Jayme da Nóbrega Santa Rosa – ACARI – FUNDAÇÃO HISTÓRIA E DESENVOLVIMENTO, Editora Pongetti, Rio de Janeiro, 1974, Capítulo VI, Páginas 38 a 44.
Um dos novos donos de fazenda no Acari era o Sargento-mor[1] Manuel Esteves de Andrade, que se transportou da Paraíba. Foi residir na sua fazenda do Saco. Chegou solteiro, como tantos outros.
Frequentemente mandava chamar, para residir com ele no Seridó, sua mãe, que era baiana, muito católica, e temerosa não o acompanhara. Esta respondia que, enquanto não houvesse nas proximidades da fazenda uma igreja para o culto, não poderia atender ao chamado.
Então, o filho deliberou construir uma capela. Para isso, encaminhou, em 1736, a dom José Fialho, bispo de Pernambuco, em Olinda, uma petição, com a necessária justificativa. Eis o traslado da petição e provisa (respeitada a ortografia):
Sobre esse antigo templo religiosos, Luís da Câmara Cascudo escreveu o seguinte texto em uma ACTA DIURNA de 1943 – “Quando saí, descendo a escadinha e alcancei a praça, luminosa, no dia tropical, saudei a capelinha silenciosa. Ali começara o Seridó”.Foto – Rostand Medeiros.
“Illustrissimo senhor. Dis o Sargento Mor Manuel Esteves de Andrade morador no districto do curato de Piancó que elle pertende erigir hua capella com a invocação de N. S. da Guia, no lugar xamado Acari districto do dito curato, para o fim de sua alma e dos mais moradores circunvisinhos, por ficarem distantes de sua Matris oito dias de viagem, para cujo fim tem junto muita pedra, lhe fez a escritura do patrimonio que apresenta em meia legoa de terra que rende todos os annos de arendamento – deis mil reis, os quais aplica p.ª os paramentos, reparação, fabrica da dita capela por tanto pide a vossa Illustrissima lhe faça mercê atendendo ao muito serviço de Deos que se seguirá coma ereção desta capela conceder-lhe licença para apuder erigir, estando de todo acabada, e ornada com, os paramentos necessarios o seu Reverendo Parocho a possa benzer e nella celebrarem-se os divinos officios, e já os moradores daquelle lugar alcansarão licença que apresentão para apuderem erigir por ter sido vossa Illustrissima informado do Reverendo Parocho ser util, em numerario, e receberá mercê. Para provisão para se erigir a capella na forma do estilo. Olinda onse de Novembro de mil sete centos, e trinta, e sete estava a firma do Illustrissimo Senhor Bispo. Dom José Fialho por mercê de Deos, e da Sancta e Apostolica Bispo de Pernambuco, e do concelho de sua Magestade, que Deos o goarde e d.ª pela presente concedemos licença ao Sargento Mor Manoel Esteves de Andrade, para que possa erigir a capela de N. S. da Guia no lugar xamado Acari do curato de Piancó erecta na forma da nossa constituição dada em Olinda sub nosso signal, e sello aos dose dias do mês de Novembro de mil sete centos trinta, e sete, eu Miguel Alvares Lima escrivão da Camera Episcopal o escrevi estava a firma do Illustrissimo Senhor Bispo sello valla sem sello ex causa seis mil tresentos, e vinte. Monteiro Registada a folhas cento, e setenta, e nove no Livro trese do Registro Olinda dose de Novembro de mil sete centos trinta, e sete”… etc. etc.[2]
Fonte – httpsblogger.googlecontent.com
Como se vê, o bispo de Pernambuco despachou desta forma:
“pela presente concedemos licença ao Sargento Mor Manoel Esteves de Andrade, para que possa erigir a capela de N. S. da Guia no lugar xamado Acari do curato de Piancó erecta na forma da nossa constituição”.
Construída a capela numa pequena esplanada em nível superior ao povoado, com a frente para o norte e a parte posterior para o casario pobre, voltou o Sargento-mor à presença da autoridade eclesiástica para solicitar o documento que autorizasse a bênção do templo e a realização dos ofícios religiosos.
“Diz o Sargento Mor Manoel Esteves de Andrade morador no certão do Acari freguesia do Piancó donde elle Sup. tem erecto hua capela invocação N. S. da Guia com provisão de vossa Illustrissima, para effeito de se benser por estar acabada, e ter os paramentos necessários So lhe falta provisão pide a vossa Illustrissima seja servido mandar provisão para se benser a dita capela estando na. forma da constituição pelo seu Reverendo Parocho, ou sacerdote de sua licença pelos longes do dito lugar e se puder diser nella missa, e os mais divinos officios, e receberá mercê”.
Fonte – Livro “Cartas dos Sertões do Seridó”, de Paulo Bezerra, pág.83.
Atendeu o bispo em 14 de abril de 1738 com o despacho:
“e provisão para se benser a capela na forma que se pede tendo ela os requisitos necessarios”.
Tudo legalizado, logo começou a funcionar o templo.
Cuidou o Sargento-mor de levantar ao lado esquerdo da capela, separada por um beco para trânsito de cavaleiros e pessoas a pé, uma casa de alvenaria com boas acomodações destinada a residência do pároco e sacristão, bem como a hospedagem de padres e visitadores em missão eclesiástica.
Esta casa — que se pode considerar a primeira residência da nova povoação do Acari — era acaçapada e suficientemente larga. Resistiu até 1908. Por essa época, na parte antes destinada à residência do sacristão, morava uma figura popular da cidade, a Joana Nunes, de meia idade, gorda, baixa, sempre de chapéu de massa[3] à cabeça. Morava também Paula, que fora protegida do padre Tomás (falecido em 1893), com sua filha Lourença.,.
Foi demolida a casa para em seu lugar se construir o então moderno Grupo Escolar Tomás de Araújo, prédio -atualmente ocupado pela Prefeitura Municipal.
Fonte – Livro “Cartas dos Sertões do Seridó”, de Paulo Bezerra, pág.83.
Acentua que não é fácil distinguir quais, entre tantos, eram os vigários e os substitutos, tal a ocorrência deles. Depois de organizar uma lista de padres no século XVIII, conclui: “além desses vigários, curas e capelães, os arquivos paroquiais do Seridó registram os nomes de muitos outros sacerdotes que por aqui apareciam, batizando, casando e sepultando, devidamente autorizados”.
