OS CAVALEIROS TEMPLÁRIOS

Fonte – https://www.medievalwarfare.info/templars.htm

Setecentos anos após sua dissolução, os Cavaleiros Templários ainda fascinam. Os Templários estavam entre as ordens militares cristãs ocidentais mais ricas e poderosas. Com seus característicos mantos brancos com uma cruz vermelha, os cavaleiros Templários estavam entre as unidades de combate mais destacadas das Cruzadas.

As principais ordens militares católicas de cavaleiros monásticos — com um Cavaleiro Templário no meio. No período medieval, os cavaleiros aqui identificados como “Malte” — ou seja, os Cavaleiros de Malta — eram conhecidos como Hospitalários ou Cavaleiros de São João de Jerusalém. Todos estiveram na guerra entre cristãos e mulçumanos.

A organização existiu por quase dois séculos durante a Idade Média, aproximadamente os mesmos duzentos anos em que os cruzados dominaram terras no Oriente Médio.

Ordens Militares Monásticas

Os Cavaleiros Templários eram uma das várias ordens monásticas militares do período medieval. Por mais estranho que pareça aos ouvidos modernos, essas ordens eram compostas por monges guerreiros. Eram ordens religiosas, assim como os cistercienses, com a diferença de que seu trabalho não era a agricultura, mas matar os inimigos de Deus.

Nomes para os Templários

O nome formal completo dos Templários é: Pauperes commilitones Christi Templique Salomonici (Os Pobres Companheiros de Cristo e do Templo de Salomão. Eles também são conhecidos como

  • Cavaleiros da Ordem do Templo de Salomão
  • Pobres Cavaleiros de Cristo
  • Cavaleiros Templários (ou, seguindo o francês, “Cavaleiros Templários”)
  • Templários

Fundação dos Cavaleiros Templários

Após a Primeira Cruzada reconquistar Jerusalém em 1099, muitos cristãos fizeram peregrinações a vários lugares supostamente sagrados na Terra Santa. Embora a cidade de Jerusalém estivesse sob controle relativamente seguro, o restante da Terra Santa, o “Outremer”, não estava. Bandidos saqueadores atacavam os peregrinos que tentavam fazer a jornada da costa até os “lugares sagrados”.

Representação de Jerusalém da Líder Cronicarum de Hartmann Schedel.

Em 1119, o cavaleiro francês Hugues de Payens abordou o Rei Balduíno II de Jerusalém e Warmund, Patriarca de Jerusalém, e propôs a criação de uma ordem monástica para a proteção desses peregrinos. Balduíno e Warmund concordaram com o pedido de Hugo, provavelmente em janeiro de 1120, no Concílio de Nablus. Balduíno concedeu aos Templários um quartel-general em uma ala do palácio real no Monte do Templo, na Mesquita de Al-Aqsa, que havia sido capturada. O Monte do Templo ficava acima do que se acreditava serem as ruínas do Templo de Salomão. Os cruzados, portanto, referiam-se à Mesquita de Al-Aqsa como Templo de Salomão, e desse local a nova Ordem adotou o nome de Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão, ou cavaleiros “Templários”.

A Ordem, inicialmente com nove cavaleiros, dispunha de poucos recursos financeiros e dependia de doações para sobreviver. Seu emblema era a imagem de dois cavaleiros montados em um único cavalo, enfatizando a pobreza da Ordem.

Imagem de dois cavaleiros montados em um único cavalo, enfatizando a pobreza da Ordem.

Oficialmente reconhecida pela Igreja Católica Romana por volta de 1129, a Ordem era favorecida por toda a cristandade ocidental e cresceu rapidamente em número de membros e poder. Os Templários tinham um amigo poderoso em São Bernardo de Claraval, uma figura importante da Igreja, o abade francês, o principal responsável pela popularidade da Ordem dos Monges de Cister e sobrinho de um dos nove Cavaleiros Templários fundadores.

Bernardo escreveu de forma persuasiva em nome dos Templários na carta ” Elogio à Nova Cavalaria ” e, em 1129, no Concílio de Troyes, liderou um grupo de importantes clérigos para aprovar formalmente a Ordem em nome da Igreja. Com essa aprovação formal, os Templários foram favorecidos em toda a cristandade, recebendo dinheiro, terras, fazendas, castelos e os filhos de famílias nobres, que ansiavam por ajudar na luta na Terra Santa, foram condecorados cavaleiros.

