrana de Santa Cruz da Baixa Verde, Pernambuco.
Região serrana de Santa Cruz da Baixa Verde, Pernambuco.

Com o ar do tempo, pelo fato da pequena urbe está no alto da Serra da Baixa Verde, o lugar ou a denominar-se Santa Cruz da Baixa Verde e pertencia istrativamente à bela cidade serrana de Triunfo.

Careta 

O pai do nosso entrevistado chamava-se Miguel Moura, tinha uma pequena bodega, além de trabalhar como tropeiro, ou almocreve. Tinha uma tropa de animais e fazia a linha entre as cidades de Triunfo, Serra Talhada e Arcoverde, na época denominada Rio Branco, trazendo e levando cereais. Antônio Ramos comentou que seu pai viajava para vários locais, transportando rapaduras. Inclusive o Rio Grande do Norte foi um dos seus destinos, onde esteve em Mossoró para comprar sal e também em Caicó.

O autor e o memorioso Antônio Ramos Moura.
O autor e o memorioso Antônio Ramos Moura.

Para nosso entrevistado Clementino Quelé, era chefe de sua família, tinha como irmãos Pedro, Quintino, Antônio, José e Manuel (nezinho), todos considerados homens dispostos, valentes e que “gostavam da espingarda”. Antônio Ramos comenta que na sua infância tinha um enorme respeito por aquele homem. Pouco falou com ele, mas obteve muitas informações sobre Quelé através de seu sogro Joaquim de Fonte, sobrinho do chefe da família Furtado.

Clementino é descrito como um homem forte, de tez acentuadamente branca, que realmente ficava com a pele vermelha quando tinha raiva e esta teria sido a razão de Lampião apelidá-lo pejorativamente como “Tamanduá Vermelho”.

praça principal da atual Santa Cruz da Baixa Verde, com a estátua do Padre Ibiapina em destaque.
praça principal da atual Santa Cruz da Baixa Verde, com a estátua do Padre Ibiapina em destaque.

Já para o pesquisador Frederico Pernambucano de Mello (in “Guerreiros do Sol”, 2004, págs. 220 a 225), Quelé era natural da ribeira do Navio, onde seguiu jovem para Alagoas, afastando-se de Pernambuco por questões de disputa familiar. No retorno a sua família vem para Triunfo, no sítio Santa Luzia. O antigo membro de volante João Gomes de Lira (in “Lampião-Memórias de um soldado de volante”, 1990, págs. 123 e 124) comenta ser a Santa Luzia a morada do bravo pernambucano.

Fachada da igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em santa Cruz da Baixa Verde.
Fachada da igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em santa Cruz da Baixa Verde.

Para Antônio Ramos, na época das grandes “brigadas” de Quelé contra Lampião, ele morava no sítio Conceição.

Independente desta questão consta para nosso entrevistado que Quelé e seus irmãos eram analfabetos “-De tudo”. Do tipo que “-Não assinavam nem o A” e nem faziam “-Garrancho” do nome. Dizia Quelé ao tio de Antônio Ramos que ele era “careta”, outra denominação para seu analfabetismo. Pois quando olhava para qualquer texto escrito, franzia a testa, mostrava o rosto carregado, com uma careta, por não saber ler.

Mas se Quelé e seus irmãos não sabiam ler, sabiam atirar e muito bem. 

De Homem da Lei a Cangaceiro 

Para Mello (op. cit.), o bravo Quelé alcançou o posto de subdelegado do seu lugar e impunha a ordem, mas igualmente angariava inimigos. O autor informa que em uma diligência Quelé matou dois ladrões de cavalo, respondeu processo e foi destituído do cargo. Em seu lugar assumiu seu irmão Pedro José Furtado, ou Pedro Quelé.

Em 1922, para livrar o valente chefe da família Furtado do processo, o líder político Aprígio Higino D’Assunção solicita deste e de seus irmãos votos na próxima campanha eleitoral em Triunfo. Diante da recusa de Quelé em apoiá-lo, Aprígio ordena que uma força policial com um oficial e quatorze praças saíssem à caça do valente.

Na tranquilidade do alpendre de sua casa, o sertanejo Antônio Ramos contou que um dia, certo morador do lugar chamado Tomé Guerra, antigo amigo de Quelé, arranjou uma encrenca com o mesmo e entendeu de matá-lo. Tomé chamou outro morador do lugar, também “chegado na espingarda”, de nome Cícero Fonseca. Estes, juntos com um grupo de policiais, colocaram uma tocaia contra Clementino ás cinco da manhã, “-Para pegá-lo com as mãos”.

O "major" Aprígio Higino D’Assunção,  que por três ocasiões foi prefeito em Triunfo e dono de cartório.
O “major” Aprígio Higino D’Assunção,
que por três ocasiões foi prefeito em Triunfo e dono de cartório. Foto reproduzida a partir do livro “Triumpho, a corte do sertão”, de Duana Rodrigues Lopes, pág. 234.

Quelé ao perceber o ardil, pulou desviando dos tiros e respondeu ao fogo, atingindo certeiramente a cabeça de Cícero Fonseca, tendo o mesmo caído mortalmente ferido em um barreiro. Os outros membros da emboscada “botaram” em Quelé, que conseguiu fugir para sua casa. Clementino teria escapado através de um local onde havia um curral que pertencia a um cidadão conhecido como Sebastião Pedreiro e por uma área onde existia certa quantidade de cactos do tipo palma, utilizados como comida para o gado.

De paletó claro vemos  Aprígio Higino.  Para o pesquisador Frederico Pernambucano de Mello ele foi o pivô que levou Clementino Quelé  a entrar no cangaço.  Foto reproduzida a partir do livro “Triumpho, a corte do sertão”, de Diana Rodrigues Lopes, pág. 373.
Aprígio Higino e parentes. Para o pesquisador Frederico Pernambucano de Mello ele foi o pivô que levou Clementino Quelé a entrar no cangaço.
Foto reproduzida a partir do livro “Triumpho, a corte do sertão”, de Diana Rodrigues Lopes, pág. 373.

Mello (op. cit.) aponta que um “certo Tomé de Souza Guerra”, do sítio Santana e outros homens engrossaram a força policial que perseguia Quelé. Mas Cícero Fonseca era um companheiro de Quelé, onde os dois bebiam na bodega de Sebastião Pedreiro, quando a polícia cercou o lugar e deu voz de prisão. Na versão do respeitado pesquisador, que conseguiu suas informações através do relato de Miguel Feitosa, o antigo cangaceiro Medalha, o pobre Cícero ao colocar o pé para fora da bodega foi crivado de balas.

Vendo que a força policial e os paisanos não vinham para prendê-lo, mas para exterminá-lo, Quelé solicita aos gritos o apoio de amigos das proximidades, estes atenderam ao chamado e a balaceira foi grande. Diante da resistência inesperada a força policial e os paisanos batem em retirada. 

Independente de qual a versão correta, todos são unânimes em afirmar que a partir deste confronto os perseguidores am a “apertar” Quelé, sendo esta a verdadeira razão para ele e seus irmãos entrarem no cangaço junto a Lampião. 

A Briga de Quelé com o Cangaceiro Meia Noite 

O comerciante e almocreve Miguel Moura nutria uma boa relação com Clementino, a quem chamava de “primo”. Este comentou com seu filho que a razão de sua saída do bando de Lampião foi uma briga com o valente cangaceiro “Meia Noite”. 

Este era alagoano, do lugar Olho D’água, atual Olho D’água do Casado, próximo a cidade de Piranhas. Seu nome verdadeiro era Antônio Augusto Correia e pelo fato de possuir a pele negra, recebeu a famosa alcunha. Para o genitor de Antônio Ramos, o negro Meia Noite foi o mais valente de todos os homens que andaram com Lampião, do tipo de gente que “-Dava medo só de olhar”.Segundo Mello (op. cit.), a razão da briga entre Quelé e Meia Noite foram dois irmãos cangaceiros chamados José e Terto Barbosa. Este último havia assassinado no Ceará o irmão de um chefe cangaceiro, tendo se refugiado com seu mano na serra do Catolé, a cerca de 30 quilômetros da cidade pernambucana de Belmonte, próximo às fronteiras do Ceará e da Paraíba.

A região montanhosa de Santa Cruz da Baixa Verde, a partir da estrada que liga esta a cidade ao vizinho município de Manaíra,  já na Paraíba.
A região montanhosa de Santa Cruz da Baixa Verde, a partir da estrada que liga esta a cidade ao vizinho município de Manaíra, já na Paraíba.

Em uma ocasião que os cangaceiros de Lampião e Quelé se encontravam na fazenda Abóbora, pertencente ao tradicional coiteiro Marçal Diniz, chegou uma mensagem de José e Terto para seus tios Neco e Chico Barbosa, igualmente cangaceiros do bando de Lampião. O que os dois sobrinhos solicitavam aos tios era uma maneira de salvarem a pele.

Neco e Chico sabendo que o chefe cangaceiro cearense, conhecido como “Casa Velha”, cujo irmão foi morto por Terto, era amigo de Lampião, acharam por bem pedir a Clementino Quelé que recebesse os dois sobrinhos. O chefe dos Furtados,  junto com seus irmãos, se sobressaía cada vez mais no cangaço e não pôs obstáculo à entrada dos dois rapazes no seu grupo.

Quando Meia Noite soube da história se colocou totalmente contrário, pois foi amigo do homem morto por Terto Barbosa e disse que se ele viesse para o bando iria atirar nele. O resumo da ópera foi que após Quelé tomar conhecimento da alteração de Meia Noite, este se coloca ao lado de Terto. Quelé corajosamente disfere uma saraivada de impropérios contra Lampião, Meia-Noite e os outros cangaceiros. Segundo Mello (op. cit), Clementino teria dito textualmente “-Que juntassem tudo que ele brigava do mesmo jeito”.

O chefe dos Furtados percebeu que após este fato, ficar ao lado de Lampião e seu bando seria o mesmo que praticar um suicídio, pois o mais famoso cangaceiro do Brasil era conhecido pelo seu rancor.

A região de Santa Cruz da Baixa Verde, a partir da PE-365, que liga Triunfo a Serra Talhada.
A região de Santa Cruz da Baixa Verde, a partir da PE-365, que liga Triunfo a Serra Talhada.