Havia muitos padres no Seridó do ado para atender aos serviços religiosos da capela do Acari. Dom José Adelino Dantas, nascido no município de Acari e que foi bispo de Caicó, paciente investigador de documentos. em. cartórios e irmandades, diz em seu. livro “Homens e Fatos do Seridó Antigo” que na vanguarda de batedores de sertões apareceram muitos reverendos. Inúmeros requereram datas de terra, outros se tornaram. grandes proprietários de terras e prósperos fazendeiros.
Da abundância de padres nos sertões — homens dotados de instrução superior — resultou que se difundissem as letras e aparecessem tantos homens cultos em relação ao meio e à época.
Segundo o primo Sérgio Enilton da Silva, historiador e grande pesquisador da História de Acari, esta é uma das casas existentes na propriedade Saco dos Pereiras. Ainda segundo Sérgio, aparentemente essa casa poderia ser a morada de um vaqueiro conhecido como Manuel Vermelho – Fonte – Facebook
Outras casas — poucas, bem verdade — foram-se construindo em seguida à residência dos padres na direção do poente, bem como no alinhamento da capela no rumo da nascente. Essas construções que surgiam aqui e acolá eram de tijolo e telha, amplas, de duas águas, compostas em geral de sala de frente, quartos sem janela, sala de refeições perto da cozinha, despensa, e um quintal nos fundos, com quartos para serviçais e secreta ou comua[4], cercado por muro alto. Mobiliário: na sala da frente, sofá e cadeiras; na sala de refeições, mesa e bancos; nos quartos, arcas, baús e redes de dormir; na dispensa, jirau.
De propriedade dos fazendeiros mais prósperos essas casas não serviam de habitação normal; abriam-se nos dias de missa, de feira, de festas religiosas ou de casamento na família. Representavam uma espécie de luxo, uma demonstração discreta de vitalidade econômica.
Por haver erguido a capela e tomado as medidas complementares, considera-se como fundador do Acari o Sargento-mor Manuel Esteves de Andrade. Os documentos escritos e a tradição oral só se ocupam dele em relação à capela. Não se contam histórias de sua vida de fazendeiro, não se fala de sua atuação nos assuntos regionais.
Não se sabe se ele voltou à Paraíba ou se foi para algum outro ponto do litoral, ou para algum lugar no sertão, ou ainda se permaneceu tão isolado no Saco que somente as pessoas a ele mais chegadas lhe conheciam a vida particular. De outra parte, não se tem conhecimento se sua mãe veio para o Acari, ou se veio e voltou logo.
Fonte – httpsblogger.googlecontent.com
Com o fim de obter mais algumas informações a respeito do Fundador, que tenham veracidade, resolveu o autor empreender uma pesquisa de campo no próprio lugar onde ele viveu há mais de 230 anos, o Saco dos Pereiras. Para isso, saiu do Acari às 6 horas de 4 de outubro de 1972, em automóvel, na companhia de Edmundo Gomes da Silva, bom conhecedor de pessoas e fatos do Seridó antigo, descendente do Capitão-mor Francisco Gomes da Silva, e na companhia do “Brigadeiro”, primo e dono do carro, jovem descendente do Capitão-mor Galvão, para entrevistar moradores da localidade.
Da análise das informações preliminares, foram escolhidas quatro pessoas para ser entrevistadas. Os dados colhidos, devidamente criticados, permitem as seguintes conclusões:
Manuel Esteves de Andrade pretendia inicialmente erguer a capela no Saco dos Pereiras, numa pequena área plana, a uns 200-250 metros da sede da velha, Fazenda do Saco, onde morou José Sancho[5], no pátio da qual tanto gado se derrubou, e onde hoje reside Júlio Gomes de Araújo. No exíguo planalto encontra-se a casinha de Orestes Pereira, pai de Francisca Elita. Nesse sítio viveram os Nunes, oleiros e louceiros que abasteceram o Acari e várias casas de fazendas com telhas, ladrilhos, jarras, potes, alguidares, as, etc. Muito antes de se tornarem famosas as peças do artesanato de Caruaru, já os Nunes faziam bonecos de barro e muitas outras figurinhas, como bois, cavalos, vaqueiros. Em virtude da pouca capacidade do riacho do Saco para suprir água a uma futura povoação, Manuel Esteves desistiu do plano inicial e FER o aglomerado junto ao poço dos acaris.
Manuel Esteves de Andrade não deixou descendentes. Mas seus parentes, que com ele viveram no Saco, deixaram. Uma pessoa da família do Fundador muito conhecida foi Chiquinha Viúva, que faleceu por volta de 1947, com mais de 90 anos de idade. Era mãe de Sebastião da Viúva, famoso vaqueiro de José Sancho. Francisca, Elita, moça bastante morena, muito simples, moradora no lugar, é bisneta de Chiquinha. Cuida de Agostinho Pereira, que se transferiu do Brejo do Cruz com o pai, Sebastião Cassiano Pereira, em 1899, e conheceu de perto Chiquinha, a qual era comadre, isto é, parteira.
Manuel Esteves de Andrade, depois de erigir no Acari a capela e a residência destinada aos padres, levantou a sua casa da rua, no ponto, a noroeste do templo, onde depois Félix Pereira de Araújo (Félix Maranganha) construiu a sua própria. Era pequena à casa do Fundador e junto dela havia um curral de vacas. Esta informação reveste-se de lógica. Em primeiro lugar, as casas tinham então reduzidas dimensões. Em segundo, se Manuel Esteves construiu capela, casa de padres e doou terras para o patrimônio paroquial, de certo frequentaria o Acari para assistir aos ofícios religiosos, necessitando de um pouso para estacionar e de um curral para prender seu animal de sela. Se o curral era de vacas, de duas uma: ou na casa moravam pessoas de sua escolha, talvez parentes, que precisariam de leite; ou o fazendeiro levaria vacas quando tivesse que ar dias no povoado. Foram valiosas e esclarecidas as informações de Júlio Gomes de Araújo, filho de Pacífico Gomes da Silva (Cicio Gomes) e neto de Manuel Gomes da Silva, que foi chefe local do Partido Conservador no Segundo Reinado. Esclarecedoras se mostraram também as notícias dadas por Joaquim Silvério Dantas. E aqui acaba a pesquisa de campo.
Na cidade do Acari mora um membro da família de Manuel Esteves de Andrade. Trata-se de Neônio Manuel dos Santos, agente fiscal da Prefeitura Municipal. Ele descende de Chicão, sobrinho do Fundador..
Foto – Rostand Medeiros.
Chicão (Francisco Pereira da Silva) foi pai de Manuel Pereira da Cruz, que no Saco requereu data de terra; deste proveio Sebastiana, que casou com João Manuel da Silva; do casal nasceu Manuel José Maria; do casamento deste procede Antônio Manuel dos Santos; este marinheiro (corado, de olhos azuis) casou com moça da família Nunes, morena, e foram os genitores de Neônio.
