O Dornier Do J Wal “Plus Ultra” em Buenos Aires, no fim da longa viagem
Autor – Rostand Medeiros – IHGRN
A Espanha havia sido um grande império colonial, entretanto, no fim do século XIX, o império espanhol acumulava derrotas, humilhações e um quadro social dos mais terríveis.
A partir de 1902, com o reinado personalista de Afonso XIII, a própria monarquia encontrava-se em uma posição muito delicada. Ocorrem conspirações, forte crise econômica, social e intenso fortalecimento do regionalismo Catalão e Basco, que sonhavam com suas respectivas autonomias. Ocorrem igualmente fortes distúrbios sociais, fortalecidos pelo crescimento dos movimentos socialistas e anarquistas, principalmente na Catalunha. Devido a toda esta crise, desencadeia-se uma forte imigração espanhola para outros países. Entre os anos de 1904 e 1913, por exemplo, serão 224.672 espanhóis que emigram para o Brasil.
Diante desta situação tumultuada e visando manter sua sobrevivência política, o Rei Afonso XIII encoraja o golpe militar do general Miguel Primo de Rivera y Orbajena, que no dia 13 de setembro de 1923, dissolve as Cortes (Parlamento) e estabelece a ditadura. Com o apoio de uma junta militar, implanta a censura e uma forte perseguição política.
Em meio a estes acontecimentos um grupo de jovens oficiais das Forças Armadas Espanholas, entusiastas da aviação, decidem organizar um voo transoceânico, ligando a Espanha e a Argentina, ando pelo Brasil. À frente deste planejamento, estava o comandante de infantaria do exército espanhol Ramón Franco y Bahamonde Salgado Pardo de Andrade, natural de El Ferrol, na província de La Corunã.
Dornier Do J Wal
Ramon Franco utilizou os seguintes argumentos como justificativa para este voo – Mostrar em meio a um tumultuado momento o valor da aviação espanhola, buscar propaganda positiva no exterior para o país, utilizar este projeto para conhecer as características de um voo de longo alcance com uma aeronave melhor equipado e preparado, visando à abertura de futuras linhas aéreas e utilizar a repercussão do voo para estreitar os laços diplomáticos com os países da América do Sul, principalmente os de língua espanhola. Além de mostrar para os espanhóis emigrados que um novo e moderno país se fazia presente no cenário mundial.
Ramon Franco entrega então um plano detalhado ao diretor da aeronáutica militar, que vislumbra uma ótima oportunidade de promoção do regime e aprova o vôo em 1925. Neste momento é convocada a tripulação. Como copiloto seguirá o capitão de artilharia do exército Julio Ruiz de Alda Miqueléiz, de Estella (Navarra), como terceiro piloto e navegador, o alferes da marinha Juan Manuel Duran Gonzáles, professor da Escola Naval de Barcelona, natural de Jerez de la Frontera (Cadíz) e como mecânico, o soldado Pablo Rada Ustarroz, de Caparroso (Navarra).
Tripulação principal do “Plus Ultra” – No alto, a esquerda está Ramon Franco, a direita vemos Julio Ruiz de Alda Miqueléiz. Abaixo a esquerda está Pablo Rada Ustárroz e a sua direita Juan Manuel Durán González.
Foi escolhido para o voo o hidroavião Dornier Do J Wal, planejado e construído pela fábrica Dornier Flugzeugwerke, de Friedrichshafen, Alemanha. Por esta época, devido às restrições existentes no Tratado de Versailles, os alemães não podiam fabricar este tipo de aeronave, por esta razão o comandante Ramon Franco foi buscar o seu exemplar na Itália, onde era fabricado pela a Construzioni Meccaniche Aeronautiche S.A. (CMASA), na Marina de Pisa.
O hidroavião era um dos melhores produtos existentes no seu tempo, possuía um casco central, era de construção totalmente metálica, tripulação de cinco pessoas, com piloto e copiloto sentados lado a lado em cabine aberta. Era motorizado por dois motores Napier Lion, montados em tandem e com potência de 450 hp cada um. Seu peso normal era de 2.500 kg e peso total carregado de 7.500 kg. Tinha uma envergadura de 23,20 metros, comprimento total de 18,20 metros, alcance de 1.080 km, altitude máxima de 3.600 metros, velocidade de 180 km/h, quantidade de combustível de 400 litros de gasolina. Especificamente para este voo a aeronave foi equipada com um sistema de radiotelegrafia com alcance de 600 km, bússolas, derivômetro (Instrumento de voo, usado para indicar o ângulo de deriva), material salva-vidas, uma máquina de destilação de água, sextante, mapas e, visando o apoio no transporte de gasolina de reserva, o comandante Franco solicitou a Marinha Espanhola o apoio de dois navios de guerra, sendo designados o cruzador “Blas de Lezo” e o destroier “Alsedo”.
Plus Ultra
Fonte – elladooscurodelahistoria.blogspot.com
Estando tudo pronto, o comandante Franco recebe a ordem de voo no dia 18 de janeiro de 1926, mas faltava um detalhe, o nome da aeronave. Foi escolhido o termo latino “Plus Ultra”, que significa “mais além”. Sua origem vem da antiguidade, quando a Espanha era a terra mais ocidental que havia no mundo antigo, pois se considerava que após o estreito de Gibraltar, não haveria mais nada, só um grande abismo povoado por monstros terríveis. Reza a lenda que o herói mitológico Hércules colocou duas colunas no estreito, eram as conhecidas Colunas de Hércules, sendo uma na Espanha (no monte Calpe) e outra na África (monte Abile), com uma inscrição latina que advertia aos navegantes que não deveriam ir mais adiante “Non Plus Ultra” (não mais além). Mais tarde, com o descobrimento da América por Colombo, o povo ou designar somente “Plus Ultra” (mais além).
A rota escolhida teria início na cidade de Palos de la Frontera, na província de Huelva. A escolha era antes de tudo baseada em fatores históricos e sentimentais para o povo espanhol. Pois foi do porto de Palos que Cristóvão Colombo iniciou a sua épica viagem ao novo mundo 1492. Os aviadores participaram de uma missa solene na igreja de São Jorge, a mesma utilizada por Colombo e seus homens antes da sua viagem.
No dia 22 de janeiro de 1926, às 07:55 da manhã, o “Plus Ultra” decolava do Muelle de La Calzadilla, no porto de Palos, diante de uma grande multidão. A aeronave seguiu sem maiores problemas em direção as Ilhas Canárias, mais precisamente ao seu principal porto, também conhecido como Puerto de la Luz. Chegaram ás 15:03, tendo percorrido o trajeto de 1.315 km, em oito horas e oito minutos, com uma velocidade média de 163 km/h (velocidade esta comum a modernos automóveis com motorização 1.6).
No Puerto de la Luz foi realizada uma minuciosa revisão, mas, pelas condições do mar, o hidroavião foi transferido para a Baía de Gando. Neste local, devido ao pequeno espaço para decolagem, destinaram 400 kg de cargas em um navio holandês para a Argentina.
No dia 26, às 07:35, decola o “Plus Ultra” em direção as ilhas da então colônia portuguesa de Cabo Verde, a 500 km da costa de Senegal. Este trajeto seria monitorado por diversas estações de rádio e navios, que ajudaram o hidroavião Dornier Do J Wal a seguir a melhor rota. Depois de nove horas de voo, avistam a ilha de São Tiago e a cidade de Porto Praia, em uma etapa de 1.670 km, com uma velocidade média de 185 km/h. Em Porto Praia encontram os dois navios de guerra espanhóis que darão apoio na travessia Atlântica. Neste ponto, o alferes Duran, para diminuir o peso, é transferido para o destroier “Alsedo”, que zarpa no dia 27 de janeiro em direção ao Arquipélago de Fernando de Noronha.
A partir daquele ponto teria início a fase considerada mais difícil pelos aviadores – a travessia do Atlântico Sul.
Sobre o Atlântico Sul
No dia 30 de janeiro, o hidroavião decola as 06:10 para o “salto”. Durante uma hora mantém contato com Cabo Verde e os navios, depois só o silêncio.
Fernando de Noronha visto pelos aviadores espanhóis.
Voam a 300 metros de altitude, sobre um mar agitado e fortes ventos. Apesar desta situação, o voo transcorreu sem maiores problemas. O moral estava extremamente elevado e as máquinas respondiam aos comandos perfeitamente. Depois de mais de doze horas de voo, quando o sol já estava se pondo, avistam as ilhas brasileiras e as suas luzes.
Sendo impossível o pouso noturno, amerissam a vinte milhas de Fernando de Noronha, recebendo apoio de um navio inglês que reboca a aeronave até as proximidades do porto da Vila dos Remédios (alguns historiadores afirmam que a aeronave amerissou de forma equivocada, mas sem maiores consequências e a tripulação foi socorrida pelo navio).
Quando ancoram definitivamente recebem a visita do tenente Queiroz, comandante interino do presidio que existia no arquipélago, no lugar do Diretor Manoel Pinheiro de Menezes Filho. O militar chega em uma grande balsa e informa que naquele momento as condições do mar não ajudariam ao desembarque da tripulação no porto. aram então à noite no “Plus Ultra” e no outro dia chega o destroier “Alsedo”. Os espanhóis finalmente desembarcam em Fernando de Noronha, tendo percorrido 2.305 km, em 12:40 de voo.
Mesmo sem amerissarem no Rio Potengi, em Natal, a expectativa na capital potiguar com uma possível chegada do “Plus Ultra” era intensa. Até mesmo grandes propagandas de marcas de gasolina que abasteceram a aeronave eram vistas nos jornais natalenses da época.
No dia seguinte, 31 de janeiro de 1926, o hidroavião decola as 12:10, com destino a Recife. Estações de radiotelegrafia em Natal, Cidade da Paraíba (atual João Pessoa), Recife e Fernando de Noronha acompanham o trajeto do “Plus Ultra”.
Após a decolagem ouve o problema mais sério de todo o trajeto – a hélice do motor traseiro rompeu-se e houve um princípio de incêndio em pleno voo, debelado pelo mecânico Rada com suas próprias roupas. Neste momento todo material dispensável foi lançado no mar, com o intuito de tornar a aeronave mais leve e poder seguir com apenas um motor.
Este desenho mostra a expectativa da chegada do “Plus Ultra” ao Rio de Janeiro, na época a Capital Federal
No meio de toda tensão, segundo os tripulantes, houve momentos em que o casco do hidroavião Dornier Do J Wal roçou nas ondas, sendo necessário muito esforço e forte tensão para mantê-lo no ar.
Finalmente avistam as praias, provavelmente em algum ponto do litoral paraibano, pois teriam que voar mais 100 km em direção sul para chegarem a Recife. Durante todo este trecho os espanhóis seguiram perigosamente na altura dos coqueiros e já avistavam as pessoas nas praias acenando.
As 16:48, depois de quatro horas e trinta e oito minutos de voo, amerissam em Recife, após realizarem um rasante entre Olinda e o porto da cidade.
Chegada em Recife
Houve uma grande concentração de pessoas, que começou a se reunir desde as duas da tarde, os aguardava no cais do porto, próximo ao atual bairro do Recife Antigo. A cidade, que em 1922 já havia recebido os pilotos portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral, repetia a calorosa recepção a um novo hidroavião que atravessara o Atlântico Sul, adicionado pela grande expectativa gerada pela Rádio Clube do Recife, que a todo o momento irradiava boletins sobre a chegada do aeroplano espanhol.
Notícias sobre a chegada do hidroavião espanhol ao Nordeste brasileiro.
Luiz Amador Sanchez, cônsul espanhol na cidade (futuro escritor, professor da USP e pai do recentemente falecido ator global Luiz Gustavo, que interpretou personagens como “Beto Rockfeller” e “Mário Fofoca”), junto com mais de 500 espanhóis residentes na cidade recepcionam os pilotos. Os tripulantes estavam cansados e a imprensa notou que todos traziam medalhas de Nossa Senhora do Carmo. Ramon Franco esteve no Palácio do Campo das Princesas, onde foi saudado pelo então governador pernambucano Sergio Loreto e foi cumprimentado pela oficialidade do contratorpedeiro Piauí (CT-3), comandados pelo capitão Jorge Dodsworth Martins, futuro ministro da marinha brasileira.
Em meio a pouco descanso no Palace Hotel e muitas solenidades em vários locais, a tripulação do “Plus Ultra” esteve presente no Casino Boa Viagem para uma festa na noite de 2 de fevereiro, onde os tripulantes encaram a pista de dança. E parece que a noite foi muito positiva, pois no outro dia, as nove da manhã, Ramon Franco, na companhia de Pablo Rada, realizou um voo de testes de 20 minutos sobre Recife. Além dos dois tripulantes, acompanharam os espanhóis o cônsul Sanchez, o comandante Dodsworth Martins e duas beldades pernambucanas, Carolina Burle e Dolores Salgado.
A Caminho do Rio de Janeiro
Contudo, a jornada não estava encerrada, pois havia mais de 2.100 km de distância até o Rio de Janeiro, que até então nunca haviam sido percorridas sem escalas. No dia 04 de fevereiro, o “Plus Ultra” decolava do Rio Capibaribe as cinco da manhã, seguindo em direção sul. Depois de doze horas e dezesseis minutos de voo sem alterações, chegavam a Baía da Guanabara, o pouso inclusive teve alguma dificuldade, devido a grande quantidade de barcos que aguardavam o hidroavião Dornier Do J Wal.
Ramon Franco e o então presidente brasileiro Artur da Silva Bernardes, em recepção no Rio.
Ramon Franco e seus amigos foram recepcionados pelo Presidente Arthur Bernardes e outras autoridades. Como em Recife, grandes festividades aguardavam os espanhóis, sendo o comandante do hidroavião homenageado com seu nome batizando uma rua no bairro da Urca. Esta rua conserva até hoje o seu nome.
Placa da Rua Ramón Franco, no bairro da Urca, Rio de Janeiro.
Depois de cinco dias de eventos e festas, no dia 09 de fevereiro decolam rumo a Buenos Aires. Os tripulantes estão com sorte, pois um vento francamente favorável ajuda-os a percorrerem 2.600 km sem escalas, em doze horas e cinco minutos. Apesar disto, o sol já está se pondo, o que dificultaria a amerissagem no Rio da Plata. Os espanhóis decidem amerissar em Montevidéu, Uruguai, escala não prevista.
A rota do “Plus Ultra” em 1926.
No dia 10 de fevereiro de 1926, decolam para Buenos Aires, chegando depois de uma hora e doze minutos de voo. O hidroavião evolui três vezes sobre a capital Argentina e, após amerissar no Rio de La Plata, ocorre uma estrondosa recepção da população local.
Neste momento ocorre uma situação que poderia ter ampliado muito mais a conquista dos tripulantes do “Plus Ultra” e poderia tê-los trazido a Natal. O comandante Franco prontamente telegrafou ao Rei Afonso XIII, informando a finalização do voo e solicitando a permissão de continuar seguindo viagem pela costa sul americana do Oceano Pacifico, até Cuba. Depois continuariam voando até o norte do Brasil, até Natal e cruzariam pela segunda vez o Atlântico sul. Mas, a resposta foi não.
O Rei e as autoridades aeronáuticas espanholas decidiram encerrar a missão na Argentina, pois já estavam imensamente satisfeitos com o feito e não tinham total confiança de que o “Plus Ultra” poderia concluir o trajeto. Seria melhor ovacionar quatro heróis vivos, do que chorar por quatro mártires. Mais uma vez Natal não poderia ser palco da agem do hidroavião espanhol.
Grande recepção aos aviadores espanhóis em Buenos Aires.
A distância total percorrida do trajeto Palos/Buenos Aires foi de 10.270 km, com um tempo estimado de cinquenta e nove horas e trinta e nove minutos de voo, em dezenove dias. Atualmente este trajeto é realizado em uma média de doze horas e meia de voo em um moderno Airbus, ou em um Boeing.
O grande compositor argentino Carlos Gardel não deixou escapar a oportunidade e gravou o tango “La gloria del aguila”, narrando a epopeia dos espanhóis.
A aeronave deveria ser doada a nação Argentina, e lá ela ficou prestando serviços à aviação naval até sua retirada de serviço. Hoje está em exposição no Complexo Museógrafo Enrique Udaondo, de Luján, cidade localizada no extremo oeste da grande Buenos Aires. Uma cópia fiel do hidroavião está exposta no Museo Del Aire, em Madri, Espanha.
Os aviadores espanhóis retornam ao seu país no cruzador argentino “Buenos Aires”, chegando a 5 de abril de 1926. Foram cobertos de glórias e receberam do Rei Afonso XIII medalhas alusivas ao feito.
Esta viagem foi considerada na época, um grande salto na modernização do estado espanhol. Depois o país acompanharia mais dois “raids” aéreos com sucesso, um para as Filipinas e o outro a Guiné Equatorial, com outros aviões e tripulantes. Ramon Franco e Alda tentariam mais uma empreitada aérea, mais sem sucesso (ler mais adiante).
Caminhos Distintos
O destino final dos aviadores seria muito diferente, em meio a situações político-sociais extremas na Espanha e na Europa.
Como resultado da crise da bolsa de valores de Nova York agravou-se a situação social e econômica da Espanha, levando a deposição do General Primo de Rivera e, em seguida, caiu também a monarquia. O Rei Afonso XIII foi obrigado a buscar o exílio e a República foi proclamada em 1931.
Havia com a proclamação da república a intenção da Espanha buscar uma maior aproximação com os seus vizinhos europeus, realizando uma reforma social que iria retirar a nação do oásis tradicionalista no qual vivia. Existiam projetos para a separação da igreja e do estado (No Brasil, este fato ocorreu em 1889), introdução de conquistas sociais, liberdade eleitoral, liberdade de expressão e organização sindical.
Contudo, a profunda depressão econômica provocou uma enorme frustração generalizada na sociedade espanhola, que apoiada em forte radicalismo de determinados setores, terminou levando o país a conhecer um violento enfrentamento de classes. O mais dramático e sangrento ocorrido na Europa antes da Segunda Guerra Mundial.
Em meio a esta situação política o alferes da marinha Juan Manuel Duran Gonzáles viria a falecer cinco meses depois do voo, em um acidente de aviação. Já os outros três tripulantes estariam presentes na tragédia quer foi a Guerra Civil Espanhola.
