OS VELHOS CAMINHOS DO RIO GRANDE DO NORTE

Luís da Câmara Cascudo – Publicado originalmente no livro HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE, Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1955. 1ª EDIÇÃO, Capítulo XIII, páginas 307 a 312.

A primeira estrada conhecida no Rio Grande do Norte e, durante séculos, a mais trilhada, foi pelo litoral, beirando quase o mar, rumo da Paraíba. Os colonizadores vieram pelo Atlântico, mas a parte da tropa que devia vir por via terrestre recuou na baía da Traição ante a peste de bexigas. Mascarenhas Homem, fundador do Forte dos Reis Magos, regressou por terra. Esse primeiro caminho teve, no correr da guerra contra os indígenas no final do século XVII, uma série de casas fortes, protegendo o trânsito que seria relativamente vultoso. Vinha-se pela baía da Traição ou Mamanguape, Tamatanduba, Cunhaú, Goianinha, Guaraíras (Arês), Mipibu, Potengi, Utinga, ou seguindo o vale do Cajupiranga, diretamente a Natal. A jornada para o interior ia até o vale do Ceará Mirim, limite do conhecimento geográfico, útil até mesmo depois da expulsão do holandês em 1654.

Fortaleza dos Reis Magos no período colonial

Quando o mestre de campo Luís Barbalho Bezerra realizou a famosa contramarcha de fevereiro-maio de 1640, calcou a estrada já histórica. O genealogista Pedro Taques diz ter sido o desembarque a 7 de fevereiro no porto de Aguaçu, topônimo desaparecido, junto ou nos arredores da atual cidade de Touros. Em nomeações reais encontro baixios de São Roque. O caso é que Barbalho Bezerra veio até o Potengi, quase vendo Natal ou vendo, onde se bateu, derrotou e aprisionou Joris Gartsman, capitão flamengo do Reis Magos, e o conduziu para a cidade do Salvador. De Cunhaú é que o mestre-de-campo escreveu ao conde de Nassau pedindo agem. Encontramos sua espada vencendo Alexandre Picard em Goiana. Era a trilha secular para ó sul, Natal, vale do Cajupiranga, vale do Capió, Cunhaú, rio Guaju para a Paraíba e daí para Pernambuco, por Mamanguape e Goiana como ainda nos nossos dias é a maior rodovia interestadual.

Riacho seco no Vale do Cafundó, zona rural da cidade pernambucana de Flores, Região do Pajeú. No ado essas eram as primeiras estradas da ocupação do interior do Nordeste. – Foto de Alex Gomes.

A repressão oficial à revolta da indiaria provocou o alargamento das fronteiras corográficas. Antônio de Albuquerque Câmara bate-se em 1688 nas cabeceiras do rio Açu e entre as serras do João do Vale e Santana do Matos. A revolta abrangia as ribeiras do Açu e Jaguaribe. A zona teve de ser batida e tresada pelas colunas militares. Nesse 1688 os paulistas vieram ajudar a corrigir a indiada e se encontraram, vindos da Paraíba, com Albuquerque Câmara que se batia no baixo Açu. Domingos Jorge Velho viera de seus currais do São Francisco, por terra e mergulhara pelo boqueirão de Parelhas, no chamado “Sertão de Acauã”, que enrolava serras e capoeirões desde os atuais Jardim do Seridó até Currais Novos. Toda essa região, Focinho dos Picos, Picuí, Caiçara e Bico da Arara, até roçar o rio Acauã, era terra do gentio da nação Canindé e Janduí (Cariri) que se alargava por Quacari, Quimbico, Quintururé, Umvibico, Amoré, Onaxi, Acinum, Quindê, Arari, Jucurutu até a misteriosa serra, do Araridu ou Papuiré até Ticoiji e Tipuí, julgadamente a serra do Coité no território paraibano. São topônimos ·cariris que orlam a peregrinação dos aldeamentos e ficaram como testemunhando a agem dos Janduí e Canindé antes do desaparecimento. Esse povo dos Canindé foi derrotado em 1690 por Afonso d’Albuquerque Maranhão, da casa de Cunhaú, neto de Jerônimo, 1.º capitão-mor do Rio Grande. O tuxaúa Canindé, soberano do sertão da Acauã, foi batizado e tomou o nome de João Fernandes Vieira. Dois anos depois o Senado da Câmara de Natal pedia a criação de arraiais, povoados com defensão militar nos quatro pontos extremos da região pacificada: Jaguaribe, Açu, Acauã e Curimataú. As estradas ligavam entre si esses lugares e se articulavam nas duas vias-tronco para o sul, o caminho do litoral, já mencionado, e a estrada por onde nasceria a estrada das boiadas. Em 1697 os indígenas Paiacu e Caratéu, da nação cearense dos Icó que viviam desde o Catolé do Rocha até as margens do rio Piranhas, na Paraíba, fixaram-se entre as ribeiras do Apodi e Jaguaribe, formando um liame de ativa comunicação pela chapada.