Por coincidência, Neônio trabalha hoje no local preciso em que seu parente longínquo construiu a primeira casa do novo Acari, que se afastou discretamente dos casebres da beira do rio.
NOTAS ORIGINAIS DESSE CAPÍTULO
[1]Sargento-mor. Posto equivalente ao de Major, atual mente. Era em parte honorífico.
[2]Petições e provisões. De acordo com registro no “Livro do Tombo”, sob guarda da Irmandade de Nossa Senhora da Guia, em Acari, para o qual se aram petições e provisões que se achavam lançadas no “Livro velho”.
[3]Chapéu de massa. O mesmo que chapéu de feltro, isto é, de estofo de lã ou de pelos devidamente processado.
[4]Secreta ou comua. Expressões que correspondem a privada, latrina.
[5] José Sancho. Figura singular de fazendeiro. De temperamento crítico, irônico. Organizado, de espírito criador, providenciava o lugar certo para ferramentas, utensílios e gêneros alimentícios. Alto, magro, corado, rosto raspado, conversador mordaz, não frequentava a sociedade local; seu mundo era o Saco dos Pereiras. Ali morou desde que casou: primeiramente na antiga sede da Fazenda; depois na casa das Pinturas, com porão, bem ampla, das melhores de todo o Seridó, feita a capricho, com muitos cômodos, inclusive uma Sala dos Vaqueiros e um Salão de Fazer Queijo com grandes giraus para armazenamento. A Fazenda do Saco veio-lhe às mãos procedente do Padre Modesto, antigo proprietário. i José Sancho era filho de Félix, dos Garrotes, e irmão de Francisco Raimundo, Joaquim da Virgem e Félix Maranganha. Cortava e cosia seus próprios ternos de brim encorpado, seguindo moldes de perneira e gibão de couro. Possuía um burro de sela muito grande, habilidoso, que subia escada e entrava de casa a dentro, com mancha branca na testa, ao qual chamava Dr. Estrela, para zombar da mania de doutores.
Em 1945, após o fim da Segunda Guerra Mundial e a deposição do ditador Getúlio Vargas, teve início o processo de redemocratização no Brasil, que, infelizmente levou a inúmeras disputas políticas e conflitos pelo país afora. Na região de Exu[1], sertão de Pernambuco, não foi diferente.
Em 24 de dezembro de 1946, na segunda página do jornal recifense Folha da Manhã surgiu a manchete abaixo, verdadeira profecia do que iria então ocorrer naquela cidade.
Nesse jornal existe a transcrição de um telegrama de Romão Filgueira Sampaio Filho (21/08/1887 – 10/04/1949)[2], conhecido como coronel Romão Filho, ou ainda Seu Romãozinho, sobre o clima político existente na cidade. O telegrama foi enviado ao então deputado federal Agamenon Magalhães, ex-governador de Pernambuco entre 1937 a 1945 e que seria novamente governador pernambucano entre os anos de 1951 e 1952.
“Prossegue, sem interrupção, as violências e ameaças desencadeadas no interior do Estado contra os elementos do Partido Social Democrático[3]. Ontem outros telegramas foram enviados ao deputado Agamenon Magalhães, nos quais os signatários, pertencentes ao partido majoritário ou dele simples simpatizantes, denunciam novas ameaças e agressões cometidas pelas autoridades policiais e prefeitos udenistas[4]. Foram os seguintes os despachos dirigidos ao deputado Agamenon Magalhães:
EM EXU – José Aires de Alencar Sete, indicado cargo de comissário de polícia, manteve durante a feira local atitude hostil, intimando eleitores, tendo agredido João Pereira de Carvalho e Expedita Sampaio, funcionários demitidos em ato arbitrário do prefeito. Levei ao conhecimento do caso ao juiz, pontuando lamentáveis incidentes. Provável e iminente hecatombe. Saudações. Romão Sampaio Filho.”
Notícia original dos trágicos acontecimentos do Domingo de Ramos de 1949 em Exu.
Dois anos e quatro meses após a publicação dessa notícia, mais precisamente as oito da manhã do dia 10 de abril de 1949, em plena Semana Santa e no Domingo de Ramos, o badalar dos sinos da missa do Padre Mariano de Souza Neto foi diminuído pelos disparos de armas de fogo, em um tiroteio que deixou mortos Romão Sampaio e Cincinato de Alencar Sete (23/11/1889 – 10/04/1949), conhecido como Seu Sete[5].
Esses homens eram os chefes das famílias Alencar e Sampaio, as duas principais da cidade de Exu e eram compadres. O primeiro foi morto por José Aires de Alencar, conhecido como Zito Alencar, então com 23 anos e filho de Cincinato Alencar. Comentou-se que Romão Sampaio engraxava os sapatos quando foi morto e outros dizem que caminhava quando discutiu com Zito e este lhe deu dois ou três tiros na cabeça.
Padre Mariano de Souza Neto, pároco de Exu durante a maior parte do período que ocorreram os conflitos.
Após essa morte e ainda naquele mesmo dia, Cincinato tombou ao receber vários tiros de rifle e revólver. Este foram disparados respectivamente por Aristides Sampaio Filgueira Xavier, filho do coronel Romão e suplente de deputado estadual pelo PR – Partido Republicano, e o então prefeito da cidade Otacílio Pereira de Carvalho, genro do coronel Romão e cunhado de Aristides. Ficaram feridos no tiroteio o prefeito Otacílio, na perna e sem gravidade, e Franscisco Aires de Alencar, esse último filho de Cincinato, que ficou paralítico e preso a uma cama pelo resto de sua existência[6]. Consta que também foi atingido com gravidade o cidadão de nome José de Miranda Parente[7].
Otacílio foi acusado de ter disparado seis tiros a queima roupa em Cincinato Alencar[8]. Mas as fontes divergem quando o assunto é quantos disparos mataram esse homem, com algumas apontando 11 tiros e outras que pulam para 23. O enterro dos dois líderes foi no mesmo dia, mas em horas diferentes para evitar mais mortes[9].
Francisco Aires de Alencar e sua cama oltada para a rua em Exu.
Para muitos as querelas políticas locais foram as principais causas do início das questões de sangue entre os Alencar e Sampaio em Exu no ano de 1949, mas existem outras versões.
