O ADO DA ESCRAVIDÃO HOLANDESA NO NORDESTE DO BRASIL POR VOLTA DE 1630

COMO A HOLANDA LIDOU COM OS ESCRAVOS AFRICANOS E A POPULAÇÃO INDÍGENA NAQUELA ÉPOCA

ERNST LEEFTINK https://ernstleeftink.com/2022/12/27/het-slavernijverleden-van-nederland-in-het-noorden-van-brazilie-rond-1630/

Em uma recente ocasião o rei holandês Willem Alexander falou sobre “o reconhecimento do sofrimento infligido às pessoas durante a era colonial”. Ele disse: “Pelas coisas desumanas que foram feitas naquela época nas vidas de homens, mulheres e crianças, ninguém é culpado agora”, mas pediu a todos que “enfrentassem honestamente nosso ado compartilhado e reconhecessem o crime contra a humanidade que a escravidão foi”.

O Rei da Holanda Willem Alexander– Fonte – https://ernstleeftink.com/.

Coincidentemente, no Boxing Day (feriado em 26 de dezembro) eu estava folheando o livro Nederlanders in Brazilië – 1624-1654 (no Brasil lançado como Tempo dos Flamengos), escrito pelo historiador brasileiro José Antônio Gonsalves de Mello em 1947 e cuja tradução para o holandês foi publicada em 2001. O subtítulo do livro é “A influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do Norte do Brasil“. Gonsalves de Mello estudou extensos arquivos da colônia holandesa, incluindo todas as “Atas Diárias do Conselho do Brasil” de 1635-1654. Ele até aprendeu holandês para isso.

A costa norte do Brasil, ao redor do Equador, exatamente onde o litoral se curva para baixo, foi uma colônia holandesa por cerca de 25 anos. A região era então e ainda é chamada de Pernambuco. No litoral os portugueses fundaram os povoados de Recife e Olinda a partir de 1534 e começaram a cultivar cana-de-açúcar ali. Recife é hoje a capital do estado brasileiro de Pernambuco e tem mais de 1,5 milhão de habitantes. Olinda, próximo a capital, era muito maior por volta de 1630, mas hoje tem quase 400.000 habitantes.

Edição holandesa do livro Tempo dos Flamengos, de João Antônio Gonsalves de Mello– Fonte – https://ernstleeftink.com/.

Em 1630, os Países Baixos conquistaram esses lugares de Portugal e estabeleceram uma colônia lá com Mauritsstad (ou Cidade Maurícia, construída em frente à ilha do Recife) sob a liderança de Johan Maurits van Nassau, que foi governador-geral do Brasil Holandês de 1636 a 1654. Em 1654, os portugueses recuperaram todo o Brasil.

O livro de Gonsalves de Mello (1916-2002) também é interessante por isso, pois dois dos cinco capítulos são intitulados: “3 – A relação dos holandeses com os negros e a escravidão” e “4 – Holandeses, índios e catequese”. Os dois primeiros capítulos tratam de “1 – Os holandeses e a vida na cidade”, “2 – Os holandeses e a vida no campo” e o último capítulo de “5 – Os holandeses em suas relações com os portugueses católicos e os judeus mosaicos”.

Johan Maurits van Nassau, governador-geral do Brasil Holandês durante vários anos – Fonte – https://ernstleeftink.com/

Ele contém lições interessantes sobre nosso ado de escravidão e apartheid. Gostaria de compartilhar um pouco disso.

O Tratamento dos Escravos da África

As plantações de cana-de-açúcar iniciadas pelos portugueses em 1534 não poderiam ter sido estabelecidas sem trabalho escravo. Os primeiros escravos vindos da África já chegaram lá naquela época.

Ao desembarcarem no norte do Brasil em 1630, ainda havia reservas sobre o tráfico de escravos, em parte por causa “da religião praticada nos Países Baixos”. Um dos fundadores da Companhia das Índias Ocidentais em 1621, o empresário Willem Usselincx, que havia fugido de Antuérpia, também rejeitou a escravidão por questões práticas, porque é melhor trabalhar com seu próprio povo do que com escravos relutantes “um homem deste país fará mais trabalho do que três negros que custam muito dinheiro”.

Mapa de Recife em 1665 – Fonte – https://ernstleeftink.com/.