Julio Ruiz de Alda torna-se em 1927, membro do Conselho Superior de Aviação e Automobilismo e representante espanhol para a Federação Internacional de Aeronáutica. Em 1928 é nomeado chefe de um grupo de aviação. Foi neste período que ele tenta, juntamente com Ramon Franco, realizar uma volta ao mundo em um avião Dornier 16, mas sem sucesso. Logo após solicita baixa do exército. Torna-se empresário e, com o fim da ditadura, aproxima-se da política. Tanto que em 1932, já é considerado por alguns setores políticos espanhóis chefe do fascismo na Espanha. Em 29 de outubro de 1933, funda com José Antonio Primo Rivera (filho do ex-ditador Primo Rivera), a Falange Espanhola. Este grupo seria conhecido como tradicionalista, fascista, paramilitar, que participaria da guerra civil junto ao futuro ditador Francisco Franco. Por suas atividades, Alda seria preso pelo governo republicano em 14 de março de 1936 e fuzilado em 23 de agosto do mesmo ano.
O soldado mecânico Pablo Rada Ustarroz, depois de agraciado pelo Rei Afonso XIII, inicia estudos e obtém o brevê de piloto. Por sua forte amizade a Ramon Franco participa, em 1930, de um fracassado movimento de ação política (ver mais adiante).
Dedicou-se a política durante a república, tornando-se militante de esquerda. Participou da queima de conventos católicos durante a Guerra Civil. Com o desfecho do conflito, foi obrigado a exilar-se na Colômbia, aonde se dedica a indústria de automóveis. Retornou em abril de 1969, para falecer na Espanha, com uma grave enfermidade hepática, tinha 67 anos.
O Último Voo de Franco
Contudo, a figura com a biografia mais intensa após o vôo do “Plus Ultra”, seria o próprio comandante Ramon franco. Se já seria muito comentar que o mesmo era irmão caçula do próprio general e futuro ditador Francisco Franco, mais interessante é saber que o aviador, durante um período, foi opositor do poderoso irmão e posteriormente seu aliado, para depois de sua morte ser esquecido durante muito tempo pelo governo espanhol.
Depois do vôo do “Plus Ultra”, Ramon Franco torna-se da noite para o dia uma figura muito popular na Espanha, mais que qualquer artista ou toureiro, tal era a iração da população pela aviação e pelo seu glorioso “raid”, chegando a escreve em 1926, o livro “De Palos a Plata”, narrando o voo.
Tenta juntamente com Alda, em 1928, à volta ao mundo em um Dornier 16, mas o avião cai no mar. Eles am alguns dias à deriva, sendo enfim resgatados por um porta aviões britânico. Ramon é fortemente criticado pelo fracasso da missão, torna-se um forte opositor e conspirador contra a monarquia e a ditadura.
Devido a sua popularidade era considerado um adversário muito perigoso. Seria preso e, posteriormente, conseguiria fugir com a ajuda de Rada. Em 15 de dezembro de 1930, junto com o mesmo Pablo Rada, Queipo de Llano e outros aviadores que apoiavam a república, apoderam-se de alguns aviões no aeroporto de “Quatro Vientos”, com a intenção de bombardear o Palácio Real, em Madri. Não conseguiram realizar a ação, fugindo para Portugal. Deste episódio, Franco escreveria em 1931, o livro “Madrid bajo las bombas”.
Após a sua fuga da Espanha, Ramon só retornaria com a proclamação da república. No regresso foi nomeado Diretor Geral da Aeronáutica, sendo destituído por participar de uma revolta anarquista na Andaluzia. Foi depois eleito para o parlamento por grupos republicanos de Sevilha e Barcelona, declarava-se um tanto estranhamente “republicano de esquerda, mas não comunista”. Retirou-se do exército, que por esta época era uma instituição que cada dia mais se tornava antirrepublicana. Não foi um grande parlamentar e seus biógrafos consideram o maior erro de sua vida a sua entrada na política.
Quando estourou a Guerra Civil, Ramon encontrava-se nos Estados Unidos como membro agregado do adido aeronáutico espanhol. Ao retornar a sua nação, mostrando a sua inconsistência ideológica, não mais apoia os republicanos e segue as ideias do irmão, “El Generalíssimo Franco”. Foi nomeado tenente-coronel e chefe da Base Aérea de Barcelona, a mesma Barcelona que o elegera deputado republicano. O comandante Ramon Franco sempre foi considerado um homem de ação, mais de poucas ideias políticas concretas.
Em outubro de 1938, seu hidroavião italiano caiu nas proximidades da Ilha de Maiorca, quando pretendia bombardear a zona republicana. Existe até hoje na Espanha uma discussão se o comandante Franco caiu com seu hidroavião, suicidou-se ou se a aeronave caiu por um ato de sabotagem. Nada ficou totalmente esclarecido. Seu irmão, que na época combatia em Elbro, não foi ao seu enterro em Maiorca.
Conclusão
Durante o terrível regime franquista, talvez por ter sido muito contraditório, o comandante Ramon Franco se converteu em um personagem muito incômodo, sendo ele praticamente esquecido do panteão dos heróis nacionais.
Mas a Espanha mudou, Francisco Franco se tornou ado e um novo país surgiu no sul da Europa.
Em 30 de janeiro de 2001, com a presença do então Príncipe de Astúrias, atual Rei Felipe VI, decolou da mesma Palos de La Fronteira, um hidroavião de combate a incêndio, buscas e salvamento Canadair CL-215T, do Grupo 43, da Força Aérea Espanhola, acompanhado de um Hércules C-130. As duas aeronaves realizavam a mesma rota, ponto a ponto, percorrida por Ramon Franco e seus companheiros do “Plus Ultra”.
O voo do “Plus Ultra”, não veio a Natal e nem sequer sobrevoo terras potiguares. Entretanto, na sua época, seu “raid” teve uma repercussão enorme no cenário da aviação mundial. Os espanhóis mostrariam que com o aparelho certo, tecnologia de ponta e correto apoio, estava pronto o cenário para a realização de grandes viagens aéreas sobre o Atlântico Sul.
A Primeira Nave de Guerra Nazista no Atlântico Sul – Atacou um Cargueiro Inglês na Costa de Pernambuco – Três Tripulantes Eram Brasileiros e Testemunharam Esse Ataque Perto do Litoral Nordestino – Um Hidroavião Alemão Metralhou O Navio Inglês – O Graf Spee Foi Visto Próximo a Natal? – A Estranha Visita do Adido Naval Britânico a Capital Potiguar – A Guerra que Chegou
Rostand Medeiros – Escritor e Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte
Em 1939, enquanto o mundo assistia a escalada de uma nova guerra mundial, na Alemanha Nazista havia a certeza que a sua Marinha de Guerra, a Kriegsmarine, não poderia enfrentar a Marinha Real Britânica, a Royal Navy. Mesmo com essa desvantagem foram os alemães que executaram os primeiros movimentos daquilo que entrou para a História como a Batalha do Atlântico, um conjunto de ações navais beligerantes que duraria toda a Segunda Guerra Mundial e atingiria toda extensão desse vasto oceano.
O poderoso encouraçado de bolso iral Graf Spee.
O comando da Kriegsmarine decidiu posicionar secretamente no Atlântico Norte naves de superfície, submarinos e navios de apoio para manter os britânicos ocupados quando a guerra estourasse. Entretanto, nesses movimentos navais pré-guerra uma das mais importantes naves da Alemanha seguiu em direção do Atlântico Sul.
Esse navio era o poderoso encouraçado de bolso iral Graf Spee, que zarpou do porto de Wilhelmshaven, na costa do Mar do Norte, na noite de 21 de agosto de 1939, recebendo o apoio do petroleiro da frota Altmark e sendo comandado pelo capitão de mar e guerra (kapitän zur See) Hans Langsdorff.
Ninguém a bordo do Graf Spee, a não ser seu capitão, sabia o rumo a nave deveria tomar e a natureza da missão a cumprir.
Para muitos naquele poderoso barco, mesmo com toda tensão na Europa, aquela navegação seria apenas mais um cruzeiro de instrução que seguia em direção sul. Mas o que Langsdorff queria era que seu navio desaparecesse na imensidão do Atlântico. E isso ele conseguiu![1]
Uma Grande Nave de Guerra
O Graf Spee era um navio excepcional, verdadeiro prodígio da engenharia naval alemã da época. Possuía 186 metros de comprimento, um calado máximo de 7,34 metros e era ocupado por cerca de 1.000 tripulantes. Seu casco era pura inovação para uma nave desse tamanho no final da década de 1930, pois era totalmente soldado e não utilizava rebites.
Seus dois motores principais foram fabricado pela MAN (Maschinenfabrik Augsburg-Nürnberg), sendo modelos M9 Zu 42/53, a diesel, de nove cilindros, dois tempos e média velocidade. A potência projetada para o iral Graf Spee era de 54.530 HP, o que permitia a velocidade máxima de 26 nós. Mas durante os testes a nave atingiu 28,5 nós (52,5 km/h), com os eixos da hélice girando a 250 rpm. Também haviam motores auxiliares instalados ao longo de cada um dos conjuntos dos motores principais. Tratavam-se de motores MAN M-5 Z 42/48, a diesel, com cinco cilindros, dois tempos, cada um com a potência de 3.500 HP a 425 rpm. Eles abasteciam bombas, compressores, equipamentos de combate a incêndio, etc. A eletricidade era fornecida por oito geradores fabricados pela AEG (Allgemeine Elektricitäts-Gesellschaft), de Berlin, com potência combinada de 3.360 kW, alimentados por 375-400 HP.
Tinha uma autonomia de 20.000 quilômetros e um deslocamento total de 16.020 toneladas, bem mais que as 10 mil toneladas estipuladas pelo Tratado de Versalhes, que limitavam os navios de guerra alemães a naves de pequeno porte e era uma das punições dos países Aliados após a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial.
Para fugir dessas proibições os engenheiros navais alemães desenvolveram os chamados Panzerschiff (navio blindado) da classe Deutschland, que os britânicos logo apelidaram de encouraçados de bolso, pois possuíam artilharia pesada, em um navio com um tamanho e peso relativamente reduzidos. Mas essa relação superava em muito os cruzadores pesados da época e estava no mesmo nível de muitos navios de guerra mais antigos[2].
Aquela impressionante nave possuía seis canhões de 280 milímetros, com três destes montados em duas torres fortemente blindadas – uma dianteira e outra traseira – com capacidade de lançar projeteis a cerca de 30 quilômetros de distância. Havia oito canhões de 150 milímetros e outros vinte e quatro canhões e metralhadoras antiaéreas. Foram montados no tombadilho dois lançadores de torpedo quádruplos de 533 mm e o Graf Spee podia transportar até dois hidroaviões Arado Ar 196 A-1 para buscar seus alvos à distância e lançados de uma catapulta na superestrutura da ponte[3]. A função dessas aeronaves era complementada pela a existência de um rudimentar radar de busca[4].
Seu Bravo Capitão
O Graf Spee era comandado por um competente oficial que desde os dezoito anos de idade estava na carreira naval. Hans Johann Wilhelm Rudolf Langsdorff nasceu em 20 de março de 1894 na cidade de Berguen, a maior aglomeração urbana da Ilha de Rugen, próximo a costa norte do Mar Báltico. Vinha de uma tradicional família de pastores luteranos, sendo filho de Ludwig Langsdorff e Elisabeth Steinmetz. Em 1898 sua família mudou-se para a cidade de Düsseldorf, onde seu pai assumiu as funções de juiz e os Langsdorff se tornaram vizinhos da aristocrática família do Conde e Almirante Maximilian von Spee. Ali o jovem Hans Langsdorff conheceu os filhos desse almirante, os futuros cadetes navais Otto e Heinrich Spee[5].
O Capitão Langsdorff.
Certamente influenciado pelos seus honrados vizinhos, mas contra a vontade dos seus pais, que desejavam que ele seguisse a função de pastor, em 1912 Langsdorff entrou na Academia Naval de Kiel. Durante a Primeira Guerra Mundial o então tenente Langsdorff recebeu a Cruz de Ferro de 1ª Classe e em maio de 1916 participou da Batalha da Jutlândia, considerada por muitos a maior batalha naval da história. Após o fim do conflito ele continuou na marinha e em março de 1924 se casou com Ruth Hager, onde da união nasceram seu filho Johann e sua filha Ingeborg Langsdorff[6].
Principalmente por suas habilidades istrativas, a sua carreira naval chamou a atenção do comando da Kriegsmarine. Em 1933, após a ascensão dos nazistas ao poder, Langsdorff buscou se afastar do novo regime e solicitou retornar para o mar, mas foi nomeado para o Ministério do Interior. Finalmente, entre 1936 e 1937, conseguiu uma comissão que o colocou a bordo do novo encouraçado de bolso iral Graf Spee, onde participou do apoio alemão ao lado nacionalista de Francisco Franco na Guerra Civil Espanhola.
Logo depois Langsdorff foi promovido a capitão e em outubro de 1938 recebeu o comando do Graf Spee. Nessa nave ele pode mostrar suas habilidades de comandante naval, ficando marcado pela audácia, coragem, companheirismo, capacidade de decisão e um atuante pensamento humanitário.
Essa última faceta do caráter de Hans Langsdorff certamente era fruto de sua criação luterana e foi algo que anos depois lhe custou a vida, mas o fez entrar para a História.
No Atlântico Sul
Foi em uma sexta-feira, 1º de setembro de 1939, o dia que os alemães invadiram a Polônia e a Segunda Guerra Mundial teve início. Nessa mesma data vamos encontrar o Graf Spee já tendo ultraado as Ilhas Canárias, estando a cerca de 800 milhas a oeste das Ilhas de Cabo Verde e se aproximando da Linha do Equador, onde, no dia 8 de setembro, teve o privilégio de ser a primeira nave de combate alemã durante a Segunda Guerra Mundial a cruzar essa linha geográfica. Poucos dias depois esse encouraçado de bolso estará em uma posição que o deixou bem próximo do Arquipélago de São Pedro e São Paulo, seguindo em patrulha para uma área mais próxima do centro do Atlântico Sul.
O Capitão Langsdorff obedecia à risca às ordens recebidas, onde estava pautado que deveria manter o Graf Spee fora das vistas de outros navios e era proibido de atacar naves cargueiras inglesas e sas. Seguia acompanhando as notícias na Europa, em velocidade lenta, demorando muito no deslocamento e aguardando as ordens para atacar.
Hitler imaginava que após a conquista da Polônia, a França e a Grã-Bretanha, os principais inimigos da Alemanha, buscariam um acordo para evitar a guerra total. Mas isso não aconteceu e conforme os dias foram ando as restrições de combate de Langsdorff vão caindo, até não mais existirem em 26 de setembro. Nessa data o Graf Spee se encontra praticamente no centro do Atlântico Sul e toma rumo noroeste em busca da sua primeira vítima. Nessa rota se aproxima da costa do Nordeste do Brasil, mais precisamente ao largo de Pernambuco.
Quem observa a linha traçada pelo avanço do Graf Spee naqueles dias, talvez se pergunte o porquê desse navio de guerra ter seguindo em uma rota quase sem alteração e de forma tão célere para a costa pernambucana.
Ao nos debruçarmos sobre as velhas páginas dos periódicos recifenses Diário de Pernambuco e Jornal Pequeno, publicados na segunda quinzena de setembro de 1939, buscando informações sobre a movimentação portuária em Recife, descobrimos que o entra e sai de navios de cargas e ageiros era intenso. Em parte isso se explica porque nessa época a capital pernambucana era terceira maior cidade brasileira, com uma população de 348.424 habitantes[7]. Evidentemente que o maior número de barcos que ali circulavam era de brasileiros, mas nas primeiras semanas da Segunda Guerra Mundial nada menos que nove navios alemães e seis ingleses estiveram escalando no porto de Recife[8]. Também se encontrava atracado o grande transatlântico polonês MV Chrolbry, que segundo os jornais estava sendo totalmente “pintado de cinza para melhor se camuflar no mar” e poder seguir a “qualquer momento para Europa”.
Hidroavião Arado Ar 196 A-1 sendo lançado.
Talvez por estar recebendo mensagens enviadas por espiões germânicos baseados em Recife, o Capitão Langsdorff se aproximou da capital pernambucana para interceptar algum navio inimigo que dali partia[10]. Para melhorar a caçada Langsdorff ordenou o lançamento do hidroavião Arado para uma busca além do horizonte[11].
O Ataque e os Brasileiros a Bordo do Clement
Dias antes desse momento, quando o encouraçado alemão ainda seguia de forma lenta em direção sul, se encontrava no porto de Natal um cargueiro inglês chamado Clement, que deslocava 5.051 toneladas, era comandado pelo Capitão Frederick C. P. Harris, de 58 anos de idade, e possuía um total de 48 tripulantes. Essa nave pertencia a empresa inglesa de navegação Booth Steam Ship Company, sendo uma frequentadora habitual dos portos da costa leste dos Estados Unidos e do norte e nordeste do Brasil. Havia partido de Nova York em 24 de agosto com um carregamento de gasolina e querosene em latas, bacalhau e ferramentas, tendo escalado em Belém do Pará, São Luís e Tutóia (Maranhão), Fortaleza e Natal. Da capital potiguar o Clement partiu para Recife com uma pequena carga de algodão, vindo provavelmente da região do Seridó[12].
Uma particularidade interessante é que entre os tripulantes do Clement havia três brasileiros.
Estes eram Martinho Silva, de 32 anos de idade, Thomaz Brandão, de 30 anos, além de Waldemar Francisco Penedo, com 26 anos. Todos eram paraenses de Belém e haviam embarcado nessa cidade para trabalhar no Clement realizando manutenção e lubrificação dos motores, sendo conhecidos como “graxeiros”, uma das funções mais humildes e sujas a bordo.
Após alguns dias na capital pernambucana, a uma da manhã de 30 de setembro, vamos encontrar o Clement deixando aquele porto para seguir em direção a Salvador para pegar mais cargas. Após essa parada seu destino era o porto de Cabedelo, na Paraíba, onde carregaria mais algodão e depois o próximo porto seria o de Nova York, Estados Unidos[13].
Desde que começou o conflito o capitão Frederick C. P. Harris, veterano da Royal Navy na Primeira Guerra Mundial, vinha navegando mais afastado do litoral, para evitar possíveis ataques[14].
Dias depois Thomaz Brandão declarou para um jornal carioca que por volta das onze e meia da manhã de 30 de setembro, quando o Clement se encontrava a cerca de 70 milhas náuticas (130 quilômetros) da costa pernambucana e a tripulação se preparava para almoçar, o barco foi sobrevoado por uma aeronave. Brandão primeiramente imaginou que fosse “o avião do correio”, mas logo percebeu a cruz negra alemã e soube que aquilo significava problemas[15].