Ilustração de Jean Baptiste Debret

Por onde, durante as guerras contra o cariri, entraram os Terços Paulistas, as tropas de auxílio, vindas para conter os Janduí, Icó, Paiacu, Pega e Panati insubmissos?

Desceram da Paraíba, vindos por Soledade-Picuí ou Piranhas, depois Pombal, Brejo do Cruz e Catolé do Rocha, varando a fronteira depois da reentrância paraibana, ou vinham pela mesopotâmia do Panema-Açu? As tropas que voaram em socorro de Albuquerque Câmara tomaram o primeiro caminho e as do sertanista Domingos Jorge Velho creio que escolheram o segundo, ainda hoje piso batido e tradicional.

ada a guerra ficou a lembrança da terra pisada para baixo e para cima. Do Açu sobe-se pelo rio Paraú até o fim e apanha-se a estrada paraibana depois de Belém. Lembremo-nos que a Paraíba não tinha gado e sim açúcar. O Rio Grande do Norte possuía tanto gado que podia suprir a Paraíba, Itamaracá e Recife. Os currais paraibanos são posteriores ao domínio holandês na vigência do qual o Rio Grande exportava, de graça e a força, milhares de cabeças. Irineu Joffily (Notas sôbre a Paraíba, 124) diz que as “fazendas apareceram normalmente quando os exploradores galgaram o planalto da Borborema e os paulistas penetraram no Piancó. Depois de 1690 é que temos indícios das atividades bandeirantes dos Oliveira Lêdo no Piancó e Piranhas. Os núcleos iniciais foram o Boqueirão a leste e Piranhas a oeste até que Oliveira Lêdo reuniu e sistematizou o esquema do povoamento pela fixação das tribos disseminadas.

Estrada de rodagem do Seridó, início da década de 1920

Durante muitos anos os pontos povoados do sertão paraibano não tiveram intercomunicação. Piancó conhecia a ligação com a Bahia, e Boqueirão, nos Cariris Velhos, com Pernambuco. Entre nós, já no século XIX, sucedia o mesmo. Mossoró ia para o Aracati e Caicó para Campina Grande. O sertão escapou secularmente à capital que vegetava, humilde e minúscula, junto ao Potengi. As ligações orientavam-se para Pernambuco e Paraíba, para as grandes feiras de gado, Igaraçu, Goiana, També (Pedra de Fogo), Itabaiana e depois Campina Grande. Daí a rede de estradas e variantes que sempre aglutinaram esses lugares e os articulavam às regiões do Seridó e sertão de Piranhas, ribeira da Panema, enquanto a zona do Mossoró se escoava para o Ceará pelo chapadão do Apodi. Com o desenvolvimento do Aracati ou este a dirigir Mossoró e Mossoró ao seu sertão na linde do Oeste.

Do Mossoró, a velha estrada ia a São Sebastião (Governador Dix-Sept Rosado), como presentemente a estrada de ferro, Jurumenha, perto de Caraúbas, Atoleiros, Piranhas, Mombaça, Boa Esperança (Demétrio Lemos, atual Antônio Martins) nos batentes da serra do Martins, Carnaúba, Barriguda (Alexandria), Tabuleiro Formoso onde se bipartia. Um ramal ia para o Catolé do Rocha e outro à cidade de Sousa, tocando em Santa Rosa. Em Sousa entroncava-se com a estrada-das-boiadas que era uma reminiscência das estradas de penetração povoadora. Daí a importância de Sousa, Cajazeiras e Pombal na formação comercial de uma zona do Rio Grande do Norte. Para lá, como depois para o Caicó, envia-se o menino aos estudos do latim e o ador-de-gado, afoito e lendário.