São Bernardo forneceu a justificativa moral para os monges matarem pessoas. Eles estavam, segundo São Bernardo, matando não um homem, mas um mal. Matar em nome de Deus não era homicídio, mas sim maldade .

Em 1139, a bula papal Omne datum optimal do Papa Inocêncio II isentou a Ordem da obediência às leis locais. Essa decisão significava, entre outras coisas , que os Templários podiam transitar livremente por todas as fronteiras, não eram obrigados a pagar impostos e estavam isentos de toda autoridade — tanto temporal quanto espiritual — exceto a do papa.

Organização dos Cavaleiros Templários

Monges Militares

Bernard de Clairvaux e o fundador Hugues de Payens elaboraram o código de conduta específico para a Ordem dos Templários, conhecido pelos historiadores modernos como a Regra Latina. Suas 72 cláusulas definiam o comportamento ideal para os Cavaleiros, como os tipos de vestimentas que deveriam usar e quantos cavalos poderiam ter.

Hugues de Payens ou Payens (c. 1070 – 24 de maio de 1136) foi o cofundador e primeiro Grão-Mestre dos Cavaleiros Templários – embora o criador deste vitral pareça ter imaginado que ele era o fundador dos Cavaleiros Hospitalários (os Cavaleiros da Ordem de São João de Jerusalém).

Os cavaleiros deveriam fazer suas refeições em silêncio, comer carne no máximo três vezes por semana e não ter contato físico de qualquer tipo com mulheres, mesmo membros de sua própria família. À medida que a Ordem crescia, mais diretrizes foram adicionadas, e a lista original de 72 cláusulas foi expandida para várias centenas em sua forma final.

Assim como os Templários eram cavaleiros e monges, suas comendas eram castelos e mosteiros. Embora defensáveis ​​e estrategicamente localizados, apresentavam todas as características arquitetônicas de um mosteiro: igreja, sala capitular, claustro, refeitório, dormitório, etc.

Descanso de um cavaleiro templário.

São Bernardo de Claraval, Em Louvor à Nova Cavalaria

O cavaleiro de Cristo, digo eu, pode atacar com confiança e morrer com ainda mais confiança, pois serve a Cristo quando ataca e serve a si mesmo quando cai. Tampouco empunha a espada em vão, pois é ministro de Deus, para a punição dos malfeitores e para o louvor dos bons. Se mata um malfeitor, não é um homicida, mas, se assim posso dizer, um matador do mal. É evidentemente o vingador de Cristo contra os malfeitores e é corretamente considerado um defensor dos cristãos. Se ele próprio for morto, sabemos que não pereceu, mas chegou em segurança ao porto. Quando inflige a morte, é para o benefício de Cristo, e quando sofre a morte, é para seu próprio benefício. O cristão se gloria na morte do pagão, porque Cristo é glorificado; enquanto a morte do cristão dá ocasião para o Rei [Deus] mostrar sua liberalidade na recompensa de seu cavaleiro…

Hierarquia Templária

As fileiras dos Templários eram:

  • Cavaleiros , que sempre foram nobres. Os Cavaleiros Templários eram equipados como cavalaria pesada, com três ou quatro cavalos e um ou dois escudeiros. Os escudeiros geralmente não eram membros da Ordem, mas sim forasteiros contratados por um período determinado.
  • Sargentos . Vindos de famílias não nobres, os sargentos templários traziam consigo habilidades e ofícios vitais, como ferraria e construção, e istravam muitas das propriedades europeias da Ordem. Nos Estados Cruzados, lutavam ao lado dos cavaleiros como cavalaria leve com um único cavalo. Os sargentos vestiam-se de preto ou marrom.
  • Capelães , que eram sacerdotes ordenados responsáveis ​​pelas necessidades espirituais dos Templários.
Vitral dos Cavaleiros Templários e Hospitalários na Igreja de Santo André, Temple Grafton, distrito de Stratford, Warwickshire, Inglaterra.