No hidroavião Arado do Graf Spee o piloto Heinrich Bongardts, que possuía a patente de sargento (Unteroffizier) da Força Aérea Alemã (Luftwaffe), emitiu uma chamada de rádio ordenando que o Clement não transmitisse sinais de socorro enquanto dava voltas sobre o cargueiro. Mas a ordem foi ignorada e o oficial do rádio da embarcação começou a transmitir “RRRR” em código Morse, que indicava que um cargueiro inglês estava sob ataque. E esse não demorou a vir por parte do hidroavião, quando o Cabo (Obergefreiter) Hans-Eduard Sümmerer despejou várias rajadas de metralhadora MG no Clement, ferindo um tripulante inglês[16].
Logo a sinistra silhueta do Graf Spee surgiu no horizonte a toda velocidade e abriu fogo de advertência com um dos seus canhões. Diante da nova ameaça o capitão Harris ordenou que as transmissões cessassem e os papéis oficiais do navio e códigos de transmissão fossem colocados em uma sacola e jogados ao mar[17].
Perdidos Perto da Costa Nordestina
O Clement ou a ser abandonado pelos tripulantes, incluindo o comandante e o engenheiro chefe W. Bryant, de 70 anos de idade, que se acomodaram em quatro botes salva-vidas. Mas eles mal começavam a deixar o navio cargueiro, os alemães também desceram um escaler motorizado do Graf Spee e logo buscaram abordar os botes ingleses.
O Clement.
Chegaram armados com pistolas e submetralhadoras e, após identificarem o Capitão Harris e o engenheiro Bryant, ordenaram que os mesmos entrassem em sua lancha para serem levados a bordo do Graf Spee como prisioneiros de guerra e interrogados. Os dois oficiais se resignaram diante da situação, mas antes de partir se despediram de toda tripulação. O homem ferido pelos disparos da aeronave também foi levado para receber tratamento médico pela equipe do navio atacante. Nesse momento os ingleses comentaram aos brasileiros que aqueles homens armados eram alemães.
Os que estavam nos botes salva-vidas receberam instruções para seguirem em direção à costa brasileira[18]. Thomaz Brandão achou interessante o fato dos alemães filmarem os homens do Clement.
O Clement sendo destruído pelos canhões do Graf Spee.
Logo, ao meio-dia, esses sobreviventes assistiram o Graf Spee abrir fogo com seus poderosos canhões, rompendo de maneira ensurdecedora o silêncio oceânico. O Clement foi afundado com cinco granadas de 280 mm e 25 de 150 mm. Dois torpedos também foram disparados, mas ambos erraram o alvo. O cargueiro inglês levou 45 minutos para afundar totalmente e enquanto agonizava o navio atacante partiu rapidamente. Seu pequeno hidroavião evoluiu algum tempo sobre a nave sinistrada e depois também se foi.
Devido ao mar agitado os barcos salva-vidas se dispersaram e assim aram a noite. Pelas sete horas da manhã do outro dia um desses barcos, com dezesseis homens a bordo, foi avistado e recolhido pela tripulação do vapor nacional Itatinga a quinze milhas do litoral, na altura da praia de Porto de Pedras, Alagoas[19]. Comandado pelo Capitão de longo curso Antenor Dias Sanches, este realizou com seu navio buscas aos outros sobreviventes durante algum tempo, apitando estridentemente e fazendo longas curvas, mas sem sucesso.
Depois o Itatinga seguiu para Maceió, Salvador e Rio de Janeiro, onde nesse último porto Herbert John Gill, o 2º piloto do Clement, deu declarações para imprensa carioca sobre o ataque[20]. Já os outros barcos salva-vidas e os sobreviventes, fazendo o uso de velas, chegaram à costa alagoana.
Os náufragos foram vistos com muita curiosidade pela população das cidades onde estiveram e receberam algum ajuda, pois a maioria só tinha mesmo a roupa do corpo.
Mesmo sem se aperceberem, aqueles tripulantes do Clement foram testemunhas oculares de fatos realmente significativos naquela época. A ação do Graf Spee foi o ataque de um navio de guerra alemão realizado mais próximo do Continente Americano em toda a Segunda Guerra Mundial. Igual situação se enquadra a ação do hidroavião Arado Ar 196 A-1, colocando-o como a aeronave da Luftwaffe a ter realizado um ataque aéreo mais próximo do chamado Novo Mundo.
Os Primeiros Brasileiros Envolvidos na Segunda Guerra Mundial e o Graf Spee Próximo a Natal
No Rio de Janeiro o Ministério das Relações Exteriores do Brasil se pronunciou nos jornais afirmando que o ataque ao Clement se deu fora das águas territoriais brasileiras, não caracterizando uma “violação da neutralidade do país”. Vale ressaltar que nessa época o que o Brasil considerava que suas águas territoriais seriam parcas três milhas náuticas a partir das nossas praias[21].
Quando dias depois um dos três tripulantes brasileiros chegou ao Recife, cujo nome o Diário de Pernambuco omitiu, informou ao jornalista que o ataque do encouraçado ao Clement para ele “foi um grande azar”. Independente de se encontrar vivo e sem um arranhão, comentou que depois de ter sido tripulante de outros navios mercantes britânicos e de ter visitado a Inglaterra em várias ocasiões, estava há meses desempregado no Pará e aquele engajamento no Clement era uma verdadeira dádiva, mas que acabou[22].
Os marinheiros brasileiros ainda comentaram junto à imprensa que informaram ao cônsul inglês que desejavam continuar trabalhando como embarcados em naves comerciais britânicas, desde que “recebessem salários de guerra e seguros de vida”[23].
Sabemos que em setembro de 1939 a Segunda Guerra Mundial se desenrolava com maior força na Polônia, mas eu desconheço se nesse período algum cidadão brasileiro tenha se envolvido em alguma ação bélica nesse país, ou em algum outro local onde os alemães e seus inimigos se batiam. Nesse tocante, creio que é possível afirmar que os paraenses Martinho Silva, Thomaz Brandão e Waldemar Francisco Penedo tenham sido os primeiros brasileiros a se envolverem e testemunharem uma ação bélica nesse conflito. E o interessante é que esse fato ocorreu próximo ao belo e caliente litoral nordestino.
O Almirantado Britânico recebeu então um primeiro relatório dando conta que um poderoso navio de guerra alemão estava operando no Atlântico Sul, nesse momento eles acreditavam que a nave era o iral Scheer, pois foi esse o nome que os náufragos do Clement viram pintado na proa do encouraçado. Na verdade era mais um ardil de Langsdorff para enganar seus adversários. Muitos jornais brasileiros caíram no logro e durante algum tempo estamparam notícias que o iral Scheer era quem aterrorizava o Atlântico Sul. Fosse lá qual fosse o nome daquele navio de guerra, o certo é que nos dias após o ataque ao Clement os ingleses não faziam a menor ideia onde ele se encontrava. Muitos acreditavam que o navio atacante teria navegado em direção leste, para o meio do oceano.
Mas em 7 de outubro, uma semana depois do afundamento do cargueiro inglês, o próprio Almirantado Britânico publicou um documento reservado onde encontramos a informação que um navio americano comunicava ter visto uma nave de guerra classificada como o iral Scheer, navegando a somente 60 milhas náuticas (110 quilômetros) de Natal, Rio Grande do Norte. Esses documentos só foram desclassificados em 2012.
Esse fato é interessante, pois certamente esse documento trás uma das primeiras menções sobre a cidade de Natal em um documento militar de um dos países beligerantes envolvidos na Segunda Guerra Mundial.
A Batalha do Rio da Prata
Um mês após o episódio do Clement, sem revelar sua posição aos adversários e sem matar um só marinheiro inglês, o Capitão Langsdorff e a sua equipe a bordo do encouraçado de bolso Graf Spee haviam mandado para o fundo do mar mais de 50.000 toneladas de navios inimigos e criado problemas nas rotas comerciais marítimas dos ingleses.
Entre outubro e novembro sete grupos de navios de guerra da Marinha Real Britânica e sa caçavam o Graf Spee no Atlântico Sul, enquanto outro grupo esquadrinhava o Oceano Índico. No total, ingleses e ses empregaram quatro porta-aviões, três encouraçados, dezesseis cruzadores e outros tantos navios menores. Em novembro o Graf Spee ainda afundou um pequeno petroleiro a sudoeste de Madagascar e depois voltou para o Atlântico Sul, onde reivindicou mais três vítimas, incluindo o Doric Star no dia 2 de dezembro e o Tairoa no dia 3.
Depois de mais de dois meses em alto mar, tornou-se necessário que o navio voltasse para a Alemanha para reparos, mas antes disso Langsdorff decidiu interceptar um comboio que ele sabia se encontrar ao largo do rio da Prata e transportava para a Grã-Bretanha grãos e carnes.
O HMS Exeter.
Quem também estava na mesma região era o Comodoro inglês Henry Harwood, comandando um grupo de combate (Group G) composto pelo cruzador pesado britânico HMS Exeter (comandado pelo Capitão Frederick Secker Bell), o cruzador leve britânico HMS Ajax (Capitão Charles Henry Lawrence Woodhouse) e do cruzador leve neozelandês HMNZS Achilles (Capitão William Edward Parry).
Também fazia parte do Group G o veterano cruzador britânico HMS Cumberland (Capitão Walter Herman Gordon Fallowfield), que naquele momento estava nas Ilhas Falklands (Malvinas) reparando seus motores, o que deixava o Comodoro Harwood desfalcado diante do poder de fogo da nave alemã. Mesmo assim ele e seus companheiros ficaram patrulhando a área, esperando encontrar o inimigo.
O Graf Spee.
De maneira inesperada o encontro entre o Graf Spee e os três cruzadores se deu às 06:10h do dia 13 de dezembro, a 390 km a leste de Montevidéu, quando a nave germânica foi primeiramente vista de uma posição a noroeste. Langsdorff decidiu acelerar ao máximo seu encouraçado para encurtar a distância das três naves adversárias, que para ele pareciam ser simples destroieres e que achava estarem protegendo o cobiçado comboio mercante. Foi quando percebeu tarde demais que estava enfrentando três cruzadores e não havia nenhum navio mercante por perto.
Confrontado com o armamento mais pesado do Graf Spee, Harwood decidiu colocar sua força em duas alas e tentar assim dividir o fogo das principais armas inimigas. O cruzador pesado Exeter seguiu ao sul, enquanto os outros dois cruzadores ligeiros seguiram para norte. As 06:18h os disparos dos grandes canhões do Graf Spee irromperam o silêncio do Atlântico Sul.
Disparos no calor da Batalha do Rio da Prata.
Todos os quatro navios envolvidos na luta navegavam disparando incessantemente enquanto manobravam. Logo no começo da batalha naval um petardo inglês destruiu o hidroavião Arado e matou os aviadores Bongard e Sümmerer. O Graf Spee então concentrou os canhonaços de suas duas torres de 280 mm no Exeter, que foi duramente atingido. As dez para as sete da manhã todos os navios estavam indo para o oeste. Nessa altura da contenda o Exeter disparava apenas uma de suas quatro torres de tiro. Chamas eram vistas em várias partes do navio e havia danos generalizados. A ponte de comando foi duramente atingida, com estilhaços matando ou ferindo todo o pessoal, exceto o Capitão Bell e outros dois tripulantes.
Quando uma das torres de tiro do Exeter foi atingida por um impacto direto de um projetil de 280 mm, o fuzileiro real Wilfred A. Russell teve seu antebraço esquerdo explodido e seu braço direito quebrado, mas recusou os primeiros socorros enquanto outros companheiros não fossem atendidos, além de permanecer no convés incentivando seus amigos durante a luta. Ele não cedeu até que o calor da batalha terminasse, mas faleceu de suas feridas poucos dias depois.
Troca de disparos na manhã de 13 de dezembro de 1939.
As comunicações gerais do Exeter ficaram inoperantes e pelo resto da batalha as ordens internas nesse navio tiveram de ser enviadas por uma cadeia de mensageiros. Até para informar ao timoneiro para girar o leme para esquerda ou direita, a ordem tinha de ser reada por vários tripulantes. O marinheiro de primeira classe Patrick O’Leary, quando recebeu ordens da sede do controle de danos para fazer contato com o comando principal, em um momento de extrema confusão pela falta de comunicações internas, encontrou seu caminho através do apartamento dos oficiais destruído por um disparo de 280 mm. Mesmo assim, através do fogo e da fumaça densa e mortal, ele fez contato com o comando e depois com a sala das máquinas, o que muito ajudou a equilibrar as decisões dos oficiais naquele momento. De lá retornou com várias queimaduras, além dos pulmões cheios de fumaça. Em decorrência desses ferimentos O’Leary faleceu[24]. Enquanto isso o Ajax e o Aquiles chegaram a 12.000 metros do Graf Spee, sempre disparando seus canhões de 150 mm (armamento principal dessas duas naves). Eles começaram a martelar pesadamente a nave de guerra germânica, fazendo com este que dividisse os disparos do seu principal armamento. Essa ação aliviou o sofrimento do Exeter, que recebeu ordens de deixar a ação e ir para o sul, para as Falklands.
Hidroavião Arado do Graf Spee destruido.
Até às oito da manhã o Graf Spee continuou a trocar disparos contra o Ajax e o Aquiles. Depois de quase duas horas de combate, para alguma surpresa dos ingleses e neozelandeses, a nave alemã levantou uma cortina de fumaça e partiu em direção ao continente sul-americano. Aos binóculos dos seus inimigos, o navio alemão tinha apenas um dano superficial visível.
Na verdade um disparo de 203 mm do Exeter desferiu aquele que foi o golpe decisivo contra o Graf Spee. Quando destruiu seu sistema de processamento de combustível cru e deixou a poderosa nave alemã com apenas 16 horas de combustível, insuficientes para permitir que retornasse para a Alemanha. Sua tripulação não podia realizar consertos dessa complexidade em alto mar. Além disso, dois terços de sua artilharia antiaérea foram destruídos, assim como uma de suas torres secundárias.
O Graf Spee em Montevideo.
Não havia bases navais amigas ao alcance e muito menos reforços disponíveis. Naquelas condições o Graf Spee só poderia seguir para algum o porto neutro, como o da cidade brasileira de Porto Alegre, ou o porto uruguaio de Montevideo, ou para Buenos Aires.
Escolheram Montevideo!
O Fim do Graf Spee
A batalha agora se transformou em uma perseguição marítima. Os cruzadores mantiveram cerca de treze milhas náuticas (24 km) de distância do Graf Spee. Estava claro que a nave alemã seguia para o estuário do rio da Prata, onde entrou em Montevideo a meia noite e dez minutos de 14 de dezembro[25].
Essa decisão foi um erro político, pois o Uruguai, embora neutro, havia se beneficiado do comércio e da significativa influência britânica durante seu desenvolvimento e os uruguaios claramente favoreceriam os Aliados.
Mortos alemães da Batalha do Rio da Prata.
O Capitão Langsdorff libertou 61 marinheiros mercantes cativos que estavam a bordo do Graf Spee, que declararam terem sido humanamente tratados. Os tripulantes alemães feridos foram levados para hospitais locais e os mortos foram enterrados com honras militares completas.
Langsdorff então pediu ao governo uruguaio duas semanas no porto para fazer reparos, mas os diplomatas britânicos começaram a pressionar as autoridades uruguaias para a partida rápida do navio alemão. Langsdorff então recebeu a informação que o governo da República Oriental do Uruguai havia-lhe concedido apenas 72 horas de permanência no porto de Montevideo.
No enterro dos seus comandados o Capitão Langsdorff faz a tradicional saudação militar, enquanto civis, entre eles religiosos, fazem a saudação nazista.
Ao mesmo tempo, esforços foram feitos pelos britânicos para disseminar falsas informações aos alemães que uma esmagadora força britânica estava chegando, incluindo o porta-aviões HMS Ark Royal e o cruzador HMS Renown. Na verdade, além dos dois cruzadores leves que anteriormente se bateram contra a nave alemã, a eles se juntou apenas o veterano Cumberland, que chegou às 22:00 de 14 de dezembro e sem ter resolvidos todos os seus problemas anteriores.
Os alemães foram totalmente enganados e acreditaram que iriam enfrentar uma força muito superior ao deixar o Rio da Prata. Além disso, o Graf Spee utilizou dois terços de sua munição de 280 mm, o que lhe deixava com o suficiente para aproximadamente 20 minutos de disparos, quantidade de munição limitada para o combate que aconteceria ao sair de Montevideo.
O Graf Spee deixando Montevideo para sua última navegação.
Langsdorff sabia das relações amigáveis entre o Uruguai e a Grã-Bretanha e se aceitasse que seu navio fosse internado e mantido sob a guarda da Marinha do Uruguai, esses certamente permitiriam que os oficiais da inteligência britânica tivessem o ao seu interior. Algo impensável. Como Langsdorff tinha ordens de afundar seu navio se não houvesse condições de lutar pela liberdade de seu barco e de sua tripulação e o limite de tempo imposto pelo governo do Uruguai estava próximo de se encerrar, ele decidiu afundar sua nave.
O fim.
Com o capitão e apenas outros 40 homens a bordo, o Graf Spee seguiu três milhas fora do porto de Montevideo, em águas internacionais, onde então Langsdorff ordenou a destruição de todos os equipamentos importantes a bordo e o suprimento de munição restante foi colocado por todo o navio em preparação para o afundamento.
Pouco antes de nove da noite, diante de uma grande multidão de uruguaios calculada em 250.000 pessoas, primeiramente a sirene anticolisão do navio alemão soou estridentemente, depois múltiplas explosões lançaram jatos de fogo no ar e criaram uma grande nuvem de fumaça que obscureceu o navio. Imediatamente após o seu afundamento o Graf Spee descansou em águas rasas, a uma profundidade de apenas onze metros, com grande parte da sua superestrutura permanecendo acima do nível da água[26].
O Sacrifício do Comandante
O Capitão Langsdorff evitou sob todas as circunstâncias que sua tripulação fosse internada no Uruguai, preferindo uma transferência para a Argentina, do outro lado do Rio da Prata.
O cargueiro alemão Tacoma, presente nessa ocasião no porto de Montevidéu, recebeu ordens para estar pronto para partir e seguir o navio de guerra. Mas devido ao seu calado, não poderia percorrer a rota direta de Montevidéu a Buenos Aires. Foi quando na noite de 17 de dezembro o Capitão Rudolf Hepe, inspetor em Buenos Aires da empresa de navegação marítima alemã Hamburg-Süd, contratou dois rebocadores argentinos para transportar os marujos do Graf Spee até Montevidéu. Este apoio logístico, que funcionou corretamente até o último minuto, foi essencial para evacuar toda a tripulação para uma Argentina amigável à Alemanha, onde os marinheiros poderiam ter um regime de internamento mais benevolente.