Uma delas dá conta que na época havia sido recentemente instalada uma difusora de notícias em Exu, o serviço de autofalantes espalhados na cidade, as populares “bocas de ferro”. Ocorre que começou uma troca de mensagens divulgadas por esse serviço, todas de cunho político, entre adversários das duas famílias e o clima foi esquentando. As mensagens foram ficando mais ácidas e pesadas, deixando a “a de pressão” no limite, até descambar na tragédia do Domingo de Ramos de 1949.
Existe também a versão de um caso que envolveu uma pretensa traição matrimonial, junto com o uso da violência. Consta que Antoliano Aires Alencar comentou que uma parente sua, mulher casada, estava traindo o seu marido com Aristides Sampaio, o filho vingador do coronel Romão. Então, o que aparentemente era só um boato, um fuxico besta, acabou por gerar uma tremenda surra em Antoliano Alencar nas proximidades de sua propriedade. E houve mais – além de surrado, Antoliano foi amarrado e obrigado a engolir pedaços de páginas de jornais misturados com urina. Uma versão afirma que então Zito Alencar teria ficado possesso com a situação e tomou as dores do parente. Foi pessoalmente reclamar do caso com o coronel Romão Filho, que nada fez. E aí veio os crimes do dia 10 de abril de 1949.
Cemitério de Exu.
Seja lá quais forem as reais e corretas versões, a tristemente lembrada “Guerra do Exu” teve início naquele Domingo de Ramos de 1949. Ao longo dos anos muitas covas seriam abertas no Cemitério São Raimundo e muito choro seria derramado.
O Cenário das Lutas
A cidade de Exu começou a sua história nos primeiros anos do século XVIII, com os contatos entre os vaqueiros de uma fazenda vinculada à Casa da Torre, de possíveis proprietários baianos, com o povo indígena Ançu ou Açu, identificado com a nação Cariri e que viviam nas vizinhanças[10].
Exu e ao fundo o Serrote do Alto Grande.
Consta que os índios levaram esses vaqueiros até às suas tabas e estes informaram aos seus patrões que nas terras onde moravam os indígenas existiam fontes de água e terrenos de boa qualidade para o cultivo e criação. Anos depois chegaram alguns freis jesuítas, que ali permaneceram por certo período. Em 1734 foi constituída a Freguesia do Senhor Bom Jesus dos Aflitos, com um abrigo e uma capela, tendo com isso se desenvolvido o núcleo populacional local.
Em Exu circula a ideia que entre os primeiros colonos a penetrarem em terras que compõem atualmente esse município pernambucano estava o português Joaquim Pereira de Alencar, anteado do escritor e político cearense José de Alencar e avô do Barão do Exu[11]. Após o fim da Revolução Pernambucana, ou Revolução dos Padres (6 de março a 20 de maio de 1817), ocorreu em Recife a prisão da comerciante e revolucionária Bárbara de Alencar (1760 – 1832), exuense descendente dos primeiros colonos portugueses que se estabeleceram na região e considerada a primeira presa política do Brasil, marcou sua existência com muitas lutas. Em consequência sua Fazenda Caiçara foi confiscada e ela e outros membros da sua família só foram libertados da prisão em 1820[12].
Em março de 1846 o povoado de Exu era elevado à categoria de vila e em 7 de julho de 1885 a município.
Banho de Sangue
Mas voltando as questões ocorridas no século XX, com a morte dos antigos líderes políticos a família Alencar despontou nos pleitos municipais e seus membros assumiram o domínio político de Exu. A partir de 1950 elegeram todos os prefeitos e garantiram sempre a maioria dos nove vereadores da Câmara Municipal. Diziam que “não perdiam nem eleição de quermesse e pastoril”.
Em 1956 Juarez Aires de Alencar, filho de Cincinato e irmão de Zito Alencar, encontrou na cidade do Crato, Ceará, com o agora ex-prefeito Otacílio Pereira de Carvalho e aquilo lhe esquentou o sangue. Enfim, não era fácil encontrar com um dos assassinos do seu pai e tentou pegar sua arma. Mas naquele dia Otacílio não perdeu tempo com meditações e abriu fogo. Deu dois tiros secos e rápidos que mataram Juarez. Vale frisar que Otacílio aria por dois julgamentos e seria absolvido em ambos.
Notícia do resultado do julgamento de Otacílio Pereira de Carvalho.
Em 1957, em um final de tarde de um dia de feira, Francisco Vaqueiro, ajudante de Antoliano Alencar e tido pelas autoridades como pistoleiro, foi morto em Exu com quatro tiros e seus pretensos assassinos foram os irmãos Janilton e Javilmar Sampaio Peixoto e um primo de nome Delmar. Nessedia, como medida de precaução, ninguém saiu as ruas quando escureceu e o bilhar ficou vazio e sem conversas.
Então houve um momento de calmaria, de paz provisória, onde segundo escreveu o repórter Ricardo Noblat “Esse período de tranquilidade em Exu foi farto de casamentos entre os membros dos dois grupos e também de alianças políticas”[13]. E quando veio a Revolução de março de 1964, o período da Ditadura Militar, em Exu só existia o partido do Governo Federal, a ARENA – Aliança Renovadora Nacional. E para acomodar os dois grupos foi criada por eles uma divisão local e surgiu a “ARENA 1” e a “ARENA 2”. Completamente desunidas na política local, mas unidas no plano federal.
Em 1965, apenas pelo ódio latente existente, Antônio Jaílson Sampaio Peixoto foi morto em Exu com onze tiros pelas costas. Os autores foram os irmãos José Audísio Aires Alencar e Canuto Aires Alencar. Antônio Jaílson tinha 19 anos. Essa morte trouxe para luta outras duas famílias – os Aires se ombrearam com os Sampaio e os Alencar com os Peixoto.
Consta que a partir desse último caso, em meio a toda essa sangria, as autoridades pernambucanas despertaram mais seriamente para o problema. O destacamento policial do Exu foi reforçado e foram nomeados delegados com a missão de restaurar a paz na cidade. Mas logo as mortes se sucederam.
Blitz policial perto de Exu.
Em 1966, Getúlio Coutinho morreria em Exu com tiros disparados por Adauto Alencar Filho. No ano seguinte Raimundo Canuto de Alencar morreu no centro de Exu, diante de um clube local, com cinco tiros disparados pelos primos Jamilton Peixoto Sampaio e Carloto Peixoto. Esse crime ocorreu no dia 13 de agosto de 1967 e a viúva de Raimundo, Gilvandete Canuto de Alencar, ficou com a responsabilidade de cuidar de nove filhos. Ainda em 1967, Jeová Colombo Coutinho, muito ligado a família Sampaio, trocou tiros com Raimundo Aires Alencar Ulisses, tendo ambos saídos feridos. Colombo com dois balaços e Raimundo com um.