Os Templários não realizavam cerimônias de nomeação de cavaleiros, portanto, qualquer cavaleiro que desejasse se tornar um Cavaleiro Templário já deveria ser cavaleiro. Os cavaleiros eram o ramo mais visível da ordem e usavam os famosos mantos brancos para simbolizar sua pureza e castidade.

Alguns dos cargos mais altos da Ordem eram reservados para sargentos, incluindo o posto de Comandante do Cofre do Acre, que era o Almirante de fato da frota dos Templários.

Todas as três classes eram “irmãos” e usavam a cruz vermelha da Ordem.

Os Templários foram organizados como uma ordem monástica baseada na Ordem de Cister, considerada a primeira organização internacional eficaz na Europa. A estrutura organizacional contava com uma forte cadeia de autoridade. Cada área linguística (“língua”) com grande presença templária tinha um Mestre Provincial da Ordem para os Templários pertencentes àquela língua.

Cada Templário pertencia a um mosteiro-castelo conhecido como Preceptório ou Comendadoria, com seu próprio mestre, responsável perante seu Mestre Provincial ou Grão-Prior e, em última instância, perante o Grão-Mestre. A hierarquia era ligeiramente diferente na Terra Santa (visto que se dedicava principalmente à luta), enquanto na Europa a principal atividade era a gestão financeira e o recrutamento. Como qualquer outro grande nobre, o Grão-Mestre tinha vários oficiais, como um Senechal e um Marechal, e, ao contrário de outros grandes nobres, também tinha um oficial superior chamado “Draper”, devido à importância da padronização dos trajes dos Templários – na verdade, uniformes.

Vitrais, Templo Balsall.
Grão-Mestre:
O Grão-Mestre era a autoridade suprema da Ordem dos Templários e respondia apenas ao papa. Uma vez eleito, o Grão-Mestre servia por toda a vida. Vários Grão-Mestres foram mortos em batalha, demonstrando que a posição era muito mais do que uma mera questão istrativa.
Senescal
O Senescal era o braço direito do Grão-Mestre. Ele também atuava como consigliare ou conselheiro do Grão-Mestre e cuidava de muitas tarefas istrativas.
Marechal:
O Marechal da Ordem era o Templário encarregado da guerra e de tudo o que a ela se relacionava. Nesse sentido, o Marechal podia ser considerado o segundo membro mais importante da Ordem, depois do Grão-Mestre. Sua comitiva era composta por dois escudeiros, um turcomano, um turcopolo e um sargento. Ele tinha quatro cavalos sob seu comando. Um Submarechal era responsável pela infantaria e pelo equipamento.
Porta-Estandarte:
O Porta-Estandarte era o responsável pelos escudeiros. Apesar do título do seu cargo, ele nunca parece ter carregado pessoalmente o estandarte da Ordem.
O Draper
era o encarregado das vestes e linhos dos Templários. A Regra dos Templários afirma que, depois do Mestre e do Marechal, o Draper era superior a todos os irmãos. A Regra dos Templários dizia sobre as responsabilidades do Draper em relação à túnica da ordem: “e o Draper, ou aquele que estiver em seu lugar, deve refletir cuidadosamente e cuidar para obter a recompensa de Deus em todas as coisas acima mencionadas, para que os olhos dos invejosos e mal-intencionados não percebam que as túnicas são muito longas ou muito curtas; mas deve distribuí-las de modo que se ajustem àqueles que devem usá-las, de acordo com o tamanho de cada um”. O Draper tinha em sua comitiva pessoal dois escudeiros, vários alfaiates e um irmão encarregado dos animais de carga que transportariam os suprimentos. O Draper, assim como o Marechal, tinha quatro cavalos à sua disposição.
Cavaleiros
Os cavaleiros tinham que ser homens de nascimento nobre e usavam o manto branco, a vestimenta mais familiar da Ordem. Cada cavaleiro tinha direito a um escudeiro e três cavalos.
Capelães
Sacerdotes Templários
Sargentos:
Os sargentos não precisavam ser de origem nobre e, para mostrar sua patente inferior, usavam um manto preto ou marrom. Eles recebiam apenas um cavalo e não tinham escudeiros sob seu comando.