Dois dias depois na capital argentina, depois de completar as formalidades com as autoridades locais, Langsdorff fez um breve discurso para seus oficiais e depois se retirou para um quarto de hotel. Pouco tempo depois, com a bandeira de batalha da Marinha Imperial Alemã ao redor de seus ombros, cometeu suicídio com uma pistola. Langsdorff deixou uma carta para sua família e outra para o Barão von Therman, o embaixador alemão em Buenos Aires, onde assumiu a responsabilidade pelo incidente Graf Spee. Tinha 45 anos de idade.
Hans Langsdorff foi enterrado na Seção Alemã do Cemitério La Chacarita, em Buenos Aires, onde chegou até mesmo a ser homenageado pelos seus inimigos por sua conduta honrosa.
No final ficou patente que Langsdorff escolheu sacrificar seu navio para preservar a vida de seus homens. Ao cometer suicídio o comandante do Graf Spee provou que não havia evitado o combate naval para salvar a sua vida e que seu destino era igual ao do seu navio.
Para outros, nazistas principalmente, Hans Langsdorff não ou de um mero covarde, que teve uma atitude derrotista causada por maus julgamentos, que preferiu enfrentar o suicídio aos seus inimigos imediatos, ou a desgraça nas mãos de seu governo. Afirmaram ainda que, dadas as probabilidades reais de um combate após partir de Montevideo, um comandante com mais coragem teria condições de afundar de dois a três navios inimigos e tentar voltar para a Alemanha.
Essa possibilidade seria viável?
É possível! Mas tudo se mostraria um sacrifício inútil.
Mesmo que vencesse inicialmente os três cruzadores que estavam no estuário do Rio da Prata, Langsdorff, com pouca munição nos seus paióis e importantes problemas para resolver nas máquinas do seu navio, dificilmente conseguiria fugir dos mais de 30 navios de guerra inimigos que o caçariam implacavelmente por todo Oceano Atlântico.
E não podemos esquecer que sob o comando de Langsdorff a missão operacional do Graf Spee foi cumprida com sucesso. Apesar de tudo que aconteceu ele conseguiu comprometer as linhas de fornecimento marítimo comercial para a Grã-Bretanha por algum tempo, afundando nove navios mercantes e causando pânico nas tripulações e armadores. Mais importante foi o efeito estratégico de desviar muitos navios de guerra da Marinha Real Britânica e sa para caçarem um esquivo atacante alemão que surgiu inesperadamente na imensidão do Atlântico Sul e do vizinho Oceano Índico.
De todas as maneiras o que Hans Langsdorff fez desafia o senso comum. Em foco permaneceu a situação limítrofe de um oficial de marinha que rompeu com a tradição, seguiu sua consciência e salvou a vida de centenas de seus comandados[27].
O Destino das Testemunhas Brasileiras e Um Interessante Estrangeiro Visita Natal
Não demorou e os paraenses Martinho Silva, Thomaz Brandão e Waldemar Francisco Penedo, os simples “graxeiros” do Clement, foram totalmente esquecidos pela imprensa nacional.
Sei que após arem por Maceió os três paraenses chegaram a Salvador, onde conseguiram roupas e dinheiro com o cônsul britânico ali lotado. Depois tomaram o rumo para Recife e sumiram. Mesmo com muitas buscas nos arquivos dos jornais antigos, nada mais encontrei sobre esses brasileiros.
Já em Natal o episódio do afundamento do Clement foi muito pouco comentado pelos jornais A República e A Ordem, os principais que circulavam na capital potiguar nessa época. Mas uma pequena e discreta nota publicada na terceira página do jornal A República, edição de 13 de outubro de 1939, dá conta da inesperada chegada de um interessante visitante estrangeiro, que parece ter relação com os acontecimentos relativos a destruição desse cargueiro inglês na costa pernambucana.
Capitão Donal Scott McGrath, Adido Naval britânico no Brasil.
Na manhã do dia 12 de outubro de 1939 um hidroavião da Panair amerissou no Rio Potengi e entre os ageiros que desembarcaram estava o Capitão Donal Scott McGrath, Adido Naval britânico no Brasil e a maior autoridade da Marinha de Sua Majestade o rei Jorge VI em nosso país. Esse veterano da Primeira Guerra, ex-comandante de barco torpedeiro e de destroieres em Malta e no Extremo Oriente, havia sido designado para a Divisão de Inteligência Naval do Almirantado antes da Segunda Guerra Mundial e enviado ao Brasil como Adido Naval no Rio de Janeiro[28].
Em Natal o Capitão McGrath foi recebido pelo chefe de gabinete do governador Rafael Fernandes, o advogado Paulo Pinheiro de Viveiros. Apesar dessa informação não sabemos praticamente nada da visita de McGrath a capital norte-rio-grandense, mas temos conhecimento que as duas da tarde do mesmo dia ele embarcou em um trem da Great Western para Recife e sabemos o quanto até aquela data era raro uma visita de um adido naval britânico a Natal.
O oficial Capitão Donal Scott McGrath está sentado, ao centro da foto.
Evidentemente não podemos deixar de perceber que o Capitão Donald Scott McGrath veio primeiro a Natal, para só depois seguir para Recife para, talvez, se encontrar com os náufragos do Clement. Outra situação interessante está no fato desse homem aqui chegar cinco dias após o Almirantado Britânico informar que um cargueiro americano havia visto um navio de guerra alemão a 60 milhas náuticas de Natal[29].
Logo estrangeiros bem mais importantes que o Capitão Donal Scott McGrath chegaria com maior frequência a capital potiguar e a própria Segunda Guerra Mundial seria assunto de atenção primária[30].
Com a Guerra Cada Vez Mais Perto
Manoel de Medeiros Britto, ex-deputado estadual e ex-ministro do Tribunal de Contas do Rio Grande do Norte, nascido em 1924, era um jovem seminarista na primeira metade de 1940, no tradicional Seminário São Pedro em Natal. Ele comentou em uma entrevista ao autor deste artigo que nessa época as notícias sobre a Segunda Guerra Mundial preenchiam cada vez mais os debates do dia a dia no Seminário e como toda essa movimentação alterava a sua rotina e a de seus colegas.
O autor desse artigo e o amigo Manoel de Medeiros Britto.
Nos céus de Natal o ronco de aviões estrangeiros se tornou cada vez mais frequente. Era comum o sobrevoo das aeronaves italianas, alemãs e americanas, partindo ou chegando à capital potiguar. Certo dia, durante o recreio no Seminário, Manoel de Britto viu um grande hidroavião quadrimotor prateado ar roncando fortemente e assustando a todos. Era um modelo Boeing 314 Clipper, de fabricação americana e esse colosso dos céus lhe impressionou bastante. Aquela aeronave era um verdadeiro marco da aviação comercial e percorria a linha aérea de Miami ao Rio de Janeiro, com escala em Natal, sempre amerissando no Rio Potengi.
Em maio de 1940 chamou atenção do jovem Manoel de Britto a forte repercussão que a queda da França teve entre os natalenses. A foto de Adolf Hitler ultrajando a Torre Eiffel foi algo que impressionou os moradores da capital potiguar, tanto pela França ser o país estrangeiro mais irado pelos brasileiros na época, como pela derrota avassaladora que estes sofreram frente aos nazistas. Ele também comentou que após a rendição da França ouviu várias reclamações sobre o aumento dos preços dos produtos alimentícios que eram importados, como a farinha de trigo, conhecida na época como farinha do reino, a pimenta, queijos, manteigas, entre outros.
Boeing 314 Clipper.
Diante desses acontecimentos Manoel de Britto e certamente grande parte dos quase 50.000 habitantes de Natal na época, perceberam que aquela guerra afetaria o dia a dia de todos de uma forma ou de outra.
Eles só não sabiam o quanto e nem como o perigo algumas vezes esteve bem próximo!
NOTAS
[1] Certamente o comando da Kriegsmarine desejava que as ações de combate do Graf Spee obrigasse a Marinha Britânica a deslocar seus vasos de guerra para o Atlântico Sul a fim de caçarem o poderoso navio alemão, deixando o Atlântico Norte desprotegido.
[2]Foram construídos três navios dessa classe; o Deutschland (lançado ao mar em 1931), o iral Scheer (1933) e o iral Graf Spee (1934). Nenhum deles sobreviveu a Segunda Guerra.
[3] Por ocasião da viagem do Graf Spee ao Atlântico Sul só u m hidroavião foi levado.
[4] Em janeiro de 1938 o Almirante Graf Spee foi o primeiro navio de guerra alemão a ser equipado com um radar de busca. Era o protótipo “Seetakt” FuMG 39G, sendo instalado a bordo do navio com uma antena de 0,8 x 1,8 metros, montada na carcaça giratória do telêmetro.
[5] Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial os três homens da família Spee seguiram para a Marinha Imperial Alemã, onde todos morreram no dia 8 de dezembro de 1914, junto com toda a tripulação do cruzador SMS Scharnhorst, na devastadora derrota alemã na Batalha Naval das Ilhas Falklands (Malvinas). A história começa em 1 de novembro de 1914, onde uma frota de cruzadores imperiais alemães comandadas por Spee destruiu dois cruzadores pesados britânicos próximos a costa do Chile, naquela que ficou conhecida como a Batalha Naval de Coronel. Essa foi a primeira derrota da marinha britânica desde 1812 e o combate ocasionou a morte de 1.700 oficiais e marujos. Mas o troco não se fez esperar e em 8 de dezembro do mesmo ano uma força naval britânica afundou a leste das Ilhas Falklands (Malvinas) oito navios alemães, sendo dois cruzadores de batalha, três cruzadores leves e três navios auxiliares, ocasionando mais de 2.200 mortos.
[6] O filho de Hans Langsdorff, Joachim Langsdorff, também se juntou à marinha alemã. Ele foi morto enquanto pilotava um submarino anão modelo Biber 90 em dezembro de 1944. Sua nave foi posteriormente recuperada pela Marinha Real e está atualmente em exibição no Imperial War Museum, em Londres.
[7] Em primeiro estava o Rio de Janeiro, Capital Federal, com 1.764.141 habitantes e em segundo São Paulo, com 1.326.261. Sobre as populações das capitais estaduais brasileiras em 1940 e outros períodos ver https://censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?dados=6&uf=00
[8] Os navios em Recife nessa época foram o Tijuca, Uruguay, Bertha Fisser, Curityba, Mecklemburg, São Paulo, Cap Norte e Wolfsburg. Já os ingleses foram o Benedict, Ruperra, Soconía, Western Princes, Baltic e o malfadado Clement. Uma particularidade interessante a todos esses navios é que suas saídas sempre ocorriam à noite e suas luzes eram totalmente apagadas após ultraarem a linha dos arrecifes existentes na área desse porto. Apesar do conflito existente na Europa, não consegui encontrar nas páginas dos jornais nenhum conflito que ocorreu com essas tripulações em Recife.
[11] Ver o texto “O fim do encouraçado de bolso iral Graf Spee”, de Carlo di Risio, in Revista Marítima Brasileira, Rio de Janeiro, v. 111, números 7/9 e 10/12, p. 390, jul./set. e out./dez. 1991.
[12] Sobre a agem desse navio por Natal ver Jornal Pequeno, Recife, edição de segunda-feira, 2 de outubro de 1939, na página 3.
[13] Ver jornal Correio da manhã, Rio de Janeiro, edição de quarta-feira, 4 de outubro de 1939, na página 3.
[14] Sobre essa questão os jornalistas do jornal carioca Correio da Manhã tiveram certa dúvida se esse ataque realmente se realizou entre 60 e 70 milhas da costa, pois um barco como o Clement, fazendo uma viagem tão curta, como era o caso entre Recife e Salvador, normalmente “não se afastaria tanto da costa”. Ver jornal Correio da manhã, Rio de Janeiro, edição de quarta-feira, 4 de outubro de 1939, na página 3.
[15] Nessa época era normal que aviões e hidroaviões, principalmente da empresa Air , transportassem malas postais de norte a sul do Brasil voando próximo ao litoral brasileiro. Ver jornal A Noite, Rio de Janeiro, edição de quinta-feira, 5 de outubro de 1939, na 2ª página.
[16] Quando partiu para o Atlântico Sul o Graf Spee transportava apenas uma aeronave e seu respectivo pessoal de apoio. Este foi o Arado 196A-1 do esquadrão aéreo embarcado Bordfliegerstaffel 1./196 – BFGr. 196.
[17] Não existe nenhum indício que aponte que esse hidroavião Arado 196A-1 sequer tenha visualizado a costa brasileira.
[18] O Capitão Harris e o Chefe Bryant foram embarcados a bordo do navio grego Papalemos, que foi parado e revistado pelos alemães no mesmo dia do afundamento do Clement. Os oficiais ingleses foram desembarcados nas Ilhas de Cabo Verde no dia 9 de outubro. O capitão concordou em não transmitir um sinal de socorro até chegar ao seu destino em troca da libertação da tripulação do seu navio. Ele honrou este acordo.
[19] Ver Diário de Pernambuco, Recife, edição de terça-feira, 3 de outubro de 1939, páginas 1 e 4.
[20] Ver jornal A Noite, Rio de Janeiro, edição de sábado, 7 de outubro de 1939, na 1ª página.
[21] Ver Diário de Pernambuco, Recife, edição de terça-feira, 4 de outubro de 1939, páginas 1 e 3. Essas três milhas seriam ampliadas para seis em 1966, sendo ampliadas depois de três anos para doze milhas e em 1970 chegou as atuais 200 milhas náuticas. Ver texto de Dalmo de Abreu Dallari “O Mar Territorial do Estado Brasileiro”, obtido no link file:///C:/s/rosta/s/66716-Texto%20do%20artigo-88104-1-10-20131125.pdf
[22] Ver Diário de Pernambuco, Recife, edição de terça-feira, 4 de outubro de 1939, páginas 1 e 3.
[23] Ver jornal Correio da manhã, Rio de Janeiro, edição de quarta-feira, 5 de outubro de 1939, na página 2.
[24] Além do fuzileiro Russel e do marinheiro O’Leary, outros 63 homens morreram no Exeter como consequência desse combate.
[25] No decorrer da batalha o Graf Spee havia sido atingido aproximadamente 70 vezes, com 36 homens mortos e outros 60 ficaram feridos, incluindo Langsdorff, que havia sido ferido duas vezes por estilhaços enquanto estava na ponte de comando.
[26]Apesar das fortes pressões dos Aliados e dos países do Eixo para que os governantes uruguaios da época colocassem essa pequena nação sul-americana participando mais ativamente do conflito, O Uruguai manteve uma neutralidade extrema durante a Segunda Guerra Mundial, sendo o drama do iral Graf Spee o mais importante acontecimento desse conflito envolvendo aquela nação.
[27] Ver Führungsentscheidung in einer Grenzsituation: Kapitän zur Ver Hans Langsdorff vor und in Montevideo 1939. Vortrag für Klaus-Jürgen Müller zum 80 Geburtstag in der Helmut-Schmidt-Universität de 11. Março 2010.
[29] Nos jornais de Natal, Recife e Rio de Janeiro não encontramos nenhuma referência sobre a razão da visita deste Adido Naval nessas cidades, nem sabemos se ele chegou mesmo a se encontrar com os náufragos do Clement em Recife. Sabemos apenas que no dia 17 de outubro ele retornou ao Rio. Ver Correio da Manhã, Rio de Janeiro, edição de terça-feira, 17 de outubro de 1939, página 6.
[30] Durante a Segunda Guerra Mundial, após deixar seu cargo na Embaixada Britânica no Brasil, o Capitão Donal Scott McGrath teve participação ativa no conflito. Comandou o navio antiaéreo HMS Ulster Queen, depois foi o comandante do navio desembarque de tropas HMS Glengyle, no malfadado desembarque de Dieppe, França, em 19 de agosto de 1942, na sequência comandou o porta-aviões HMS Tracker e o navio varredor de minas HMS Adventures.
No início de 1944, em meio a Segunda Guerra Mundial, a cidade de Natal se encontrava muito agitada com a presença de milhares de uniformes nas ruas, o intenso contato com os estrangeiros, a movimentação de aeronaves pousando e decolando das bases da Rampa e de Parnamirim Field, além das notícias nos jornais locais dos acontecimentos da guerra pelo mundo afora. Foi quando a comunidade foi surpreendida com a notícia que o cantor Nelson Gonçalves viria se apresentar em breve na capital potiguar.
Nessa época Nelson Gonçalves, gaúcho da cidade de Santana do Livramento, cujo nome verdadeiro era Antônio Gonçalves Sobral, despontava com bastante intensidade nos palcos do Rio de Janeiro como cantor. Ele havia gravado em outubro de 1941 a sua primeira música, uma valsa intitulada “Se eu pudesse um dia”, e nessa época tentava chamar atenção nos programas de calouros que eram transmitidos nas rádios cariocas, enquanto sobrevivia cantando em bares do Rio.
Em dois anos a situação mudou e Nelson Gonçalves se tornou o “crooner” do badalado cassino do Hotel Copacabana Palace, para depois ser contratado como atração fixa da Rádio Mayrink Veiga, uma das mais importantes do Brasil no período.
Quando 1944 se iniciou o cantor fechou uma parceria com a Cruz Vermelha Brasileira para cantar para as tropas nacionais e estrangeiras que estavam estacionadas no Nordeste. Uma multinacional americana de bebidas decidiu apoiar o projeto, era a Ashley’s do Brasil, cuja sede em nosso país ficava em Recife e fabricava conhaque e gim[1].
Improvisando Com Um Sargento da US Army e Cantando Para Os Recrutas Brasileiros
Nelson chegou ao Recife no dia 12 de janeiro de 1944 em um DC-3 da empresa NAB – Navegação Aérea Brasileira. No outro dia, às cinco da tarde, o cantor foi homenageado por jornalistas e empresários locais com um coquetel no tradicional Grande Hotel de Recife. O convescote deve ter sido bem animado, bem regado a bebidas e a boa conversa, pois lá pras tantas Nelson decidiu cantar para os presentes de forma improvisada os seus sucessos mais recentes e músicas de sua autoria, que iria apresentar no carnaval de 1944, como “Quase louco”, “Olhos negros” e “Ela me beijou”.
Com um sargento americano ao piano, Nelson se apresenta no Grande Hotel de Recife.
