1818 – UM MATRIMÔNIO AFRO-LUSITANO NO SERIDÓ POTIGUAR

AUTOR – Antônio Luís de Medeiros – São João do Sabugi – RN

Se os portugueses discriminavam os índios, muito mais faziam com a raça negra. Então este casamento de um português com uma sua escrava foi um fato raríssimo ocorrido no nosso Seridó há mais de dois séculos.

Nosso saudoso Olavo de Medeiros Filho comentava conosco esse ineditismo. Ele fazia a comparação com o romance Iracema, de José de Alencar, sendo este a miscigenação do português com o índio enquanto o consórcio matrimonial de José Antônio da Costa com Rita Maria, sua ex-escrava seria a união de sangue ibérico com sangue africano.

Ao primeiro dia do mês de julho de mil oitocentos e dezoito, pelas oito horas da noite, nessa Matriz do Seridó, em minha presença e das testemunhas o Reverendo Manoel Teixeira da Fonseca e o Capitão Tomaz de Araújo Pereira, casado, se receberam em matrimônio por palavras de presente José Antônio Costa, europeu, natural de Santarém e Rita Maria, parda, que havia sido sua escrava. Natural da Vila de Icó, Ceará, donde justificam o estado de livre e desimpedidos e igualmente da naturalidade do contraente confinada aos banhos por faculdade do Ilustríssimo Senhor Provedor e Governador do Bispado Manoel Vieira de Lemos aos vinte e seis de maio do corrente ano, como consta dos papéis que ficam emaçados, e declarava o contratante ser filho legitimo de Antônio Pereira de Amorim e de Teresa Maria Maciel, moradores na dita Freguesia de Santarém, de Nossa Senhora das Maravilhas, no Patriarcado de Lisboa, e logo lhe dei as bênçãos  de que para tudo constar fia este assento que com as ditas testemunhas assino.

O Vigr° Francisco de Brito Guerra

                 Pe. Manoel Teixeira da Fonseca – Tomaz de Araújo Pereira

Fonte: 2º Livro de Casamento da Freguesia da Senhora Santana do Seridó, período de 1809/1821, fls. 124 / 125.

Documento de 1818.

Neste modesto trabalho, de poucas linhas, nossa intenção é comentar, superficialmente, a convivência harmoniosa de nossos anteados com seus poucos escravos na região seridoense. Sendo a atividade pastoril a principal fonte de renda da população, poucas posses dos fazendeiros e dificuldade de sobrevivência era grande a desigualdade patrimonial entre a região litorânea e sertaneja nordestinas.

Com as agruras do meio enfrentadas tanto pelo senhor quanto pelos escravos formava-se um sentimento fraterno e mais humano entre ambos. Os escravos casavam religiosamente, moravam em suas casas, com suas esposas e os filhos, iguais aos “moradores livres”. Nunca encontramos resquícios de senzalas no Seridó. Só nos engenhos do brejo e outras regiões distantes. Nas grandes secas seus senhores avam as mesmas privações que eles.

Casa Grande da Fazenda Dinamarca, Serra Negra do Norte – RN. Foto meramente iliustrativa – Fonte – Antônio Luís de Medeiros.

João Paulino, da fazenda Pitombeira, em São João do Sabugi, parecia ter mais escravos que bois. Diziam que ele e seu irmão o Ten. Cel. José Evangelista, da fazenda Ipueira, nunca venderam um só escravo.

Coma libertação da escravatura no Brasil, em 13 de maio de 1888, os antigos escravos permaneceram morando na mesma casa, plantando o mesmo roçado de miunças (ovelhas e cabras), com terreiro de galinhas, porco no chiqueiro e um jumento cargueiro para as suas necessidades.

Contrastando com todas as dificuldades do meio e da época, encontramos a maior fortuna do Seridó do século XIX, em Serra Negra, no inventário de Maria Jesus José da Rocha, pernambucana de Pau D’alho, falecida em 1854, esposa de Manoel Pereira Monteiro (o 3º), pais de Antônio Pereira Monteiro – Cangalha. Só para citar alguns dados: 62 peças em ouro, 41 em prata, 52 escravos, 50 bois mansos, 1.338 vacas paridas, 55 touros, 1.200 bois criados, 136 cavalos, extensas fazendas nas Províncias de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, 18 contos de réis em dinheiro e muitos outros bens.

Esperidião Medeiros com a família, cerca de 1918 a 1920 – Fonte – Antônio Luís de Medeiros.

Em antigas fotografias aparece sempre uma negra fazendo parte da família como mostra o registro acima de Esperidião Medeiros com a sua esposa e seus 12 filhos, possivelmente entre 1918 e 1920.

Quando faleceu a preta Irene, que havia sido sua ama na infância de Manoel Bandeira ele dedicou-lhe o poema, Irene no céu.

Irene Preta.

Irene boa.

Irene sempre de bom humor.

Imagino Irene entrando no céu:

– Licença meu branco!

E São Pedro bonachão:

– Entre, Irene. Você não precisa pedir licença.

Gentilmente após a publicação desse material, recebi no Facebook, de “Literatura do Seridó”, a informação que essa senhora da foto é Aureliana Aurélia de Albuquerque, ou, como era mais conhecida, “Dedé”.Agregada à família, cuja a criançada a consideravam como uma segunda mãe. Nasceu em Caicó no dia 16 de junho de 1876, e faleceu na mesma cidade, no dia 18 de janeiro de 1953, aos 77 anos de idade. E segundo o autor do texto a criança da foto é Aldo Medeiros, que foi casado com Dona Mili, filha do casal Dinarte de Medeiros Mariz e Dona Diva. Aldo e Dona Mili casaram no ano de 1940.

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PAULO – O ÚLTIMO ESCRAVO AFRICANO EM NATAL

Aparentemente Desembarcou no Brasil em 1855, no Último Carregamento de Escravos Vindo da África – Marcou Época em Natal Por Tocar Zambê e Ser “Feiticeiro” – Foi Batizado como Paulo José de Oliveira e Morreu em 1905

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Nos primórdios do Brasil existiu por aqui uma curiosa sociedade, que foi resumida dessa maneira – “Formou-se na América tropical uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na técnica de exploração econômica, híbrida de índio – e mais tarde de negro – na composição”. Uma sociedade que marcou fortemente a formação do povo brasileiro e que foi tão brilhantemente descrita na obra “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre.[1]

Quem detinha o poder nessa sociedade era riquíssimo e vivia na opulência. Habitavam em belas casas grandes construídas de pedra, barro e cal. Eram cobertas de palha ou telhas, com varandas nas laterais, telhados inclinados para dar proteção contra chuvas tropicais e o calor do sol, sendo esses lugares ao mesmo tempo “fortaleza, banco, cemitério, hospedaria, escola, santa casa de misericórdia amparando os velhos e as viúvas, recolhendo órfãos”.[2]

Quadro do holandês Frans Post intitulado “Engenho de Pernambuco”.

Os homens e mulheres que criaram este primeiro grande boom do açúcar no mundo viveram muito bem. Muitas histórias são contadas sobre a opulência dos fazendeiros daquele Brasil antigo.

Suas mesas eram carregadas de prata e porcelana fina comprada de capitães de barcos a vela em seu caminho de volta do Oriente. Diziam que as portas de suas casas tinham “fechaduras de ouro”[3], que suas mulheres usavam enormes pedras preciosas em prendedores de cabelos, que músicos animaram os banquetes, que suas camas eram cobertas de tecido de damasco produzidos na Itália e um exército de serviçais negros estavam sempre pairando ao redor para satisfazer todos os seus desejos.

E esses lacaios satisfaziam de verdade essa gente em tudo e por tudo que desejassem. Pois se assim não fizessem iam para o chicote, para o açoite no tronco, presos a dolorosos grilhões e padecendo de uma morte sofrida e aterradora.

Engenho de Itamaracá, de Frans Post para mapa de Gaspar Barlaeus, 1647 – Fonte – https://ensinarhistoria.com.br/para_colorir_engenho_frans_post/ – Blog: Ensinar História – Joelza Ester Domingues

A fortuna aproveitada pelos donos dos engenhos de cana repousava sobre o açúcar e o açúcar sobre a escravidão africana. Onde seus “donos” massacraram esses cativos, usando e abusando do seu suor, do seu sangue e de suas vidas, na mais nefasta página da História do Brasil. Os africanos que vieram para essa parte do mundo eram tratados como meros animais de carga, bichos brutos e, situação pior, as mulheres serviam para todos os tipos de taras dos seus senhores.