Já nosso informante Antônio Ramos transmitiu uma versão diferenciada. Na ocasião destes episódios, o chefe dos Furtados estava junto com Lampião e seu bando em um esconderijo próximo a povoação de Patos, já na Paraíba, onde o problema ocorreu no momento em os tios de Terto trouxeram uma carta dos sobrinhos para Quelé e lhe contaram o problema. Quelé então teria solicitado que alguém lesse a dita mensagem em voz alta. Nisto o cangaceiro Meia Noite ouviu sobre o conteúdo da missiva e desconfiou que Quelé fosse colocar aqueles indivíduos como integrantes do bando.

Vista da Serra do Catolé, em Belmonte, Pernambuco.
Vista da Serra do Catolé, em Belmonte, Pernambuco.

Segundo o entrevistado, Meia Noite conhecia os “Barbosas”, contra quem já havia brigado, era inimigo dos mesmos, principalmente de Terto. O negro alagoano ficou cismado que Quelé, ao colocar aquela turma de valentes no bando, seria um meio para Terto, dos “Barbosas da Serra do Catolé”, dar fim a sua vida.

Quelé ao saber do fato negou. Disse a Meia Noite que “-Gostava de homem valente”, que os “Barbosas” eram pessoas que ele tinha “-Para onde botar”. Meia Noite comentou que sendo Terto seu inimigo, se por acaso ele trouxesse os “Barbosas” para perto do bando, “-Sabia que ia ser uma desgraça, que nóis briguemo e ficou para quando nóis se encontrar, a bala cortar”. Antônio Ramos narrou que Quelé ponderou, afirmando que “-Quando o homem é valente, que pede uma proteção, eu gosto de amparar”.

A discussão entre estes guerreiros foi gradativamente aumentando de tom, crescendo na ferocidade, até que os dois valentes partiram para a luta corporal. Lampião chamou seus homens rapidamente dizendo “-Acode, acode, se não estes homens se matam” e conseguiram apartar a briga. Para o entrevistado Lampião disse a Quelé “-Que deixasse o negro Meia Noite com ele, pois parecia que ele tinha saído do inferno” e pediu a Clementino e seus irmãos para irem para o sítio Conceição. 

Antônio Ramos relata que depois da discussão, Quelé aparentemente não se satisfez com o posicionamento de Lampião e reclamou. No entendimento do chefe dos Furtados, Lampião “-Teria dado mais valor a um negro do que a ele”. Sentindo-se rebaixado no seu racismo tardio, Quelé abandonou a vida do cangaço e ficou marcado por Virgulino.Outra informação ouvida por Antônio Ramos dá conta que no momento em que Clementino Quelé e seus parentes saíram da região dos Patos e do bando de Lampião, um dos seus parentes, filho de certa “Luzia Lalau” e um tal de Ricardo, pessoas de Santa Cruz, ficaram no bando de Lampião.

Os tiroteios de Lampião contra Quelé 

Seja através de uma, ou de outra versão, o certo é que tempos depois desta desavença no seio do bando, o chefe Lampião, apoiado pelo fazendeiro Marcolino Diniz, filho do coronel Marçal, vem para Santa Cruz com o objetivo de matar Clementino e seus irmãos. Este encontro ocorreu no dia 5 de janeiro de 1924, um sábado.

Segundo informações coletadas em Santa Cruz da Baixa Verde, esta casa reformada teria sido a fortaleza de Clementino Quelé. Entretanto este dado ficou inconclusiva devido a divergências em relações a outras informações que foram apuradas na região.
Segundo informações coletadas em Santa Cruz da Baixa Verde, esta casa reformada teria sido a fortaleza de Clementino Quelé. Entretanto este dado ficou inconclusivo devido a divergências em relações a outras informações que foram apuradas na região.

Antônio Ramos informa que era um “-Meninote de doze anos”, que a sua casa antiga era próxima a sua atual morada e seu pai possuía uma bodega pequena, mas bem surtida. 

Era ainda de madrugada, quase amanhecendo, quando o jovem Antônio Ramos acordou com o barulho de muitas vozes de homens no oitão da sua casa. Era um grupo numeroso de cangaceiros. O garoto notou que todos vinham alegres, animados, equipados, armados e com muita munição. Muitos deles estavam embalados por aguardente e segundo suas próprias palavras, os cangaceiros pareciam estar “-Com fogo saindo pelas orelhas”.Eles pediram tudo que seu pai tivesse de comida no estabelecimento, além de mais cachaça. Este prontamente ou a servir o bando, especialmente Lampião. Os homens armados não fizeram nada com seu pai ou sua família nesta ocasião.

Antônio assistiu Lampião comendo uma rapadura com queijo e comentando alegremente com a rapaziada sobre a futura luta. Ele se apresentava animado, doido para brigar. Neste momento pronunciou uma frase que Antônio Ramos jamais esqueceu.

“-Da família de Quelé, hoje só se salva quem avoa”.

O Rei do cangaço ainda afirmou que “

 Hoje eu vou beber o sangue de todo mundo”.

Nesta ocasião, durante o nosso encontro, o nonagenário entrevistado alterou-se, ficando visivelmente emocionado. Ele recordou que se tremeu todo, no momento que escutou estas frases do famoso bandoleiro. Comentou veementemente que viu Lampião falar exatamente da forma anteriormente descrita e narrou este fato agarrando fortemente o braço do autor, tal a emoção.

Outra imagem da casa onde pretensamente ocorreu a batalha.
Outra imagem da casa onde pretensamente ocorreu a batalha.

Ele descreveu Lampião como sendo moreno, alto, rosto comprido, cego de um olho, não usava óculos naquele dia e que mesmo assim enxergava bem. Pouco tempo depois o bando saiu da bodega. 

A desproporção da luta que se avizinhava era enorme, pois Quelé tinha junto com ele apenas outros cinco companheiros para lhe ajudar. Para Antônio Ramos os cangaceiros seriam em torno de “-Uns cinquenta homens”. Já Carvalho (op. cit.) afirma que seriam quarenta e cinco.O pesquisador Geraldo Ferraz de Sá Torres Filho (in “Pernambuco no tempo do Cangaço-Volume I”, 2002, págs. 328 a 330) reproduz o “Boletim Geral nº 05”, emitido pela polícia pernambucana no dia 7 de janeiro de 1924, onde consta que o número de cangaceiros era de sessenta homens. 

Mas para os familiares de Antônio Ramos, naquele momento o que importava era buscar de alguma maneira se proteger dentro de casa diante do que iria acontecer e em pouco tempo “-A bala comeu”. Ele e seus familiares ficaram escutando o tiroteio, mas não lembra a duração, só comentou que “-Demorou muito”.

Falou que “-Quando deu fé”, chegou a sua casa um rapaz da família de Quelé com cerca de 16 anos, dizendo que estava dentro de um partido de mandioca quando os cabras chegaram e comentou que “-A bala tava cortando tudo”. Narrou que o rapazinho tinha escutado os gritos dos cangaceiros prometerem: “-Derrubar a casa” e o pessoal da casa avisando aos gritos para os atacantes que 

“- Se derrubar e entrar um, nóis mata na faca”.

A testemunha da batalha de 5 de janeiro de 1924 afirmou que este rapaz avisou que iria a Triunfo buscar uma volante. Nesta cidade o delegado era o tenente Malta e havia uma volante comandada pelo sargento Higino José Belarmino.

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Edição do jornal recifense “A Notícia”, de 14 de janeiro de 1924, existente na hemeroteca do Arquivo Público do Estado de Pernambuco, informando erroneamente sobre a ação da polícia, durante o segundo ataque de Lampião contra Quelé.
Edição do jornal recifense “A Notícia”, de 14 de janeiro de 1924, existente na hemeroteca do Arquivo Público do Estado de Pernambuco, informando erroneamente sobre a ação da polícia, durante o segundo ataque de Lampião contra Quelé.

O jovem disse que seguiria através de um caminho alternativo, evitando a vereda que levava normalmente para esta cidade, pois com certeza os cangaceiros deviam ter “-Botado uma emboscada aculá na frente”. O jovem deixou a casa de Ramos, seguindo em direção a serra dos Nogueiras, saindo no lugar chamado Gameleira e de lá para Triunfo.

Entretanto, para nosso entrevistado, a polícia ficou “insonando”. No seu linguajar típico, onde Antônio Ramos utilizava expressões difíceis de serem ouvidas atualmente no sertão nordestino, ele quis dizer que os homens da lei ficaram enrolando e só foram chegar a Santa Cruz por volta das 11 horas da manhã.

Esta volante levou várias horas para percorrer os seis quilômetros entre as duas localidades. Provavelmente para os policiais, a ocorrência em Santa Cruz era um problema entre bandidos e quanto mais deles se matassem entre si, melhor. Mas diante da resistência feroz realizada por Clementino e seus companheiros, a polícia se deslocou para evitar a pecha de conivência e covardia.

Apesar da evidente falta de vontade dos policiais de irem a lutar, ficamos imaginando o conflito dentro da própria volante, entre aqueles que queriam ir e dos que não queriam, pois certamente nem todos eram covardes e honravam a farda que vestiam.

Enquanto isso a família de Quelé, literalmente “comia chumbo” e o tiroteio não dava mostras de diminuir. A casa sofria diante da quantidade de tiros, em mais de seis horas de batalha ininterruptas. Antônio Ramos e seus familiares, até por razões bastante óbvias, não viram nada da refrega, apenas escutaram assustados a troca de disparos.

Nosso entrevistado comentou que nesta época morava na sua casa um primo chamado Augusto e foi este quem primeiro ouviu um tiro de fuzil. Esta arma possuía um som característico e bem diferente dos rifles Winchester, de calibre 44, ainda bastante utilizados pelos cangaceiros e pelo pessoal de Quelé. O som lhe chamou a atenção e mostrava que a polícia estava chegando, vindo pelo caminho que seguia para a pequena Santa Cruz, que nessa época era um simples arruado “-Com no máximo quatro casas”.

Aparentemente a Força Policial começou a atirar com seus fuzis muito antes de chegar ao local do confronto, esperando que assim os cangaceiros debandassem. Mas segundo o nosso informante, foi nesse momento que o tiroteio ficou ainda mais forte, “-Com a fumaça cobrindo tudo” e as balas “-Zunindo por riba de casa”, o que deixou os membros da sua família extremamente assustados. Podemos deduzir através de suas informações que, de alguma maneira, a sua casa ficou entre o fogo cruzado.

O aposentado coronel Higino José Belarmino,  em foto de Josenildo Tenório, de 1973.  Reprodução feita a partir da página 50 do livro “Lampião, o cangaceiro e o outro”, de Fernando Portela e Claudio Bojunga, edição 1982.
O aposentado coronel Higino José Belarmino,
em foto de Josenildo Tenório, de 1973.
Reprodução feita a partir da página 50 do livro “Lampião, o cangaceiro e o outro”,
de Fernando Portela e Claudio Bojunga, edição 1982.