Alguns anos depois, no dia 20 de fevereiro de 1972, um domingo, João Wagner Canuto Alencar (um dos filhos de Raimundo Canuto), de 23 anos, foi morto a tiros por Romeu Soares de Oliveira Sampaio, o Romeuzinho, um menino de 16 ou 17 anos. Em depoimento ao Jornal do Commercio, de Recife (edição de 15 de setembro de 1972, pág. 8), sua mãe Gilvandete Canuto de Alencar afirmou que Romeu teria tido o apoio de outros membros da família Sampaio. Comentou ainda que seu filho foi morto com tiros pelas costas quando concertava um Jipe, em frente ao posto de gasolina de Exu.
Não demorou e o troco chegou. Na tarde de 30 de abril de 1972, José Sampaio de Oliveira, pai de Romão Sampaio e tabelião de Exu, foi atacado por dois pistoleiros e levou cinco ou seis tiros, mas incrivelmente sobreviveu. Contaram outros 16 buracos de balas na parede de sua casa e os autores foram dois jovens. Um deles fugiu sem deixar rastro e o outro foi até preso, mas fugiu da cadeia. José Sampaio ficou com uma das balas na barriga e se mudou para a cidade pernambucana de Serrita, reduto dos Sampaio.
Enquanto isso o povo do Exu vivia rezando todos os dias para ver se Deus acabava com aquelas lutas. Quase ninguém ia ver filmes nos cinemas São Paulo e Alvorada e na feira, ponto de concentração da economia do município, o movimento diminuiu cerca de 40% e a arrecadação da prefeitura caiu 1/3 naquele 1972 pavoroso. Consta, segundo informou o coletor público Wilson Saraiva aos jornalistas, que a arrecadação do ICM (Imposto sobre Circulação de Mercadorias) caiu 35% em meio aos tiroteios.[14] A luta dividiu a tudo e a todos. Os Sampaio só frequentavam o Clube Recreativo 8 de Setembro e os Alencar o CEE – Clube Estudantil do Exu. A Praça da Bomba era o ponto de encontro dos Sampaio e a Praça Aprígio Pereira era o reduto dos Alencar[15]. E tem um detalhe – A intensa Exu tinha apenas 5.000 habitantes em 1972.
Quatro meses depois do atentado a José Sampaio, no dia 19 (algumas fontes dizem 20) de junho, foi a vez de Adauto Alencar ser morto. Este era solteiro, com 30 anos de idade e filho adotivo de Antoliano Alencar. Foi atingido quando seu irmão, o engenheiro agrônomo João Oldan de Alencar, parou a sua camionete C-10 e Adauto desceu para abrir uma porteira da fazenda do seu pai, a Romana (ou “Rumânia”). Recebeu apenas um tiro nas costas, disparado de um rifle Winchester 44 e seu irmão testemunhou tudo. Segundo Oldan, que não foi ferido e nem viu o atirador, depois que seu irmão recebeu o disparo ele ainda sacou do seu revólver e deu três tiros a esmo, caiu gritando de dor e faleceu. No local onde ficou o atirador de tocaia foi encontrado um verdadeiro esconderijo camuflado por ramos de árvores, onde havia restos de comida, uma cama improvisada e outros objetos, mostrando que o assassino ou alguns dias na posição para executar seu plano malévolo. Nunca foi mencionado em documentação ou na imprensa quem disparou contra ele, mas lembremos que Adauto foi acusado da morte de Getúlio Coutinho em 1966[16].
Situação da Justiça em Exu na época dos conflitos.
Em 17 de agosto de 1972, uma quinta-feira, o fazendeiro Jeová Colombo Coutinho, ligado aos Sampaio, saiu de casa cedo com o propósito de seguir até o Crato, porém, na altura da Fazenda Cachoeira, ele foi obrigado a parar seu veículo para retirar algumas pedras e troncos de madeiras colocados na estrada. Logo uma saraivada de tiros se abateu contra ele. Mesmo ferido o fazendeiro ainda sacou seu revólver e revidou à agressão, não conseguindo, no entanto, ferir ou identificar os atacantes. Atraídos pelos disparos, os empregados da fazenda Cachoeira correram até o local e encontraram Jeová Colombo Peixoto todo ensanguentado e de revólver em punho. Ele foi conduzido até Exu, onde membros da família Sampaio o removeram para o hospital do Crato. No local da emboscada descobriram cabaças com água, uma sandália japonesa meio cortado e restos de comida. Ninguém foi preso[17]. Existe a informação que Jeová levou 20 tiros e ficou paralítico[18].
Praça no centro da cidade.
O ódio tinha criado raízes. Por Isso, Janilton Sampaio Peixoto, irmão de Jamilton e Antônio Jaílson, funcionário público residindo no Recife e istrando o Mercado de Santo Amaro, tombou crivado com nove tiros de calibre 38 no dia 11 de setembro de 1972, uma segunda-feira, quando jantava com a família no restaurante “Palhoça do Melo”. Luiz Alberto e Antônio Aires de Alencar foram acusados de matar Janilton. Existe a informação que eles viviam em Santa Catarina e vieram de lá só para praticar esse assassinato. Deuzimar Ulisses Peixoto, a esposa de Janilton, foi ferida no braço e os dois filhos do casal, crianças de sete e dez anos de idade, presenciaram tudo.
Cruzes nas estradas de Exu.
No dia seguinte, ainda em Recife, defronte ao Edifício Cristina, no bairro do Espinheiro, José Arez Aires de Alencar foi ferido com três tiros efetuados por Vital Sampaio Peixoto e outros homens. O ambulante José João da Silva, que ava pelo local, foi ferido na ação.
Segundo informava o Diário de Pernambuco (edição de 14 de setembro de 1972), que em meio as lutas e como “medida acauteladora”, vários integrantes das famílias Alencar e Sampaio mandaram suas mulheres e filhos menores para outras cidades. E em Exu ficaram “apenas os rapazes que sabem atirar”. E o jornal completava afirmando “As mulheres e filhos dos Sampaio foram para o Crato, no Ceará, e as dos Alencar estão no Araripe”, outra cidade cearense. Mas houve outros problemas. Desde dezembro de 1971 não havia mais festas na cidade e cinco professoras pediram desligamento do MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização) de Exu, pois os alunos simplesmente sumiram das salas de aula.
Revista policiual em um veículo que entrava em Exu.