O interessante da apresentação, conforme está descrito nos jornais recifenses, foi que um sargento do Exército dos Estados Unidos (US Army) que se encontrava no Grande Hotel, se ofereceu para tocar o piano e acompanhar o cantor brasileiro. O desconhecido militar foi elogiado pelo feito[2].
Na sexta-feira, 14 de janeiro, Nelson Gonçalves seguiu para o Campo de Instrução de Aldeia, uma área sob o comando do general de divisão Newton de Andrade Cavalcanti, comandante da 7ª Região Militar, em substituição ao General Mascarenhas de Morais, que em breve estaria na Itália comandando a Força Expedicionária Brasileira.
Apresentação para os militares.
Os soldados do Centro de Instrução de Aldeia foram liberados para convidar parentes e amigos e o espetáculo teve início às quatro da tarde. Antes de Nelson Gonçalves cantar, se apresentaram vários artistas da Rádio Club de Pernambuco, que tinha o prefixo P.R.A. 8 e era uma emissora que tinha uma grande audiência em todo norte e nordeste do Brasil. Subiu ao palco os cantores Vicente Cunha, Maria Celeste e Maria Parísio, conhecida como “Rouxinol da PRA-8”, além do grupo Demônios do Ritmo. Mas a grande atração foi Nelson Gonçalves, que subiu ao palco, cantou com seu vozeirão característico e agradou a todos[3].
No Hospital Americano da Praia
Nelson ainda se apresentou para a sociedade recifense no tradicional Teatro Santa Isabel e realizou uma apresentação no hospital da Marinha dos Estados Unidos em Recife[4].
Esse hospital era bem movimentado devido a quantidade de navios da Marinha dos Estados Unidos que circulavam pelo porto de Recife, sendo considerado uma das instalações mais importantes para os militares da marinha americana em operação no Atlântico Sul, tendo recebido seu primeiro paciente em 19 de dezembro de 1942. Era conhecido como Knox Field Hospital e para alguns autores ficava localizado defronte a praia de Boa Viagem, para outros já seria na região da praia de Piedade. Consta que entre os atendimentos mais comuns estava o tratamento e controle das doenças sexualmente transmissíveis[5].
É possível que nessa apresentação de Nelson Gonçalves tenham vindo até outros militares americanos lotados na região. Pois alguns quilômetros ao sul do ponto onde estava o Knox Field Hospital, também defronte a praia, ficava o centro de atendimento hospitalar dos militares do Exército dos Estados Unidos, denominado na época 200th Station Hospital, atual HARF – Hospital de Aeronáutica de Recife e não muito distante a Base Aérea de Recife[6].
Hospital da US Navy em Recife, onde Nelson Gonçalves se apresentou.
Como eram comuns nessa época, devido a censura existente pela situação de guerra, poucas foram as notícias que informaram sobre essa apresentação.
Sabemos que Nelson Gonçalves também se apresentou em João Pessoa, Paraíba, mas sobre essas apresentações não conseguimos nenhuma informação.
Em Natal
Após a agem por João Pessoa, o cantor da Rádio Mayrink Veiga, apresentado em Natal como “O Rei do Rádio”, chegou à cidade no dia 4 de fevereiro, uma sexta-feira. Junto com Nelson vieram as cantoras Maria Parísio, o “Rouxinol da PRA-8”, e Yvete Porto. Esta última foi apresentada pelos jornais natalenses como sendo uma “Sambista moderna”.
Nas noites de sábado e domingo esses artistas se apresentaram no extinto cinema Rex, localizado na Avenida Rio Branco, próximo a esquina com a Rua João Pessoa, não muito distante de um ponto de venda de cafés pertencente ao Sr. Francisco das Chagas Andrade e conhecido por todos os natalenses com “Grande Ponto”.
Nelson cantou “Marilú”, de Orlando Monello e Antônio Elias, e “Renúncia”, de Mário Rossi e Roberto Martins, sucessos de 1942. Além de “Sabiá da mangueira”, de Benedicto Lacerda e Eratóstenes Frazão, e “Mãe Maria”, de Custódio Mesquita e David Nasser. O vozeirão de Nelson deleitou a todos no Rex com músicas, ao ponto dos jornais locais não tecerem nenhum comentário sobre as apresentações das cantoras Maria Parísio e Yvete Porto.
Como o Rex era um dos principais cinemas da cidade, sabemos que após os dois shows o público presente foi contemplado com a exibição do filme “A noiva caiu do céu”, com os astros James Cagney e Batty Davis[7].
A princípio essas eram as únicas apresentações agendadas de Nelson Gonçalves em Natal. Mas o comitê da Cruz Vermelha Brasileira local, comandado pelo capitão Aníbal Medina de Azevedo e seu vice, o médico militar Galdino Lima, o secretário geral Edilson Varela e o jovem Aluízio Alves, então diretor da Comissão Estadual Legião Brasileira de Assistência. Eles solicitaram que Nelson realizasse no domingo um show no Teatro Alberto Maranhão, exclusivamente para os militares brasileiros e estrangeiros estacionados em Natal. O show contava com o apoio e aquiescência dos chefes militares e o cantor aceitou.
No Teatro Alberto Maranhão
O show ocorreu as 14 horas, sendo exclusivo para militares brasileiros e norte-americanos e, segundo o jornal A República, os militares brasileiros e norte-americanos “de ar, mar e terra” estiveram presentes e a tradicional casa de espetáculos da Praça Augusto Severo estava lotada. Estava presente o comandante da guarnição dos militares brasileiros em Natal, o coronel Nilo Horácio de Oliveira Sucupira[8].
Quem subiu ao palco foi Aluízio Alves, certamente para agradecimentos de praxe, ou talvez já se preparando para os mitos palanques que utilizaria no futuro.
O show contou com a participação das cantoras Maria Parísio e Yvete Porto, a apresentação foi do locutor Josué Silva, da Rádio Educadora de Natal – REN, e houve o acompanhamento do pianista local Pedro Duarte.
Mesmo sem detalhamentos, o jornal natalense aponta que principalmente Nelson Gonçalves e Maria Parísio apresentaram várias canções, sendo “vivamente aplaudidos”.
Não encontrei a mínima opinião dos militares estrangeiros sobre o espetáculo. Mas após o show Nelson e as cantoras que vieram com ele de Recife, foram convidados a visitar naquele mesmo domingo a base de Parnamirim Field. Foi apenas uma visita de cortesia, ou os cantores brasileiros foram convidados para uma pequena apresentação no Cassino dos Oficiais da base?
Infelizmente não sabemos, mas se assim aconteceu pode ser uma demonstração que os estrangeiros gostaram do que viram e ouviram, o que não seria surpresa, pois Nelson Gonçalves se tornou um dos principais expoentes da Música Popular Brasileira.
NOTAS
[1] Sobre essa empresa ver Jornal Pequeno, Recife-PE, ed. 22/11/1943, domingo, pág. 6.
[2] Ver Diário de Pernambuco, Recife-PE, ed. 12/01/1944, quinta-feira, pág. 5 e Jornal Pequeno, Recife-PE, ed. 13/01/1944, sexta-feira, pág 2.
[3] Segundo o pesquisador Alberto Bittencourt, o conceito do Campo de Instrução Militar foi inspirado no mesmo modelo que criou os fortes americanos, particularmente o Fort Benning. Em palestra intitulada “A FEB e o Campo de Instrução do Engenho Aldeia”.[3] Bittencourt informou que em 1943, a ideia do general Newton com relação ao Campo de Instrução de Aldeia era “construir um local adequado para instrução e treinamento da tropa nordestina, capacitando-a a combater quem quer que fosse e no local a ela designado. O pesquisador recordou que “A ideia original da FEB era o Brasil enviar para além-mar, um Corpo de Exército completo, com três Divisões de Infantaria, blindados e serviços, embora a realidade, bem o sabemos, tenha sido outra. Essa 3ª Divisão de Infantaria Expedicionária, que seria preparada e treinada no campo de instrução do antigo Engenho Aldeia, não chegou a sair do papel. Provavelmente essa 3ª Divisão Nordestina, seria comandada pelo seu criador, o general Newton Cavalcanti”. Mais detalhes sobre essa palestra e a história do antigo Centro de Instrução de Aldeia, ver http://albertobittencourt.blogspot.com/2013/10/a-feb-e-o-campo-de-instrucao-do-engenho_29.html
[4] Ver O Jornal, Rio de Janeiro-RJ, edição de sábado, 29/01/1944, pág. 06.
[6] Sobre o HARF – Hospital de Aeronáutica de Recife ver na página 23 do livro “Entre saberes e cultura, a arte de curar na Força Aérea Brasileira”, de Elaine Gonçalves da Costa Pereira, Ed. INCAER, 2019.
[7] Ver jornal A República, edição de sábado, 05/02/1944, pág. 4.
[8] Ver jornal A República, edição de domingo, 06/02/1944, pág. 8.
Enquanto isso no Brasil, um belo DC-3 da extinta VARIG foi totalmente destruído em janeiro de 2020!
Rostand Medeiros- Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte
Agradecimento especial – O autor agradece a atenção recebida por parte do pesquisador de temas da Segunda Guerra Mundial MARCO CÉSAR SPINOSA, de São Paulo-SP, para a conclusão desse texto. Meu muito obrigado!
Já está mais que comentado e repetido os fatos que apontam a importância estratégica de Natal durante a Segunda Guerra Mundial e como sua localização era extremamente útil para a aviação Aliada. Essa é uma das razões do governo dos Estrados Unidos, em parceria com o governo brasileiro, construir várias bases aéreas ao longo do nosso litoral, sendo a maior delas em Natal, capital do pequeno estado do Rio Grande do Norte.
Entretanto pouco se comenta sobre as aeronaves que por aqui aram. Sobre suas tripulações, suas atuações durante a Segunda Guerra e o que aconteceu com essas máquinas após o conflito.
O avião que vamos aqui comentar um dia veio dos Estados Unidos para a capital potiguar, depois atravessou o Atlântico Sul, ou pela África do Norte e chegou à Inglaterra. Depois lançou paraquedistas sobre a França ocupada na madrugada do Dia D, além de participar de outras batalhas. Após o fim do conflito voou para operadores civis e militares. Quando se “aposentou” foi encontrado servindo de bar para soldados de várias nações, em meio a Guerra na Bósnia, um dos conflitos sangrentos surgidos com o fim da Iugoslávia. Hoje se encontra em exposição em um interessante museu na região da Normandia, na França.
Uma Lenda dos Céus
Consta que para o general Dwight D. Eisenhower, comandante em chefe das forças aliadas na Europa, quatro ferramentas foram consideradas decisivas para a vitória na Segunda Guerra Mundial: a Bazuca, o jipe, a bomba atômica e uma aeronave, o Douglas C-47[1].
No Brasil o DC-3 e o C-47 foram muito utilizados pelos segmentos civil e militar da aviação. Foto da página 53 do livro “Douglas RD4 variants (USN’s, DC-3/C-47s)”, de Arthur Pearce Jr.
Esse interessante avião tem suas origens em uma mítica aeronave que revolucionou como poucas o transporte aéreo de ageiros, o Douglas DC-3.
A primeira versão desse bimotor, o DC-1, realizou seu primeiro voo em 1º de julho de 1933 e logo entrou em serviço o DC-2 e depois o DC-3 comercial. Transportava um total de 21 ageiros bem acomodados, possuindo ótima autonomia. Podia realizar um voo e costa a costa nos Estados Unidos, entre as cidades de Nova York e Los Angeles com apenas três escalas, algo inovador na época. Mas foi com a Segunda Guerra Mundial que essa aeronave, devidamente preparada para o serviço militar, se tornou um mito e solidificou sua reputação.
C-47, o DC-3 militarizado – Fonte – AN.
Foi desenvolvido então o C-47, cujo voo inaugural ocorreu em Clover Field (agora Santa Monica), Califórnia, em 17 de dezembro de 1935. Essa aeronave e suas variantes militares se tornaram o verdadeiro “burro de carga” das forças Aliadas nesse conflito, que utilizaram essa aeronave em todos os teatros de operação. Era uma máquina extremamente versátil, tendo transportado milhares de toneladas de suprimentos para as áreas de combate, combustível, munição, lançando paraquedistas sobre o território inimigo e rebocando planadores que transportavam tropas. O C-47 acomodava 28 paraquedistas devidamente equipados e havia sido projetado originalmente para decolar com um peso máximo de 4.536 kg, mas não foi incomum que durante a guerra essas aeronaves decolassem com muito mais peso. Os primeiros C-47 foram encomendados pelos militares americanos em 1941 e no final da Segunda Guerra Mundial 9.980 haviam sido produzidos nos Estados Unidos.
Foto da página 51 do livro “Douglas RD4 variants (USN’s, DC-3/C-47s)”, de Arthur Pearce Jr.
No Exército dos Estados Unidos o C-47 ficou conhecido como Skytrain – Trem do céu. Já a Marinha daquele país o denominou R4D e outras versões foram designadas como “Dakota”, “Gooney Bird” e “Skytrooper”. Mas, independentemente do nome e apesar das inúmeras alterações para realizar muitas missões, esses aviões basicamente permaneceram o robusto DC-3 da Douglas Aircraft.
O TheSnafu Special
Em 29 de janeiro de 1944, ao custo de US$ 109.663, um modelo C-47A-80-DL, número de fabricação 19539, deixou a fábrica da Douglas Aircraft Company, em Long Beach, Califórnia, para ser entregue a USAAF (United State Army Air Force – Força Aérea do Exército dos Estados Unidos). Os militares então colocaram neste avião o número de registro 43-15073, sendo ele destinado ao 95th Troop Transporter Squadron. Esse era uma das quatro esquadrilhas que formavam o 440th Troop Carrier Group, que por sua vez era um dos quatorze grupos de aviação que faziam parte do IX Troop Carrier Command, uma imensa unidade tática de transporte aéreo, com mais de 1.300 aeronaves, criada especialmente para transportar a partir de bases na Inglaterra tudo que fosse necessário para ajudar na invasão da França.
Em 29 de janeiro de 1944, o primeiro tenente James Paul Harper, um jovem californiano de 21 anos, foi designado para comandar esse C-47. Segundo sabemos, em relação às aeronaves do IX Troop Carrier Command, normalmente eram as suas próprias tripulações que traziam esses C-47 dos Estados Unidos para a Inglaterra e no caso do avião de matrícula 43-15073, além do piloto Harper, havia o segundo tenente Luther J. Lizana como copiloto, o segundo tenente Murray J. Winter como navegador e o sargento Joseph R. Buckner como rádio operador.
Da esquerda para direita vemos o segundo tenente Luther J. Lizana, copiloto, o sargento Joseph R. Buckner, rádio operador, e o segundo tenente Murray J. Winter, navegador– Fonte – http://www.americanairmuseum.com.
Eles decidiram batizar a aeronave como TheSnafu Special, sendo o significado de Snafu – Situation Normal: All Fucked Up (Situação normal: Todo fudido), complementado pela palavra Special (Especial). Snafu seria um acrônico em inglês que significa que a situação estava ruim, mas que sempre foi assim e que não era nada para ficar irado dela está assim. Era uma maneira na Segunda Guerra que os militares americanos tinham de brincar com situações negativas, ou de expressar frustração[2].
Não demorou e o tenente Harper, além de outras centenas de pilotos do IX Troop Carrier Command, receberam ordens de seguir para a Europa, através da rota aérea que atravessava o Atlântico Sul, em um trajeto que levaria, no total, oitenta e algumas horas de voo.
Rota do Atlântico Sul- Fonte – USAAF.
Era essa rota normalmente se iniciava no estado americano da Flórida, ava por algumas ilhas caribenhas, seguia pela Guiana Inglesa para depois adentrar o território brasileiro, onde as aeronaves realizavam uma parada em Belém, no Pará. Depois era alcançar Natal e, quando autorizado, seguir em direção a ilha inglesa de Ascenção, no meio do Oceano Atlântico. Na sequência os tripulantes deveriam chegar até a costa da África Ocidental e depois seguir em rumo norte para o Marrocos. A parte final era um voo sobre o Atlântico até a Inglaterra.
Mas as tripulações dos Douglas C-47 Skytrain que aram por Natal naqueles anos, sofreram bastante para completar essa longa viagem e outras missões. Era um tempo onde essas aeronaves não tinham pressurização nas cabines, ou sistemas de oxigênio individualizado, isso tudo em uma era de previsão de tempo bem primitiva. Seus pilotos tiveram de aprender rapidamente como medir e voar em um clima onde muitas vezes não faltavam fortes tempestades. Afora que os C-47 não possuíam os recursos de outras aeronaves táticas, como tanques de combustível com vedação, proteção balística, ou armas defensivas[3].
Revista Life, edição de 6 de setembro de 1943, com uma grande reportagem sobre Parnamirim Field, onde na foto de abertura vemos nove C-47 sobrevoando a base.
742 Aeronaves ando Pelo Brasil Em Apenas Um Mês!
Além da rota aérea através do Atlântico Sul, que anteriormente detalhamos o trajeto, os americanos utilizavam outra rota aérea bem mais ao norte. Ela se iniciava no nordeste dos Estados Unidos, ando pelo Canadá, Groelândia, Islândia e alcançando a Inglaterra. Era um trajeto bem mais curto que a do sul, mas os pilotos e as aeronaves sofriam bastante quando o inverno chegava nessa região. Aí o melhor negócio era ar pelo nosso belo e caliente país tropical, onde a principal parada era Parnamirim Field, em Natal![4]
O alto comando aliado preparava com cuidado a invasão da Europa e não queria perder aeronaves para o clima e, segundo o interessante e informativo site ibiblio.org/hyperwar, na parte onde é detalhada a rota do Atlântico Norte (https://www.ibiblio.org/hyperwar/AAF/VII/AAF-VII-4.html), somente no mês de abril de 1944 nada menos que 742 aeronaves utilizaram o trajeto ando pelo Brasil.
O fotógrafo norte-americano Hart Preston, da Time/Life,clicou esse DC-3 no Campo de Parnamirim em 1941.
Aqui abro parênteses para comentar que nem todas essas aeronaves eram do tipo C-47 e nem todas utilizaram Natal como principal base para alcançar a África Ocidental. Naquela época a cidade de Fortaleza, capital do Ceará, igualmente era um ponto importante de apoio para cruzar o Atlântico Sul. Entretanto é inegável que a maioria das aeronaves que avam pelo norte e nordeste do Brasil, principalmente os bimotores como o modelo C-47, utilizavam Natal e sua base de Parnamirim como local de decolagem em direção à África e Europa.