Antiga estação ferroviária de Demétrio Lemos, atual Antônio Masrtins – Foto – Rostand Medeiros

Sousa centralizava muito e uma sua estrada vinha morrer na antiga rota dos conquistadores de Natal. Partia de Sousa e atravessava sucessivamente Catolé, Belém, Amazonas, São Miguel (já em nossa província), Serra de Santana por Flores (hoje Florânia). Santa Cruz, centro de irradiação do Seridó depois de ar a serra do Doutor nas vizinhanças de Currais Novos, daí para Nova Cruz por Campestre (São José do Campestre) onde se via o caminho que levava à Paraíba ou Pernambuco por Mamanguape. Quando se criou o correio, Mamanguape era o ponto de intersecção entre Paraíba e Rio Grande do Norte. Aí o estafeta recebia a correspondência para Pernambuco e distribuía a carga entre as duas coterminas. A posição de Mamanguape explica a predileção dos grandes latifundiários por suas terras. Os Albuquerques Maranhões, da casa de Cunhaú, possuíam vários sítios e engenhos em Mamanguape.

Vaqueiros potiguares – Foto – Rostand Medeiros

A estrada-das-boiadas na Paraíba era muito mais seguida pelos vaqueiros norte-rio-grandenses que qualquer outra nossa. Ia-se por ela para o Piauí e o Piauí, de fins do século XVIII em diante, muito valia à nossa vida de pastorícia. Irineu Joffily reconstruiu-a e posso completá-la.

Do oeste do Espinharas, ribeira de Santa Rosa, Milagres, tocando depois na lagoa do Batalhão (Taperoá), seguia-se o rio, descendo a Borborema até Piranharas e daí a Patos, Piranhas (Pombal), Sousa, São João do Rio do Peixe (Um ramal recebia a contribuição de Cajazeiras) ia-se ao Ceará pelos Cariris Novos, Icó, Tauá, atingindo-se Crateús, inesquecível pelo encontro de centenas de vaqueiros que demandavam o Piauí. Outros preferiam acompanhar a vaqueirama divertida e pousar ali mesmo, mas eram em parte menor. A maioria furava, do Tauá, diretamente para o Piauí. De Crateús comprava-se a gadaria em Santo Antônio do Surubim de Campo Maior, núcleo influenciador de cantigas sobre o ciclo do gado, Valença, Oeiras, que fora capital até 1852, Jatobá (São João do Piauí) e Picos, fornecedor dos primeiros cavalos pampas, ornamentais e vistosos, orgulho do patriarcado rural no Rio Grande do Norte. uns vaqueiros arrastavam a jornada até São Gonçalo de Amarante e outros a Jerumenha. As maiores feiras eram nas localidades citadas.

Foto – Rostand Medeiros

Os norte-rio-grandenses do oeste iam via Ceará. De Tauá para Crateús e daí seguiam galgando a Ibiapaba para Campo Maior, ·banhado pelo rio Surubim ou, dos cearenses Arneiros e Cococi, alcançavam Valença no Piauí ou em diagonal para Picos.

Essa toponímia ficou registrada na cantiga velha. Desaparecida quase a estrada das boiadas, rara a viagem do vaqueiro, a poesia tradicional guardou os nomes dos lugares de outrora. Essa toada, verdadeira canção de marcha dos vaqueiros, recorda o percurso (!) de Campo Grande (Augusto Severo) no Rio Grande do· Norte até o ·Piauí, envolvendo dois perfis femininos, cuidados amorosos do vaqueiro cantador.

Como Xiquinha não tem

Como Totonha não há;

Xiquinha de Campo Grande

Totonha do Lagamá !

Xiquinha vale dez fio (filhos)

Totonha vale dez vó. . . (avós)

Xiquinha do COCOCl

Totonha do Arneiró …

Xiquinha prá querer bem

Totonha prá carinhá;

Xiquinha é de Crateús

Totonha é lá do Tauá

Xiquinha vale uma vila,

Totonha vale ela só;

Xiquinha nasceu nos Pico (Picos)

Totonha em Campo Maió …

Um ramal da estrada das boiadas ficou popularíssimo na “cantoria”. É o do Piancó, Misericórdia, Milagres (Ceará), Missão Velha, Crato, nos Cariris Novos. Do Mossoró viajava-se outrora, como atualmente, pelo araxá do Apodi (Pedra de Abelha, atual Felipe Guerra). Outras estradas partindo de Mossoró, iam rio acima até as cabeceiras do Apodi, Portalegre, Pau dos. Ferros, São Miguel e Luís Gomes. Uma variante de Pau dos Ferros, velhíssimo rancho de comboieiros e tangedores de gado, chega a Alexandria, antiga Barriguda e seguia para Tabuleiro Formoso, pegando o caminho paraibano. De Pau dos Perros a vizinhança cearense animava as visitas por Pereiro. Do Patu ia-se para Catolé do Rocha. Do Açu caminhava-se para Campo Grande (Triunfo, Augusto Severo), Martins, no pé da serra, onde se continuava em um dos ramos para a estrada das boiadas pela Ribeira do Rio do Peixe.