E tudo indica que no ano de 1905 faleceu em Natal um homem que viveu todas as agruras desse flagelo, que aqui ficou conhecido como Paulo Africano e que, segundo Câmara Cascudo seria o “último africano legítimo”, o último cativo vindo da África a falecer na capital do Rio Grande do Norte.

Essa é a sua história!

Poucos Escravos

Em 1937 Luís da Câmara Cascudo já era considerado o intelectual maior da terra potiguar e o que ele escrevia, apesar do seu provincianismo militante, já repercutia no Rio de Janeiro, onde se concentrava o poder do país e os principais jornais e rádios da nação.

Família brasileira na época da colônia e império.

No dia 12 de junho daquele ano, o jornal carioca Diário de Notícias publicou o texto intitulado “O povo do Rio Grande do Norte” (pág. 28), de autoria de Cascudo, onde ele comenta sobre a formação do povo potiguar. Para o autor o escravo negro já estava no Rio Grande do Norte desde 9 de janeiro de 1600, onde trabalhavam em benfeitorias e vinham da Guiné. Comentou também que o número de escravos “nunca foi avultado, nem mesmo na sua relação da pequena população branca”. Tanto que em “1808 eram 1.127 pretos, para 1.956 brancos em Natal”. Para Cascudo o 13 de maio de 1888 “não encontrou senão uns trezentos e poucos”.

O texto informava que os escravos que viviam em terras potiguares eram procedentes do “Sudão, angolas, congos, banguelas (SIC), trazidos de Pernambuco que os importava”. Para Cascudo o Rio Grande do Norte era uma “terra de parcos capitaes, não teve negreiros e nem commercio. Era apenas um mercado, um pequeno mercado consumidor”.

O jornal carioca Diário de Notícias, 12 de junho de 1937.

Cascudo então comenta, através de informações transmitidas por Francisco Artemio Coelho, que faleceu em 1945, que “O último africano puro que morreu em Natal, Paulo Africano, morador da rua do Camboim, mestre de zambê e feiticeiro, fallecido a 24 de abril de 1905”. Tempos depois o Mestre Cascudo vai descobrir que essa data estava errada.

Coelho informou também que Paulo Africano “dizia ter desembarcado numa praia e levado para Sirinhaém”, atualmente um município autônomo próximo ao litoral de Pernambuco, ao sul de Recife.

E é nesse ponto de sua afirmação, que Câmara Cascudo nos aponta uma possível ligação do momento da chegada de Paulo Africano ao Brasil.

O Terrível Tráfico

A justificativa das potências marítimas europeias para trazer africanos negros à força para trabalhar como animais, foi motivada pela necessidade econômica, pois nos séculos XVI e XVII as suas possessões no Novo Mundo eram os locais mais importantes para a criação de divisas e riquezas.

Comércio de escravos no Cais do Valongo, porto do Rio de Janeiro.

No século XVI os africanos eram comprados na região subsaariana e enviados em barcos de propriedade de europeus, mas estes não estavam diretamente envolvidos na captura dos escravos, ou no comércio interafricano de cativos. Para os brancos europeus bastava suprir a crescente demanda de escravos para as plantações nas colônias no Novo Mundo.

Aqueles que capturavam os escravos eram em sua maioria africanos negros, que conseguiam as suas “peças” em conflitos étnicos e tribais, ou mesmo em guerras de maior escala. Não era incomum trocar cativos com outras tribos. Daí não houve maiores dificuldades em vendê-los para os brancos no litoral.

Por volta de 1550, os portugueses começaram a enviar vários povos africanos como os bantos de Angola, Moçambique e Congo; Yorubá, Ewe, Mandinga do Sudão e da África Ocidental. Ao longo dos próximos 300 anos, mais de quatro milhões de africanos seguiram de maneira forçada para o Brasil. Esse tipo de negócio foi considerado um dos mais lucrativos do reino português.

Como os cativos seguiam a bordo de barco negreiro.

As condições a bordo dos navios de transporte de escravos, ou navios negreiros, como ficaram conhecidas as naves que transportaram esse verdadeiro “gado humano”, eram terríveis. Acorrentados e deitados juntos, os escravos tiveram que dormir sobre suas próprias fezes durante toda a travessia, que podia demorar semanas. A mortalidade a bordo era muito alta, mas as perdas resultantes pareciam aos traficantes de escravos menores do que os custos que teriam acarretado condições de transporte menos desumanas. 

70% dos escravos no Novo Mundo estavam empregados no cultivo de cana-de-açúcar e, ao longo do tempo, outros tiveram que trabalhar nas colheitas de café, algodão, tabaco e na atividade de mineração. Os produtos obtidos do trabalho servil eram então enviados para a Europa e os barcos retornavam com produtos processados das metrópoles, ou novas levas de escravos da África.

Representação do desembarque de escravos.

Naqueles primeiros anos da colonização portuguesa no Brasil, a região que mais lucrou com a plantação de cana-de-açúcar e a que foi a principal “anfitriã” de milhares e milhares de escravos africanos foi o que hoje é o nosso ensolarado Nordeste. E por aqui as duas capitanias, hoje estados, que mais receberam cativos foram a Bahia e Pernambuco.

Joseph Cliffe descreveu que quando os escravos chegavam ao Rio, ou à Bahia, se encontravam tão fracos que mal conseguiam andar e tinham de ser retirados dos barcos. Depois eles eram mantidos em barracões e ali alimentados, engordados e bem tratados antes da venda. Às vezes eles eram mantidos até seis meses nesses acampamentos antes de serem vendidos[4].

Quadro de Rugendas mostrando habitação de escravos – Fonte – http://www.joseferreira.com.br/

Pode parecer até uma redundância, ou ironia, mas também ocorreram nesses barcos vários massacres e crimes em massa contra os escravos, como o chamado “Massacre do barco Zong”. Em 1781 este transporte negreiro britânico teve dificuldades na navegação e acabou desviando do curso na região do Caribe. Como foram ficando sem mantimentos e água, a tripulação simplesmente jogou no mar cerca de 130 a 150 africanos. Inicialmente os fatos ocorridos no Zong não tiveram o mínimo eco no público britânico. Mas no médio prazo o caso começou a ser debatido e amplamente comentado, desenvolvendo um papel interessante na ascensão do abolicionismo naquele país. O caso do Zong então se tornou um símbolo da crueldade da escravidão. 59 anos depois da tragédia, William Turner, um dos percursores do modernismo na pintura, retratou o incidente em seu quadro The Slave Ship, que se tornou um símbolo da causa abolicionista.

Quadro de The Slave Ship, do inglês William Turner, um dos percursores do modernismo na pintura e se tornou um símbolo da causa abolicionista. Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/The_Slave_Ship.

Abolicionismo e Pressão Britânica

Os opositores do tráfico de escravos se reuniram na Inglaterra desde 1787, onde fundaram uma sociedade para abolir a escravidão e foram chamados de abolicionistas. O movimento foi politicamente apoiado por William Wilberforce, que repetidamente levou a abolição do tráfico de escravos à votação na Câmara dos Comuns. Wilberforce foi o pivô do que ficou conhecido como a “Seita Clapham”, um grupo de membros politicamente influentes da Igreja da Inglaterra, fundado pelo ex-capitão de navio negreiro e mais tarde ministro John Newton. Os chamados “Santos de Clapham” tornaram sua principal tarefa abolir todas as formas de escravidão e seu comércio.[5]

A Revolução sa de 1789 ajudou a difundir ideias sobre direitos humanos e liberdades civis. As Guerras Revolucionárias sas (1792–1797), as Guerras Napoleônicas (até 1815) e a ocupação de algumas áreas pelas tropas sas, difundiram essas ideias para partes da Europa e além.