Ao Assistir o interessante canal no YouTube denominado “Tropa Guripa” (https://www.youtube.com/watch?v=c2IK7jV8OiQ), encontrei uma entrevista do francês Patrick Elie, membro da organização que preserva nos dias atuais o C-47 The Snafu Special, onde informou que esse avião ou pelo Brasil entre abril e maio de 1944[5].
Outra foto de Hart Preston, realizada no Campo de Parnamirim.
Esse canal é mantido pelo espanhol Óscar Galansky, que vive no município de Moaña, na província de Pontevedra, comunidade autónoma da Galiza. Galansky desenvolveu um interessante coletivo de recriação histórica (Living History)[6] denominado “Tropa Guripa”, que realiza recriações históricas da Guerra Civil Espanhola e da Segunda Guerra Mundial, além de criar pequenos documentários temáticos que são apresentados em seu canal no Youtube.[7]
Mesmo sem uma data exata da agem do TheSnafu Special por Natal, podemos comentar observando os exemplares dos jornais A República, Diário de Natal e A Ordem, que a única referência da agem de todas essas 742 aeronaves por terras potiguares foi um acidente com um C-47 na cidade de Assú, a cerca de 210 quilômetros de distância da capital potiguar.
O caso se deu em 15 de abril de 1944, um sábado, e as primeiras notícias indicavam que esse avião teria se acidentado após bater na Serra Branca, na época uma área pertencente ao município de Santana dos Matos. Mas conforme os dias aram, as notícias foram esclarecidas. O C-47 caiu por volta de duas e meia da tarde, alguns quilômetros da sede do município de Assú. Era uma aeronave britânica, da RAF – Royal Air Force (Real Força Aérea), modelo Dakota, cuja queda foi devido ao tempo ruim, sendo a tripulação formada por dois britânicos e um australiano. Suas lápides se encontram até hoje no Cemitério do Alecrim, em Natal.
Túmulos existentes no Cemitério do Alecrim, com os restos mortais dos três tripulantes que pereceram na queda de um C-47 em Assú- Foto – Rostand Medeiros.
Através da leitura dos jornais natalenses, sabemos que naquele abril de 1944 estava chovendo bastante no Rio Grande do Norte e em todo Nordeste. Inclusive essa condição meteorológica que influenciou a queda do avião de transporte da RAF, foi preponderante para outro acidente no interior do Rio Grande do Norte no mês seguinte. Nesse caso foi a queda de um hidroavião Consolidated PBY5A Catalina, da US Navy (Marinha dos Estados Unidos), em 10 de maio de 1944, próximo ao município de Riachuelo, a 80 quilômetros de Natal (Sobre esse caso ver – /2019/07/04/a-guerra-chega-ao-agreste-potiguar-a-queda-de-um-catalina-em-riachuelo/).
Na Inglaterra, Na França, Na Holanda e Outros Locais.
Sem alterações, o The Snafu Special seguiu viagem para a Grã-Bretanha.
A RAF Station Exeter, com as aeronaves do 440th Troop Carrier Group.
Em preparação para a invasão da França em junho de 1944, a USAAF assumiu a RAF Station Exeter, um aeroporto civil transformado em base aérea com a eclosão da guerra e localizado no sudoeste da Inglaterra, que então pertencia aRAF.
Em 18 de abril de 1944 a base de Exeter ficou conhecida como Station 463, do 440th Troop Carrier Group, onde seus esquadrões 95th, 96th, 97th e 98th, com mais de 70 aeronavesC-47 e outros 70 planadores CG-4, começaram os treinamentos para o Dia D, onde realizaram várias missões de treinamento, oferecendo impressionantes formações das aeronaves e saltos de paraquedistas.
Na noite de 5 de junho as aeronaves do 440th Troop Carrier Group iniciaram seus preparativos para sobrevoar a Europa ocupada, como parte da Operação Overlord, entre elas o The Snafu Special. Inicialmente 47 aeronaves C-47, rebocando planadores CG-4, transportaram 723 paraquedistas da 101st Airborne Division (101ª Divisão Aerotransportada)[8].
Ao longo do trajeto o The Snafu Special foi se juntando a centenas de outras aeronaves que transportavam paraquedistas e atravessaram o Canal da Mancha. Ao sobrevoar a área da pequena vila de Caretan, na península de Contentin, os soldados saltaram. Naquela madrugada o 440th Troop Carrier Group perdeu três C-47para o fogo antiaéreo. Na manhã de 6 de junho o tenente James Harper continuou voando com sua tripulação da Inglaterra para o inferno que se desenrolava ma Normandia, transportando combustível, munição e outros suprimentos. Outros três C-47 da 440th foram derrubados[9].
Logo depois o destacamento também participou da invasão do sul da França, a chamada “Operação Dragão”, transportando em 15 de agosto de 1944 paraquedistas perto de Le Muy e planadores carregando reforços para essa área.
Em 17 de setembro de 1944, durante o ataque à Holandao The Snafu Special e os outros aviões da 440th transportaram paraquedistas da 82st Airborne Division (82ª Divisão Aerotransportada), como parte da Operação Market Garden. Essa operação foi imortalizada por Hollywood no interessante filme “A Bridge Too Far” (Uma ponte longe demais). Os paraquedistas saltaram próximos a cidade de Groesbeek e nos combates subsequentes essa localidade foi quase completamente destruída.
O The Snafu Special e sua tripulação.
Depois, no natal de 1944, durante a Batalha do Bulge, o The Snafu Special e os outros C-47 da 440th transportaram planadores cheios de suprimentos para a 101st Airborne Division em Bastogne, França.
Quando não estava envolvido em operações aéreas, o The Snafu Special e as outras aeronaves do seu o grupo transportava alimentos, roupas, suprimentos médicos, gasolina, munição e outras cargas para as linhas de frente. Retornavam com vítimas dos combates para hospitais na retaguarda.
Uma aeronave inconfundível – Fonte – AN.
Após a guerra, o 440th Troop Carrier Group e suas esquadrilhas transportaram prisioneiros libertados e refugiados civis. Todo o grupo de transporte foi inativado ainda na Europa no dia 18 de outubro de 1945[10].
Na Guerra da Bósnia Como Um Bar
Segundo é apresentado no episódio do “Tropa Guripa” sobre o The Snafu Special , essa aeronave após ter sido desligada da USAAF foi operada por uma empresa civil da Tchecoslováquia, depois ou a voar pela Força Aérea sa e finalmente o veterano avião chegou à extinta Força Aérea da Iugoslávia e lá ficou até ser retirado de serviço. Os Iugoslavos chegaram a operar 41 modelos C-47[11].
Após uma pesada crise política e econômica na década de 1980, com a Queda do Muro de Berlin em 1989 e o enfraquecimento do comunismo na Europa Oriental, as repúblicas que formavam a República Socialista Federal da Iugoslávia se separaram. Mas as questões não resolvidas anteriormente pelo regime comunista causaram amargas e sangrentas guerras interétnicas. Esses conflitos afetaram principalmente a Croácia (1991 – 1995), a Bósnia e Herzegovina (1991 – 1995), e alguns anos depois a região do Kosovo (1998 – 1999).
O velho The Snafu Special, servindo de bar, na Bósnia.
Houve uma forte intervenção de outros países e de tropas de paz das Nações Unidas em determinados períodos desses conflitos. Em julho de 1994, na região da cidade de Sarajevo, atual capital da Bósnia e Herzegovina, estava estacionada uma unidade de “capacetes azuis” ses que tentavam impedir que sérvios e bósnios se matassem. Entre os ses estava o capitão Patrick Collett, que um dia viu nas vizinhanças de um pequeno aeroporto em Rajlovac, cerca de sete quilômetros de Serejevo, um velho C-47.
O capitão Patrick Collett sendo entrevistado sobre o velho C-47, em Rajlovac, cerca de sete quilômetros de Serejevo.
Tempos depois, com a permissão dos combatentes dos dois grupos em luta, o capitão Patrick, juntamente com o sargento Jean-Marie Lesavre, ambos do 501e-503eRégiment de Chars de Combat (Regimento de Carros de Combate), descobriram a placa de identificação do avião, com o número de série 43-15073, o que permitiu traçar sua história. O velho C-47 estava em péssimo estado e havia se tornado um bar para os “capacetes azuis”, chamado “Dakota Club”. Ambos os militares notaram também que o avião tinha vários buracos de bala no lado esquerdo[12].
Militares ses, que acredito pertencerem ao 501e-503e Régiment de Chars de Combat, junto ao velho avião.
Voltando Para a Normandia
A partir dessa descoberta, com o apoio do governo francês, governos municipais, entidades da região da Normandia, juntamente com entusiastas da aviação histórica aram a lutar para conseguir trazer essa aeronave para a França.
Primeiramente a pesquisa sobre a história do C-47 foi ampliada. Enquanto isso o grupo conseguiu angariar 90.000 euros junto a mais de 450 doadores, com a finalidade de financiar o transporte e sua restauração. Outra luta foi convencer as autoridades da Bósnia-Herzegovina da seriedade e validade do projeto. Nos Estados Unidos os veteranos que serviram neste tipo de avião, bem como as famílias das várias tripulações que voaram em modelos C-47, mobilizaram e alertaram a imprensa do seu país para a defesa dessa ideia.
Retirando o C-47 da Bósnia em Pleno inverno.
Em 2 de novembro de 2007, após seis meses de negociações, o governo bósnio doou a França à antiga aeronave. Ainda em novembro desse mesmo ano, uma equipe de doze voluntários trabalhou duro na Bósnia para desmontar e transportar em carretas a aeronave para a Normandia, onde foi restaurado para ser apresentado ao público.
Montagem da aeronave.
Ficou decidido que depois de recuperado o C-47 ficaria em exposição no Museu da Bateria de Artilharia de Merville. Inaugurado em 5 de junho de 1983, esse museu fica em um local onde durante a Segunda Guerra existiu uma das principais fortificações que compunham o chamado “Muro do Atlântico”. Essa era uma ampla e extremamente fortificada área que defendia as forças nazistas na França ocupada e em outros países, de possíveis desembarques navais.
O The Snafu Special retorna ao seu esplendor original.
A Bateria de Merville, localizada a dois quilômetros da praia, foi um dos alvos cruciais dos Aliados durante os desembarques na Normandia. Ali existiam quatro grandes canhões que colocavam em risco os navios de desembarque e as tropas anfíbias. Entre maio e junho de 1944 foram realizadas várias tentativas de destruir o local através de bombardeios aéreos, mas nenhum bunker foi seriamente danificado. O Comando Aliado decidiu então atacar essa posição ao amanhecer do dia D, utilizando paraquedistas[13].
Visitação no avião.
A partir das 04h30 da manhã de 6 de junho, as forças alemãs que a ocupavam a bateria foram neutralizados pelos homens do 9º Batalhão de Paraquedista Britânico, sob o comando do tenente-coronel Terence Brandram Hastings Otway.
Hoje, dentro de um local preservado que abrange vários hectares, a Associação da Batalha de Merville oferece um tour educacional, incluindo uma visita aos quatro antigos bunkers transformados em exposições museográficas. A Casamata número 1 tem um programa de som e luzes que tenta recriar um pouco da atmosfera da noite do assalto[14].
Enquanto na Normandia o C-47 The Snafu Special é recuperado com uma grande participação de governos, comunidades e entusiastas, em no Brasil varonil a conversa é muito diferente!Numa demonstração de falta de respeito e responsabilidade para com a história da aviação brasileira, um Douglas DC-3, o antigo PP-VBF, que pertenceu à VARIG, foi inteiramente destruído na tarde de uma sexta-feira, 31 de janeiro de 2020, dentro da área restrita do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, o RIOgaleão, (Aeroporto Internacional Tom Jobim), na Ilha do Governador, Zona Norte do Rio de Janeiro.
[2] Não sei se estou certo, mas guardada as diferenças, até porque nem sei se no Brasil da Segunda Guerra se utilizava essa expressão, seria mais ou menos como um piloto brasileiro escrever na sua aeronave a sigla “Sifu”, de “Se fudeu”?
[5] Outras fontes apontam que os aviões do 440th Troop Carrier Group vieram para a Inglaterra entre fevereiro e março de 1944. Entretanto eu prefiro ficar com a assertiva do francês Patrick Elie, do grupo de preservação do The Snafu Special. Pois esse pessoal realizou uma extensa pesquisa documental sobre a história dessa aeronave. Talvez os quatro esquadrões que formavam o 440th Troop Carrier Group não vieram todos de uma única vez para o Brasil, sendo provável que o esquadrão do The Snafu Special tenha sofrido atrasos, ou a própria aeronave possa ter tido algum problema que a reteve ao longo da rota. Ver – http://www.usaaf.com/9AF_troop/440_troop.html
[6] A Living History (História Viva) é uma atividade muito popular na Europa e Estados Unidos, que procura utilizar determinadas ferramentas e conhecimentos sobre eventos históricos específicos, onde normalmente seus participantes organizam apresentações interativas para que o público alvo tenha a sensação de voltar no tempo e assim possam aprender mais intensamente sobre o evento histórico focado. A Living History tem sido muito utilizada como uma ferramenta educacional por museus, escolas, em locais de relevância histórica que possuem visitação turística e grupos de reconstituição histórica para educar o público, ou seus próprios membros, em áreas e eventos específicos da história. Essa atividade, ao transmitir um sentido da vida cotidiana de um determinado período, tem sido igualmente utilizada no processo de democratização da informação histórica e na valorização dos eventos históricos de uma comunidade, ou de uma região específica. É uma atividade em franco crescimento principalmente na Europa e nos Estados Unidos, apontando para o desenvolvimento de inúmeros negócios.
[8] Cerca de 13.100 paraquedistas das 82ª Divisão Aerotransportada e 101ª Aerotransportada dos EUA fizeram quedas de paraquedas noturnas no início do Dia D.
Eliminar o país, nada menos que isso, era o objetivo do Exército alemão ao entrar na União Soviética em 1941. Soldados procuravam líderes políticos e autoridades judaicas e os matavam na exata hora e local em que fossem descobertos. A ordem seguinte foi a de levar para campos de concentração e exterminar todos os judeus e comunistas encontrados pela Rússia. Pouco tempo depois, a mesma diretiva ou a valer para todos os judeus da Europa. Milhões deles – principalmente mulheres e crianças – encontraram seu fim em câmaras de gás.
Em linhas gerais, a história de como ocorreu o maior genocídio da história é bastante conhecida. Mas mesmo os estudiosos no assunto gaguejam ao tentar explicar por que Adolf Hitler, o homem por trás de toda essa tragédia, tinha objetivos tão vis e como pôde levar uma nação inteira junto com ele.
Nos últimos dez anos, pesquisadores abordaram o problema de várias formas e trouxeram novas respostas para essa pergunta. Em alguns pontos, destrincharam tudo o que já foi escrito sobre ele nos últimos 60 anos e escolheram os caminhos mais lógicos e prováveis. Em outros, desencavaram novos documentos aos quais até então ninguém havia dado importância. Para completar, começaram a vir a público, a partir da década de 90, informações guardadas confidencialmente nos arquivos das repúblicas do Leste Europeu, da Rússia e dos Estados Unidos. “Agora que essas pastas foram abertas, não acredito que venhamos a encontrar novas coleções de documentos a respeito do governo de Hitler, a não ser por um incrível golpe de sorte”, afirma o historiador Christopher Browning, da Universidade da Carolina do Norte, Estados Unidos. O que você vai ler a seguir é um retrato das teses mais relevantes que emergem da interpretação desse material. Não se espante se considerar que muitas das suas perguntas continuam sem resposta. É bem possível que o terror promovido por Hitler nunca possa ser explicado na totalidade.
Há dois aspectos assustadores que logo vêm à cabeça de quem tenta estudar a origem de Hitler. O primeiro é como alguém que foi um completo fracasso até os 30 anos de idade pode ter ascendido até se tornar um homem com poder para matar milhões e deixar a Europa em ruínas. O segundo é descobrir qual a origem de tanto ódio. “Hitler era obcecado pelo anti-semitismo. A questão é saber por quê”, afirma Browning. A tarefa se torna especialmente complicada porque Hitler eliminou vários dos documentos que poderiam jogar alguma luz sobre o assunto. Segundo William Patrick Hitler – filho do meio-irmão do ditador – seu meio-tio teria lhe dito: “Ninguém deve saber de onde venho”.
A história começa antes mesmo do nascimento de Hitler, com a teoria de que ele próprio poderia ter sangue judeu. Seu avô paterno é desconhecido. Segundo Hans Frank, o advogado do Partido Nazista que investigou a história em 1930, Maria Schicklgruber, avó de Hitler, trabalhava como empregada doméstica na casa de uma família judia na época em que ficou grávida do pai do ditador em 1937.
A história oficial diz que o avô de Hitler era Johann Georg Hiedler, um dono de moinho com quem Maria se casaria cinco anos depois. Mas Frank teria descoberto um detalhe estranho: os patrões judeus pagaram uma pensão alimentícia à criança até ela completar 14 anos e trocaram cartas com Maria nas quais indicam que o responsável pela gravidez era o filho mais novo da família. Hitler, ao receber o relatório de Frank, teria lhe fornecido outra explicação: seu pai era filho de Georg Hiedler, mas sua avó fez a família judia acreditar que era responsável pela gravidez, só para obter a pensão. Em outras palavras: o líder nazista preferiu acusar sua avó de chantagem sexual a itir que pudesse ter sangue judeu.
Apesar do alvoroço que a história causou ao vir a público em 1953, não existe nenhum documento que a comprove. É difícil que algum dia ela se confirme: a região da Áustria onde esses fatos teriam ocorrido foi totalmente destruída pela guerra, talvez por ordem do próprio Hitler. “Essa história não comprovada foi usada como pedra angular para explicar a origem do anti-semitismo de Hitler”, afirma o jornalista americano Ron Rosenbaum, autor do livro Para Entender Hitler, uma análise das diversas teorias já feitas sobre o ditador. Muitos propam que o ódio contra os judeus fosse a forma de eliminar de dentro de si mesmo a dúvida sobre suas origens, mas essa permanece como apenas uma das muitas possíveis explicações para a obsessão do ditador.
Há quem ressalte, por exemplo, o trauma que Hitler teria sofrido aos 18 anos, em 1907, quando Klara, sua mãe, morreu de câncer. O jovem Adolf teria culpado o médico da família, um judeu, e tentado anos depois eliminar o que chamava de “câncer do sionismo”. Outros atribuem o anti-semitismo aos eventos ocorridos meses depois em Viena, quando Hitler foi rejeitado pela Academia de Artes Gráficas. Ele, um aspirante a pintor sem nenhuma instrução formal em arte, teria ficado revoltado contra os judeus que trabalhavam no setor artístico da cidade. Há até a história, defendida pelo caçador de nazistas criminosos de guerra Simon Wiesenthal, de que a demência de Hitler tivesse origem em uma suposta sífilis, contraída de uma prostituta judia durante seus anos na capital austríaca.