Foto – Rostand Medeiros

O inverno era mais cedo. Dizia tão certo como chuva em janeiro. No Piauí as águas vinham em novembro. Iam vaqueiros de toda parte comprar bois de carro e de corte e novilhos para reprodução e engorda. Voltava-se em fins de dezembro ou começos de janeiro, tocando, para aproveitar as babugens verdes e ralas que as chuvas faziam nascer.

As datas quase infalíveis criavam ponto de reunião para que a jornada fosse menos enfadonha e monótona. Especialmente ficavam juntos no regresso para o auxílio mútuo nas travessias sem água ou agens difíceis nos rios e riachos, estouro de boiada e moléstias súbitas na gadaria. Essas estradas todas, como vimos, em pleno sertão, determinaram a necessidade das vendas, feiras rápidas de suprimento ligeiro e descanso ao longo da rota. Fizeram casas. As fazendas se aproximaram. Ergueram a capela. Foi vila e muitas são sedes municipais.

Para o sul do Rio Grande do Norte a viagem continuava margeando. As praias, caminho feito por Nosso Senhor. Assim voltou, agonizante, Pêro Coelho de Sousa, em 1605, ando Amargosa e Guamaré na costa de Macau.

Capela de Nossa Senhora das Candeias, no Engenho Cunhaú, município de Canguaretama, no litoral sul potiguar, onde aconteceu o Massacre de Cunhaú em 16 de julho de 1645 – Foto – https://joaobosco.wordpress.com/2007/09/22/onde-esta-a-verdade-sobre-o-masacre-de-cunhau/

Em 1810 Henry Koster fez sua excursão ao Ceará partindo do Recife, por Goiana, Espírito Santo, Mamanguape (Paraíba), Cunhaú (Rio Grande do Norte), Papari (Nísia Floresta), São José de Mipibu, Natal, Açu, Santa Luzia (Mossoró), praia do Tibau, Aracati (Ceará) e Fortaleza.

Quando o bispo de Pernambuco, Dom João da Purificação Marques Perdigão, visitou o Rio Grande do Norte em 1839, vinha do Ceará. Penetrou pelo Apodi, descansando em “Sabe Muito”, nos arredores da cidade de Caraúbas, dormindo no então povoado; almoçou em Coroas, perto da vila de Campo Grande (Augusto Severo), alcançando o Açu. Atravessou Santa Quitéria, depois Patachoca (Pataxó), vila dos Angicos e pelo seu Itinerário sabemos que o prelado veio por São Romão (Fernando Pedrosa), Santa Cruz, ambas estações da Estrada de Ferro Sampaio Correia, Riacho Fechado, Várzea dos Bois, Umari, Boa Água, Ladeira Grande, Taipu do Meio (sede municipal), Capela, no vale do Ceará-Mirim e Extremoz. É a travessia do poente ao nascente, oeste-leste. De Natal, Dom João partiu para a Paraíba repetindo quase o trajeto de Mascarenhas Homem no percurso de regresso em 1598. Natal, São Gonçalo, São José de Mipibu, Papari, Arez, Goianinha, Vila Flor, Tamanduba, Comatanduba (Paraíba), Mamanguape. É a descida norte-sul.

Pelos caminhos do sertão potiguar – Foto – Rostand Medeiros.

No interior as primitivas e grandes vias de povoamento e penetração foram as margens dos álveos dos rios Piranhas e Apodi-Mossoró. A oeste a chapada do Apodi com o rush cearense. A linha Natal-Macau estirão solitário de areias inúteis, com água rara, esteve despovoado, afora os breves oásis de coqueirais plantados na segunda metade do século XVIII em diante e que abrigaram povoações de pescadores, Genipabu (estrema do mapa de Marcgrav). Pitangui, Jacumã, Muriú, Maxaranguape, Caraúbas, Maracajaú, Touros, Olhos d’Agua, Santo Cristo, Reduto, Caiçara, Galinhos; Diogo Lopes, etc.

O QUE HOUVE EM PALMARES ?