Segundo Ferraz (op. cit.), no “Boletim Geral nº 05” encontramos a informação que o tiroteio morreu o irmão Pedro Quelé e Alexandre Cruz, ficando ferido Deposiano Alves Feitosa. Antônio Ramos narra que seu pai considerava Pedro Quelé como um homem valente. Na região ficou conhecido o fato que quando acabou a sua munição, este pediu garantias para sair, mas ao colocar a cabeça para fora da janela, foi impiedosamente morto.

Depois de toda uma batalha tenaz onde não tivera êxito, Virgulino Ferreira da Silva não refreou sua vontade de acabar com o atrevido Clementino Quelé.Ferraz (op. cit.) mostra que no “Boletim Geral nº 07”, da polícia pernambucana, emitido no dia 9 de janeiro de 1924, reproduz um bilhete do tenente Malta informando “Acha-se grupo de Lampião proximidade de Santa Cruz”. O militar ainda comentou na missiva que contava com “89 praças” para defender Triunfo e região.

Mesmo com esta força nas proximidades, seis dias depois, no dia 11 de janeiro, uma sexta-feira, Lampião e seus homens voltaram para aplicar uma segunda dose de chumbo em Quelé e seus companheiros.

Santa Cruz da Baixa Verde em 1951, durante uma visita de Frei Damião.
Santa Cruz da Baixa Verde em 1951, durante uma visita de Frei Damião.

Antônio Ramos recordou muito bem que em relação a este combate, percebeu que o sol já vinha saindo quando o tiroteio teve início e novamente a história se repetiu. De um lado os cangaceiros sedentos de sangue e do outro um pequeno grupo de homens se defendendo como podiam.

Segundo Lira (op. cit.), Lampião despejava todo tipo de impropérios e palavrões conhecidos contra o destemido Quelé e seu pessoal. Mas os sitiados respondiam, cantavam e assim irritavam o chefe dos cangaceiros.

Mesmo com uma força policial numerosa em Triunfo, novamente os agentes de segurança do Estado levaram outras seis longas horas para chegarem a Santa Cruz, repetindo-se o que ocorreu no domingo anterior. De toda maneira Clementino só conseguiu se safar pela chegada do destacamento policial baseado em Triunfo.
Para Antônio Ramos, consta que Quelé tinha um parente de nome José, apelidado “José Caixa de Fósforo”, que parece ter estado nos dois tiroteios.

Apesar do antigo cangaceiro de Lampião sair vivo nestes combates, a família Furtado foi praticamente exterminada. Segundo Mello (op. cit.), tanto neste, como em combates futuros, morreram três irmãos, dois genros e um sobrinho. Além destes seis parentes, segundo o pesquisador, mais cinco amigos do valente Quelé pagaram com a vida e inúmeros outras pessoas ligadas a Clementino ficaram feridos.

Casa antiga da região de Santa Cruz da Baixa Verde.
Casa antiga da região de Santa Cruz da Baixa Verde.

Em relação aos confrontos de janeiro de 1924, Antônio Ramos contou que uma das casas que foi palco dos dramas ainda existia e que na época era considerado um sítio afastado da então vila. Tentamos localizar o local. Chegamos a fotografar uma residência antiga, mas reformada. Entretanto houve divergências com outros informantes, que comentaram ter sido as casas da família de Quelé derrubadas há muito tempo. 

Independente da residência correta onde aconteceram os tiroteios, fomos informados por pessoas da região, nascidas anos após os episódios, que seus parentes mais velhos narravam que quando estes seguiam para capinar nas proximidades das antigas vivendas, a coisa mais comum era encontrar capsulas deflagrada de rifles e fuzis. 

O Vingador do Sertão 

Depois dos tiroteios, Quelé ficou meio perdido pela região, sendo protegido por Higino Berlarmino. Para Antônio Ramos, foi o coronel José Pereira, o chefe político da vizinha cidade paraibana de Princesa, que deu o apoio decisivo para Quelé se tornar um implacável caçador de Lampião.

Sentado vemos Marcolino Diniz e seus comandados durante a Guerra de Princesa.
Sentado vemos Marcolino Diniz e seus comandados durante a Guerra de Princesa.

Após o grande assalto de cangaceiros ocorrido na cidade de Sousa, em 27 de julho de 1924, Pereira exigiu que seu parente Marcolino Diniz não desse mais apoio a Lampião e o expulsasse da região dos Patos. Por indicação de alguém que Antônio Ramos não recorda, foi sugerido ao “dono” de Princesa o nome de Quelé, para que este servisse no comando de uma volante em perseguição a Lampião. A solicitação foi feita ao então governador paraibano João Suassuna e Clementino Furtado a a ser conhecido como o Sargento Quelé. (Sobre um episódio envolvendo o Sargento Quelé na Guerra de Princesa ver – https://tokdehistoria.wordpress.com/2011/06/07/a-batalha-do-casarao-dos-patos/)

Sua volante, a famosa “Coluna Pente Fino”, ficou marcada na história do cangaço pela selvageria como combatia os cangaceiros e infligia o terror aos coiteiros. Muitos parentes fizeram parte do grupo. Se não faltam relatos de valentia do seu pessoal, infelizmente não faltam informações que inúmeros inocentes sofreram nas mãos dos homens de Quelé, além de inúmeros atos de pura rapinagem.

De toda maneira o “investimento” do governo da Paraíba em Quelé não foi em vão. Três anos e meio depois dos combates em Santa Cruz, no dia 14 de junho de 1927, ele e seus homens serão a primeira força policial a adentrar em Mossoró, após a fracassada tentativa de Lampião para conquistar a maior cidade do interior potiguar. Nesta ocasião consta que no currículo de combates de Quelé contra o Rei do cangaço, estavam listados vinte e um tiroteios.

Para Antônio Ramos, mesmo com toda coragem e capacidade para caçar cangaceiros, foi o analfabetismo de Quelé que deixou que ele permanecesse nas fileiras da polícia da Paraíba apenas com a graduação de sargento.

Provável túmulo do Sargento Clementino Quelé, na cidade da Prata, Paraíba.
Provável túmulo do Sargento Clementino Quelé, na cidade da Prata, Paraíba.

Quelé morreu já idoso na Paraíba, na cidade de Prata, próximo ao município de Monteiro. Segundo Antônio Ramos, ele sempre vinha visitar o sítio Conceição e a pequena Santa Cruz. (Ver – https://tokdehistoria.wordpress.com/2011/08/22/o-descanso-de-um-guerreiro-nordestino-no-riacho-da-prata/)

As histórias das lutas entre Clementino Quelé e Lampião se tornariam verdadeiras lendas no imaginário dos nordestinos. Aparentemente um destes que se encantou com as lutas de Quelé foi Luiz Gonzaga, o “Rei do Baião”. Em parceria com José Marcolino, o sanfoneiro de Exu compôs a música “No Piancó”, onde em um trecho diz;

“Lá viveu o Clementino / Que brigou com Lampião.”

Não posso garantir que o Clementino descrito na música do grande artista pernambucano, seja o mesmo homem que perseguiu implacavelmente Lampião.

Mas houve outro?

A morte do pai de Antônio Ramos

Um dia, em 1926, segundo o entrevistado, o terrível chefe bandoleiro Sabino, acompanhados dos cangaceiros Juriti, Ricardo e outros, vieram de um lugar próximo chamado Lagoa do Almeida, da família dos Marianos e seguiram para a casa do senhor Manuel da Cruz. Este era um fazendeiro, tendo sido comentado aos cangaceiros ser um homem que possuía muito dinheiro Como este não foi encontrado, os cangaceiros continuaram seguindo em direção a pequena povoação de Santa Cruz.

Sabino fotografado montado em 1927, na cidade cearense de Limoeiro do Norte,  logo após o fracassado ataque a Mossoró.
Sabino fotografado montado em 1927, na cidade cearense de Limoeiro do Norte,
logo após o fracassado ataque a Mossoró.

No caminho aram adiante da casa de Miguel Moura. Como um dos cangaceiros era afilhado de batismo da mãe do entrevistado, por força do parentesco, pediu a Sabino, Juriti e Ricardo, que fossem na casa do sítio Conceição, ver se “arranjavam alguma coisa” com sua madrinha, que ele ficaria de fora.

A chegarem ao pequeno comércio, Sabino e os outros entram e am a torturar Miguel Moura a ponta do punhal, para o mesmo dar conta do dinheiro que conseguia com o transporte nos burros. Na casa do pai do entrevistado se encontrava uma empregada da vizinha Isabel Correia, conhecida como Zabê e esta senhora foi a vivenda do entrevistado para moer milho. Os cangaceiros quiseram lhe arrebatar uma aliança, mas ela conseguiu tirar a joia do dedo e colocou-a na boca. Os cangaceiros exigiram o objeto de valor e a mesma recusou-se a entregar. Os bandidos am a ação, tentando forçar a mulher a entregar a aliança e começa uma luta. A empregada lutou tão bravamente que teria quebrado o nariz do seu atacante. O próprio Sabino mandou soltá-la, tendo dito que “-Esta é uma desgraça que nem o diabo pode”. A mulher foi embora correndo com a aliança.Na casa da vizinha Zabê, que possuía certa quantidade de ouro, eles chegaram e arrastaram o que puderam, mandando inclusive a mulher tirar os brincos ou “-Cortariam com o pedaço da orelha”. O marido da mesma, Manuel Correia, foi chegando a casa e os cangaceiros o renderam com pistolas, que colocaram no pescoço do mesmo.

Para o pai do entrevistado a sorte não foi tão boa. Disseram que ele era rico, mas Miguel Moura comentou que gastava muito na propriedade. Daí Sabino ordenou que em oito dias ele conseguisse um conto de réis, sob pena de morrer.

O pai do entrevistado sofria do coração e diante de toda a tensão provocada pelas ameaças, veio a ter um ataque cardíaco. Sem assistência médica, que era muito difícil na época, morreu nove dias depois da “visita” dos cangaceiros.

Depois destes fatos, o nosso entrevistado e a família foram para Triunfo, onde perderam a roça e tiveram muitos prejuízos. Seguiram depois ao Juazeiro, para uma entrevista com o Padre Cícero, que os aconselhou a não voltar logo para casa.

Este fato foi testemunhado pela irmã de Antônio Ramos, criança a época, que se encontrava brincando defronte a casa no momento da agem dos cangaceiros, tendo ela visto e escutado tudo.