Quando os holandeses conquistaram a colônia portuguesa no Brasil, havia cerca de 500 escravos lá. “A partir daí, os negros serviram como soldados no exército ao lado dos holandeses. (…) Muitos receberam e livre como recompensa por seus serviços leais como guias ou soldados”. Nas “Atas Diárias” de 1637, consta o seguinte: “Esses negros que nos vieram de seus senhores, alguns deles serviram por 4, 5, 6, até 7 anos e nos trataram fielmente (…). Se entregássemos esses negros de volta às mãos de seus senhores amargurados, seríamos bravamente ingratos”.  Às vezes, viúvas e filhos de antigos escravos até recebiam benefícios do governo.

Mas, escreve Gonsalves de Mello, “em 1638 a escravidão dos negros não era mais restringida”. Os holandeses não se sentiam mais sobrecarregados, porque “para atender às necessidades de pessoal da indústria açucareira” e havia poucos colonos da Holanda, eles tiveram que “iniciar a importação de escravos africanos”.

A partir de 1641, quando os holandeses começaram a importar escravos não apenas de Gana, mas também de Angola, milhares foram transportados em condições terríveis. “As taxas de mortalidade entre 20% e 30% entre a tripulação de escravos eram bastante normais”. Eles eram comprados por uma média de 50 florins e vendidos novamente no Novo Mundo “por um preço médio de 200 a 300 florins cada.” Os produtores de cana-de-açúcar cobravam o preço de duas caixas de açúcar por negro.

Olinda na época dos holandeses no Nordeste do Brasil – Fonte – John Ogilby’s atlas America Being the Latest, and Most Accurate Description of the New World, London, 1671, p. 504

Muitos escravos africanos já haviam fugido para as selvas sob o domínio português e estabelecido ali “aldeias de negros do mato”, “o que representava um grande perigo para o campo e perturbava a estabilidade da colônia”. O governo holandês em Recife, então, contratou caçadores de escravos brasileiros que eram bem pagos por cada guerrilheiro que conseguiam capturar.

Ao mesmo tempo, disse Gonsalves de Mello, “os holandeses tratavam seus escravos negros de forma inegavelmente humana”. Pois “muitos holandeses demonstraram sincera amizade por alguns membros de sua comitiva de escravos e apreço por seus serviços leais e dedicação ao trabalho diário. Por exemplo, uma senhora holandesa recusou-se a viajar para a Holanda com seu filho sem a companhia de sua experiente babá negra”. Um membro da Suprema Corte cujo escravo ficou incapacitado por um triste acidente, escreveu aos seus clientes na Holanda sobre “minha extraordinária tristeza porque meu pequeno negro Jacques Guillardt perdeu as duas pernas”.

Há também exemplos de escravos e suas famílias recebendo e livre de seus donos ou do governo, às vezes até para se casar com uma escrava como soldada. Mas, acrescenta Gonsalves de Mello, esse também era o costume entre os proprietários de escravos portugueses e judeus, e eles tinham mais feriados religiosos do que os holandeses, que só davam folga aos seus escravos aos domingos.

Recife no tempo dos holandeses no Nordeste do Brasil – Fonte – Rerum in Brasilia et alibi gestarum by Caspar Barlaeus.

Uma observação notável de Gonsalves de Mello é a seguinte: os holandeses no Brasil lutavam por uma sociedade baseada no apartheid. “Na nossa opinião, esse é um dos aspectos mais antipáticos da colonização holandesa: essa separação quase preventiva entre a classe dominante e a classe dominada”.

Nas décadas de 1930 e 1940, alguns brasileiros relembravam com certa nostalgia aquele “período holandês“, mas “aqueles que ainda hoje lamentam a expulsão dos holandeses do nordeste brasileiro provavelmente não refletiram o suficiente sobre esse aspecto. As modernas colônias holandesas são um exemplo do que poderíamos esperar delas: a exploração e a dominação de um proletariado de cor por uma minoria branca”, em contraste com o que os portugueses nos deixaram: uma nação de brancos confraternizando com negros e índios”.

A Interação Com os Índios da Região

Isso também aparece em seu quarto capítulo, sobre a relação entre os holandeses e os indianos. Antes de os Países Baixos conquistarem Recife e Olinda dos portugueses em 1630, os indígenas dessa região já haviam sido treinados como intérpretes nos Países Baixos. Quando tomaram a região de Pernambuco, os holandeses prometeram que os índios teriam permissão para manter sua liberdade e “não teriam que sofrer nenhuma subjugação”. Os holandeses têm procurado continuamente estabelecer amizades com os índios.