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Versão dos vencedores não dá conta da organização política de uma sociedade que se manteve por mais de meio século

Laura Perazza Mendes Nascimento – http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/o-que-houve-em-palmares

Corria pelos engenhos e senzalas da capitania de Pernambuco a notícia de que, para o lado das serras, na região dos palmares, havia um refúgio. Um lugar onde era possível viver fora do poder dos senhores de engenho e manter vivas tradições africanas recriadas na América. Lá, uma nova sociedade era construída: guerreiros, agricultores, comandantes de guerra, líderes religiosos e uma linhagem real que determinava os rumos políticos e militares.

Aquelas povoações foram chamadas de mocambos, acampamentos que poderiam ser desmontados e montados em outras regiões, como estratégia de fuga ou de busca por melhores terrenos. Chegar a essa zona de vegetação de palmares não era tarefa fácil. Após fugir dos engenhos ou das vilas, era necessário trilhar caminhos íngremes e fechados pela mata. Qualquer descuido poderia resultar em recaptura ou morte, pois havia pessoas dedicadas especialmente à perseguição de escravos fugitivos, como os capitães do mato. Mesmo assim, muitos conseguiram chegar ao local, incluindo índios e pessoas livres. Foi mais fácil fugir para os mocambos no início do século XVII, quando a produção de açúcar foi desorganizada pela invasão dos holandeses (1630) e, mais tarde, pelas batalhas de expulsão desses estrangeiros (1645-1654).

Panorâmica do Parque Memorial do Quilombo dos Palmares, em Alagoas, que desde 2007 reconstitui o cenário do antigo Quilombo.
Panorâmica do Parque Memorial do Quilombo dos Palmares, em Alagoas, que desde 2007 reconstitui o cenário do antigo Quilombo.

Como era feito em Angola, os habitantes extraíam dos palmares a vegetação que deu o nome para os mocambos, fibras e palmito, além de produzir vinho e óleo. Não viviam isolados da sociedade colonial, mas buscavam reagir ao escravismo governando a si próprios.

Mas quem contou a história dessa sociedade? Infelizmente, não há nenhum registro escrito por habitantes dos Palmares. O que chegou até nós foram documentos produzidos por representantes da Coroa portuguesa que governaram a capitania de Pernambuco, e relatos de pessoas que lutaram contra os negros dos mocambos durante o século XVII. Por causa disso e de uma interpretação preconceituosa dos primeiros historiadores de Palmares, a sua história foi contada do ponto de vista da destruição. Era a versão dos vencedores.

O principal meio tentado pelos governadores de Pernambuco e pela Coroa portuguesa para pôr um fim em Palmares foi enviar expedições militares. Elas deveriam encontrar o caminho dos mocambos e fazer o máximo de prisioneiros possível. Os prisioneiros seriam devolvidos a seus antigos senhores ou vendidos para fora da capitania, para que não retornassem aos mocambos. Poderiam render um bom lucro, mas durante os confrontos muitos morriam ou ficavam feridos. Como meio de se defender dos ataques, os habitantes de Palmares faziam emboscadas e levantavam acampamento, mudando os mocambos de local.

Um dos primeiros estudiosos do assunto, o escritor Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), dividiu a história de Palmares em três fases. A primeira corresponde ao período da invasão holandesa, no qual o número de habitantes dos mocambos cresceu rapidamente. Seu marco seria o ano de 1644, data do confronto entre os negros amocambados e a expedição comandada por um holandês chamado Rodolfo Baro. O próximo marco escolhido por Nina Rodrigues foi uma expedição militar comandada pelo capitão Fernão Carrilho, em 1677. Vindo de Sergipe especialmente para fazer uma guerra contra Palmares, o militar promoveu um grande ataque. Segundo relatos posteriores, 200 habitantes de Palmares foram feitos prisioneiros, incluindo a rainha e filhos do rei, chamado Gana Zumba. Muitos morreram ou ficaram feridos, mas sobre estes não há números. Importava mais aos vencedores contar aqueles que poderiam ser vendidos. A fase final de Palmares foi a da morte do líder Zumbi, em 1695, seguida pela destruição dos mocambos remanescentes. Mas o salto na história promovido por Nina Rodrigues não dá conta de explicar a mudança da liderança do rei Gana Zumba para Zumbi. Muitas coisas acontecerem nesse meio-tempo: acordos de paz, mudanças nas localizações dos mocambos, diferentes posicionamentos políticos.