Nenhum terreno rendeu tantas explicações para o ódio de Hitler quanto sua sexualidade. Todos os tipos de deturpações e orientações sexuais já foram atribuídos ao Führer – “líder” em alemão – sem que ninguém saiba ao certo qual era o problema. “É raro encontrar um pesquisador de Hitler que não faça do segredo sexual uma variável oculta da psique de Hitler”, afirma Ron Rosenbaum. A acusação mais recente é a de que Hitler foi um homossexual. Muita gente já suspeitava, mas a hipótese só se tornou séria em 2001, com a publicação de O Segredo de Hitler, do historiador alemão Lothar Machtan.
Segundo o livro, Hitler circulava por pontos de encontro de homossexuais em Viena. Anos depois, teria sido visto tendo relações com um de seus colegas nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Para Machtan, o ódio contra judeus começou como uma reação aos ataques que a imprensa judaica de Viena deu a um caso de homossexualidade ocorrido na cidade. Hitler, um protetor dos gays? Não. Seu governo, segundo Machtan, manteve a perseguição aos homossexuais que já acontecia na Alemanha, mesmo que o ditador nunca tivesse se pronunciado contra eles.
Antes das revelações de Machtan, as dúvidas quanto à sexualidade de Hitler giravam em torno de um possível caso de monorquidia – a idéia de que ele teria um só testículo. Segundo o relatório da autópsia do corpo carbonizado de Hitler feita pelos soviéticos, havia apenas um desses órgãos entre os restos encontrados. Mesmo que um médico que analisou Hitler quando criança tivesse afirmado que os genitais dele eram normais, não faltou quem tentasse entender as implicações desse suposto problema. Nos anos 60, vários historiadores afirmaram que isso o teria levado à hiperatividade, inadequação social, tendências a exagerar, mentir e fantasiar.
Houve até quem fizesse a conexão com outro mistério: sua relação com a sobrinha Geli Raubal, filha de uma meia-irmã de Hitler (o ditador teve cinco irmãos e dois meios-irmãos). Ela morava no apartamento de Hitler em Munique, onde foi encontrada morta em 1931, enquanto o líder nazista estava viajando. A versão oficial é que ela se matou, mas a causa da morte é objeto de disputa. Há quem diga que foi Hitler quem a assassinou porque ela pretendia fugir com um amante (em algumas versões, judeu). Outros acham que a deformação sexual o tinha afetado de tal maneira que, incapaz de ter relações sexuais normais, ele forçava a sobrinha a uma série de perversões (envolvendo até fezes e práticas masoquistas) que culminaram com o suicídio da moça.
Todas as teorias têm um grande grau de especulação. “As evidências para qualquer psicanálise de Hitler são muito fracas e acho que nunca conseguiremos explicá-lo por essa via”, diz Browning. Mesmo que fosse possível achar a origem de seu anti-semitismo, ela não explicaria como ele conseguiu levar um país inteiro a acompanhá-lo nessa sanha sanguinária. “A questão principal não é a base da obsessão particular de Hitler. O problema é histórico. A fixação de Hitler só se tornou importante porque ele teve uma carreira política”, diz Browning.
O ódio de Hitler contra os judeus, apesar de mais radical que a média, não era nada de novo nem de estranho na Europa daquela época. “Hitler assimilou o clima político da Áustria e começou a culpar vários elementos, particularmente os judeus, pela sua própria frustração. Após ir para a Primeira Guerra, ele começou a achar que poderia ter um papel político”, afirma o historiador Richard Breitman, da Universidade Americana, em Wa-shington, Estados Unidos.
Hitler dizia que os anos ados na Primeira Guerra foram os melhores de sua vida. Em 1914, assim que começaram os conflitos, ele se alistou no Exército alemão e, apesar de trabalhar atrás das trincheiras como mensageiro, conseguiu condecorações por bravura raras para o seu posto. Em 1918, um ataque com gás o levou, parcialmente cego, ao hospital, onde recebeu a notícia de que a guerra havia acabado.
Uma revolução havia tomado o país no momento em que o Exército alemão sofria derrotas no campo de batalha. Instaurou-se a República de Weimar – em 1918 – e se assinou um misto de armistício e rendição que impunha duras condições à Alemanha. Para Hitler, foi uma traição. Nesse momento, ele afirma ter tido a visão que o fez seguir carreira na política. Deveria tomar como missão vingar a Alemanha contra a “punhalada nas costas” que tinha tomado dos políticos, muitos deles judeus, que proclamaram a república. “Era uma mentira óbvia, mas uma mentira que Hitler usou como veículo para chegar ao poder”, afirma Rosenbaum.
Ao sair do hospital, ele, então um cabo do Exército alemão, foi mandado para Munique para investigar grupos extremistas. A cidade vivia em um caos, com dezenas de grupos em conflito e uma seqüência de dirigentes sendo assassinados ou depostos. Hitler começou a divulgar seu diagnóstico dos eventos nas cervejarias da cidade e fez uma descoberta, que descreveu no livro Minha Luta, de 1925: “Tive a oportunidade de falar diante de uma grande audiência e o que eu sempre pressenti se confirmava: eu sabia falar”.
E sabia mesmo. Filiou-se ao pequeno Partido dos Trabalhadores da Alemanha (que logo mudou de nome para Partido dos Trabalhadores Nacional-Socialistas Alemães) e chegou rapidamente ao posto de porta-voz. Em pouco mais de um ano, em 1920, o número de membros do Partido Nazista (abreviação de “nacional-socialista”) ou de cerca de 60 para mais de 2 mil pessoas graças ao impacto de seus discursos (veja quadro na página 70). Kurt Lüdecke, um de seus primeiros iradores, descreveu em um relato que era como se ele tivesse perdido sua capacidade crítica e estivesse “preso em um feitiço hipnótico”, uma experiência que ele comparava a uma conversão religiosa.
Qual era o conteúdo desses discursos eletrizantes? Aparentemente, nada de novo – um futuro grandioso para a Alemanha, a recuperação econômica, o fim do marxismo e dos judeus. “Para conseguir e das massas, foi menos decisiva a doutrina nazista que o estilo de articulação de medos, fobias e expectativas espalhadas pela população. E, quando a questão era representar, Hitler era inigualável”, afirma o historiador inglês Ian Kershaw, da Universidade de Sheffield, Inglaterra. Em meio à crise econômica e ao sentimento de humilhação trazidos pela derrota da Alemanha, grande parte da população já estava disposta a aceitar as idéias de Hitler ou de qualquer outro líder populista de igual calibre. Ao ouvi-lo, a conversão era imediata.
A aura que foi se formando em volta do líder nazista lhe permitia ganhar votos mesmo entre o público pouco disposto a aceitar suas idéias. Havia, desde o século 19, a busca quase religiosa por um líder que uniria a Alemanha e a levaria à grandeza. A profecia se fortaleceu após a derrota na guerra, principalmente entre os protestantes, bastante nacionalistas. “Hitler construiu para si a imagem de ser o escolhido, no sentido bíblico da palavra. A insistência dele em um poder e um mistério quase do outro mundo tinha um grande apelo, o que lhe deu a sensação de ser de fato o salvador”, afirma o historiador Fritz Stern, da Universidade de Colúmbia, Estados Unidos. Em seus discursos, não era apenas a sua vontade que o levava a querer reconstruir a Alemanha – seus feitos e sua missão seriam obra da providência divina.
Hitler havia se tornado popular, mas para chegar ao poder era preciso muito mais astúcia e, principalmente, sorte. Em meados da década de 20, a situação não era nada boa para os nazistas. O partido tinha se esfacelado depois de uma tentativa frustrada de golpe em 1923, que foi combatida pela polícia e deixou Hitler na prisão por 13 meses. Ao ser libertado, a crise econômica e política tinha se acalmado e as propostas nazistas se tornariam menos atraentes à população. Eles talvez nunca tivessem deixado de ser um partido pequeno se o mundo inteiro não fosse chacoalhado pela crise econômica internacional de 1929. O modo como os nazistas exploraram o colapso financeiro e político que se seguiu permitiu a eles, em 1930, ar de 12 para 107 cadeiras no Parlamento alemão e se tornar o segundo maior partido da casa. Confiante no sucesso eleitoral, Hitler concorreu – e perdeu – ao cargo de presidente em 1932, mas não desistiu de controlar o governo. Meses depois, seu partido ganhou 43,9% dos votos e se tornou a força política majoritária do país.
Hitler começou a pressionar o presidente eleito, Paul von Hindemburg, a lhe dar o cargo de chanceler, que lhe permitiria controlar o Poder Executivo. O presidente ignorou o pedido. Frustrado na tentativa de chegar ao poder, o partido começou a sofrer dissidências e obteve um número menor de votos nas eleições realizadas no final de 1932, marcadas depois que o chanceler dissolvera o Parlamento. Foi o momento em que os jornais conservadores começaram a comemorar o fim do Partido Nazista e, curiosamente, foi quando Hitler chegou ao poder. Mais uma vez, ele teve astúcia e sorte para tirar proveito das fraquezas da república.
O Parlamento alemão estava em grande parte dividido entre nazistas e comunistas, uma mistura tão explosiva que poderia facilmente levar a uma guerra civil. Para governar, o Executivo tinha que driblar o Parlamento por meio de “decretos de emergência” e concentrar o máximo de poder em seu gabinete. Os industriais e proprietários rurais, cansados de tanto ime, havia muito tempo tentavam trocar a república por um governo autoritário.
Os chanceleres, influenciados por essa elite, bem que tentaram acabar com a democracia, mas todos caíram diante de intrigas políticas ou de decisões erradas. Foi quando uma parcela do poder econômico, em especial os ruralistas, começou a achar Hitler uma boa solução. Surgiu então a proposta de dar ao líder nazista o cargo de chanceler, mas em um gabinete composto quase somente por conservadores. Ou seja, queriam fazê-lo de fantoche, aproveitar seu apoio popular para dar base ao governo autoritário que desejavam. Assim, em janeiro de 1933, Hitler assumiu o cargo de chanceler alemão.
Como você deve imaginar, a decisão dos conservadores figura hoje na galeria das maiores idiotices já feitas por um grupo de políticos. Apenas um mês depois de assumir o poder, um incêndio criminoso destruiu o Parlamento e deu a Hitler a chance de consolidar seu poder. Declarando o incidente como sinal de uma revolta comunista, ele ordenou a prisão de milhares de marxistas e opositores políticos e obteve um decreto que suspendia todos os direitos e liberdades individuais no país.
Violência contra opositores não era novidade para ele: o braço armado de seu partido espancava e assassinava inimigos políticos desde a época dos discursos nas cervejarias de Munique, com a conivência dos juízes da região, simpatizantes do movimento nazista. “Hitler desconsiderava nossa noção de moralidade. Para ele, isso era uma construção judaica. Não tinha nenhum escrúpulo e era contra os direitos individuais”, afirma Christopher Browning.
Com dois meses de governo, toda a oposição estava morta, reduzida a organizações clandestinas ou presa em um recém-inaugurado campo de concentração em Dachau. O pouco que restava para consolidar seu poder veio nos anos seguintes: em 1934, com a morte do presidente Hindemburg, ele assumiu controle total sobre o Executivo. Em 1938, utilizou intrigas para afastar os comandantes conservadores do Exército.
Mesmo sem nunca ganhar uma eleição presidencial, Hitler obteve poder absoluto e apoio popular em pouquíssimo tempo. Apesar de matar oponentes em uma escala nunca antes vista na Alemanha, Hitler estava agindo da maneira que muitos alemães esperavam de um dirigente. A classe média, os industriais, os proprietários rurais saíram ilesos de sua ação. E, atacando as minorias, ele conseguiu dar à população a impressão da unidade nacional com que eles tanto sonhavam. “Hitler usou a propaganda de forma espetacular para unificar o país. Havia os inimigos comuns, os judeus e os comunistas, e o alvo, o Tratado de Versalhes, que tinha imposto ao país condições muito desconfortáveis ao final da Primeira Guerra”, diz Stern.
O ESTILO
O novo Führer era vegetariano. Não bebia, não fumava, não tomava café. Seguia rotinas fixas e era aficionado por arquitetura (Veja no final do texto). Não tinha a menor paciência para resolver problemas istrativos. Hitler evitava situações em que tivesse que escolher entre duas opções conflitantes. Limitava-se a aprovar ou reprovar as medidas que chegavam até ele. Aplicava à istração o princípio que dominava toda sua visão de mundo: a ideia de que o mais forte deve vencer. Vários departamentos de seu governo se sobrepunham e os choques entre eles eram constantes. A melhor maneira de fazer um projeto andar em meio às disputas (e de ganhar promoções) era obter a aprovação do Führer. “O estilo de Hitler levava menos a um governo bem dirigido que ao oportunismo e a iniciativas arbitrárias e sem coordenação”, diz Kershaw. A vantagem para Hitler é que sua vontade era cumprida sem que ele se esforçasse ou se envolvesse em disputas que pudessem abalar sua imagem.
O governo só funcionava porque havia a disposição de seguir a vontade do Führer. “Por volta de 1939, a maioria da população encontrava algo para irar em Hitler”, afirma Kershaw. Além da propaganda intensa do regime, a economia alemã sofreu aquecimento durante o novo governo – porque o mundo inteiro já se recuperava da crise de 1929 e também por conta dos crescentes gastos com a indústria bélica. Por fim, a conquista de territórios e o reforço do Exército promovidos por Hitler atraíam a iração até dos não-partidários do governo.
A ordem internacional permanecia frágil desde 1918. Hitler se aproveitou disso com uma espantosa habilidade para o blefe. “Ele tinha uma sagacidade extraordinária e brutal para explorar a fraqueza dos outros”, diz Stern. Assim como tirou proveito do fim da Primeira Guerra, das fraquezas da República de Weimar e do incêndio no Parlamento alemão para consolidar seu poder, ele agora explorava o ime entre as potências europeias para quebrar os termos do Tratado de Versalhes. Usando como desculpa o rearmamento promovido pela Inglaterra e pela França, Hitler promoveu alistamento militar para ampliar seu Exército – uma desobediência aos termos do tratado. Um ano depois, invadiu a Renânia, uma região desmilitarizada na fronteira com a França. As demais nações, presas a disputas diplomáticas, não fizeram nenhum protesto.
Enquanto isso, assinou tratados de não-agressão com a Polônia e com a União Soviética sabendo que uma hora precisaria rompê-los. Em 1938, Hitler aproveitou crises internas na Áustria e usou seus exércitos para anexá-la ao território alemão. Em março de 1939, fez o mesmo com a Checoslováquia e com regiões da Lituânia. A reação da França e da Inglaterra só veio quando, seis meses depois, ele invadiu a Polônia.
O sonho de Hitler começava a virar realidade. Havia aumentado o território alemão e agora se preparava para aplicar sua política racial. Desde 1935, os judeus estavam proibidos de ter casamentos e relações sexuais com não-judeus, além de terem negada a cidadania alemã. As medidas se tornaram mais drásticas em novembro de 1938. Com a autorização de Hitler, anti-semitas queimaram em uma só noite dezenas de sinagogas, mataram uma centena de judeus e levaram mais de 30 mil pessoas para os campos de concentração.
Apesar da violência em enorme escala, Hitler percebeu que esse tipo de ação não era suficiente para eliminá-los da Alemanha. “Mesmo após cinco anos de intensa propaganda anti-semita, a participação popular foi pequena, houve críticas contra a destruição das propriedades e até simpatia pelas vítimas”, diz Richard Levy, autor de vários estudos sobre o anti-semitismo europeu e professor da Universidade de Illinois, Estados Unidos. A confirmação veio no ano seguinte, com os protestos populares contra o “programa de eutanásia”, uma iniciativa que matou mais de 70 mil doentes mentais e portadores de deficiências. Os dois episódios convenceram Hitler de que ele não poderia contar com a população para aplicar suas políticas raciais. “Ele percebeu que não podia depender das massas para resolver a questão judaica. Quando chegasse o momento, a solução deveria ser encaminhada secretamente e sem a participação popular”, afirma Richard Levy. Esse momento estava chegando.
A QUEDA
A vitória rápida sobre a Polônia e a França, entre 1939 e 1940, estimulou Hitler a tentar seu objetivo final: a invasão da União Soviética. A operação seria diferente das que havia deflagrado até então – dessa vez, era uma “guerra de extermínio”. Segundo Christopher Browning, “a expectativa era que os soviéticos fossem derrotados em duas a quatro semanas. Hitler aprovou a eliminação total e sistemática dos judeus russos”. Browning está no centro do debate sobre quando e por que Hitler decidiu que os judeus deveriam ser exterminados. Ele afirma que a primeira ideia dos nazistas era apenas expulsá-los: mandá-los para a Sibéria, para Madagáscar ou mantê-los em campos de concentração. A decisão de matá-los teria vindo com as vitórias de setembro de 1941 na campanha soviética, quando Hitler se sentiu confiante e percebeu que podia levar a ideia adiante. “Não foi uma hesitação moral. Ele apenas quis garantir que não iria fracassar”, diz Browning.
No outro lado da discussão estão aqueles que acreditam que o extermínio de judeus já estava na cabeça de Hitler muito tempo antes. Para Richard Breitman, o plano teria surgido no início de 1941, antes da invasão soviética. Ele cita um documento do serviço de inteligência britânico de agosto de 1941, que informava que os alemães estariam matando todos os judeus que caíssem em suas mãos – uma evidência não só de que o extermínio pode ter começado antes da data proposta por Browning como de que os aliados sabiam do genocídio desde o início, mas nada fizeram a respeito.
Tanto Breitman quanto Browning afirmaram à Super que, apesar de ainda discordarem em relação às datas, boa parte dessa discussão está sendo superada. “Nunca teremos evidência suficiente para precisar quando os nazistas decidiram pela ‘solução final’ – o extermínio total dos judeus”, afirma Breitman. Existem vários pontos em que eles parecem chegar a um consenso. Um deles é que não coube a Hitler decidir os detalhes. O líder nazista nunca foi a um campo de concentração, não viu os judeus serem mortos e, para alguns, talvez nem tenha dado uma ordem direta para que o holocausto começasse.