As Manobras em Exu e Bodocó
Foi quando alguém decidiu tomar uma iniciativa para acabar com aquela verdadeira “orgia de sangue”. O então coronel Ivo Barbosa, comandante do 71º Batalhão de Infantaria Motorizada (71º BIMtz), sediado na cidade pernambucana de Garanhuns, foi quem tomou essa iniciativa.
Nascido em 19 de maio de 1928, na cidade de Nazaré da Mata, na área da zona da mata norte de Pernambuco, Ivo Barbosa de Araujo foi declarado aspirante a oficial da Arma de Infantaria em 17 de dezembro de 1948, ao concluir o curso de oficial da Escola Militar de Resende, atual Academia Militar das Agulhas Negras, e a partir daí foi galgando os postos do oficialato no Exército Brasileiro.
Soube que a ideia desse encontro começou durante uma manobra militar realizada entre as cidades pernambucanas de Bodocó e Exu e contava com a participação dos membros do 71º BIMtz. Durante quase uma semana (de 18 ao dia 24 de setembro de 1972) circularam nessa área com seus jipes e caminhões REO 6×6, um total de 379 militares (19 oficiais e 360 praças). Houve na verdade a realização de uma “Operação Presença” do Exército Brasileiro nessa área, que desdobrou em uma ACISO (Ação Cívico Social do Exército) em Exu. O tenente-médico Cláudio Montenegro Gurgel do Amaral e o tenente-dentista Climério Leite fizeram mais de 200 atendimentos e foram realizadas mais de 300 visitas sanitárias nas residências. Até a banda de música do batalhão tocou frevos na praça principal da cidade. Quem também adorou a chegada dos militares foi o comércio exuense, pois eles adquiriram muita comida e outros produtos na cidade e em propriedades vizinhas. Os militares circularam pelas ruas em seus uniformes verde-oliva, capacetes M-1 na cabeça, portando reluzentes fuzis FAL, metralhadoras INA e as famosas pistolas Colt 45, o que deixou Exu na mais absoluta paz durante aqueles dias[19].
Soldado do exército em uma esquina de Exu em setembro de 1972.
O coronel Ivo Barbosa então procurou os líderes das duas famílias e propôs um encontro na sede do seu batalhão, com o objetivo de sentarem frente a frente, dialogarem juntos e encontrarem o caminho da paz. E as lideranças concordaram. Na verdade, aquela proposta acabou sendo praticamente uma ordem, pois os chefes dos Alencar e Sampaio não eram idiotas de se colocarem contra o pedido de um oficial do Exército Brasileiro. Algo que naquela época poderia, talvez, trazer consequências mais complicadas para eles e seus negócios[20].
Mas antes até de ocorrer o encontro nas dependências do 71º BIMtz, um outro ato de violência foi praticado. José Aires de Alencar, o Zito Alencar, que matou o coronel Romão Sampaio no Domingo de Ramos de 1949, sofreu um atentado no dia 2 de outubro de 1972.
Soldados do Exérrcito Brasileiro em Exu.
Depois que Zito Alencar matou o coronel Romão ele foi preso, mas fugiu pouco tempo depois (dizem que subornou a guarda). Foi então para São Paulo de avião, onde ali ou alguns anos e existe a informação que teria até se formado. Daí voltou para o Nordeste, onde decidiu viver no município paraibano de Sapé com o nome falso de Adail Pessoa e montou um negócio. Mas nesse dia, ao dirigir na estrada que dava o a essa cidade, cruzou com um veículo Opala vermelho quando, de maneira rápida e inesperada, vários tiros partiram desse carro em direção ao seu, sendo Zito Alencar atingido no pescoço e na mão esquerda. Logo ele pegou um revólver com a mão direita e mandou três balaços no veículo dos pistoleiros, que fugiram. Como estava a apenas a cinco quilômetros de Sapé ele chegou rápido, recebeu apoio e sobreviveu[21].
O Acordo do Quartel de Garanhuns
O coronel Ivo Barbosa, apesar de preocupado, não esmoreceu e preparou seu 71º Batalhão de Infantaria Motorizado para o evento. Mas antes disso enviou para as autoridades em Brasília um relatório sobre o caso e sugeriu que, independentemente da do tal acordo, que em pouco tempo fosse decretada a intervenção federal no município, de forma a torná-lo área de segurança, com um policiamento ostensivo e permanente, onde seria realizado frequentes operações de desarmamento na cidade, nos sítios e nas fazendas. Evidenciando que apenas com à adoção de medidas preventivas e permanentes aquela luta fraticida e sangrenta teria um fim. Mas em Brasília ninguém deu atenção ao seu relatório!
Naqueles tempos complicados não era difícil ver em Exu.
Então, no domingo, 15 de outubro de 1972, ocorreu o encontro dos líderes e integrantes das famílias Alencar e Sampaio. Vejo que só o fato do coronel Ivo Barbosa colocar em uma mesma sala os integrantes daquelas duas famílias desarmados e uns diante dos outros, já poderia ser considerado um enorme êxito.
O maior resultado do comandante do Batalhão da Infantaria de Garanhuns foi ter sido redigido um “PROTOCOLO DE PAZ” constante de dez cláusulas, a ser assinado pelos membros de ambas as famílias. Lendo o documento eu percebo que ele atinge as raias do incrível, que mostra de alguma forma como se desenrolou essa reunião. Olhem abaixo:
Termos do acordo fimado na sede do 71º Batalhão de Infantaria Motorizada de Garanhuns.
Anos depois ao conceder uma entrevista, o coronel comentou que viu o clima em Exu muito tenso, fruto das mortes de muitos pais de famílias e outras pessoas que ali foram executadas. Afirmou que naquela luta jovens perderam a vida estupidamente e que em sua opinião a briga alcançou proporções incontroláveis de violência e barbarismo. Ele afirmou também que conheceu, provavelmente na época das manobras militares, muitos integrantes das duas famílias, que para ele eram homens trabalhadores e sérios, a elite da cidade, mas que estavam envolvidos emocionalmente no conflito e com o coração cheio de ódio. Afirmou que se mostrou chocado com os acontecimentos e apelou aos chefes dos clãs Sampaio e Alencar no sentido que fizessem uma pausa, meditassem e pensassem no futuro dos seus filhos e abandonassem a luta.
Para o coronel as manobras políticas e as intrigas se encarregavam de desencadear o ódio, de dar corpo a violência, de transformar rapazes imberbes em matadores frios e calculistas, justificando seus atos em nome da vingança, sentimento responsável pelo ciclo interminável da luta fratricida — “Matei para vingar, para lavar meu sangue com sangue – Essa era sempre a desculpa e a justificativa para a sucessão de mortes. Em um ambiente onde não há possibilidade de um equilíbrio emocional, os atentados, os homicídios e emboscadas são cometidos como um ato de heroísmo, de bravura, estimulando o derramamento de sangue. Então, a fúria incontrolável e inconsciente dos mais jovens havia se tornado o elemento de continuidade da luta entre os Sampaio e os Alencar.