Se para alguns, Sabino é apontado como “revolucionário”, para Antônio Ramos, ele é tão somente um arrogante bandido, cruel ladrão e frio assassino.

Me foi informado que esta antiga edificação amarela teria sido a casa comercial da família Campos em Triunfo, atacada por Sabino em 1926.
Me foi informado que esta antiga edificação amarela teria sido a casa comercial da família Campos em Triunfo, atacada por Sabino em 1926.

No dia 7 de julho de 1926, Sabino e seu grupo foram a Triunfo para assaltar a cidade. O bando fez muita bagunça, atacando a loja de tecidos de Antônio de Campos, o maior comerciante da cidade. Os cangaceiros levaram até um machado para furar o cofre, mas não conseguiram, ando a tocar fogo n estabelecimento. Segundo Ramos, na ocasião se encontravam na cidade dois soldados, de nome José Sabiá e José Piauí, que foram atacados pelo bando. O inusitado foi que Sabiá morreu com apenas um tiro e o Piauí, mesmo levando sete tiros, escapou com vida.

Início da extensa reportagem divulgada no jornal recifense “A Província”,  edição do dia 10 de julho de 1926, dando conta do ataque de Sabino a Triunfo.
Início da extensa reportagem divulgada no jornal recifense “A Província”,
edição do dia 10 de julho de 1926, dando conta do ataque de Sabino a Triunfo.

Para Lira (op. cit. pág.401) Sabino e seus homens entraram na cidade serrana quando se encontravam apenas quatro militares para protegê-la e corrobora a afirmação de Antônio Ramos quando escreve que “o soldado que foi morto tinha o apelido de Sabiá”.

A última vez que Antônio Ramos viu Lampião e seu bando

Depois que o nosso informante e sua família voltaram à antiga casa do sítio Conceição, eles procuraram seguir a vida. Mesmo diante da situação, o jovem Antônio Ramos não deixou de estudar. Em um dia de 1927, estava ele por volta das onze da manhã em uma escola nas proximidades de Triunfo, junto com um professor nascido na cidade de Floresta, quando chegou um grupo de cavalarianos armados e equipados. A princípio o mestre pensou que fossem policiais, mas o entrevistado comentou com segurança que “-Aquele ali é Lampião, eu conheço”. Segundo ele eram em torno de “-130 cangaceiros”, todos equipados, com chapéu de couro quebrado, cheio de medalhas, fuzis, cada um levando dois bornais e cartucheiras. Antônio Ramos ficou se perguntando como eles lutavam com tanto equipamento.

Antônio Ramos
Antônio Ramos

Entre os cangaceiros, nosso entrevistado conhecia um deles. Chamava-se Isaías Vieira, e era de um lugar conhecido como Xique-Xique. Havia sido ladrão de bodes, que após ser preso apanhou muito e havia entrado no cangaço por vingança.

Nesta ocasião todos os cangaceiros estavam a cavalo, pegando animais descansados e deixando os que estavam viajando. Comentou que apenas às seis da noite, uma volante da polícia de Alagoas ou na região seguindo o bando. Este grupo era comandado por um militar conhecido como “tenente Arlindo”. A ocasião desta visita foi próximo ao mesmo período em que ocorreu o ataque a Mossoró.

Cruz em Santa Cruz da Baixa Verde, que mostra um local onde alguém morreu de "morte matada".
Cruz em Santa Cruz da Baixa Verde, que mostra um local onde alguém morreu de “morte matada”.

A bibliografia mostra o quanto aparentemente nosso informante estava certo, mesmo com algumas pequenas alterações. O Pesquisador José Alves Sobrinho, da cidade de Serra Talhada, em Pernambuco (in “Lampião e Zé Saturnino-16 anos de luta”, 2006, pág. 112), comenta que na mesma época que Lampião seguia para Mossoró, ou na zona rural de Vila Bela, a antiga denominação do município de Serra Talhada, na fazenda Barreiras, de propriedade de Martins Venâncio Nogueira, conhecido como Martins da Barreira. Segundo o autor, o proprietário da fazenda Barreira conversou longamente com Lampião naquele dia e afirmou que junto ao chefe estavam “118 cangaceiros”. 

Segundo Lira (op. cit pág. 379.) comenta que em fins do mês abril de 1927, este grande grupo de cangaceiros estava sendo realmente sendo seguido por uma força volante comandada pelo militar Arlindo Rocha, que salvo engano seria da polícia pernambucana e possuía a patente de sargento. 

Antônio Ramos informou que nunca leu um livro sobre cangaço, que conta por que sabe e viu. Os fatos envolvendo Lampião e o cangaço era informação corrente na região. Tudo era narrado de boca em boca, nas feiras, nas ruas. Detalhes sobre a intriga dos Ferreiras com os Saturninos de Vila Bela, a história do chocalho, as brigadas e tudo mais que levou Lampião a entrar no cangaço, era muito repetido. Apenas em uma ocasião Antônio Ramos viu uma revista com a foto das cabeças cortadas em Piranhas, Alagoas, após o ataque que deu cabo de Lampião e acha que era ele mesmo.

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O DESCANSO DE UM GUERREIRO NORDESTINO NO RIACHO DA PRATA

A HISTÓRIA DE UM HOMEM QUE LUTOU MAIS DE VINTE VEZES

CONTRA LAMPIÃO E A SUA BUSCA PELA PAZ

Autor – Rostand Medeiros

Nas ocasiões em que viajei pelo sertão do Nordeste em busca de conhecer mais sobre o cangaço, sempre esbarrava em muitas histórias de violentas lutas, valentia, covardia, honra, ódio, dor, sangue e algumas figuras que pareciam saídas de contos medievais, de verdadeiras gestas épicas.

Clementino José Furtado, o Clementino Quelé

Um destes personagens é o pernambucano Clementino José Furtado, mais conhecido como Clementino Quelé.

Este sertanejo foi cangaceiro, andou ao lado de Lampião, se desentendeu com ele, foi perseguido, perdeu quase toda a família na luta contra este grande chefe cangaceiro e se tornou policial, onde ficou conhecido como um dos mais esforçados perseguidores do “Rei do Cangaço”.

Lampião

Afirmava ter travado mais de vinte confrontos contra Lampião e seu bando. Depois participou de uma guerra no meio do sertão e finalmente procurou a paz no Cariri Paraibano, em uma cidade chamada Prata, próximo a cidade de Monteiro e da fronteira com Pernambuco.

Um Lugar Tranquilo

A origem do nome se deve a uma fonte de água descoberta por uma moradora, cujas águas eram extremamente límpidas e saborosas. Logo o local ficou conhecido na região como “Poço da Água de Prata” e ficava próximo a um riacho com a mesma denominação.

Prata, Paraíba

Neste local fui extremamente bem recebido e tive uma daquelas maravilhosas oportunidades de encontrar pessoas com tantos anos de vida e muita lucidez, que puderam narrar muitos episódios interessantes sobre Clementino Quelé.

Zoroastro Bezerra da Silva nasceu na Prata, no dia 14 de junho de 1916 e Pedro Elias da Silva, este último mais conhecido como “Seu Pedrosa” veio ao mundo no dia 16 de julho de 1917, em uma localidade pernambucana conhecida como “Beira” e nos conta que sua família se mudou para a Prata ainda na década de 1920.

Pedro Elias da Silva

Seu Pedrosa, que gosta muito de história, narra que o arruado do Riacho da Prata, ou simplesmente Prata, era um lugarejo que crescia como ponto de agem e parada de tropeiros que seguiam da Paraíba em direção a Recife, e de comerciantes pernambucanos, principalmente das cidades de Flores, Afogados da Ingazeira e São José do Egito, que seguiam em direção ao comércio da cidade paraibana de Campina Grande.

Entre os anos de 1905 e 1906, teve início uma feira semanal e o número de habitantes começou a crescer.

Entrada a partir da BR-412

Lendo o pesquisador Pedro Nunes Filho, autor do livro “Guerreiro Togado – Fatos Históricos de Monteiro” (Ed. Universitária, UFPE, 1997, pág. 62), a Prata fazia parte do território de Alagoa do Monteiro, atualmente apenas Monteiro, que no início do século XX era o município com maior extensão territorial da Paraíba. A Prata era então, junto com as localidades de São Sebastião do Umbuzeiro, São Thomé, Camalaú, São João do Tigre e Boi Velho, um dos distritos daquela importante cidade fronteiriça com Pernambuco.

O local era tranquilo, mas a região onde se localiza esta comunidade sentiu o peso das espingardas na primeira década do século XX.

“A Guerra do Dotô Santa Cruz”

Nas proximidades da Prata existe uma propriedade denominada Areal. Em 1911 estas terras pertenciam ao advogado Augusto de Santa Cruz Oliveira, cuja família tinha forte influência política na região.

Augusto de Santa Cruz Oliveira Fonte-Livro “Guerreiro Togado”

Pessoa importante, rica e conhecida por todos, ocasionalmente o “Dotô” Santa Cruz se fazia presente na pequena feira da Prata, que ocorria sempre as quarta feira.

Pedro Nunes Filho em seu trabalho (op. cit.) informa que durante o mandato do governador João Lopes Machado (1908 – 1912) este buscou diminuir a força política da família Santa Cruz em Alagoa do Monteiro através de vários ardis.

Casa grande da Fazenda Areal Fonte-http://asleyravel.blogspot.com

Valente e voluntarioso, um verdadeiro líder, Augusto Santa Cruz reagiu a esta perda de espaço político através do uso da força. Ele protagonizou uma série de episódios violentos entre os anos de 1910 a 1912, onde não faltaram perseguições, espancamentos, invasões de vilas, tiroteios e mortes. Pronunciado, decidiu cercar Alagoa do Monteiro em maio de 1911, tendo sob o seu comando 130 homens armados, que destruiram a cadeia pública, libertaram os presos e ele deixou seus “cabras” saquearem lojas e bens dos desafetos.

Ao final da invasão, que teve forte repercussão em todo o Nordeste, o advogado Santa Cruz, para muitos apenas um “Cangaceiro Togado”, tomou várias pessoas em Monteiro como reféns e preparou-se para a reação do governo. Poucos depois, tropas da polícia paraibana e pernambucana atacaram a propriedade Areal e obrigaram Santa Cruz e seus homens a fugirem.

Alagoa do Monteiro, início do século XX. Fonte- Livro “Guerreiro Togado”

O resumo da ópera foi que Santa Cruz uniu forças a outro líder do interior paraibano, Franklin Dantas, da cidade de Teixeira, que igualmente se sentia perseguido pelo governador Machado.