Grandes Mestres

Todos os Mestres Templários estavam sujeitos ao Grão-Mestre, nomeado vitaliciamente, que supervisionava tanto os esforços militares da Ordem no Oriente quanto seus recursos financeiros no Ocidente. O Grão-Mestre exercia sua autoridade por meio dos visitantes-gerais da ordem, cavaleiros especialmente nomeados pelo Grão-Mestre e pelo convento de Jerusalém para visitar as diferentes províncias, corrigir más práticas, introduzir novos regulamentos e resolver disputas importantes. Os visitantes-gerais tinham o poder de destituir cavaleiros do cargo e suspender o Mestre da província em questão.

Um cavaleiro templário em armadura pronto
para a batalha, de um manuscrito francês do século 14.

O Grão-Mestre da Ordem recebeu “4 cavalos, um irmão capelão e um escrivão com três cavalos, um irmão sargento com dois cavalos e um cavalheiro criado para carregar seu escudo e lança, com um cavalo”.

O Grão-Mestre supervisionava todas as operações da Ordem, incluindo tanto as operações militares na Terra Santa e na Europa Oriental quanto as transações financeiras e comerciais dos Templários na Europa Ocidental. Alguns Grão-Mestres também serviram como comandantes de campo de batalha, embora isso nem sempre fosse sensato: vários erros na liderança de combate de De Ridefort contribuíram para a derrota devastadora na Batalha de Hattin.

Ruínas da antiga igreja Balantrodach, no sul da Escócia, construída pelos Templários. Foi o próprio Hugues de Payens que recebeu o terreno para construir esse templo do rei escocês David I, em 1128 – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Temple,_Midlothian

Começando com o fundador Hugues de Payens em 1118-1119, o cargo mais alto da Ordem era o de Grão-Mestre, cargo vitalício, embora, considerando a natureza marcial da Ordem, isso pudesse significar um mandato muito curto. Todos os Grão-Mestres, exceto dois, morreram no cargo, e vários morreram durante campanhas militares. Por exemplo, durante o Cerco de Ascalon em 1153, o Grão-Mestre Bernard de Tremelay liderou um grupo de 40 Templários por uma brecha nas muralhas da cidade. Quando o restante do exército cruzado não os seguiu, os Templários, incluindo seu Grão-Mestre, foram cercados e decapitados. O Grão-Mestre Gérard de Ridefort foi decapitado por Saladino em 1189 no Cerco de Acre.

O último Grão-Mestre foi Jacques de Molay, queimado na fogueira em Paris em 1314 por ordem do Rei Filipe IV.

Assim como outros grandes nobres, os Mestres também empregavam grandes oficiais de estado, principalmente marechais, guardas, tesoureiros e almirantes.

Uniforme Templário

Os cavaleiros usavam um sobretudo branco com uma cruz vermelha. Sobre ele, usavam um manto branco, também com uma cruz vermelha. O manto branco foi atribuído aos Templários no Concílio de Troyes, em 1129, e a cruz foi provavelmente adicionada às suas vestes no lançamento da Segunda Cruzada, em 1147, quando o Papa Eugênio III, o Rei Luís VII da França e muitos outros notáveis ​​compareceram a uma reunião dos Templários ses em seu quartel-general, perto de Paris. De acordo com a Regra , os cavaleiros deveriam usar o manto branco em todos os momentos, sendo-lhes até proibido comer ou beber sem o estarem usando.

Cavaleiro templário em cota de malha do século XIII.

Os sargentos usavam uma túnica preta com uma cruz vermelha na frente e um manto preto ou marrom.

Como monges, os Templários eram tonsurados. Embora não fosse prescrito pela Regra dos Templários , tornou-se costume que os Templários usassem barbas longas e proeminentes, como era costume entre os peregrinos. Por volta de 1240, Alberico de Trois-Fontaines descreveu os Templários como uma “ordem de irmãos barbudos”.

Durante os interrogatórios dos comissários papais em Paris, entre 1310 e 1311, dos cerca de 230 cavaleiros e irmãos interrogados, 76 são descritos como usando barba. Em alguns casos, a barba foi descrita como “ao estilo dos Templários”. Diz-se que 133 rasparam a barba, seja em renúncia à ordem ou porque esperavam escapar da detecção.