Muitos fatores contribuíram para esse conflito continuar. As duas famílias lutavam pelo domínio da política partidária em Exu, recorrendo a todos os expedientes para alcançarem seus objetivos. Não esqueçamos as intrigas, a presença dos pistoleiros, os boatos alarmantes e a ausência da Justiça contribuíram muito para o caos. Some também a ideia do “Machismo do sertanejo” e a crença na letalidade fatalista de que “o homem só morre no dia certo”[22].
Segundo foi publicado no jornal carioca O Globo, após o encerramento do encontro, vários membros das duas famílias seguiram para as cidades cearenses de Barbalho, Crato, Missão Velha e Milagres e as localidades pernambucanas de Salgueiro, Araripina, Serrita, Bodocó e, evidentemente, Exu. Eles tinham a missão de conseguir as s dos membros das duas famílias que viviam nesses locais. Até Zito Alencar, que se recuperava do recente atentado em uma cama de hospital na Paraíba, assinou[23].
Policiais em Exu.
Acho que o maior problema desse momento foi que, por conveniência ou medo de estragar o encontro e uma possível paz, não se deliberou em nenhum momento punições para os envolvidos nos muitos crimes praticados. Se o Exército, que era politicamente muito forte nesse tempo, não apontou nenhum aspecto de punibilidade nesse encontro para os mais celerados, acho que só serviu para ampliar a já elevada sensação de impunidade e a certeza que tudo era possível!
Os jornais da época mostram uma certa euforia, torcida mesmo, para que aquele conflito se findasse. Mas…
O Começo do Fim
Mas o compromisso foi quebrado exatamente as uma e meia da tarde de 17 de janeiro de 1973, apenas três meses após o encontro em Garanhuns, quando Raimundo Aires de Alencar Ulisses, então prefeito de Exu, foi assassinado com tiros de revólver na praça principal da cidade, próximo a prefeitura e da Igreja Matriz de Bom Jesus dos Aflitos. Nesse crime ficou ferido com um tiro no pé Antônio Lourenço de Oliveira e foram acusadas seis pessoas. Raimundo Alencar não completou o seu mandato, sendo assassinado quando faltava 30 dias para terminar seu mandato. Deixou quatro filhos e sua esposa Riseuda Parente Aires estava gravida de seis meses[24].
Ao longo dos anos seguintes mais e mais mortes aconteceram, algumas sendo realizadas no Maranhão e até no Rio de Janeiro. Houve novas tentativas de acordos patrocinados pela Igreja Católica, que foram quebrados. Até Luiz Gonzaga, o mais ilustre filho de Exu, tentou com o seu prestígio acabar com aquela sangria. Mas, apesar do respeito que as famílias tinham pelo seu sucesso, não houve maiores resultados.
Luiz Gonzaga tocando para seu pai Januário em Exu. Foto realizada meses antes do falecimento de Seu Januário.
A imprensa pernambucana e nacional divulgava com destaque, muitas vezes mórbido e até mesmo doentio, cada acontecimento sangrento ocorrido em Exu, ou envolvendo os membros das famílias em litígio, o que só gerou problemas para os moradores do lugar. Várias vezes os jornais apontaram Exu como “A Cidade Maldita”. No final da década de 1970, o município foi até cenário das gravações de um documentário chamado “Exu, Uma Tragédia Sertaneja”, dirigido pelo competente documentarista Eduardo Coutinho, que buscou retratar os conflitos locais entre as famílias Alencar e Sampaio, tendo sido exibido no programa “Globo Repórter” e causado muita repercussão. Em meio a tudo isso, várias famílias de Exu se dispersaram pelo Brasil, em uma verdadeira diáspora para terem apenas o direito de viver!
Marco Maciel decreta a intervenção em Exu em 1981.
O fim, ou o começo do fim, só começou de verdade em 9 de novembro de 1981, quando Marco Antônio de Oliveira Maciel, então governador de Pernambuco, assinou a ordem de intervenção estadual no município de Exu e contando com o apoio do Governo Federal. Junto com o então Secretário de Segurança Pública Sérgio Higino Dias dos Santos Filho, decidiram exonerar José Peixoto de Alencar, o prefeito eleito de Exu, e todos os vereadores.
A esquerda o Secretário de Segurança Pública Sérgio Higino Dias dos Santos Filho, junto do major Jorge Luís de Moura, interventor do município de Exu.
Designaram como interventor na cidade o major Jorge Luís de Moura, da Polícia Militar do Estado de Pernambuco. Ficou famosa a foto do major Moura andando pela cidade fardado, com uma valise em uma mão e na outra uma escopeta calibre 12.
O coronel Ivo Barbosa, que esperou nove anos para ver a intervenção do governo chegar ao Exu, o que talvez pudesse ter evitado muitas mortes, alcançou o posto de general de brigada e faleceu, salvo engano, em 2005.
Material do extinto Servição Nacional de Informações (SNI) sobre a intervenção em Exu.
Quem hoje visita Exu encontra um município com mais de 30.000 habitantes, com crescimento estável, uma cidade agradável do sertão nordestino, com um povo muito receptivo, que se orgulha de ser a terra do “Rei do Baião”. Eles gostam de mostrar aos visitantes o Parque Aza Branca, um museu dedicado à vida e à carreira de Luiz Gonzaga, além do Museu Bárbara de Alencar, na casa-grande da Fazenda Caiçara, e os interessantes locais na zona rural para a prática do ecoturismo. Em nenhum momento para um visitante que ali vai se sente o mínimo aspecto de tensão e medo. Mas, definitivamente, os moradores de Exu detestam relembrar esse período complicado da história do seu lugar. E eu não lhes tiro a razão.
Exu atualmente – Fonte – G1-PE.
Por isso, buscando compreender mais do que ali aconteceu em relação aos fatos históricos, foi que pesquisei e escrevi esse texto.
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NOTAS
[1] A denominação Exu, conforme os habitantes da terra, teria duas versões, uma decorrente de uma corrutela do nome da tribo que ali habitava e a outra é a denominação popular de um tipo de vespa que produz mel, cujo nome científico é Nectarina lecheguana, e chamada de “Inxu”, que ao ferroar causa muita dor.