Com esta união os dois chefes juntam mais de 300 homens em armas e partem para a invasão de várias localidades, entre elas a cidade de Patos, causando enormes transtornos e estragos. Depois seguiram em direção ao Ceará. Mas conforme avançam para o estado vizinho, os líderes desta coluna perceberam que não possuíam muito apoio de outras lideranças e viram que a sua “guerra” não teria nenhuma possibilidade de alterar a situação política. Tempos depois Santa Cruz fugiu para Pernambuco. Processado em Alagoa do Monteiro, foi julgado a revelia e absolvido.

Homens de Augusto Santa Cruz Fonte-Livro “Guerreiro Togado”

Ocorre que entre os homens de Augusto Santa Cruz estavam muitos dos seus empregados, fugitivos da justiça, antigos cangaceiros, amigos, parentes e várias destas pessoas viviam na pequena localidade da Prata.

ado este momento difícil, que Seu Pedrosa chama “-Da época de 12”, a Prata vai crescendo devagar, mas tranquila.

Ele comentou que naquela época, na história do lugar não existiam maiores registros de envolvimento e confrontos entre seus habitantes e cangaceiros. Mas logo uma pessoa que havia sido muito ligada a Lampião chegaria ao lugar.

O “Tamanduá Vermelho”

Clementino Quelé é descrito como um homem forte, tido como baixo, com certa obesidade, de tez branca, que quando ficava agitado, a sua pele assumia um tom avermelhado. Daí o apelido “Tamanduá Vermelho”, dado pelo próprio Lampião.

Para o pesquisador Frederico Pernambucano de Mello (in “Guerreiros do Sol”, 2004, págs. 220 a 225), Quelé era natural da Ribeira do Navio, onde seguiu jovem para Alagoas, afastando-se de Pernambuco por questões de disputa familiar. No retorno a sua família segue para a região da bela cidade de Triunfo, no sítio Conceição.

Esta seria a possível casa onde Quelé e seus familiares travaram dois grandes tiroteios contra Lampião e seu bando. Santa Cruz da Baixa Verde, Pernambuco

Clementino Quelé era o chefe de sua família, tinha como irmãos Pedro, Quintino, Antônio, José e Manuel (Nezinho), todos considerados homens dispostos e valentes.

Envolvido em problemas políticos, que ocasionam perseguições a si e a membros do seu clã, Quelé e parte de seus familiares se juntam ao bando de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, e am a praticar a rapinagem pelos sertões.

Logo desavenças vão surgir e estas vão gerar uma forte inimizade com o famoso chefe cangaceiro. Como consequência, no início de 1924, Quelé e seus familiares sofrem dois grandes ataques do bando de Lampião no sítio Conceição, onde muitos são mortos.

Edição do jornal recifense “A Notícia”, de 14 de janeiro de 1924, existente na hemeroteca do Arquivo Público do Estado de Pernambuco, informando erroneamente sobre a ação da polícia, durante o segundo ataque de Lampião contra Quelé

Em busca de vingança, Clementino Quelé entra na polícia paraibana, onde recebe as divisas de sargento, apesar do analfabetismo. Contra Lampião valia mais a pena uma pessoa “alfabetizada” no cano da espingarda.

O sargento Quelé era a valentia em pessoa e extremamente calejado nas lutas do sertão. Logo monta uma volante que se tornou conhecida como “Coluna Pente Fino” e que também ficou famosa na história do cangaço pela selvageria como combatia os inimigos e infligia o terror aos que apoiavam os bandos de cangaceiros. Muitos dos seus parentes fizeram parte do grupo.

Se não faltam relatos de valentia do seu pessoal, infelizmente não faltam informações que inúmeros inocentes sofreram nas mãos dos homens de Quelé, além de vários atos de pura rapinagem.

Caminhos do sertão

De toda maneira o “investimento” do governo da Paraíba em Quelé não foi em vão. Três anos e meio depois dos combates no sítio Conceição, no dia 14 de junho de 1927, ele e seus homens eram a primeira força policial a adentrar em Mossoró, após a fracassada tentativa de Lampião para conquistar a maior cidade do interior potiguar.

Durante a chamada Revolta ou Sedição de Princesa, na Paraíba, Clementino Quelé esteve lutando ao lado das tropas do governador João Pessoa, contra os homens do chefe político de Princesa, o coronel José Pereira. Foram sérios combates, com muitas mortes e atos de verdadeira selvageria.

Para conhecer maiores detalhes destes episódios ver –http://www.triunfob.com/2010/09/um-fato-da-historia-do-cangaco-na.html e https://tokdehistoria.wordpress.com/2011/06/07/a-batalha-do-casarao-dos-patos/

A Chegada na Prata

Para seu Zoroastro, cujo pai era o barbeiro da cidade, consta que em Alagoa do Monteiro, onde o famoso guerreiro nordestino estava destacado, ele conheceu uma mulher com quem ou a ter um relacionamento e Quelé ou a permanecer mais tempo no Cariri Paraibano.

Seu Pedrosa informa que o ano da chegada do sargento Clementino Quelé a Prata foi em 1933 e ela teria acontecido devido um crime que ocorreu na região no ano anterior. Este problema foi uma invasão de propriedade, seguido do roubo de ração para o gado. O proprietário deu parte e foi aberto um inquérito. Tempos depois o sargento Quelé chegou ao pequeno distrito com outros militares e trazendo ordens do juiz de Monteiro para conduzir os invasores para a prisão.

Matriz de Nossa Senhora do Rosário, Prata, Paraíba

Apesar de chegar ao lugarejo para cumprir a lei, Seu Pedrosa informa que o sargento Quelé foi muito bem recebido pelo fazendeiro Ananiano Ramos Galvão, líder político do lugar. O sargento soube que a Prata estava crescendo e que havia uma pequena delegacia, mas não havia alguém com a sua patente para comandar o diminuto destacamento de dois soldados, um deles conhecido como “Mané Soldado”.

Logo a cidade soube que um novo sargento fora para lá designado e quando eles receberam a notícia de quem era o indicado, a comunidade se alvoroçou, pois o nome do sargento Clementino Quelé imprimia medo e terror em todo o sertão.

O sargento era sempre lembrado entre os habitantes locais pela forma violenta como sua volante agia, as inúmeras mortes cometidas por ele e seus homens, os vários combates contra Lampião e outras histórias que acompanhavam o “Tamanduá Vermelho” para onde ele seguia.

Evidentemente que a comunidade tinha medo do que aquele homem, que a nada temia, poderia ar a fazer contra eles devido a sua posição.

E afinal, porque este militar iria deixar um posto em Alagoa do Monteiro, uma cidade maior, para trabalhar em um lugarejo diminuto e pobre?

Além do mais na Prata os problemas que o valente Quelé iria enfrentar estavam bem longe da guerrilha que era o cangaço e das batalhas que ocorreram na Guerra de Princesa. No lugarejo o que mais perturbava a ordem eram as brigas de família, bebedeiras, pequenos roubos e coisas consideradas leves.

Seu Pedrosa informa que em pouco tempo o sargento Clementino Quelé chegou com seus “teréns” na carroceria de um caminhão, acompanhado de sua mulher chamada Alice e seus filhos. Em meio ao espanto geral ele alugou uma casinha e assumiu a função de delegado.

Um Bravo Que Desejava Ficar em Paz

Logo todo o sertão do Cariri Paraibano comentava que na Prata estava morando o sargento Quelé. O mesmo que era cantado em verso e prosa como “O valente que mais vezes brigou com Lampião”.

Não obstante a desconfiança inicial, além do fato de Quelé ser caladão e taciturno, a vida continuou. Mas o povo da Prata mantinha “Um olho no peixe e outro no gato” em relação ao novo delegado.

Até porque, na visão de Seu Pedrosa, sua figura como policial era um tanto aparatosa e ostensiva, para uma cidade onde os cachaceiros eram o maior problema. Nas horas em que estava de serviço, segundo as palavras do nosso entrevistado;

“-Quelé estava sempre com sua farda Kaki, quepe policial, um punhal atravessado no cós da calça, um vistoso e grande “Parabellum” pendurado na cartucheira e um rifle na mão.

Logo todos perceberam que apesar de sua sisudez, seu jeito fechado e caladão, seu comportamento junto aos moradores da Prata era extremamente tranquilo e suas atitudes controladas.

Para os entrevistados Quelé era muito “sabido”, pois buscava sempre “ajeitar” as situações com a conversa. Quando havia algum problema, alguma questão, ele utilizava de sua autoridade como policial e resolvia as querelas entre as pessoas da comunidade de forma equilibrada. Além da autoridade do uniforme, evidentemente havia o respeito pelo seu ado de lutas contra Lampião.

Gradativamente ele foi sendo bem aceito.

Não praticava o extermínio frio de bandidos, mas era conhecido pela moral e honestidade, além de ser considerado muito justo na sua atitude como policial, em uma forma de agir bem diferente dos tempos do cangaço. Os entrevistado afirmaram que durante o tempo em que lá esteve, não existe informações que Quelé recebia propina, tanto que morreu pobre.

Mas também não aceitava o furto e o roubo de animais de forma alguma. Se algum ladrão sem vergonha caísse na sua mão com estes crimes, segundo Seu Pedrosa;

“-Se fosse pro lado do furto de coisas e bichos, ele não dava cobertura e a peia (surra) era grande”.

Casa de Clementino Quelé na Prata

Sem ter muito problemas policiais para resolver, Clementino Quelé foi comprou uma pequena gleba de terra. Trabalhava nas horas vagas como agricultor e vendia sua pequena produção de milho e feijão na feira semanal. Era considerado um homem muito esforçado. Esta propriedade era perto do antigo sítio de Manoel Lindoso, a quem Seu Pedrosa considera o fundador da localidade.

Consta que para dar um “corretivo” nos presos, normalmente pinguços que enchiam a cara de cachaça nos bares, Quelé os levava para a sua terrinha, entregava uma enxada e mandava os detidos brocarem o terreno. Mas ficava ali do lado com o “Parabellum” no cinto.

O sargento não era visto com uma garrafa de pinga na sua frente e não andava bêbado pelas ruas.

Logo todos na Prata perceberam que o velho combatente queria ficar em paz no seu lugar. Paz para estar ao lado de sua Alice e de seus filhos.

Consta que Quelé havia sido casado com uma Senhora conhecida como “Toinha” e desta união nasceu uma filha e um filho chamado Zacarias. Depois, em Alagoa do Monteiro, ele se uniu a Alice e vieram mais três filhas.