Visão européia sobre os indígenas brasileiros no século XVII. Ritual de canibalismo visto pelo alemão Hans Staden, o barbudo nu a direita na imagem. Vejam como ele se coloca horrorizado diante da cena – Fonte – Wikipedia.com.

Os índios Tupis viviam em aldeias ao longo da costa e os índios Tapuia viviam como um “povo de moradores da floresta“. Os tupis tinham direito ao autogoverno e os tapuias eram completamente independentes. Esse direito à liberdade e, portanto, a proibição da escravidão foi mantida todos esses anos. “Nenhum índio deve ser mantido em cativeiro ou forçado a trabalhar contra sua vontade”. Na prática, a exploração, o abuso e o pagamento insuficiente ocorreram, “mas Johan Maurits, em particular, fez o máximo para erradicar tais abusos”.

Os holandeses também investiram muita energia no cultivo dos índios tupis. Foi introduzido um método completo de ensino e catecismo. Houve até pregadores missionários, como David van Dorsenlaer, que também pregaram em tupi.

E, inversamente, “muitos indianos se tornaram fervorosos seguidores da fé reformada, na verdade, quase completamente teólogos calvinistas com as Escrituras em punho”, entre eles Antônio Paraupaba. Ele chegou à Holanda em 1625, aos 30 anos, retornou ao Brasil de 1630 a 1654, onde se opôs à escravidão de índios e negros, e retornou à Holanda em 1654 com sua esposa e filhos. Ele morreu lá em 1656.

O ADO DA ESCRAVIDÃO HOLANDESA NO NORDESTE DO BRASIL POR VOLTA DE 1630 - COMO A HOLANDA LIDOU COM OS ESCRAVOS AFRICANOS E A POPULAÇÃO INDÍGENA NAQUELA ÉPOCA
Muitas décadas após a expulsão dos holandeses do Brasil, assim o francês Jean Baptiste Debret viu o castigo a um cativo – Fonte – Wikipedia.com

No entanto, os holandeses mantinham tanta distância dos índios quanto dos escravos negros. Por mais cordial que tenha sido a amizade mútua, nunca ocorreu aos holandeses que pudessem estabelecer um relacionamento mais próximo com os indígenas do que uma simples aliança militar. Por exemplo, eles não cogitavam tomar mulheres indígenas como concubinas ou esposas legais. Havia até uma “proibição severa daqui de que ninguém se misturasse com os brasileiros”.

Gonsalves de Mello indica que esta foi uma das razões pelas quais os portugueses acabaram por reconquistar o Recife e seus arredores. A moral calvinista era claramente diferente da moral católica: não havia mistura com pessoas de outras religiões e havia estrita adesão aos princípios bíblicos. Em outras palavras: “Os holandeses não tinham a flexibilidade necessária para (…) conviver com imperfeições e aceitar condições que não seriam toleradas na metrópole. Os portugueses lidaram com tais problemas com muito mais inteligência.” A mesma Igreja Católica “conseguiu lidar com tais impurezas”.

1818 – UM MATRIMÔNIO AFRO-LUSITANO NO SERIDÓ POTIGUAR

AUTOR – Antônio Luís de Medeiros – São João do Sabugi – RN

Se os portugueses discriminavam os índios, muito mais faziam com a raça negra. Então este casamento de um português com uma sua escrava foi um fato raríssimo ocorrido no nosso Seridó há mais de dois séculos.

Nosso saudoso Olavo de Medeiros Filho comentava conosco esse ineditismo. Ele fazia a comparação com o romance Iracema, de José de Alencar, sendo este a miscigenação do português com o índio enquanto o consórcio matrimonial de José Antônio da Costa com Rita Maria, sua ex-escrava seria a união de sangue ibérico com sangue africano.

Ao primeiro dia do mês de julho de mil oitocentos e dezoito, pelas oito horas da noite, nessa Matriz do Seridó, em minha presença e das testemunhas o Reverendo Manoel Teixeira da Fonseca e o Capitão Tomaz de Araújo Pereira, casado, se receberam em matrimônio por palavras de presente José Antônio Costa, europeu, natural de Santarém e Rita Maria, parda, que havia sido sua escrava. Natural da Vila de Icó, Ceará, donde justificam o estado de livre e desimpedidos e igualmente da naturalidade do contraente confinada aos banhos por faculdade do Ilustríssimo Senhor Provedor e Governador do Bispado Manoel Vieira de Lemos aos vinte e seis de maio do corrente ano, como consta dos papéis que ficam emaçados, e declarava o contratante ser filho legitimo de Antônio Pereira de Amorim e de Teresa Maria Maciel, moradores na dita Freguesia de Santarém, de Nossa Senhora das Maravilhas, no Patriarcado de Lisboa, e logo lhe dei as bênçãos  de que para tudo constar fia este assento que com as ditas testemunhas assino.