Cavaleiro Templário, século XIII.

Indução como Cavaleiro Templário

A indução, conhecida como Recepção (receptio), à Ordem era um compromisso profundo e envolvia uma cerimônia religiosa solene. Forasteiros eram desencorajados de participar, o que despertou a suspeita dos inquisidores medievais durante os julgamentos posteriores. Os novos membros tinham que voluntariamente doar todos os seus bens e riquezas para a Ordem e fazer votos monásticos (como os monges cistercienses) de pobreza, castidade, piedade e obediência. A maioria dos irmãos se filiava para o resto da vida, embora alguns pudessem se filiar por um período determinado. Às vezes, um homem casado era autorizado a se filiar com a permissão da esposa, mas não podia usar o manto branco.

Heráldica Templária

A Cruz Templária

A cruz vermelha que os Templários usavam em suas vestes era um símbolo de martírio, e morrer em combate era considerado uma grande honra que garantia um lugar no céu. Havia uma regra fundamental de que os guerreiros da Ordem jamais deveriam se render a menos que a bandeira dos Templários tivesse caído, e mesmo assim eles deveriam primeiro tentar se reagrupar com outra ordem cristã, como a dos Hospitalários. Somente após a queda de todas as bandeiras é que eles eram autorizados a deixar o campo de batalha. Esse princípio intransigente, juntamente com sua reputação de coragem, excelente treinamento e armamento pesado, fez dos Templários uma das forças de combate mais temidas da Idade Média.

Uma Bandeira Templária.

O Báculus

Era uma vara de autoridade carregada por figuras de autoridade na Igreja, como bispos e abades (às vezes chamados de cajados, cajados ou báculos). O báculo pastoral é designado, por escritores eclesiásticos, como virga, ferula, cambutta, crocia e pedum. Sir Walter Scott interpretou erroneamente baculus como ábaco — um erro ainda propagado por alguns escritores. Às vezes, também é corrompido como ábaco.

A Regra Latina dos Templários diz: “O Mestre deve segurar o cajado e a vara (baculum et cirgam) em sua mão, isto é, o cajado (baculum), para que ele possa ar as enfermidades dos fracos, e a vara (cirgam), para que ele possa, com o zelo da retidão, derrubar os vícios dos delinquentes.”

Impressão artística de um Grão-Mestre dos Templários no uniforme da ordem e seu báculo, 1655, do Monasticon Anglicanum (3 volumes, 1655 a 1673)

A bula papal Omne datum optimal investiu o Grão-Mestre dos Templários com uma jurisdição quase episcopal sobre os sacerdotes de sua Ordem. Ele portava o báculo, ou cajado pastoral, como marca dessa jurisdição, e este se tornou parte da insígnia do ofício do Grão-Mestre.

O báculo dos Cavaleiros Templários é descrito em Munter, Burnes, Addison e todas as outras autoridades como um bastão, no topo do qual há uma figura octogonal, encimada por uma cruz patee.

Templários em Guerra

Os Templários eram frequentemente as tropas de choque avançadas nas principais batalhas das Cruzadas, pois os cavaleiros fortemente blindados em seus cavalos de guerra partiam para atacar o inimigo, à frente dos principais corpos do exército, em uma tentativa de romper as linhas de oposição.

Dois Cavaleiros Templários – os Pobres Cavaleiros de Cristo – mostrados cavalgando o mesmo cavalo em Matthew Paris.

Uma de suas vitórias mais famosas ocorreu em 1177, durante a Batalha de Montgisard, onde cerca de 500 cavaleiros templários ajudaram milhares de soldados de infantaria a derrotar o exército de Saladino, com mais de 26.000 soldados.

A existência dos Templários estava intimamente ligada às Cruzadas; quando a Terra Santa foi perdida, o apoio à Ordem dos Templários diminuiu.

Em meados do século XII, a maré começou a mudar nas Cruzadas. O mundo muçulmano havia se tornado mais unido sob líderes eficazes como Saladino, e surgiram dissensões entre facções cristãs na Terra Santa e em relação a ela. Os Cavaleiros Templários ocasionalmente entravam em conflito com as outras duas ordens militares cristãs, os Cavaleiros Hospitalários e os Cavaleiros Teutônicos, e décadas de conflitos internos enfraqueceram as posições cristãs, tanto política quanto militarmente.