Símbolo da British Anti-Slavery Society (1795)

Depois que os britânicos encerraram seu próprio comércio de escravos com o “Slave Trade Act” de 24 de fevereiro de 1807, eles tiveram de obrigar outros povos a fazerem o mesmo, caso contrário as colônias britânicas teriam uma desvantagem competitiva em comparação com as de outras nações. Por exemplo, sob pressão britânica no Congresso de Viena em 1814 e 15, a escravidão foi proibida no artigo 118 da Lei do Congresso. Os Estados Unidos proibiram o comércio ao mesmo tempo que a Grã-Bretanha, assim como a Dinamarca.[6] Outros países como a Suécia aboliram a escravidão logo em seguida, assim como os Países Baixos, que nessa época era a terceira maior potência colonial, atrás apenas da Grã-Bretanha e da França.

Para a França, derrotada pelos britânicos nas guerras napoleônicas, não apenas foi exigido a proibição do comércio de escravos, mas também o policiamento dessa proibição. A Marinha Real Britânica, a Royal Navy, ou a inspecionar e apreender todos os navios suspeitos que transportavam escravos, ou eram equipados para tais fins, até que em 1815 a França concordou formalmente em proibir o comércio de escravos. Mas vale frisar que, mesmo com essas ações de repressão, esse nefasto comércio só parou completamente na França em 1848.

A busca de escravos fugitivos foi um grande negócio para os rastejadores no período da escravatura no Brasil.

Portugal e Espanha, antigas aliadas em dívida com a Grã-Bretanha após as Guerras Napoleônicas, só gradualmente concordaram em acabar com o comércio de escravos e após grandes pagamentos. Em 1853, o governo britânico pagou a Portugal mais de 3 milhões de libras e à Espanha mais de 1 milhão de libras para acabar com esse nefasto comércio.

E no Brasil, como foi?

Encarando o Império Britânico

O Brasil, independente de Portugal em 1822, não concordou em parar o tráfico de escravos. Além de lucrativo, ao longo de décadas a escravidão criou um fator que ampliou essa “desobediência” brasileira aos britânicos – a dependência dos escravos para quase tudo que significava trabalho.

Em 1850 a maioria dos brasileiros que tinham posses possuíam cativos. Fossem eles grandes latifundiários no campo, ou pequenos comerciantes das cidades, funcionários públicos de alto ou baixo escalão, indo até artífices, o elemento negro predominava nos afazeres diários dessa gente. Igualmente seus ancestrais utilizaram escravos ao longo de trezentos anos. Então, não é nenhuma surpresa que esse pessoal observasse a instituição da escravidão como algo normal, como parte da ordem natural das coisas e sua dependência em relação aos cativos era enorme.

Gilberto Freyre mostra claramente em “Casa Grande e Senzala” um exemplo do que essa dependência criou no Brasil – “a vida do senhor de engenho tornou-se uma vida de rede. Rede parada, com o senhor descansando, dormindo, cochilando. Rede andando, com o senhor em viagem ou a eio debaixo de tapetes ou cortinas. Rede rangendo, com o senhor copulando dentro dela. Da rede não precisava afastar-se o escravocrata para dar suas ordens aos negros; mandar escrever suas cartas pelo caixeiro ou pelo capelão; jogar gamão com algum parente ou compadre. De rede viajavam quase todos – sem ânimo para montar a cavalo: deixando-se tirar de dentro de casa como geléia por uma colher. Depois do almoço, ou do jantar, era na rede que eles faziam longamente o quilo – palitando os dentes, fumando charuto, cuspindo no chão, arrotando alto, peidando, deixando-se abanar, agradar e catar piolho pelas molequinhas, coçando os pés ou a genitália; uns coçando-se por vícios; outros por doença venérea ou da pele”[7].

Escravos sendo surrados no Brasil, em pintura de Debret.

E quanto poderia ser lucrativo participar do tráfico de escravos?

Segundo o autor Hugh Thomas, entre outubro de 1846 e setembro 1848, o iate Andorinha, de oitenta toneladas, pertencente a Joaquim Pereira Marinho, fez uma série de oito viagens, trazendo quase 4.000 escravos e ganhando cerca de £40.000 (quarenta mil libras esterlinas), o que tornou seu proprietário milionário. Para se ter uma ideia do que naquele tempo poderia significar essa dinheirama, o Reino da Dinamarca vendeu aos britânicos cinco assentamentos territoriais, com seus postos de comércio e fortes, todos localizados na Costa do Ouro, atual região de Gana, África. Em 31 de dezembro de 1849, foi assinado um tratado entregando a área e suas benfeitorias por “apenas” £10.000 (dez mil libras esterlinas). A venda também incluiu os canhões dos fortes.[8]

Diante da “desobediência”, a Grã-Bretanha partiu então para um endurecimento diplomático contra o Brasil.

Fragata britânica.

Em 9 de agosto de 1845 foi criada a Lei Aberdeen, proposta pelo secretário de relações exteriores britânico Lord Aberdeen, que deu à Royal Navy autoridade para parar e revistar em alto mar qualquer navio brasileiro suspeito de ser um transportador negreiro e prender os traficantes de escravos. A Lei Aberdeen também estipulava que os comerciantes brasileiros presos poderiam ser julgados em tribunais britânicos. A lei foi projetada para suprimir o tráfico de escravos no Brasil, para tornar efetivas as leis brasileiras e a implementação do Tratado Britânico-Brasileiro de 1826, que tinha como objetivo acabar com o tráfico de escravos no Oceano Atlântico. O Império do Brasil havia assinado e ratificado esse acordo, mas não cumpriu.

Essa ação repressora provocou indignação entre os brasileiros, onde foi vista como uma violação do livre mercado, da liberdade de navegação, como uma afronta à soberania e integridade territorial do país, além de uma tentativa de impedir a ascensão do Brasil como potência mundial.

Escravos brasileiros chamavam muito a atenção dos estrangeiros que visitavam o país e era comum serem reproduzidos em pinturas.

Os membros do Parlamento no Rio de Janeiro debateram o assunto e praticamente todos foram contra a forma arrogante com que a Grã-Bretanha havia imposto suas leis ao Brasil e abominavam a ideia de ação britânica perto do nosso litoral. Até Joaquim Nabuco, que estava se tornando líder do movimento antiescravista brasileiro, descreveu o novo projeto de Lei Aberdeen como “um insulto à nossa dignidade como pessoas.” [9]

Independente dessas questões, a Royal Navy começou a interceptar traficantes de escravos brasileiros em alto mar e eles foram processados ​​nos tribunais do almirantado britânico, principalmente na Ilha de Santa Helena, uma pequena massa de terra vulcânica no meio do Atlântico. Apesar da aplicação agressiva dessa lei, o volume do tráfico brasileiro de escravos aumentou no final da década de 1840 e as tensões continuaram crescendo constantemente.

Foto de uma corveta britânica, semelhante a HMS Cormorant, que trocou tiros de canhão com a Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres, em Paranaguá, Paraná, em 1850.

Um punhado de navios de guerra britânicos começou a entrar em águas territoriais brasileiras para atacar barcos negreiros, até mesmo em nossos portos. Em junho de 1850 a nave de guerra britânica HMS Cormorant, após apreender três embarcações brasileiras na Baía de Paranaguá, no Paraná, trocou tiros de canhão com os artilheiros da Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres e o barco inglês foi atingido. Houve um morto e dois feridos entre os estrangeiros e duas das naves apreendidas foram destruídas.[10]

Diante dessas tensões, o Brasil sabia que não podia se dar ao luxo de entrar em guerra aberta e total contra a Grã-Bretanha. Além disso, crescia o sentimento popular contra o tráfico de escravos no Brasil. Diante da situação, o governo imperial brasileiro decidiu então acabar com esse negócio. 

Um projeto de lei sobre o tema foi aprovado na Câmara de Deputados, no Rio de Janeiro, em 17 de julho de 1850. Foi aceito pelo Senado e Dom Pedro II assinou. Consta que o rei deu a canetada com grande satisfação e em 4 de setembro o projeto se tornou lei.[11] Doravante, os navios negreiros brasileiros estavam sujeitos a apreensão, a importação de escravos para o Brasil foi declarada pirataria, todas as embarcações capturadas deveriam ser vendidas, e os rendimentos deveriam ser divididos entre os captores e informantes. Pela primeira vez essa nova legislação levou a uma verdadeira transformação.

E é nesse ponto da história que provavelmente Paulo Africano veio parar no Brasil.