O Vigr° Francisco de Brito Guerra

                 Pe. Manoel Teixeira da Fonseca – Tomaz de Araújo Pereira

Fonte: 2º Livro de Casamento da Freguesia da Senhora Santana do Seridó, período de 1809/1821, fls. 124 / 125.

Documento de 1818.

Neste modesto trabalho, de poucas linhas, nossa intenção é comentar, superficialmente, a convivência harmoniosa de nossos anteados com seus poucos escravos na região seridoense. Sendo a atividade pastoril a principal fonte de renda da população, poucas posses dos fazendeiros e dificuldade de sobrevivência era grande a desigualdade patrimonial entre a região litorânea e sertaneja nordestinas.

Com as agruras do meio enfrentadas tanto pelo senhor quanto pelos escravos formava-se um sentimento fraterno e mais humano entre ambos. Os escravos casavam religiosamente, moravam em suas casas, com suas esposas e os filhos, iguais aos “moradores livres”. Nunca encontramos resquícios de senzalas no Seridó. Só nos engenhos do brejo e outras regiões distantes. Nas grandes secas seus senhores avam as mesmas privações que eles.

Casa Grande da Fazenda Dinamarca, Serra Negra do Norte – RN. Foto meramente iliustrativa – Fonte – Antônio Luís de Medeiros.

João Paulino, da fazenda Pitombeira, em São João do Sabugi, parecia ter mais escravos que bois. Diziam que ele e seu irmão o Ten. Cel. José Evangelista, da fazenda Ipueira, nunca venderam um só escravo.

Coma libertação da escravatura no Brasil, em 13 de maio de 1888, os antigos escravos permaneceram morando na mesma casa, plantando o mesmo roçado de miunças (ovelhas e cabras), com terreiro de galinhas, porco no chiqueiro e um jumento cargueiro para as suas necessidades.

Contrastando com todas as dificuldades do meio e da época, encontramos a maior fortuna do Seridó do século XIX, em Serra Negra, no inventário de Maria Jesus José da Rocha, pernambucana de Pau D’alho, falecida em 1854, esposa de Manoel Pereira Monteiro (o 3º), pais de Antônio Pereira Monteiro – Cangalha. Só para citar alguns dados: 62 peças em ouro, 41 em prata, 52 escravos, 50 bois mansos, 1.338 vacas paridas, 55 touros, 1.200 bois criados, 136 cavalos, extensas fazendas nas Províncias de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, 18 contos de réis em dinheiro e muitos outros bens.

Esperidião Medeiros com a família, cerca de 1918 a 1920 – Fonte – Antônio Luís de Medeiros.

Em antigas fotografias aparece sempre uma negra fazendo parte da família como mostra o registro acima de Esperidião Medeiros com a sua esposa e seus 12 filhos, possivelmente entre 1918 e 1920.

Quando faleceu a preta Irene, que havia sido sua ama na infância de Manoel Bandeira ele dedicou-lhe o poema, Irene no céu.

Irene Preta.

Irene boa.

Irene sempre de bom humor.

Imagino Irene entrando no céu:

– Licença meu branco!

E São Pedro bonachão:

– Entre, Irene. Você não precisa pedir licença.

Gentilmente após a publicação desse material, recebi no Facebook, de “Literatura do Seridó”, a informação que essa senhora da foto é Aureliana Aurélia de Albuquerque, ou, como era mais conhecida, “Dedé”.Agregada à família, cuja a criançada a consideravam como uma segunda mãe. Nasceu em Caicó no dia 16 de junho de 1876, e faleceu na mesma cidade, no dia 18 de janeiro de 1953, aos 77 anos de idade. E segundo o autor do texto a criança da foto é Aldo Medeiros, que foi casado com Dona Mili, filha do casal Dinarte de Medeiros Mariz e Dona Diva. Aldo e Dona Mili casaram no ano de 1940.

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