Após o envolvimento dos Templários em várias campanhas malsucedidas, incluindo a crucial Batalha dos Chifres de Hattin, Jerusalém foi recapturada pelas forças muçulmanas sob o comando de Saladino em 1187. Os Cruzados recuperaram a cidade em 1229, sem a ajuda dos Templários, mas a mantiveram apenas brevemente. Em 1244, os turcos Khwarezmi recapturaram Jerusalém, e a cidade só retornou ao controle ocidental em 1917, quando os britânicos a capturaram dos turcos otomanos na Primeira Guerra Mundial.

Os Templários foram forçados a transferir sua sede para outras cidades no norte, como o porto marítimo de Acre, que mantiveram pelo século seguinte. Foi perdido em 1291, seguido por suas últimas fortalezas continentais, Tortosa (Tartus, no que hoje é a Síria) e Atlit, no atual Israel. Sua sede então se mudou para Limassol, na ilha de Chipre, e eles também tentaram manter uma guarnição na pequena ilha de Arwad, próxima à costa de Tortosa. Em 1300, houve alguma tentativa de se envolver em esforços militares coordenados com os mongóis por meio de uma nova força de invasão em Arwad. Em 1302 ou 1303, no entanto, os Templários perderam a ilha para os mamelucos egípcios no Cerco de Arwad. Com a ilha perdida, os cruzados perderam seu último ponto de apoio na Terra Santa.

Cruzados em uma pintura, no interior de uma igreja na Espanha.

Com a missão militar da Ordem perdendo importância, o apoio à organização começou a diminuir. A situação, no entanto, era complexa, visto que, durante os duzentos anos de sua existência, os Templários haviam se tornado parte do cotidiano de toda a cristandade. As Casas Templárias da organização, centenas das quais espalhadas pela Europa e Oriente Próximo, davam-lhes ampla presença em nível local. Os Templários ainda istravam muitos negócios, e muitos europeus tinham contato diário com a rede Templária, trabalhando, por exemplo, em uma fazenda ou vinhedo Templário, ou usando a Ordem como banco para guardar objetos de valor pessoais. A Ordem ainda não estava sujeita ao governo local, o que a tornava, em todos os lugares, um “estado dentro do estado” — seu exército permanente, embora não tivesse mais uma missão bem definida, podia transitar livremente por todas as fronteiras. Essa situação aumentou as tensões com parte da nobreza europeia, especialmente porque os Templários estavam demonstrando interesse em fundar seu próprio estado monástico, assim como os Cavaleiros Teutônicos fizeram na Prússia e os Cavaleiros Hospitalários estavam fazendo em Rodes.

Os Templários como os Primeiros Banqueiros

A Ordem dos Templários, embora seus membros jurassem pobreza individual, recebia o controle de riquezas além das doações diretas. Um nobre interessado em participar das Cruzadas podia colocar todos os seus bens sob a istração dos Templários enquanto estivesse fora. Acumulando riquezas dessa maneira por toda a Cristandade e o Ultramar, a Ordem, em 1150, começou a gerar cartas de crédito para peregrinos que viajavam para a Terra Santa: os peregrinos depositavam seus objetos de valor em uma preceptoria Templária local antes de embarcar, recebiam um documento indicando o valor do depósito e, ao chegarem à Terra Santa, usavam esse documento para resgatar seus fundos em um tesouro de igual valor.

A Igreja do Templo, , consagrada em 1185 como a residência dos Cavaleiros Templários em Londres. não é apenas um importante local arquitetônico, histórico e religioso, é também o primeiro banco de Londres. – Fonte – https://tokdehistoria-br.informativoparaibano.com/news/business-38499883

Para transações financeiras e outras transações confidenciais, os Templários usavam uma cifra de substituição simples, fácil de quebrar hoje, mas impossível de quebrar no período medieval.

Esse arranjo inovador foi uma das primeiras formas de operação bancária e pode ter sido o primeiro sistema formal a dar e ao uso de cheques; ele melhorou a segurança dos peregrinos, tornando-os alvos menos atraentes para ladrões, e também contribuiu para os cofres dos Templários.