Ninguém nega, no entanto, que ele foi uma figura-chave no genocídio. Coube a ele expressar o desejo de ver o fim dos judeus e autorizar seus subordinados a começar a matança. A partir daí, eles formaram pequenos batalhões voltados para o extermínio, que foram se juntando e ganhando força de acordo com o que julgavam ser a vontade do Führer. O resultado foi uma terrível indústria da morte com vários escalões hierárquicos. O comando cabia aos nazistas convictos. Abaixo deles, profissionais, técnicos e burocratas que emprestavam seu conhecimento ao genocídio. Por último estavam pessoas comuns, recrutadas aleatoriamente, que se viam obrigadas a matar. “Foi uma novidade, um Estado moderno e industrializado usando seus recursos organizacionais e tecnológicos para eliminar inteiramente um povo”, afirma Breitman. O plano deu horrivelmente certo. “Eles tiveram contratempos e precisaram improvisar, porque esse tipo de coisa nunca havia sido feito antes. É terrível pensar que o número de vítimas poderia ser muito maior se tudo desse certo para eles. Mas, no geral, o plano funcionou melhor do que esperavam”, diz Breitman.
Como conseguiram transformar tantas pessoas em assassinos frios? Não existe ainda uma resposta satisfatória para a questão. Um fato surpreendente revelado pelos arquivos soviéticos é que a maior parte da matança no país foi feita por agricultores locais. Em alguns grupos de extermínio, havia dez pessoas de outras etnias para cada alemão. “Os nazistas se aproveitaram de rivalidades internas em várias regiões. O cenário agora é muito mais complexo: precisamos estudar a história das relações entre ucranianos, poloneses, judeus e alemães em cada lugar para entender quais eram os interesses desses grupos”, diz Browning.
No final de 1941, ficou claro que a guerra na Rússia não podia ser ganha. Foi quando a ambição de Hitler tornou-se mais evidente: ele dispensou os generais e assumiu o controle da guerra, recusou-se a recuar ou adotar uma postura defensiva e perdeu divisões inteiras em ataques desesperados. À medida que os exércitos aliados começaram a se aproximar de Berlim, ele ordenou que as cidades alemãs fossem destruídas para não serem utilizadas pelos inimigos. Os estudos recentes indicam que, nessa época, Hitler começava a apresentar sinais de mal de Parkinson, mas continuava a governar como antes. Segundo escreveu Albert Speer, arquiteto e ministro da produção e armamento de Hitler, o ditador tentou acabar com as chances da Alemanha de sobreviver a ele. O povo alemão, aos seus olhos, teria merecido a destruição, uma vez que não foi forte o suficiente para derrotar o inimigo soviético.
A autoridade de Hitler permaneceu absoluta até o momento em que ele se matou, em 1945, aos 56 anos. Por mais irracionais que fossem as suas ordens, sempre houve alguém disposto a cumpri-las. Boas explicações para esse fenômeno estão na centralização do governo em sua figura e no assassinato daqueles que tentaram se opor. Mas mesmo essas razões não explicam a devoção que muitos alemães tiveram pelo Führer. “Hitler deve ter tido um efeito carismático estonteante em algumas pessoas”, diz Fritz Stern. “Eu não sei explicar. Não sei quanto disso é de seu magnetismo pessoal, quanto é da atração das massas pelo poder e quanto é do mito que se erigiu à sua volta, do personagem obscuro e fracassado que chegou ao topo do poder.”
“Não há nada que permaneça como um legado positivo dos anos de Hitler no poder”, diz Kershaw. Apesar de ter estimulado as artes, as iniciativas foram para impor a sua noção particular de beleza, que desestimulava qualquer inovação. Seu estilo de istração não serviu de modelo para ninguém. A economia era predatória por natureza, inflada pelos gastos da guerra e dependente em grande parte do trabalho de escravos obtidos nos territórios conquistados. Seu único legado talvez seja a lição do que não deve ser feito. “Acho que a Alemanha está imunizada contra um novo Hitler. Mas a lição é bastante instrutiva para muitos países democráticos em que os movimentos de direita podem querer assumir uma forma mais autoritária, ainda que com apoio popular e econômico”, diz Stern.
Existem várias explicações para cada detalhe da vida de Hitler e os livros que são lançados quase todo dia sobre o assunto mostram que muitas outras teorias surgirão nos próximos anos. Permanece, no entanto, a questão: Hitler pode mesmo ser explicado? Há quem diga que não devemos fazê-lo porque isso diminuiria a culpa de Hitler. Achar um motivo colocaria a responsabilidade do holocausto em qualquer outro fator – seja ele os ancestrais do ditador, o anti-semitismo de Viena ou a desestruturação do povo alemão na época. Há também aqueles que acreditam que entender Hitler é impossível: alguns dos principais documentos e testemunhas foram perdidos para sempre e, além disso, talvez não tenhamos a capacidade de compreender a dimensão das suas motivações hediondas. Finalmente, existem aqueles que, apesar do perigo e da dificuldade de explicar o holocausto, fazem o possível para torná-lo compreensível. “Temos que ter a esperança de que podemos aprender com isso”, diz o historiador Fritz Stern, um judeu alemão que foi com 12 anos para os Estados Unidos para fugir do nazismo. “É difícil intelectual e emocionalmente, mas é absolutamente necessário. A emoção também é o que nos faz persistir para encontrar essas explicações”.
SAIBA MAIS
Adolf, o artista
A obsessão do Führer por suas obras
Um orador que se contorcia no palco, cercado de bandeiras gigantescas, músicas e enormes batalhões com movimentos coreografados – basta ver os comícios de Hitler para perceber que havia ali algo mais do que simples política. Não é à toa que o arquiteto nazista Albert Speer, a pessoa mais próxima de Hitler durante seus anos no poder, tenha afirmado que, para entender o Führer, era preciso perceber que ele se via, acima de tudo, como um artista. O costume vinha do berço: Hitler estudou piano e canto quando criança e, aos 18 anos, tentou ingressar na Academia de Artes Gráficas de Viena, Áustria.
Foi recusado duas vezes – segundo os críticos, seus trabalhos não tinham vida nem originalidade. Mesmo assim, sobreviveu por seis anos vendendo na rua suas pinturas, que continuou a fazer mesmo nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial.
Rejeitado pela academia, resolveu aplicar seu estilo na política. Tomou como símbolo do movimento a cruz suástica – um dos sinais mais fortes e antigos da humanidade, utilizado por centenas de etnias ao redor do mundo. Participou do desenho dos uniformes, insígnias, bandeiras e prédios nazistas. Talvez o único assunto que o obcecasse mais que o ódio aos judeus fosse a arquitetura – e nesse ponto seu estilo era muito particular. Considerava as artes modernas “degeneradas” e tentava retomar a grandiosidade que via nos estilos clássicos, com edifícios tão grandiosos quanto as pirâmides egípcias. Seus prédios deveriam demonstrar a superioridade que atribuía ao povo alemão. Um auditório para seus discursos abrigaria 17 vezes mais pessoas que a Basílica de São Pedro, em Roma. Projetou também um Arco do Triunfo 70 metros mais alto que o de Paris. Caberia a esses edifícios manter viva a imagem de Hitler: os materiais usados deveriam, milênios depois, deixar ruínas tão impressionantes quanto as romanas. Nenhuma dessas obras monumentais saiu do papel, o que, para muitos, é um sinal de que a verdadeira arte de Hitler não estava na construção, mas sim na destruição.
os para a tragédia
A trajetória de Hitler, da infância à destruição da Europa
1889 – Adolf Hitler nasce na pequena cidade de Braunau am Inn, na Áustria. Seu fraco desempenho escolar o faz abandonar o colégio com 16 anos e seguir pouco depois para Viena com o intuito de estudar pintura
1914 – O início da Primeira Guerra Mundial o impele a se alistar na infantaria alemã. Mesmo condecorado duas vezes por bravura, é tido como inapto para promoção por não demonstrar liderança. Acaba no hospital depois de sofrer um ataque com gás
1918 – Ainda no Exército, recebe a missão de vigiar grupos extremistas em Munique e acaba se tornando o 55º integrante de um deles. Seus discursos fazem com que, cinco anos depois, o movimento e a reunir 55 mil membros
1923 – Proclama sem sucesso uma revolução contra o governo e acaba na prisão, onde escreve seu livro Minha Luta. Cumpre apenas dez meses de reclusão e reorganiza o partido, que nove anos depois se torna o maior do Parlamento
1932 – Hitler concorre à presidência, é derrotado por Paul von Hindemburg e começa a perder força política. Mas, dez meses depois, manobras nos bastidores forçam Hindemburg a dar a ele o controle do governo, no cargo de chanceler
1933 – Um atentado incendeia o prédio do Parlamento. Hitler aproveita a oportunidade para suspender direitos civis e prender inimigos políticos. Nos meses seguintes, ganha o direito de promulgar leis e fecha todos os partidos e organizações não-nazistas
1934 – Hindemburg morre, Hitler assume também o cargo de presidente e consolida de vez seu poder. Aproveita o ime nas relações internacionais para armar seu Exército, reocupar territórios perdidos durante a Primeira Guerra Mundial e anexar a Áustria
1939 – Depois de invadir a Tchecoslováquia, Hitler avança sobre a Polônia e dá início à Segunda Guerra Mundial. Menos de dez meses depois, França, Holanda, Noruega, Dinamarca, Bélgica e Luxemburgo já estão sob domínio alemão
1941 – Hitler ordena o assassinato em massa de judeus e invade a Rússia. O fracasso desse ataque abre espaço para a contra-ofensiva soviética e para que britânicos, americanos e seus aliados comecem a retomar os territórios ocupados
1945 – Mesmo acuado, Hitler se recusa a colocar seu Exército na defensiva, tenta ataques desesperados e perde cada vez mais territórios. Com os russos nas redondezas de Berlim, suicida-se e ordena que seu corpo seja incinerado
Filosofia do ódio
Os pensamentos que levaram ao genocídio
1 – A história é uma disputa entre raças, na qual as mais fortes tendem a derrotar as mais fracas. Assim como na evolução das espécies, apenas as raças mais “aptas” sobrevivem.
2 – As grandes civilizações da história desapareceram porque deixaram que seu sangue se misturasse ao de outras raças. A miscigenação é a causa da decadência das culturas.
3 – Judeus são a mais inferior das raças, mas com um incrível instinto de autopreservação. São como parasitas: usam o poder do dinheiro e do capital internacional para se espalhar pelo mundo, infectar e destruir as raças puras.
4 – O marxismo é uma estratégia judaica para dominar o mundo. Com ele, os judeus destruíram a Rússia e pretendem “infectar” outros povos, causando sua destruição. Cabe aos arianos, a raça mais superior, eliminar essa ameaça.
5 – Para se desenvolver, os alemães precisam de um grande território. As outras raças da Europa devem ser eliminadas para que os arianos possam prosperar sem risco de miscigenação.
6 – O Estado deve empreender essas missões, mas não de forma democrática. É preciso um líder genial, moldado para essa tarefa, que leve os alemães à expansão e à luta contra os judeus.
O poder da palavra
Um dos principais fatores para a ascensão de Hitler era a paixão de seus discursos, capaz de levar ouvintes às lágrimas. Uma amostra de sua retórica, de sua capacidade de sofismar, de costurar uma argumentação capciosa a fim de fortalecer seus pontos está no trecho abaixo, retirado de um pronunciamento de 1927, feito em Nuremberg.
Se alguém o chamar de imperialista, pergunte a ele: Você não quer ser um? Se disser que não, então nunca poderá ser pai, porque aquele que tem um filho precisa se preocupar com o pão de cada dia. Mas, se você fornece o pão de cada dia, então é um imperialista. O nosso objetivo deve ser formar uma semente que irá crescer constantemente, ganhando energia e força para o grande objetivo. Àquele a quem os céus deram a grandeza de decidir, eles também deram o direito de dominar.
Testemunha dos principais conflitos bélicos do século XX, o fotojornalista Robert Capa ajudou a construir o imaginário visual de guerra contemporâneo.
Autora – Eliza Casadei
“A guerra era como uma atriz que envelhece”, definiu o fotojornalista Robert Capa (1913-1954), em um texto publicado na revista Life, em 1944. Para ele, que morreu aos 41 anos cobrindo um conflito bélico, a guerra era “cada vez menos fotogênica e cada vez mais perigosa”. Conhecido por suas fotografias brilhantes e pelo estilo de vida pouco usual, o fotógrafo foi responsável por grande parte do imaginário visual da guerra que temos atualmente.
Testemunha dos principais conflitos do século XX, Capa não era reconhecido pela beleza das composições em suas fotografias, mas sim, por colocar a sua própria vida em risco com o objetivo de estar o mais próximo possível dos acontecimentos.
Capa fotografou o desembarque nas praias sas da Normandia, no dia 6 de junho de 1944
Entre as suas coberturas fotográficas estão a Guerra Civil Espanhola, a Segunda Guerra Mundial (cujas imagens da batalha da praia de Omaha serviram de base para a reconstrução do filme O resgate do soldado Ryan), a Guerra Sino-Japonesa e a Guerra da Indochina, seu último e fatal conflito.
Sobre seu trabalho na praia de Omaha, Capa escreveu certa vez que “eu diria que o correspondente de guerra consegue mais drinques, mais garotas, um salário melhor e mais liberdade para escolher onde ficar e poder ser um covarde.
Outra imagem de Capa durante o “Dia D”
O correspondente de guerra tem as suas apostas – sua vida – nas próprias mãos e pode preferir esse ou aquele cavalo, ou então resolver ficar na sua no último minuto”. Mesmo assim, “eu sou um jogador. E decidi partir com a primeira leva”. Por essa postura, Capa acabou transformando-se na personificação do fotojornalismo, em imagens que misturam a crueza da violência com o fascínio que sentimos por ela.
Robert Capa, contudo, não nasceu como Robert Capa: o seu nome de batismo era Endre Friedmann. O nome artístico surge apenas depois de ele trocar a sua cidade natal, Budapeste, por Paris e, após vários meses de dificuldade financeira, decidir que um nome norte-americano o faria conseguir um pagamento melhor por suas fotografias.
O início da carreira como fotógrafo freelancer não havia sido muito gentil com Capa e conta-se que, em 1934, aos 21 anos, era comum encontrá-lo em casas de penhores do Quartier Latin, onde ele negociava a sua preciosa Leica em troca de alguns trocados. De acordo com um de seus biógrafos, o jornalista Alex Kershaw, a câmera ava três semanas penhorada para cada semana que ficava nas mãos de Friedmann.
Foi justamente a dificuldade em conseguir trabalho que fez com que Capa mudasse de nome. Em uma de suas entrevistas, para a rede radiofônica WNBC, em 1947, o fotojornalista dizia que Capa nasceu como um fotógrafo inventado, imaginado como “um famoso fotógrafo americano que veio para a Europa e não queria se aborrecer os editores ses por não pagarem o suficiente”. E assim, “simplesmente fui chegando com a minha pequena Leica, tirei algumas fotos e escrevi em cima Bob Capa, conseguindo vendê-las pelo dobro do preço”.
No instante da morte
Embora isso o tenha ajudado a conseguir um pouco de dinheiro, a fama chega para Capa junto com a Guerra Civil Espanhola e com uma das mais polêmicas fotos da história do jornalismo, O soldado caído.
A versão oficial de Capa de que a foto retratava um homem no instante de sua morte iminente, no exato momento em que ele era alvejado por um tiro, é contestada por muitos outros que afirmam que a foto não retratava mais do que um homem simplesmente caindo. A fotografia suscitou as mais curiosas teorias da conspiração, desde que se tratava de um treinamento militar (e não de um combate) até a especulação de que a foto nem ao menos teria sido tirada por Capa (e sim por sua namorada Gerda Taro que, muitas vezes antes de tornar-se famosa, publicava suas fotografias com a de Robert Capa para conseguir um pagamento maior). O próprio Capa contribuiu para as polêmicas em torno da foto, tendo contado diferentes versões do fato em ocasiões diversas.
Na citada entrevista para a WNBC, ao comentar sobre O soldado caído, Capa chegara a afirmar que “a foto rara nasce da imaginação dos editores e do público que a vê”. Tendo se tornado famoso aos 24 anos, Capa demonstra em seus trabalhos posteriores a excelência de seu estilo fotojornalístico, em que a força da cena representada se encontra na proximidade do momento retratado. A beleza plástica de composição, em Capa, não se apoia nas técnicas da arte, mas na própria crueza dos acontecimentos, mesmo que as fotos pudessem estar ligeiramente fora de foco, como é o título de seu mais famoso livro.
A intensidade do trabalho de Capa se espelhava em sua vida pessoal: apesar de sua fama ter lhe trazido bastante dinheiro, ele era conhecido por perder grandes quantias ao jogar cartas com soldados, artistas e milionários e por beber muito. Dizia-se que ele extremamente atraente e charmoso, tendo namorado atrizes e modelos famosas como Ingrid Bergman (na época, casada com Petter Lindstrom), Hedy Lamarr e Jemmy Hammond.
Capa registrou aqui um soldado de um grupo de reconhecimento, atuando perto de Troina, na Sicília, Itália, em 4 ee agosto de 1943
Ele também foi um dos fundadores da agência Magnum, que mudou a forma como os fotojornalistas se relacionavam com os seus empregadores. Para ele, um fotojornalista que não tivesse controle sobre os seus negativos, estava perdido e, por isso, ele se empenhou em construir um lugar onde as relações de trabalho fossem mais vantajosas para os fotógrafos.
Em um depoimento publicado pela Popular Photograpgy, o escritor americano John Steinbeck disse que “realmente me parece que Capa demonstrou sem sombra de dúvida que a câmera não precisa ser um instrumento mecânico frio. Como a pena, ela tem as qualidades daquele que a usa. Pode ser a extensão da mente e do coração”. Para também fotógrafo Cartier-Bresson, Capa “envergava o traje deslumbrante do toureiro, mas nunca investiu contra o bicho para matar de verdade; grande jogador, ele lutava por si mesmo e pelos outros num turbilhão. Mas o destino tinha decidido que ele fosse abatido no auge da glória”.
Robert Capa, durante a cobertura da Guerra Civil Espanhola, em 1937 – Foto – Gerda Taro / Wikimedia
Um de seus biógrafos, Alex Kershaw, conta uma história que talvez resuma a importância de Capa para o fotojornalismo: ao ser perguntada por Eve Arnold sobre o que achava das fotografias de Capa, a editora da revista New Yorker, Janet Flanner, teria respondido que “bem, não acho que sejam muito bem concebidas”. Nisso, a outra respondeu de imediato: “minha cara, a história também não é bem concebida”.