[2] Importante comentar que o coronel Romão Filgueira Sampaio Filho era irmão do coronel Francisco Romão Sampaio, o famoso Chico Romão, o chefe da cidade pernambucana de Serrita e que morreu baleado em 1964. Ambos eram filhos do coronel Romão Pereira Filgueira Sampaio, importante figura política do final do século XIX no extremo oeste pernambucano e sul do Ceará, com o seu poder alcançando desde a cidade cearense de Jardim, até Salgueiro e Serrita, em Pernambuco.
[3] Partido Social Democrático (PSD) foi um partido político brasileiro identificado como de centro e fundado em 17 de julho de 1945 por antigos interventores do Estado Novo nas unidades federadas. Elegeu dois presidentes (Eurico Gaspar Dutra e Juscelino Kubitschek) e dois primeiros-ministros (Tancredo Neves e Brochado da Rocha). Também foi o partido de três presidentes da república que ascenderam ao cargo em função da linha sucessória (Carlos Luz, Nereu Ramos e Ranieri Mazzilli). Foi extinto na ditadura militar, pelo Ato Institucional Número Dois (AI-2), em 27 de outubro de 1965. Ver – https://pt.wikipedia.org/wiki/Partido_Social_Democr%C3%A1tico_(1945) .
[4] Udenista é referente a UDN, ou União Democrática Nacional, um partido político fundado em 1945, de orientação conservadora e frontalmente opositor às políticas e à figura de Getúlio Vargas. Existiu de 1945 a 1965. Ver – https://pt.wikipedia.org/wiki/Uni%C3%A3o_Democr%C3%A1tica_Nacional
[5] Cincinato de Alencar Sete (ou algumas vezes Sette) é como o nome desse Senhor aparece nos registros oficias de bastimos dos seus filhos e até no atestado de óbito de Zito Alencar. Entretanto, em documentos da polícia pernambucana e na imprensa em geral, o nome que surge é Cincinato Sete de Alencar. Preferi seguir os documentos existentes em cartórios. Alguns desses registros apontam que Cincinato tinha a patente de capitão da Guarda Nacional.
[6] A imprensa informou na época que seu nome era Francisco Sete de Alencar. Novamente sigo os documentos em cartório que afirmam seu nome era Franscisco Aires de Alencar. Não consegui descobrir qual foi a real participação de Francisco nesse tiroteio, mas descobri que ele depois de ferido foi se tratar no Crato, Ceará, e de lá veio de avião para o Recife. Consta que faleceu em 1979.
[7] Ver Diário de Pernambuco, edição de 12 de abril de 1949, terça-feira, pág. 3.
[8] Ver Diário da Noite, Recife-PE, edição de 4 de fevereiro de 1953, quinta-feira, pág. 3.
[9] Ver revista O Cruzeiro, Rio de Janeiro-RJ, edição de 30 de outubro de 1979, págs. 20 a 25.
[10] A Casa da Torre foi o embrião de um grande morgado que se iniciou na capitania da Bahia ainda no século XVI e que, por quase 300 anos, expandiu-se ao longo das gerações dos seus senhores por mais de 400 léguas na Região Nordeste do Brasil — um território que correspondia ao dobro da capitania do Piauí — à custa de guerras de extermínio contra os índios, com escravização destes para trabalharem nas plantações de cana-de-açúcar, nos engenhos e nas criações de animais. A expansão também foi motivada pela busca de metais preciosos, mas sem maiores sucessos. Constitui-se no centro de um expressivo poder militar no período colonial. De 1798 em diante, esteve envolvido nas lutas pela Independência do Brasil. Muitos dos seus membros foram agraciados com títulos de nobreza pelos monarcas Pedro I e seu filho Pedro II – Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Casa_da_Torre .
[11] Guálter Martiniano de Alencar Araripe, primeiro e único barão de Exu (Exu, 18 de junho de 1822 — Exu, 22 de julho de 1889), foi um político brasileiro, coronel da Guarda Nacional e eleito por diversas vezes deputado provincial por Pernambuco – Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Gu%C3%A1lter_Martiniano_de_Alencar_Araripe .
[13] Ver Revista Manchete, Rio de Janeiro-RJ, edição de 22 de julho de 1972, págs. 126 a 128.
[14] Ver Diário da Noite, Recife-PE, edição de 5 de julho de 1972, 1º Caderno, pág. 3.
[15] Ver revista O Cruzeiro, Rio de Janeiro-RJ, edição de 30 de outubro de 1979, págs. 20 a 25.
[16] Ver Diário de Pernambuco, edições de quarta e quinta-feira, 21 e 22 de junho de 1972, sempre nas primeiras páginas.
[17] Ver Diário de Pernambuco, edição de sexta-feira, 18 de agosto de 1972, pág. 12.
[18] Ver Revista Manchete, Rio de Janeiro-RJ, edição de 3 de fevereiro de 1973, págs. 123 a 126.
[19] Ver Diário de Pernambuco, edição de domingo, 14 de setembro de 1972, pág. 27.
[20] Ver Revista Manchete, Rio de Janeiro-RJ, edição de 3 de fevereiro de 1973, págs. 123 a 126.
[21] Ver Diário de Pernambuco, edição de domingo, 3 de outubro de 1972, pág. 1.
[22] Ver Diário de Pernambuco, edição de domingo, 3 de setembro de 1978, pág. 15.
[23] Ver O Globo, Rio de Janeiro-RJ, edição de sexta-feira, 20 de outubro de 1972, pág. Anos depois, quando o encontro no quartel de Garanhuns era somente uma lembrança quase irônica, foi a vez de Zito Alencar ser eliminado. Após se recuperar do atentado em Sapé em 1972, Zito decidiu voltar ao Exu e se candidatou a prefeito em 1977, sendo eleito em 1º de fevereiro. Governou Exu por apenas 15 meses, quando em 12 de maio de 1978 foi assassinado com dois tiros na cabeça, sentado na cabine de uma camionete D-10, estacionada defronte a Farmácia São José. O acusado de matar Zito foi o pistoleiro Gérson Lins, o “Joínha”, que na época estava preso na cadeia pública de Juazeiro do Norte, Ceará, mas saiu sem problemas para executar o crime. Na época Gerson confessou à polícia e a imprensa que o mandante da morte de Zito foi Raimundo Peixoto e a “encomenda do serviço” foi de CR$ 30.000,00 (Trinta mil cruzeiros). Depois de suas declarações à imprensa, Gérson Lins afirmou que confessou mediante tortura realizada por policiais, mas essas acusações foram refutadas.
[24] Ver Diário de Pernambuco, edição de quinta-feira, 18 de janeiro de 1973, pág. 1.