O Navio Negreiro das Crianças

Apesar do aperto contra os traficantes de carne humana, eles continuaram a operar clandestinamente pelos lucros envolvidos. Entretanto, ninguém ficaria indiferente à possibilidade de prisão e, mais importante, aos cerca de 40 canhões que naquela época normalmente equipavam uma fragata britânica.

Escravos conduzindo Carro de Boi em Sirinhaém. Pernambuco, pintura de Frans Post, 1638.

O negócio então era utilizar de mil e um artifícios para enganar a Royal Navy ao chegar ao Brasil, sobre onde a sua carga seria desembarcada, fazendo uso inclusive de pequenos barcos que poderiam levar os escravos e entregá-los ao longo da costa brasileira.

Não sei com detalhes quantos transportes negreiros conseguiram ar pelas naves de guerra da Royal Navy e nem quantos foram apreendidos. Mas sei quando aconteceu o último desembarque de africanos cativos no Brasil, onde um dos que estavam a bordo poderia ser Paulo Africano.

Na noite de 11 de outubro de 1855, um homem desconhecido apareceu no Engenho Trapiche, região de Sirinhaém. Ele se apresentou como Augusto Cezar de Mesquita, informou que era o capitão de um pequeno barco a vela do tipo Palhabote e que havia chegado no dia anterior de Angola. Sua nave estava ancorada na ilha de Santo Aleixo, defronte a barra do rio Sirinhaém, a cerca de seis quilômetros de distância do engenho. Mesquita explicou que trazia uma carga de africanos, cerca de 200 a 250 seres humanos, sendo umas 30 mulheres e o resto jovens e crianças…

O Engenho Trapiche pertencia ao Coronel Gaspar Menezes de Vasconcellos Drummond, rico proprietário, figura muito poderosa na política pernambucana da época e que depois afirmou que até estava doente no momento do encontro com o tal Mesquita.

Consta que Drummond recusou a carga de cativos, mas alegou que não tinha gente armada para prender a tripulação. Enquanto esperava ajuda, a tripulação fugiu e dezenas de africanos foram levados pelos contratantes do barco, o coronel João Manoel de Barros Wanderley Lins e José Francisco de Accioli Lins, conhecido por “Cazumba”, proprietário de um engenho na região. O Coronel Drummond apreendeu os 165 africanos que ainda estavam na praia, onde o barco estava fundeado. Logo as autoridades começaram a chegar.

O caso gerou problemas para o Brasil junto aos britânicos, foi debatido no parlamento brasileiro, gerou polêmicas em Pernambuco e foi parar na justiça. Inclusive o próprio Coronel Drummond escreveu um opúsculo sobre o caso, denominado “Breve exposição acerca dos factos occorridos antes e depois da apprehensão dos africanos, effectuadas na barra de Serinhãem em Outubro de 1855”.

Palhabote dos pilotos da Barra do Tejo com Farol do Bugio, pintura de V. Armand, 1908 – Fonte – https://pt.wikipedia.org/

Sabemos que alguns dos participantes dessa situação em Sirinhaém foram julgados e condenados, inclusive os de sobrenome nobre. Mas estes apelaram à justiça pernambucana da época e, tal como acontece agora, rapidamente todos foram absolvidos pela nobreza togada. A alegação foi falta de provas. Outro detalhe – O Dr. Manoel de Barros Wanderley Lins, Suplente de Juiz municipal dos termos de Sirinhaém e Rio Formoso, era irmão do coronel João Manoel de Barros Wanderley Lins.[12]

No final das contas a confusão toda só começou porque Mesquita foi mal orientado, aportou no lugar errado e foi atrás de quem não devia. Se o capitão tivesse sido bem orientado, acertado o local do desembarque e encontrado os destinatários corretamente, jamais saberíamos sobre esse desembarque.

Aparentemente o tal barco do tipo Palhabote que chegou à praia perto do Engenho Trapiche era algo tão medíocre, que nem sei se tinha um nome, pois nada ficou registrado. Sabemos que esse tipo de embarcação era um veleiro de dois, ou no máximo três mastros, tinham dimensões que iam de 30 a 80 metros de comprimento e uns 8 a 10 metros de largura. Eram normalmente estreitos na parte traseira (popa) e largos na frente (proa), sendo muito rápidos e associados a uma grande manobrabilidade. Eram conhecidos entre os britânicos como “Pilot boat” (barco do piloto) e eram utilizados principalmente na navegação de cabotagem.

Entretanto, não podemos deixar de perceber uma terrível particularidade em relação a esse caso, que me incomodou de verdade ao ler esses relatos – o tal Mesquita e seus asseclas verdadeiramente “socaram” entre 200 a 250 pessoas naquela pequena embarcação. Por essa razão não é de se estranhar que ele trouxe da África basicamente jovens e crianças, pois assim cabiam mais “peças” para serem vendidas em Pernambuco.

Mas enfim, Paulo Africano estava a bordo desse Palhabote de Sirinhaém?

Escravo africano no Brasil na década de 1890.

Sem maiores dados fica difícil corroborar essa questão. Mas se é verdadeira a informação que ele transmitiu aos seus contemporâneos em relação a sua chegada ao Brasil, que foi depois retransmitida a Câmara Cascudo, então na data do seu falecimento fazia quase 50 anos que havia acontecido o desembarque em Sirinhaém.

Vamos apenas imaginar que muitos daqueles jovens e crianças que desembarcaram do Palhabote tivessem uma média de oito a dezessete anos de idade, então é inteiramente plausível que Paulo Africano estivesse a bordo e, mesmo com todas as agruras da escravidão, tenha falecido em Natal 60 anos depois.

O problema sobre isso é que, conforme o leitor poderá ler mais adiante, ele não tinha a menor ideia da data do seu nascimento.

A vida de Paulo Africano, ou Paulo José de Oliveira, em Natal

Nada sabemos sobre o andamento de sua vida até o fim da escravidão. Tampouco temos dados de como e porque ele veio parar na capital potiguar. Mas uma coisa é certa – a sua agem por aqui não ficou sem registros.

A informação mais antiga que encontrei sobre Paulo Africano também foi escrita por Luís da Câmara Cascudo. É um texto existente no extinto Diário de Natal, sobre a vida de um francês chamado Vitor Lafosse, que viveu na capital potiguar entre o final do século XIX e início do XX e morou na Rua Camboim, atual Rua Professor Fontes Galvão, a mesma que se inicia defronte ao portão principal do Colégio Marista, no bairro do Tirol.

Atual Rua Professor Fontes Galvão, antiga Rua Camboim – Fonte – Google Street View.

Foi através das informações de Francisco Artêmio Coelho, que Cascudo soube que o francês morava nessa rua em 1882 e que teria sido o primeiro habitante do logradouro. Mas o próprio Cascudo contesta a informação de Coelho e afirma que “Antes disso, porém, lá residia Paulo Africano”.[13] Cascudo não aponta a fonte dessa informação e nem uma data de quando Paulo ou a morar nesse setor de Natal.

Existem outras informações sobre Paulo Africano e elas são notícias relacionadas ao Coco de Zambê, a prática de rituais religiosos de matriz africana e a atenção que a polícia de Natal tinha com Paulo Africano e suas atividades.

Ele foi preso por um dos subdelegados da cidade em dezembro de 1897, por “ofensas à moral pública”. No mesmo dia foi posto em liberdade junto com um cidadão de nome Luiz Cândido de Mello, este detido por embriaguez. A notícia de sua prisão não explica o que foram essas ofensas, mas na foto abaixo é possível ler e compreender o que para a justiça potiguar daquela época significava essas “ofensas à moral pública”.[14]

Em abril de 1902 Paulo Africano volta a se encontrar com a polícia e a justiça. Ele foi preso pelo subdelegado da Cidade Alta por “embriaguez e distúrbios”, junto com outros sete homens. Tal como na prisão anterior, a nota do jornal nada explica sobre a detenção e todos foram soltos no dia seguinte à prisão.

No ano seguinte uma nova detenção, dessa vez com muito mais detalhes.