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Como a maioria decidiu contar essa história a partir da destruição, o foco escolhido foi a morte de seu líder mais famoso. No final do século XVII, o governo de Pernambuco, cansado das expedições militares que fracassavam na luta contra os mocambos, decidiu investir no contrato de um tipo diferente de tropa: as bandeiras paulistas. Liderados por Domingos Jorge Velho, os indígenas e descentes de europeus que compunham essa tropa am um contrato se comprometendo a destruir os mocambos de Palmares. Em troca, receberiam prisioneiros, terras e benefícios da Coroa, chamados de mercês.

Em 1694, os homens de Jorge Velho atacaram o mocambo principal de Palmares, localizado no Outeiro do Barriga, juntamente com homens da capitania de Pernambuco. Lá estavam Zumbi e seu exército, na capital conhecida como Macaco, protegidos por uma cerca alta que rodeava o local, à espera do ataque. Para rompê-la, os paulistas decidiram subir até o local carregando dois pesados canhões. Após horas de combate entre os que estavam do lado de fora e do lado de dentro da cerca, as tropas a serviço da Coroa conseguiram entrar em Macaco. Seu principal objetivo era capturar ou matar Zumbi, para provar que Palmares havia sido derrotado. Mas não o encontraram. Estaria ele morto? Teria escapado?

Os primeiros historiadores de Palmares acreditaram na versão de que Zumbi havia se suicidado pulando de um penhasco. Teria preferido morrer assim a ser capturado ou morto pelos inimigos. Posteriormente, foram encontrados documentos que relatam a morte de Zumbi um ano depois.

Inconformado por não poder atestar a morte de Zumbi à Coroa e a todos que viviam em Pernambuco, o governador da capitania, Caetano de Melo e Castro, decidiu enviar mais uma tropa aos mocambos. Em 1695, um habitante de Palmares que havia sido capturado anteriormente foi coagido a ajudar os homens a serviço da Coroa, e informou onde Zumbi estava escondido. Em uma emboscada, o líder palmarino foi capturado e morto. Sua cabeça foi exposta em Recife, para que todos soubessem – principalmente os escravos – que o refúgio de Palmares estava definitivamente destruído.

Quase todos os historiadores posteriores adotaram esses marcos cronológicos, mas quantos outros episódios importantes ficaram de fora da história contada pelos vencedores? Em 1678, após a expedição comandada por Fernão Carrilho, Gana Zumba decidiu enviar representantes seus para negociar um tratado de paz com o governo de Pernambuco. Sua embaixada era formada por 11 pessoas, entre elas seus filhos e importantes líderes militares. Em Recife, a comitiva de Gana Zumba foi recebida com a pompa e a circunstância dignas de uma negociação entre chefes de Estado. Cartas e presentes foram trocados entre os governantes de Palmares e de Pernambuco.

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Gana Zumba aguardou em Palmares os resultados das negociações. O governador de Pernambuco desejava que os mocambos fossem esvaziados e os escravos que lá viviam fossem devolvidos a seus senhores. Já Gana Zumba esperava que os palmarinos pudessem escolher um novo local para viver e que os nascidos nos mocambos fossem considerados livres.

As condições foram acertadas entre as partes, e os habitantes de Palmares, liderados por Gana Zumba, mudaram-se para um local chamado Cucaú. Porém uma parte dos palmarinos foi contra o acordo. Liderados por Zumbi, decidiram permanecer nos antigos mocambos e resistir aos ataques das novas expedições. Outras tentativas de acordo de paz foram feitas com Zumbi, mas nenhuma obteve sucesso. Algum tempo depois da mudança para Cucaú, Gana Zumba morreu, provavelmente assassinado por seus opositores políticos. A nova povoação foi então desfeita. Alguns retornaram a Palmares e outros foram feitos escravos pelos senhores locais, sendo vendidos para fora de Pernambuco.

O acordo feito em 1678 comprova que os habitantes de Palmares estavam organizados politicamente e que seu governo, com base em conhecimentos acumulados na África e na América, soube conduzir uma negociação com os representantes da Coroa portuguesa. A destruição de Palmares apaga uma história de mais de meio século de organização social e resistência política. 

Laura Perazza Mendes Nascimentoé autora da dissertação “O serviço de armas nas guerras contra Palmares: expedições, soldados e mercês” (Unicamp, 2013). 

SAIBA MAIS

GOMES, Flávio dos Santos. Palmares: escravidão e liberdade no Atlântico Sul. São Paulo: Contexto, 2005.

GOMES, Flávio dos Santos Gomes (org.). Mocambos de Palmares: histórias e fontes (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2010.