Novo Encontro com Cangaceiros e Quem Era Lampião para Quelé

Naquele tempo Quelé, em algumas ocasiões e por ordem do Poder Judiciário, saiu da cidade para atuar em funções policiais. Mas em 1936 o sargento foi convocado para perseguir um grupo de cangaceiros que atacou a região próxima a Monteiro.

Jornal natalense “A Republica”, 23 de maio de 1936

Os nossos entrevistados não esquecem o desassombro e o impacto que causou no lugarejo a agem deste bando que era comandado pelo chefe alcunhado “Moderno”, cujo nome real era Virgínio Fortunato da Silva. Este havia sido cunhado de Lampião, andava com ele a anos e era pessoa de sua extrema confiança.

Apesar de todo este medo e apreensão, os cangaceiros não aram pela Prata e não consta que Quelé tenha novamente mantido algum combate contra Virgínio.

Fui informado que o assalto do bando de Virgínio foi extremamente rentável, mas que após a região do atual município de Camalaú, ponto máximo alcançado pelo grupo de cangaceiros em 1936, havia interessantes e ricas propriedades, principalmente nas proximidades da atual cidade paraibana de Barra de São Miguel. As testemunhas acreditam que este cangaceiro não seguiu adiante na sua rapinagem, justamente porque Virgínio sabia que ali perto se encontrava “um velho conhecido”.

Se isso é verdade eu não pude apurar e somente uma pesquisa específica para checar a veracidade desta informação.

Seu Pedrosa comenta que não tinha maior aproximação com Quelé, mas nunca deixou de ficar por perto quando o velho combatente conversava com os amigos da cidade sobre seu ado de lutas.

Fim de Lampião

Uma situação interessante foi no dia 28 de julho de 1938, quando Lampião e seu bando foram massacrados na Grota do Angico, várias pessoas da pequena urbe vieram até o sargento Quelé para narrar o acontecido. O espanto foi a sua quase total ausência de emoção. Apenas balançou a cabeça e nada falou.

Mas Seu Pedrosa comentou que nas palestras que ouviu de Quelé, escutou uma ocasião em que ele descreveu Lampião como sendo “-Um valente”. Para quem conheceu o sargento, este demonstrava um enorme ódio do “Rei do Cangaço”, mas também muito respeito.

Uma coisa que chamou atenção dos entrevistados foi que Clementino Quelé nunca negou que esteve lado a lado com Lampião no seu bando e que, devido às desavenças com este chefe cangaceiro, pagou um preço muito alto com a morte de vários familiares.

Sobre os familiares sobreviventes, soube que para a Prata vieram viver dois irmãos de Quelé, mas em circunstâncias bem diferenciadas do sargento que protegia a localidade.

Havia um deles, de nome José, mas conhecido como Zé Quelé, que era soldado da polícia paraibana e servia para os lados da região de Mãe D’Água, onde praticou um crime de morte. Ele busca então apoio no irmão Clementino, que não nega ajuda. Zé Quelé ficou homiziado nas proximidades, mas não vinha a feira, algumas vezes dormia nos matos e logo toda a cidade da Prata sabia daquela situação. Mas ninguém o denunciou.

Evidentemente que havia medo nesta conta, mas também houve um acordo tácito entre a comunidade e o delegado Clementino. Além disso ele era Clementino Quelé e não valia a pena uma inimizade com este homem.

Já o outro irmão era conhecido como Nezinho, também policial, mas tido como pistoleiro. Entretanto não criou nenhum problema na Prata.

Respeito

Um fato interessante ocorreu quando Quelé já estava aposentado. Então veio para ser o delegado na pequena localidade um sargento jovem e cheio de disposição. Este vendo Clementino Quelé andar ostensivamente armado, começou a comentar entre as pessoas que;

“-Aquele sargento véio não é mais da Força. Vou desarmar ele”.

Quando Quelé soube não fez nada. Apenas disse;

“-Tô esperando”.

Aparentemente o novo sargento foi mais bem informado quem era o idoso e já um tanto gordo ex-policial. Foi aconselhado que o melhor que tinha a fazer era deixar aquele homem em paz. Quelé nunca foi desarmado por ninguém.

Uma das facetas do valente sargento era sempre receber os chefes municipais e os políticos da região, tanto os de prestígio estadual e até mesmo pessoas de forte presença no cenário político nacional da época.

Nestas ocasiões, mesmo com pouca instrução, o velho perseguidor de Lampião sempre se apresentava bem uniformizado, sendo reconhecido por muitos destes homens do poder, que igualmente o tratavam com deferência.

Inácio Mariano e Walfrido Siqueira, homens fortes de São José do Egito e Jacinto Dantas, do lugar Ouro Velho, eram todos seus amigos e o visitavam quando estavam de agem pela Prata.

João Agripino de Vasconcelos Maia Filho, de Catolé do Rocha, que foi deputado federal, senador e governador paraibano, quando ainda um jovem politico, fez questão de parar na Prata para conversar com o velho combatente.

José Américo de Almeida Fonte-http://www.onordeste.com

Em 1951, depois de haver realizado um comício em Sumé, o então candidato ao governo paraibano, José Américo de Almeida, veio a Prata em campanha eleitoral. Não era nenhuma surpresa a presença de políticos em campanha pela pequena cidade para pedir votos. Mas surpresa mesmo para muita gente foi quando o grande político e formidável homem de letras paraibano, autor de “A Bagaceira”, pediu para se encontrar com o sargento Clementino Quelé.

Os mais jovens não sabiam, mas José Américo havia sido um dos comandantes das forças legalistas do governador João Pessoa contra as tropas do coronel José Pereira, da cidade de Princesa, e o sargento Quelé foi um dos seus comandados. Houve um encontro de velhos conhecidos, cercado de alegria e abraços.

Paz no Fim da Vida

Uma coisa animava Clementino Quelé, visitar o coronel Manuel Benício, antigo caçador de cangaceiros e oficial da Polícia Militar da Paraíba. Segundo Seu Pedrosa, o coronel Benício morava em Pombal e ocasionalmente estes sertanejos afeitos as armas se encontravam nesta cidade para rememorar e conversar.

Outro local onde Quelé ocasionalmente visitava, era a região de Triunfo e Santa Cruz da Baixa Verde, em Pernambuco. Ali ele viveu momentos de muita tensão, mas não deixava de visitar amigos e parentes.

Conforme os anos foram ando o velho combatente ficou mais a vontade na cidade, frequentava bastante a igreja de Nossa Senhora do Rosário, ou a ser mais falante, mais tranquilo, mais alegre. Não tinha nenhum problema de narrar, como assim fez com várias pessoas, sobre suas andanças no cangaço, a entrada na polícia, a perseguição a cangaceiros e tinha um extremo orgulho em dizer que combateu Lampião em mais de 20 ocasiões distintas. Seu Zoroastro comentou que perdeu as contas em que o velho sargento vinha à casa de seu pai e narrava os episódios do ado. Quelé só não gostava de comentar sobre a “Guerra de Princesa”.

O problema é que suas histórias, para os ouvidos incautos, eram tão mirabolantes, tão incríveis, tão fantásticas, que muitos comentavam, principalmente os mais jovens, que o sargento Clementino Quelé era “mentiroso”. Já os mais velhos, que tinham escutado muito cantador de feira declamar em verso e prosa as peripécias daquele homem e diziam a moçada que tomassem cuidado, pois aquelas histórias eram totalmente reais. Tanto assim que ninguém nunca chegou na frente de Quelé para perguntar se o que ele falava era verdade ou não.

Uma situação que ele gostava de comentar e que tinha muito orgulho, foi o fato do seu filho Zacarias ter se tornado um alfaiate renomado na cidade e suas filhas não lhe darem problemas. Falava que sua família  “-Podia ser pobre, mas eram pessoas de bem e não se meteram em questões”.

Possível túmulo de Quelé

Clementino Furtado, segundo Seu Pedrosa, faleceu em 1955, ainda lúcido. Até o fim nunca deixou de andar com uma arma na cintura e tem certeza que ele morreu em paz.

Para as pessoas com quem conversei, ele era um homem normal, não deixava transparecer as perturbadoras experiências que viveu. Na opinião dos velhos moradores da Prata, que na época eram jovens, iravam o antigo caçador de cangaceiros e ficavam extasiados com a memória das velhas lutas daquele valente, o grande fator de sua mudança foi a mulher Alice, verdadeiro porto de paz e tranquilidade em sua vida.

No dia do seu falecimento a cidade parou. Veio gente de toda a região e várias autoridades foram ao velório. Para nossos entrevistados todos sentiram a sua morte.

Seu filho Zacarias, suas filhas e o irmão Nezinho foram com o tempo para Campina Grande. Já Zé Quelé, apesar do seu problema com a justiça, nunca foi preso e ficou mesmo pela Prata.

Aqui o amigo Ary Prata, professor e escritor, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Cariri Paraibano. Um agradecimento especial pelo apoio na sua simpática cidade

Tentei encontrar seu atestado de óbito, ou alguma informação da data de seu falecimento no cemitério local, mas nada consegui.

As pessoas da região me apontaram um túmulo recentemente pintado, mas sem nenhuma indicação que ali seria o local de seu repouso eterno. Fotografei o local, mas sem uma comprovação eficiente, afora a palavra das pessoas desta simpática cidade.

Mas ocorre uma situação interessante.

Fiquei intrigado, pois sabia não haver mais familiares de Quelé na Prata, então quem conservava seu tumulo?

Comentaram-me que pelo respeito a sua pessoa, a sua história tão marcada pelas inúmeras lutas e pelos bons serviços que o velho combatente realizou na cidade, seu antigo túmulo é conservado pela comunidade.

MAIS UMA VEZ AGRADEÇO AO AMIGO ARY PRATA E AO ADVOGADO ANTÔNIO ELIAS DA SILVA, MAIS CONHECIDO COMO “TÔTA”. MEMBROS DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO CARIRI PARAIBANO . MUITO OBRIGADO PELO APOIO E ATENÇÃO.

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A BATALHA DO CASARÃO DOS PATOS

Um episódio da (quase) esquecida Guerra de Princesa, na Paraíba

Autor – Rostand Medeiros

Ao longo da história da região Nordeste do Brasil, não faltam ocorrências que perpetuam a valentia de alguns e a covardia de muitos. Onde muitas histórias são regadas a sangue, com muitos tiros, correrias e tropelias.