O jornal A República da época, órgão oficial do governo estadual, que neste período estava nas mãos de Alberto Frederico de Albuquerque Maranhão, informou que na área da Praça Pedro Velho, então muito maior e mais aberta do que conhecemos atualmente, aconteceu um “samba”. Na edição de 8 de julho de 1903 deste jornal, uma quarta feira, sabemos que o evento ocorreu em um “casebre em ruínas”, que era “uma ameaça à segurança e higiene públicas” e que o evento ocorreu “sábado, até a manhã do dia 3 de julho”, quando uma “súcia de vadios”, promoveram um “samba” com “gritos infernais”. Afirma a nota que o problema não era novo e o local era utilizado para “Práticas imorais”.

Uma coisa é certa, o termo “Samba” utilizado pelo jornal, não tinha nenhuma relação direta com o ritmo musical que tanto sucesso faz no carnaval do Rio de Janeiro. Nessa época esse termo era muito comum nas páginas deste periódico. Era como normalmente a elite natalense designava um lugar onde pessoas pobres e negras se divertiam na provinciana Natal do início do século XX. O tal “Samba” seria um baile de gente simples, equivalente a uma função, um pagode, um arrasta-pé, ou um forrobodó.

A próxima notícia, infelizmente, foi a morte de Paulo Africano. Entretanto a nota do seu falecimento é o texto mais completa sobre a vida desse antigo escravo e conta interessantes detalhes. Trago a transcrição na íntegra, conforme foi noticiado no jornal A República, edição de 15 de abril de 1905, página dois.

PAULO AFRICANO – Todos os habitantes desta capital, mesmo os mais velhos, conhecem por lhes haver feito as delícias do tempo de infancia, em que a meninada costumava andar à solta, o célebre Zambê, ou Puita dos campos do Camboim, que, um pouco decadente mas sempre feroz, veiu atravessando as edades até a epoca actual, apezar das advertencias da policia e dos protestos da visinhança que não apreciava aquellas matraqueações.

Como quer que seja, o Zambê de Mestre Paulo era uma das notas curiosas desta capital, Não só pela gravidade com que rangia a puita e o ardor do sapateado, como pela figura interessante do Mestre Paulo, africano, cuja edade nem elle sabia. Tinha por profissão pescador, respeitado e cortez, porém valente como as próprias armas.

Mestre Paulo era um bom chefe de família e identificou-se tanto com seu Zambê, a ponto de fazer delle uma espécie de religião. Não compreendia a vida sem o Zambê. E de seu natural valente, nada subserviente, tinha posturas humilhantes, a sua voz subia toda sua gamma de supplica, quando o ameaçavam de impedir seu divertimento.

Ao tocar puita, e a sapatear no solo zambêou a vida – durante 60, 70, 80, 90 annos, um seculo quem sabe? – até que no dia 12 do corrente, sereno e calmo como um justo, ou desta à melhor vida, vencido e derrotado no seu unico e terrivel combate com a morte.

Escravos brasileiros tocando tambores.

É muito interessante ler no mesmo jornal oficialista, que várias vezes noticiou Paulo Africano como um “perturbador da ordem pública”, uma interessante coluna à guisa de seu necrológico. Isso em um tempo onde nesse jornal era muito raro se escrever algo mais substancioso sobre um homem pobre e negro, que “Não compreendia a vida sem o Zambê”.

Luís da Câmara Cascudo em seu livro “Meleagro – Pesquisa do Catimbó e notas da magia branca no Brasil” (2ª Edição, Editora Agir, Rio de Janeiro, 1978, pág. 91 e 92), complementou esse texto informando que as danças promovidas por Paulo Africano quase sempre ocorriam no sábado, onde o Mestre “roncava a puíta a noite inteira”. A puíta é um instrumento musical de origem africana, feito de um tronco ou cilindro oco, tapado por uma pele num dos lados.

Marcas de açoites em escravo.

Nessas mesmas páginas, Cascudo também registrou sobre as danças promovidas por Paulo Africano – “Mas dançava quem queria dançar, ricos e pobres, gente do comércio, estudantes, soldados, empregados públicos, brancos, pretos e cinzentos. Ninguém esqueceu, quarenta anos depois, o zambê de Mestre Paulo”.[15] 

Já no livro “O Ritual Umbandista”, de autoria de Renato Sérgio Santiago de Melo e publicado em 1973, encontramos uma interessante informação. Segundo o autor, através de informações conseguidas com a neta de Paulo Africano, Alzira de Oliveira, encontrada pelo pesquisador no início da década de 1970 e vivendo no Bairro de Lagoa Seca, seu avô tinha uma casa onde se dançava o mais puro Coco de Zambê. O seu nome cristão era Paulo José de Oliveira, sendo considerado “bem quisto” e “bom pai de família”. O livro afirma que Paulo Africano havia se identificado tanto com o Coco de Zambê, a ponto de fazer desta manifestação cultural “uma espécie de religião”.

Sérgio Santiago informa que seu próprio sogro, Lupicínio Ramos, morador do Bairro da Ribeira, fazia questão de ir com alguns amigos, sempre aos sábados, para assistir o Zambê que acontecia na casa de Mestre Paulo.

Apesar do Coco de Zambê apresentado na casa de Paulo Africano ser tido pela sociedade local como uma festa, para esse autor ele era na verdade uma manifestação do sincretismo afro-brasileiro, distorcida pela ação policial que existia. Para o autor de “O Ritual Umbandista”, o Coco de Zambê era uma dança africana de significação religiosa. Esta tese foi originalmente proposta pelo médico alagoano e antropólogo Arthur Ramos de Araújo Pereira.

NOTAS


[1] FREYRE, Gilberto Casa-Grande e Senzala. 48ª Edição, São Paulo: Global Editora, 2003. Pág. 55.

[2] FREYRE, Gilberto Casa-Grande e Senzala. 48ª Edição, São Paulo: Global Editora, 2003. Pág. 33.

[3] FREYRE, Gilberto Casa-Grande e Senzala. 48ª Edição, São Paulo: Global Editora, 2003. Pág. 315. 

[4] Depoimento de Joseph Cliffe. In CONRAD, Robert. Children of God’s Fire: A Documentary History of Black Slavery in Brazil. Princeton, Princeton University Press, 1983, p. 34.

[5] Como é de conhecimento geral, na Grã-Bretanha existe a Câmara dos Comuns, como eles chamam a câmara baixa do parlamento, que, se não me engano, equivale no Brasil a nossa Câmara dos Deputados. Essa instituição parlamentar possui um site muito interessante, onde estão digitalizadas e transcritas milhares de páginas da atuação dos seus membros, dos debates e ação das comissões ali criadas, entre os anos de 1803 até 2005 (https://api.parliament.uk/historic-hansard/index.html). Esse material mostra através dos muitos debates sobre a questão da escravidão, do tráfico de escravos e da atuação da Royal Navy na repressão ao comércio humano entre a África e o Brasil, detalhes interessantíssimos sobre esse tema.

[6] Um naufrágio encontrado no início de 2019 no Rio Mobile, Alabama, Estados Unidos, mostrou que era a escuna Clotilda, que afundou em 1860. Naquela época, 110 mulheres, homens e crianças foram trazidos ilegalmente para Mobile em um veleiro desde Benin, na África Ocidental. Para encobrir o crime, o navio foi incendiado e, assim, afundado. A descoberta prova que o comércio de escravos continuou nos Estados Unidos após a proibição e fez surgir um extenso mercado negro de escravos que durou anos. 

[7] FREYRE, Gilberto Casa-Grande e Senzala. 48ª Edição, São Paulo: Global Editora, 2003. Págs. 469 e 470. 

[8] Ver THOMAS, Hugh The Slave trade:the story of the Atlantic slave trade, 1440-1870, pág. 796, Simon & Schuster Paperbacks, New York, USA, 1997. Sobre os assentamentos dinamarqueses na Costa do Ouro ver https://da.wikipedia.org/wiki/Den_danske_Guldkyst

[9] Ver Ver THOMAS, Hugh The Slave trade:the story of the Atlantic slave trade, 1440-1870, pág. 790, Simon & Schuster Paperbacks, New York, USA, 1997.

[10] Sobre esse caso ver – /2015/02/22/1850-o-combate-do-hms-cormorant-contra-o-forte-de-paranagua/

[11] Decreto nº 731, de 14 de Novembro de 1850, que regulou a execução da Lei N.º 581, que estabeleceu medidas para a repressão do tráfico de africanos no Império do Brasil. Ver em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-731-14-novembro-1850-560145-publicacaooriginal-82762-pe.html

[12] Sobre o desembarque de Sirinhaém ver CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de; CADENA, Paulo Henrique Fontes. A política como “arte de matar a vergonha”: o desembarque de Sirinhaém em 1855 e os últimos anos do tráfico para o Brasil. Topoi. Rio de Janeiro, v. 20, n. 42, p. 651-677, set/dez. 2019 Disponível no site: http://www.scielo.br/pdf/topoi/v20n42/2237-101X-topoi-20-42-651.pdf.

[13] Ver Diário do Natal, ed. 25/06/1962, segunda-feira, pág. 3.

[14]  Ver Collecção de Leis Provinceais do Rio Grande do Norte – Anno de 1884, pág. 42.

[15] Câmara Cascudo comentou “quarenta anos depois”, porque a 1ª edição do livro Meleagro foi lançado em 1951. 

JESSE JAMES – O GRANDE BANDOLEIRO AMERICANO

Rostand Medeiros – Escritor e Pesquisador.

É ponto praticamente ivo a afirmação que o maior bandoleiro da história do Brasil foi Virgulino Ferreira da Silva, o conhecido Lampião.

Já nos Estados Unidos este título vai certamente para Jesse Woodson James, o Jesse James.

Para muitos este bandoleiro ganhou reconhecimento como um guerrilheiro, o último rebelde da Guerra Civil Americana, um símbolo que trouxe esperança para aqueles que ainda acreditavam na causa dos estados do Sul dos Estados Unidos. Mas para outros ele foi tão somente um assaltante de bancos, trens e carruagens, além de um impiedoso assassino a sangue frio.

Jesse Woodson James

Apesar de serem pontos de vista divergentes, ambos são verdadeiros.

Embora seja verdade que grande parte da história de Jesse James é puro mito, também é verdade que muito do que se sabe sobre esta figura é baseada em fatos reais. Mas com a ficção e a realidade agora enredada – é quase impossível separá-los.

Então, quem era Jesse James?

O Homem e Sua Guerra

Jesse Woodson James nasceu em 5 de setembro de 1847. Era filho de um pastor que morreu quando ele tinha apenas dois anos, e de uma mãe de personalidade forte, Zerelda, que se tornou a matriarca da família. Ele foi criado em um ambiente extremamente escravocrata, onde negro era comparado a um bicho de carga e consta que sua família tinha orgulho do sistema escravista. Morava em uma propriedade perto da cidade de Kearney, no estado do Missouri. Tinha um irmão mais velho chamado Frank, que com ele pegaria em armas, e uma irmã mais nova, Susan, e quatro meio-irmãos, frutos de um novo casamento de sua mãe com o Dr. Ruben Samuels.

Zerelda James – Casada com Robert James aos 16 anos, viúva aos 25, a mãe de Jesse, Zerelda, casou-se novamente aos 30 com o Dr. Reuben Samuel. 
Ela era uma figura dominante, uma feroz separatista com nervos de aço, uma língua dilacerante e um intelecto vigoroso.

Na época que Jesse James nasceu o seu mundo era extremamente maculado pela violência. Em 1850 o Missouri era um estado onde guerras de fronteira com os habitantes do vizinho estado do Kansas eram normais e tornou a vida muito perigosa para os que viviam no oeste do Missouri – vizinhos lutaram contra vizinhos e cada ataque brutal ocasionava ainda mais represálias brutais.

Mas o problema não era apenas com os vizinhos do Kansas. O Missouri era um estado com muitas facções armadas, mantidas por ricos fazendeiros, os “coronéis” deles, que lutavam por terra, dinheiro e poder. Ninguém foi poupado. Apenas arar seu campo poderia trazer a morte – e a noite não era difícil alguma casa ser queimada e o gado de algum proprietário ser roubado ou abatido a tiros. Mas também ocorriam contínuas batalhas internas e conflitos de fronteira por parte de pessoas que eram contra a escravidão – chamados de “Jayhawkers” (os nossos abolicionistas), que lutavam contra aqueles que eram pró-escravidão, chamados “Bushwhackers”. Sobre todos os aspectos, era um prelúdio sinistro e localizado do que seria a futura Guerra Civil Americana, ou Guerra da Secessão.

Fazenda da família James em 1877.

Quando o grande conflito entre os estados do norte e do sul dos Estados Unidos oficialmente estourou, em 12 de abril de 1861, muitos habitantes do Missouri deixaram suas terras para lutar pelo exército do Sul, os chamados Confederados. Estes estavam com medo que suas famílias e propriedades fossem atacadas pelas forças da União, os do Norte. Para evitar isso, milícias armadas foram criadas para proteger os que ficaram. Frank James juntou-se a um destes grupos de proteção em 1861.

Um dos líderes desses grupos era um jovem de 24 anos chamado William Quantrill. Este organizou várias centenas de homens sob a sua liderança, oferecendo seus serviços para a Confederação. Eles foram empossados ​​em serviço no ano de 1862 e foram reconhecidos como uma parte importante da causa do Sul no Missouri (este reconhecimento é causa de extremas controvérsias até hoje nos Estados Unidos).

William Quantrill

Valente, astuto, um verdadeiro guerrilheiro, mas igualmente um sanguinário, William Quantrill e seus homens realizaram diversos ataques em várias localidades. Muitos de seus combates eram para a defesa dos habitantes do Missouri, mas muitas outras de suas ações não aram de carnificina em massa, roubo desenfreado, estupros em quantidade e destruição massiva de patrimônio. O mais famoso  (ou infame) sucesso de Quantrill ocorreu na madrugada de 21 de agosto de 1863, quando seu grupo composto por mais de 300 homens, realizou um ataque contra a cidade de Lawrence, Kansas. Quando eles terminaram, mais de 150 habitantes foram mortos, 200 casas e empresas estavam destruídas. Frank James estava na incursão a Lawrence.

O ataque a Lawrence, Kansas, em 21 de agosto de 1863, foi a pior atrocidade contra civis na Guerra da Secessão.

Em represália as ações de guerrilha de Quantrill, as milícias pró-União invadiram as propriedades das famílias dos membros do bando, incluindo a fazenda da família James.

No sertão nordestino de Lampião, nas décadas de 1920 e 1930, quando a polícia (em grupos conhecidos como volantes) realizavam perseguições aos cangaceiros, não tinham nenhuma piedade para conseguir informações junto aqueles que acreditavam ajudar estes bandoleiros nordestinos (os chamados coiteiros). Sessenta ou setenta anos antes, a família de Jesse James sofreu da mesma maneira nas mãos das milícias pró-União. Um dos meio irmãos do futuro bandoleiro quase foi enforcado para abrir alguma informação sobre Frank. O próprio Jesse foi chicoteado impiedosamente e sua mãe Zerelda apanhou bastante, mesmo estando grávida. Consequentemente Jesse, então com 16 anos, ou a andar com Quantrill e mais tarde com o seu sucessor, Willian “Bloody (sangrento) Bill” Anderson. Este último era conhecido por cortar as cabeças de seus inimigos com uma típica espada de pirata e levava os escalpos de muitas de suas vítimas em seu alforje.

Em Combate 

Em agosto de 1864 Jesse estava com os guerrilheiros, quando ele foi baleado no peito, mas salvou-se e logo voltou à luta. Ele levou esta bala em seu corpo para o resto de sua vida. Em um ataque à cidade de Centralia, no Missouri, o bando de Bloody Bill Anderson matou 25 soldados da União desarmados e roubaram seus uniformes. Mais tarde uma tropa da União ao saber o que aconteceu, saiu em busca de Bill e seus homens. Quando eles foram encontrados, os guerrilheiros mataram mais de 100 dos seus perseguidores, em uma bem montada emboscada. Jesse foi identificado como aquele que matou o comandante dos soldados.

William “Bloody Bill” Anderson – Foi um chefe guerrilheiro cuja campanha de terror ao longo do rio Missouri em 1864 é amplamente considerada uma das mais brutais da história americana. Jesse James o seguiu durante essa época e nos anos posteriores falou com orgulho da filiação a esse homem.