Em toda a região os relatos sobre estes fatos são continuamente ados as novas gerações, muitas vezes através da tradição oral, do folheto de cordel, sendo depois documentados em livros, servindo então de temas para teses acadêmicas, que contestam ou corroboram os fatos. Outras vezes o espectro é ampliado e estas sagas chegam ao teatro, a televisão e ao cinema. Mas a tônica é uma só; estes episódios são sempre conhecidos e repetidos pela região.

Localização de Patos do Irerê e Princesa Isabel no mapa da Paraíba, onde está o casarão

Neste sentido, é de se estranhar que atualmente na região ocorra um acentuado desconhecimento e uma estranha falta de informações sobre o conflito deflagrado no ano de 1930, na região da atual cidade paraibana de Princesa Isabel, próximo à fronteira com Pernambuco e conhecido como a “Guerra ou Sedição de Princesa”.

Um Cruel Momento da História Paraibana

Esta guerra (e não a nenhum exagero de assim chamá-la) foi pródiga de episódios interessantes e cruéis, onde tudo começou através de discórdias políticas e econômicas, envolvendo poderosos coronéis do interior do estado e o governador eleito da Paraíba em 1927, João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque.

Governador João Pessoa

João Pessoa discordava da forma como o grupo político que o elegera conduzia a política paraibana, onde era valorizado o grande latifundiário de terras do interior, possuidores de grandes riquezas baseadas no cultivo do algodão e na pecuária. Estes “coronéis” atuavam através de uma estrutura política arcaica, que se valia entre outras coisas do mandonismo, da utilização de grupo de jagunços armados, da conivência com grupos de cangaceiros e outras ações as quais o novo governador não concordava.

Entre os embates ocorridos, podemos listar uma maior perseguição do governo estadual aos grupos de cangaceiros e a cobrança de taxas de exportação do algodão. Por esta época, os coronéis exportavam o produto principalmente através do principal porto de Pernambuco, em Recife, provocando enormes perdas de divisas tributárias para a Paraíba. Procurando evitar esta sangria financeira e efetivamente cobrar os coronéis, João Pessoa implantou diversos postos de fiscalização nas fronteiras da Paraíba, irritando de tal forma estes caudilhos, que pejorativamente aram a chamar o governador de “João Cancela”.

O coronel José Pereira

Os embates políticos entre o governador e os coronéis foram crescendo. A maior liderança entre estes poderosos, sem dúvida foi o coronel José Pereira Lima, verdadeiro imperador da região oeste da Paraíba, na área da fronteira com Pernambuco, tendo como base, a cidade de Princesa. Do embate entre estes dois homens resultou em um dos maiores conflitos armados do Brasil Republicano.

Sertão em Armas

A contenda teve início em 28 de fevereiro de 1930, quando ocorreu a invasão da então vila do Teixeira (PB), por parte da polícia paraibana, com o aprisionamento da família Dantas, ligada por profundos laços de parentescos e interesses ao coronel José Pereira.

Apesar de governador João Pessoa não contar com o apoio do Palácio do Catete, onde o titular, Washington Luís, não viabilizou uma efetiva ajuda as forças policiais paraibanas, o mandatário paraibano foi à luta.

José Pereira e seus comandados durante a Guerra de Princesa

Com o apoio discreto, mas efetivo, do Presidente da República e dos governadores de Pernambuco, Estácio de Albuquerque Coimbra, e do Rio Grande do Norte, Juvenal Lamartine de Faria, o coronel José Pereira decidiu criar o “Território Livre de Princesa” com absoluta autonomia, separando-se durante o período do conflito do restante do estado da Paraíba.

Princesa se tornou uma fortaleza inexpugnável, resistindo palmo a palmo ao assédio das milícias leais ao governador João Pessoa. O exército particular do coronel José Pereira era estimado em mais de 1.800 combatentes, onde diversos desses lutadores eram egressos das hostes do cangaço e muitos eram desertores da própria polícia paraibana.

No lado do presidente João Pessoa, suas tropas estavam sob o comando do Coronel Comandante da Polícia Militar da Paraíba, Elísio Sobreira, do então Delegado Geral do Estado, Severino Procópio, e do Secretário de Interior e Justiça, José Américo de Almeida. Na tentativa de desbaratar os sediciosos de Princesa, estes comandantes dividiram os efetivos policiais, compostos por cerca de 890 homens, em colunas volantes.

Como a guerra era vista no Rio de Janeiro

No povoado de Olho D’Água, então pertencente ao município de Piancó (PB), estava aquartelado o comando geral de operações da polícia paraibana, que decidiu enviar à Princesa uma de suas colunas volantes, conhecida como “Coluna Oeste”. Esta coluna era comandada pelo Tenente Raimundo Nonato, que tinha entre seus principais comandados o valente sargento Clementino Furtado, mais conhecido como Clementino Quelé, ou “Tamanduá Vermelho” (por ser branco e ficar “avermelhado” quando nervoso).

Clementino Quelé

Quelé era a valentia em pessoa, calejado nas lutas do sertão, podia se vangloriar de possuir no seu “currículo”, mais de vinte combates contra Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Foi a volante de policiais comandadas por Quelé, a primeira a entrar em Mossoró, em 13 de junho de 1927, perseguindo Lampião e seu bando, logo após este ter tentado invadir esta importante cidade potiguar.

Composta de valentes combatentes foi para a “Coluna Oeste”  que o comando designou uma missão especial.

Marcolino Diniz na época da Guerra de Princesa

Em Princesa, entre um dos mais importantes líderes das tropas locais estava o fazendeiro Marçal Florentino Diniz, poderoso e influente agropecuarista da região, que juntamente com seu filho, Marcolino Pereira Diniz, eram parentes e pessoas da inteira confiança do coronel José Pereira. O coronel Marçal Diniz possuía no então distrito de Patos de Princesa, a 18 quilômetros da cidade, uma fazenda localizada no sopé da grande serra do Pau Ferrado, o segundo ponto mais elevado da Paraíba, com cota máxima em torno de 1.120 metros de altitude e foi para esta fazenda que o comando da polícia paraibana ordenou que Clementino Quelé atacasse a casa grande do poderoso coronel.

O Assalto de Quelé

Este episódio é conhecido na região como o “Fogo ou Batalha do Casarão dos Patos”.

A ideia deste ataque visava dividir as forças do coronel José Pereira, que teria de retirar homens da frente de combate de Teixeira, para socorrer os familiares da família Diniz que estavam no casarão, bem como formar com as reféns uma espécie de cordão de isolamento, um escudo humano, que objetivava garantir a segurança dos militares. Pensavam que, agindo assim, nenhum defensor de Princesa ousaria atirar nos combatentes do governo paraibano.

A imprensa oficial potiguar e o próprio governo de Juvenal Lamartine eram contra João Pessoa e a favor de José Pereira

Outra teoria seria a de levar as mulheres como prisioneiras, ou reféns, para a cidade de Paraíba do Norte (atual João Pessoa) e forçar os comandantes de Princesa a alguma espécie de negociação.

No dia do ataque, 22 de março de 1930, Quelé e seus policiais, em número estimado entre sessenta para alguns, e entre setenta a cem homens para outros, seguiram atravessando a zona urbana da pequena vila de Alagoa Nova (atual MANAÍRA-PB) e daí subiram a grande Serra do Pau Ferrado. Ao arem pela propriedade de Antônio Né, pessoa ligada à família Diniz, no homônimo Sítio Pau Ferrado, assam um cidadão por nome Silvino, depois, desceram a serra.

Dona Xandu, imortalizada pelo grande Luís Gonzaga na música “Xandusinha”

Não havia muitos defensores pertencentes aos grupos do coronel José Pereira, ou de Marcolino Diniz e a força policial de Quelé ocupa o local sem maior oposição. Na casa estavam entre outras pessoas, às mulheres de Marcolino Diniz, Alexandrina Diniz (também conhecida como Dona Xandu, ou Xanduzinha) e a de Luís do Triângulo, Dona Mitonha. Luís do Triângulo era um dos mais valentes e destacados chefes dos combatentes de José Pereira.

Neste interregno, o grupo de combate comandando por Marcolino encontrou um soldado da polícia de nome Zeferino, o qual seguia com uma mensagem do Sargento Quelé ao Delegado Geral do Estado, Severino Procópio, informando da ação contra o casarão.

O Casarão em 2006

José Pereira e Marcolino Diniz recebem a notícia da prisão de seus familiares. Eles tomam esta ação como um acinte, uma falta de respeito e preparam o contra ataque. Ordenam que uma parte de suas tropas que combatiam as forças policiais do governador João Pessoa na região de Tavares, se deslocasse para Patos de Princesa e ordenam que os homens levem farta munição. Outros combatentes conclamam moradores da região para o ataque, enaltecendo a covardia de Quelé, que usava mulheres como escudos. Este chamamento dos líderes de Princesa e de seus homens encontra eco entre membros das comunidades de Princesa e Alagoa Nova e estes decidem seguir com o grupo que vai retomar o “Casarão dos Patos”.

A Batalha Pela Reconquista do Casarão

Na noite do segundo dia após o bem sucedido ataque de Quelé, a situação permanece inalterada. Segundo relatos dos reféns, os soldados, com raras exceções, se portaram de forma vândala e arrogante durante a ocupação.

Na minha última visita a casa já praticamente coberta pelo mato

Enquanto isso os combatentes de Princesa vão discretamente fechando o cerco ao casarão. Aparentemente, por falta de comunicação com seus comandantes, Quelé não abandonou a posição e levou seus prisioneiros. Outros acreditam que ele logo percebeu que estava cercado e esperou o inevitável.

O certo é que na manhã do terceiro dia de ocupação, o céu se apresentava nublado, os defensores do casarão estavam tranquilos, apesar da tensão existente na região. Alguns esperavam o café, outros até jogavam uma improvisada partida de futebol (possivelmente com uma bola de meia), no pátio defronte a casa. É quando o primeiro tiro é detonado em um soldado que vinha do Sítio Pedra e trazia um carneiro para abate, aí tem início um inferno no “Casarão dos Patos”.

A polícia estava cercada na casa, se defendendo como podia, o sargento Quelé vai animando seus policiais em meio a uma intensa troca de tiros e insultos entre as forças combatentes.

Lateral do casarão, mostrando a construção maciça

Marcolino Diniz, à frente dos seus homens, está com o “cão no couro”, comandando, disparando e mandando buscar cachaça nas bodegas da pequena vila de Patos de Princesa para “esquentar” seus “cabras”. Esta cachaça era trazida em sacos, distribuída francamente entre seus combatentes. Até hoje se comenta na região como os distribuidores da bebida terminaram os combates totalmente embriagados e sem dispararem um só tiro.