Este seria o maior engajamento da carreira de Jesse como um guerrilheiro confederado. Dois meses após esta batalha, Bloody Bill foi morto em uma emboscada. Os dias dos guerrilheiros foram chegando ao fim, com muitos dos irregulares fugindo para os estados da Louisiana e Texas. Após a morte de Quantrill, os seus homens ou foram capturados, fuzilados, ou fugiram, incluindo neste último grupo Frank James.

Jesse James como um jovem guerrilheiro. Esta foto foi tirada em Platte City, Missouri, em 10 de julho de 1864, mostra o bandoleiro aparece com três revólveres modelo Colt Navy.

Enquanto Frank tinha ido para Kentucky, Jesse seguiu para o Texas, onde ficou até 1865. Após um tempo nesta inatividade, Jesse e alguns outros guerrilheiros decidiram voltar para o Missouri e se entregar. No caminho alguns soldados da União abriram fogo sobre eles e, pela segunda vez, Jesse foi baleado no peito. O ferimento era grave e ele foi levado para a casa de um tio, onde recuperou a saúde com a ajuda da prima Zee Mimms, por quem se apaixonou. Eles iriam se casar nove anos mais tarde.

O Guerrilheiro que se Transformou em Fora da Lei

Ressentimentos políticos, juntamente com dificuldades econômicas no Missouri, acrescentaram novas feridas a velhos problemas. Jesse e Frank James poderiam ter seguido para sua casa e objetivado levar uma vida pacífica, como fez a maioria dos outros guerrilheiros. Mas depois de uma vida tão “emocionante”, os dois irmãos logo se juntaram com alguns antigos guerrilheiros e começaram suas carreiras criminosas.

O líder guerrilheiro do Missouri Fletch Taylor (à esquerda), que mais tarde perderia seu braço direito, era o oficial comandante de Jesse James em 1864 antes dos James se juntarem ao grupo de “Bloody Bill” Anderson. Frank (no centro) e Jesse (direita) posaram para a rara foto em abril de 1864.

Salvo engano, Lampião ou 20 anos como cangaceiro, já Jesse e Frank James estiveram de armas na mão por 16 anos. Tal como Lampião, não se sabe quantos crimes os irmãos James cometeram, mas uma vez que eles tinham alcançado alguma notoriedade, foram acusados ​​de mais assassinatos e roubos do que poderiam ter realmente cometido. Coisas da fama!

Mas se Lampião visava atacar principalmente as casas dos proprietários rurais, onde ficavam suas economias pela falta de casas bancárias no sertão nordestino, nos Estados Unidos eram os bancos o principal alvo dos irmãos James.

Acredita-se que o primeiro banco que eles roubaram foi na cidade de Liberty, Missouri. O fato ocorreu em fevereiro de 1866, o bando tinha cerca de 12 homens, que entraram na cidade tranquilamente montados em seus corcéis. Deixaram o estabelecimento bancário com quase 60.000 dólares e dispararam contra dois espectadores, matando um. Outros roubos semelhantes ocorreram no Missouri e em estados vizinhos entre 1866 e 1867. Logo os irmãos James, juntamente com seus primos, os Youngers, são apontados como suspeitos dos assaltos. O bando a a ser conhecido como quadrilha dos James/Youngers.

Jesse e Frank James

Qualquer que fosse a dúvida de que os James estavam envolvidos em assaltos a bancos, esta foi eliminada quando roubaram o Banco Davies, na cidade de Gallatin, Missouri, em dezembro de 1869. Depois disso, seus nomes, com recompensas por suas cabeças, seriam ligados a crimes no Missouri e em outros lugares.

Jesse entrou neste banco e pediu a John Sheets, um ex-capitão do exército União, caixa e principal proprietário do banco, para trocar uma nota de 100 dólares. Quando este se sentou para escrever o recibo, Jesse percebeu que aquele era um ex-oficial do Norte e, sem pestanejar, atirou na sua cabeça e no coração. Apesar de dois outros assaltantes terem disparado contra um funcionário do banco, este conseguiu escapar e alertou a cidade.

Jesse James

Seus habitantes se posicionaram e, como quase todo mundo no velho oeste tinha uma arma de fogo, dispararam impiedosamente sobre o bando na medida em que estes saiam do banco e tentavam pegar seus cavalos. Ao montar em seu alazão, Jesse James caiu e foi arrastado por cerca de 40 metros antes que pudesse retirar o pé do estribo. Ele então subiu na garupa do cavalo de Frank e fugiram. Só depois conseguiu tomar outro cavalo de assalto.

Logo a imprensa estampou que o assassinato do ex-oficial da União Sheets, teria sido uma “vingança política” e muitos sulistas aprovaram o assassinato cometido por Jesse.

O Nascimento de uma Lenda

Embora os membros da quadrilha dos James/Youngers afirmassem aos quatro ventos que roubavam dos ricos para dar aos pobres, não há registro de que eles tenham dado algo a alguém. O mais próximo disso foi pagando aos que os apoiavam durante suas fugas.

A quadrilha dos James/Youngers

A quadrilha então volta a sua atenção para outra fonte de dinheiro – as ferrovias. Eles atacaram o seu primeiro trem em uma noite de julho de 1873, em Iowa. A quadrilha também roubou diligências. Eles provavelmente teriam assaltado postos de gasolina e lojas de conveniência, se estas existissem na época.

Apesar de ser oferecido cada vez mais dinheiro pelas cabeças dos membros da quadrilha dos James/Youngers, eles seguiam tranquilos. Entre os roubos, os irmãos James se escondiam nas cidades médias e grandes. Jesse e Frank viveram em vários locais, junto com as suas respectivas famílias. Jesse e Zee Mimms tiveram um filho e uma filha. Frank também se casou e de sua união nasceu um filho. As duas famílias unidas, ajudavam os irmãos James a se esconderem nas áreas urbanas.

Jesse era vaidoso com sua aparência, fumava charutos e raramente bebia qualquer coisa alcoólica mais forte do que a cerveja. Apesar de algumas madames contestarem esta versão, consta que ele nunca traiu a mulher e jamais levantou a voz com crianças. Ele tinha duas marcas de balas no peito, outra na coxa e faltava um pedaço do seu dedo médio esquerdo. Ele também tinha um pé esquerdo ligeiramente torcido. Afirma-se que era canhoto, tinha uma voz de contralto. Lia a bíblia, podia recitar salmos e poderia cantar hinos religiosos se quisesse. Consta que nunca se arrependeu de seus roubos, ou de seus muitos assassinatos. Ele tinha uma grande necessidade de atenção, poderia ser muito gentil, muito educado e era bem versado sobre os acontecimentos do seu tempo.

Livros publicados no final do século XIX sobre Jesse James

Jesse e Frank James estavam nas páginas dos jornais de todo o país. Mas foi o jornalista John Edwards, um ex-oficial da Confederação, escritor e editor de vários jornais depois da guerra, que viu em Jesse uma oportunidade de criar um ponto de encontro para a oposição à opressão que os antigos militares do Sul sofriam daqueles que estavam no poder. Edwards tornou Jesse o símbolo de uma causa perdida.

Jesse gostava de seu novo status, tornando-se obcecado com sua imagem pública. Ele leu jornais e muitas vezes escrevia cartas para os jornalistas e até mesmo chegou a planejar assaltos com base em sua percepção da reação do público. Com a contínua campanha de propaganda, Jesse se tornou um herói para muitos.

O Fim da Gangue James/Youngers 

Os homens da famosa agência Pinkerton, de caçadores de bandidos, foram chamados várias vezes para capturar os membros da gangue James-Younger e não conseguiram. Em represália, numa noite de janeiro de 1875, várias bombas incendiárias foram lançadas na tradicional casa da fazenda da família James. Uma meia irmã de Jesse e Frank morreu e sua mãe Zerelda perdeu a mão.

Fazenda da família James, mantida totalmente original

O ataque pensado pelos agentes Pinkerton foi um fracasso, além de realizarem uma ação contra uma família indefesa, provocaram a morte de uma criança inocente, o que automaticamente trouxe simpatia e o apoio a quadrilha dos James/Youngers. Então veio o notório assalto ao banco em Northfield, Minnesota, em setembro de 1876.

Oito membros da gangue entraram na cidade, três ficaram em seus arredores, três entraram no First National Bank e dois ficaram do lado de fora. Quando o caixa do banco se recusou a abrir o cofre, sua garganta foi cortada e, em seguida, ele foi baleado – muito provavelmente por Jesse. Outro caixa fugiu para soar o alarme entre os moradores de Northfield. A rua foi imediatamente liberada pelos transeuntes e os habitantes da cidade começaram a atirar nos bandidos. Dois deles morreram, juntamente com um civil, e o resto da quadrilha fugiu.

Armas que pretensamente pertenceram a gangue James-Younger, em uma exibição na década de 1920.

Foi organizada uma caçada humana para rastrear os bandidos em fuga, esta acabou matando outro marginal e capturando Cole, Jim e Bob Younger. Jesse e Frank escaparam. O assalto foi um grande fracasso – três homens morreram, três foram presos (depois receberam sentenças de prisão perpétua), dois escaparam e nenhum dinheiro foi levado.

Hollywood aproveitou este fracasso do bando James/Younger na película “The Long Riders”, de 1980 (No Brasil foi intitulado “Cavalgada de Proscritos”), onde a cena deste assalto, apesar de certos exageros em relação ao fato real, é visualmente intensa (Veja a cena – http://www.youtube.com/watch?v=vr0MlCjzJak)

Bill Stiles e Clell Miller, do bando dos irmãos James, mortos no assalto de Northfield. Seus corpos foram fotografados em um estúdio. Embora pareça sombrio para os tempos atuais, fotos de bandidos mortos ou capturados e divulgados como lembranças. Isso também serviu ao propósito prático de ajudar em sua identificação.

A Morte de Jesse James por um Covarde

Depois de algum tempo, Frank decidiu sair do grupo e se aposentar. Já Jesse buscava montar um novo bando para continuar roubando por mais alguns anos. Mas os tempos e a política começaram a mudar. A eleição de Thomas T. Crittenden para governador do Missouri em 1880 foi o começo do fim para Jesse.

Na esperança de manter o grupo vivo, Jesse convidou os irmãos Robert (ou Bob) e Charles Ford para participar de um assalto ao banco da localidade de Platte City. Entretanto os irmãos já tinham decidido não participar de roubo algum, mas receber a recompensa de 10.000 dólares pela cabeça de Jesse. Ação que era patrocinada pelo governador Crittenden.

Robert Ford

O governador prometeu aos irmãos Fords um perdão completo pelo ado de crimes, mas eles teriam de matar Jesse, que era então o criminoso mais procurado dos Estados Unidos. Crittenden tinha elegido a captura dos irmãos James como sua prioridade política. Barrado por uma lei que não autorizava o oferecimento de uma recompensa vultosa pela captura de bandidos, o governador buscou apoio nas estradas de ferro e estes lhe cederam os 10.000 dólares.

Foto recentemente apresentada, que mostra Robert Ford (à esquerda) e Jesse James. A foto mostra o notório fora da lei americano e seu infame colega de gangue, que o trairia em troco da recompensa, matando-o a tiros em 1882. Ela pertence a uma família de fazendeiros do Texas, transferida de geração em geração. Eles aram os últimos anos tentando provar que era legítima. A legista Lois Gibson, do Departamento de Polícia de Houston, confirmou sua autenticidade em 30 de setembro de 2015. Ela pode render muito dinheiro para a família.

Em 3 de abril de 1882, os irmãos Ford estavam junto com Jesse e sua família – a respeitável família Thomas Howard – em uma casa em Saint Joseph, Missouri. Depois de tomar café da manhã, os Fords e Jesse James entraram na sala de estar em preparação para a viagem para Platte City. De acordo com Robert Ford, tornou-se claro para ele que Jesse tinha percebido que ele e seu  irmão estavam lá para matá-lo.

Desenho mostrando o assassinato de Jesse James por Robert Ford

No entanto, em vez de xingar ou matar os Fords, Jesse atravessou a sala de estar, colocou seus revólveres em um sofá e depois subiu em uma cadeira para tirar a poeira de um quadro. Bob Ford vendo a oportunidade, tirou o seu revólver calibre 44 do coldre, apontou-o para a parte de trás da cabeça de um homem desarmado e puxou o gatilho. Jesse ouviu o barulho do engatilhamento da arma e foi virando a cabeça, quando a bala o atingiu.

Casa onde Jesse James foi morto, hoje um museu.

Após o assassinato, os Fords foram ao encontro do governador Crittenden para reivindicar sua recompensa. Eles se entregaram às autoridades legais, mas ficaram consternados ao descobrirem que foram acusados ​​de assassinato em primeiro grau. Em um dia, os irmãos Ford foram indiciados, se declararam culpado e foram condenados à morte por enforcamento. Duas horas depois, Crittenden lhes concedeu um perdão completo. Apesar do acordo, os irmãos Ford receberam apenas 500 dólares, uma fração do dinheiro originalmente prometido.

O corpo do bandoleiro Jesse James.

Por um tempo Bob Ford ganhou dinheiro posando para fotos como “o homem que matou Jesse James”. Junto com seu irmão reencenaram o assassinato em um espetáculo por várias cidades. Mas o desempenho dos Fords não foi bem recebido. A maneira como Bob havia assassinado Jesse James, enquanto ele estava de costas e desarmado, trouxe muitas inimizades em diversas cidades onde o espetáculo foi realizado.

Com tuberculose e viciado em morfina, Charles Ford se suicidou em 4 de maio de 1884. Quase dez anos depois do assassinato de Jesse James, no dia 8 de Junho de 1892, Robert Ford era dono de um saloon em Creede, no Colorado, quando foi morto com dois disparos de uma espingarda calibre 12 no peito. O assassino foi um homem que aparentemente tinha problemas mentais e desejava ficar famoso como “o homem que matou o homem que matou Jesse James”.

Vejam que ser famoso já não era fácil desde aquela época!

Propaganda de um show onde as atrações principais eram Frank James e seu primo Cole Younger

Propaganda de um show onde as atrações principais eram Frank James e seu primo Cole Younger

Depois que Jesse foi morto, seu irmão Frank se entregou às autoridades em 1882. Ele foi julgado e absolvido por um júri simpático. Nos últimos trinta anos de sua vida Frank trabalhou em vários empregos, inclusive como vendedor de sapatos e, em seguida, como um guarda de teatro em St. Louis. Durante algum tempo, junto com seu primo Cole Younger, participaram de shows itinerantes onde apresentavam as suas aventuras do ado. Em seus últimos anos, Frank James voltou para a tradicional fazenda da família James. Ele morreu em 18 de fevereiro de 1915, com a idade de 72 anos.

Legado – Jesse James, um Ícone da Cultura Pop 

Tal como ocorreu com Lampião no Brasil, tão rapidamente quanto os jornais anunciaram a sua morte, rumores da sobrevivência de Jesse James proliferaram. Alguns disseram que Robert Ford matou alguém parecido com Jesse, em uma trama elaborada para permitir-lhe escapar da justiça. Estes contos têm recebido pouca credibilidade e nenhum dos biógrafos deste bandoleiro famoso apoiaram as versões de sobrevivência como plausível.

Cartaz origina oferecendo uma recompensa pelos irmãos James.

Nos Estados Unidos já foram rodados mais de 70 filmes e programas de TV sobre Jesse, ou incluindo Jesse, e a saga cinematográfica deste fora da lei é longa. O primeiro filme sobre ele foi feito em 1920 e estrelado por seu filho, Jesse James Jr. Mais recentemente, Brad Pitt interpretou o fora da lei em “O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford”. Houve também várias apresentações de palco. Jesse James também foi o herói em muitos romances baratos e objeto de vários livros e inúmeros artigos.

Tal como Lampião no Brasil, Jesse James continua a ser um símbolo controverso, que sempre pode ser reinterpretado, de várias maneiras, de acordo com as tensões e necessidades culturais.

Fontes – http://clevelandcivilwarroundtable.com

http://en.wikipedia.org/wiki/Jesse_James

http://www.pbs.org/wgbh/americanexperience/films/james/

http://www.civilwarstlouis.com/History/jamesgang.htm

http://www.jessejames.org/

http://www.jessejames.org/photo_gallery

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