O tiroteio é cerrado. Colocar a cabeça muito exposta nas janelas do casarão é motivo para que algum policial se torne um alvo fácil. Já os homens de Diniz continuam disparando sem cessar. Eles estão espalhados em todo o perímetro, protegidos por árvores, pedras, pelos muros e paredes das poucas casas vizinhas.

O combate prolongou-se até às dezesseis horas do mesmo dia, quando a polícia praticamente estava sem munição e seus disparos tornam-se esparsos. É quando os homens de Marcolino, aproveitando uma forte chuva que desabava e a existência de um canavial nas imediações do casarão, partem para o assalto final.

Sótão do casarão. Neste local, segundo os moradores da região, vários soldados paraibanos foram mortos. Até algum tempo atrás ainda haviam marcas de sangue nas paredes

Durante a invasão é travado um forte combate corpo a corpo em cada uma das dependências da casa. Gritos, pancadas, socos, pontapés, dentadas, tiros, facadas e sons de lutas ocupam o ambiente. Os homens de Quelé procuram à fuga, mas estando o casarão cercado, muitos são abatidos impiedosamente pelos combatentes de Marcolino.

Alguns policiais fugiam feridos ou não, pelo mesmo canavial que serviu de abrigo para os atacantes e de lá seguiam para a serra do Pau Ferrado. Nesta fuga, muitos combatentes se cruzavam, às vezes cara a cara, dentro do canavial e tiros ou facadas eram desferidas a curta distância.

O mato é tanto, que só derrubando algumas plantas para entrar no local

Marcolino, atiçado pela bebida e já dentro do casarão, prometia aos gritos “vou sangrar todo mundo, até Xandu” que no seu entendimento de valentão do sertão, com um pensamento extremamente machista, imaginava que a sua mulher já havia sido estuprada e aí só “sangrando para limpar o corpo”. Mas Xandu e as outras mulheres estavam bem e foram preservadas por Quelé e seus homens. Todas estavam em um quarto, acompanhadas de um soldado ferido na perna, que conseguira desarmar uma bomba (ou granada?), que o sargento Quelé colocara no recinto. O soldado salvou a vida das reféns, sendo igualmente salvo pelas mulheres de ser impiedosamente sangrado por Marcolino e seus “cabras”.

Marcas do ado

Após isto, Marcolino e seus homens seguiram pelos vários recintos do “Casarão dos Patos”, chacinando os policiais que não fugiram. Dos militares que lá dentro se encontravam, não sobrou nenhum vivo, pois até o soldado que havia salvado as mulheres, morreu no mesmo dia, devido aos ferimentos, quando era transportado para a vizinha cidade pernambucana de Triunfo.

Marcas Sangrentas

Segundo relatos dos moradores da região, havia até recentemente, em alguns quartos da casa, registros de mãos ensanguentadas nas paredes, mostrando a agonia deste dia terrível.

Um esquecido oratório dentro do casarão

Quanto a Quelé, vendo-se acossado pelos homens de Marcolino e escutando o próprio caudilho dos Patos de Princesa gritando dentro do casarão que “queria pegar Clementino e matá-lo sangrado”, pulou do andar superior, juntamente com dois soldados e juntos fugiram em direção ao canavial. Já era noite quando conseguiram chegar à serra do Pau Ferrado, depois seguem para Alagoa Nova e ao encontro das forças de João Pessoa. O restante dos militares que escapou com vida embrenhou-se em território pernambucano.

Uma dispensa aberta na parede, para guardar mantimentos

Das forças de José Pereira e Marcolino Diniz houve apenas uma baixa, um senhor de nome Sinhô Salviano, possivelmente sob efeito da cachaça, desprezou as ordens e ficou sob a mira dos soldados. Para alguns pesquisadores, as forças paraibanas perderam mais da metade do efetivo, mas segundo os relatos que se perpetuam na região, contados por aqueles que participaram do conflito e transmitidos para seus descendentes, foram mortos em torno de cinquenta policiais, sendo seus corpos enterrados em uma vala comum nas proximidades do casarão. Os equipamentos bélicos dos policiais mortos foram recolhidos pelos combatentes de Princesa para reforço de arsenal.

Fato comum; morador da região com um cartucho de fuzil Ma intacto, encontrado ao arar o terreno próximo ao casarão.

Final da Guerra de Princesa

Houve outros episódios sangrentos e terríveis na Guerra de Princesa, mas após a morte, em Recife, do governador João Pessoa e a consequente eclosão da Revolução de 30, o conflito em Princesa acabou, era o dia 26 de julho de 1930.

O coronel José Pereira Lima organizou a defesa dos seus domínios de forma impressionante, provocando baixas estrondosas à força pública paraibana durante os quatro meses e vinte e oito dias que durou sua resistência.

A partir de um caminhão foi desenvolvido em Campina Grande um veículo blindado para combater os revoltosos de Princesa

Princesa não foi conquistada pela polícia paraibana. Após a eclosão da Revolução de 30, tropas do exército, de forma tranquila, ocuparam a cidade.

O coronel José Pereira e muitos dos que lutaram com ele fugiram da região e a família Diniz se retraiu diante do novo sistema governamental imposto. O tempo dos caudilhos do sertão estava chegando ao fim, pelo menos naquele formato utilizado por José Pereira.

Com o fim da guerra, a fortuna da família Diniz ficou seriamente comprometida. O combate e, principalmente, a ira dos soldados, destruiu tudo. Canaviais, engenhos de rapadura, moendas, casas e outros bens foram alvo da vingança dos fardados, quase nada escapou.

Depois da Guerra

Mesmo com as perseguições sofridas após o fim da guerra, todos os anos Marcolino Diniz e sua gente, comemoravam o aniversário da retomada do casarão com muita festa.

Marcolino Diniz próximo a sua morte

Marcolino sempre foi um homem controverso, valente, prepotente, astuto e sagaz. Era proprietário das fazendas Saco dos Caçulas e Manga, onde diversas vezes Lampião descansava dos combates. Esta polêmica amizade entre Marcolino e Lampião é bem retratada em um episódio; em 30 de dezembro de 1923, Marcolino, juntamente com seu guarda-costas conhecido por “Tocha”, por conta de uma briga, matam o então magistrado da cidade de Triunfo (PE), o Dr. Ulisses Wanderley. Marcolino fica ferido e é feito prisioneiro na cadeia pública local. Seu pai, o coronel Marçal, recorreu aos préstimos do cangaceiro a fim de libertar o filho. Não demora muito e um grupo armado, com um número de homens estimado em torno de 100 a 150 homens, retira tranquilamente o prisioneiro ferido da cadeia.

Igreja de Patos do Irerê, onde está enterrado Marcolino Diniz

Marcolino e a sua adorável Xandu, continuaram unidos até a morte, tendo seu amor sido imortalizado em 1950, por Luís Gonzaga e Humberto Teixeira, com a música “Xanduzinha”. Marcolino nasceu em 10 de agosto de 1894 e faleceu em Irerê, em 21 de dezembro de 1980, com 86 anos, conforme está inscrito em sua lapide, na igreja deste atraente lugarejo.

Casa de Marcolino e Xandu em Patos do Irerê

Já o sargento Clementino Quelé sobreviveu à Guerra de Princesa e ainda teria fôlego para perseguir, no ano de 1936, o bando do cangaceiro Virgínio Fortunato da Silva. Conhecido como “Moderno”, foi cunhado de Lampião, homem de sua mais alta confiança, que neste ano investiu contra a região conhecida como “Tigre paraibano”, atacando várias fazendas na área próxima a cidade de Monteiro. Quelé, possivelmente pelo analfabetismo, nunca ou da patente de sargento, tendo morrido idoso na cidade paraibana de Prata. Coincidentemente, Quelé também foi lembrado em uma música de Luís Gonzaga intitulada “No Piancó”.

Quem visita atualmente a antiga Patos de Princesa, atual Irerê, município de São José de Princesa, com suas casas antigas e bem preservadas, nem imagina que o carcomido e arruinado casarão existente no fim da rua principal, foi palco de tamanho conflito.

O grande amigo Antônio Antas apontando a área onde o pessoal de Princesa atacou as tropas de Quelé. Uma verdadeira memória viva da região

Mesmo em ruínas, o casarão impressiona pela imponência da sua estrutura, pela grandiosidade da sua construção. Nele existe um andar superior, com dois sótãos independentes, vários quartos e dependências, sendo um exemplo do poder emanado pelos coronéis da região. Em meio ao silêncio atual, se o visitante puxar pela imaginação, é possível ouvir os sons da batalha ali ocorrida no longínquo ano de 1930.

Nota – Especificamente sobre o “Fogo do Casarão dos Patos”, utilizo principalmente as lembranças de várias pessoas que vivem na região de Princesa Isabel, Irerê e Manaíra. Sendo as informações do senhor Antônio Antas Dias, residente na cidade de Manaíra, as narrativas mais utilizadas. Este senhor comentou sobre este momento histórico, em uma entrevista concedida no dia 14 de agosto de 2006. O Sr. Antônio Antas tinha 61 anos na época da entrevista, onde as informações que ele prestou lhe foram transmitidas principalmente por Marcolino Diniz, de quem era parente, pelo guarda costas deste último, Manoel “Ronco Grosso” Lopes, por José Florentino Dias, seu pai, e pelo senhor Sebastião Martins, morador do atual distrito de Irerê.

Igualmente utilizei os trabalhos do amigo e professor de geografia José Romero Araújo Cardoso, lotado na UERN-Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, em Mossoró. Estes artigos são “Marcolino Pereira Diniz e Xanduzinha: Imortalizados através da arte de Luiz “Lua” Gonzaga”, no link –

http://www.turismosertanejo.com.br/?target=artigos&id=69

Outro Trabalho do professor Romero, ao qual utilizei material para a confecção deste artigo, foi uma série de interessantes entrevistas realizadas entre 1989 e 1991, com diversas testemunhas sobre episódios do cangaço e da Guerra de Princesa, que está inserido no link –http://www.marcoslacerdapb.hpg.ig.com.br/romero/cangaco.htm

 – Este artigo já havia sido anteriormente publicado e reproduzido em sites de vários de amigos por este Nordeste afora, que colocam a devida referência em relação ao autor e vários outros sites que nem se preocupam com isso. Mas decidi colocar o meu próprio blog, com novas fotos para quem gosta destas antigas histórias do nosso sertão.

Um detalhe importante. Já faz um tempo que não vou por lá, nem sei se o casarão está mais de pé, mas se tiver, visite enquanto é tempo.

 Um abraço a todos

 Rostand 

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