Com base nessa mistura de doações e negócios, os Templários estabeleceram redes financeiras por toda a cristandade.

Uma imagem moderna de um Cavaleiro Templário em ação.

Eles adquiriram grandes extensões de terra, tanto na Europa quanto no Oriente Médio; compraram e istraram fazendas e vinhedos; construíram igrejas e castelos; dedicaram-se à manufatura, importação e exportação; possuíam sua própria frota de navios; e, em certo momento, chegaram a ser donos da ilha de Chipre. A Ordem dos Cavaleiros Templários foi descrita como a primeira corporação multinacional do mundo.

Com sua missão militar e vastos recursos financeiros, os Cavaleiros Templários financiaram um grande número de projetos de construção na Terra Santa e em toda a Europa. Apenas uma pequena porcentagem dessas estruturas ainda está de pé. Muitos sítios arqueológicos também mantêm o nome “Templo” devido à associação secular com os Templários.

Ator James Purefoy como Thomas Marshal, um Cavaleiro Templário, no filme Ironclad (2011)

Julgamento dos Templários

Em 1305, o novo Papa, Clemente V, baseado em Avignon, enviou cartas ao Grão-Mestre Templário Jacques de Molay e ao Grão-Mestre Hospitalário Fulk de Villaret para discutir a possibilidade de fundir as duas Ordens.

Nenhum dos dois se mostrou receptivo à ideia, mas o Papa Clemente persistiu e, em 1306, convidou os dois Grão-Mestres à França para discutir o assunto. De Molay chegou primeiro, no início de 1307, mas de Villaret foi adiado por vários meses.

Enquanto aguardavam, De Molay e Clemente discutiram acusações criminais feitas dois anos antes por um Templário deposto e que estavam sendo discutidas pelo Rei Filipe IV da França (Philippe le Bel) e seus ministros. Houve consenso geral de que as acusações eram falsas, mas Clemente enviou ao rei um pedido por escrito de auxílio na investigação.

Retirado das Chroniques de vemos uma representação de templários diante do Papa e do Rei Felipe, o Belo, da França.

Filipe, que já estava profundamente endividado com os Templários devido à guerra com os ingleses, aproveitou os rumores para seus próprios fins. Começou a pressionar a Igreja a tomar medidas contra a Ordem, como forma de se livrar de suas dívidas — um método que havia usado para se livrar das dívidas contraídas com os judeus alguns anos antes.

Rumores sobre a cerimônia secreta de iniciação dos Templários geraram desconfiança, e o Rei Filipe IV da França aproveitou a situação. Em 1307, muitos membros da Ordem na França foram presos, torturados para fazer falsas confissões e, em seguida, queimados na fogueira.

Sob pressão do Rei Filipe, o Papa Clemente V dissolveu a Ordem em 1312. O desaparecimento repentino de grande parte da infraestrutura europeia deu origem a especulações e lendas, que mantiveram o nome “Templário” vivo até os tempos modernos.

Imagem do século XIV da prisão dos Templários em 1309.

Na madrugada de sexta-feira, 13 de outubro de 1307 (às vezes ligada à origem da superstição da sexta-feira 13), o rei Filipe IV ordenou que De Molay e vários outros Templários ses fossem presos simultaneamente.

O mandado de prisão começava com a frase: “Dieu n’est pas content, nous avons des ennemis de la foi dans le Royaume” [“Deus não está satisfeito. Temos inimigos da fé no Reino”]. Alegações foram feitas de que, durante as cerimônias de issão dos Templários, os recrutas eram forçados a cuspir na cruz, negar a Cristo e se envolver em beijos indecentes; os irmãos também eram acusados ​​de adorar ídolos, e a ordem teria incentivado práticas homossexuais.

Uma representação imaginativa de um iniciado Templário pisoteando a cruz (usada como forma de desacreditar os maçons no século XIX) Léo Taxil, Les Mystères de la Franc-Maçonnerie, Paris 1886.

Prisioneiros templários eram coagidos a confessar que haviam cuspido na cruz. Eles eram acusados ​​de idolatria e suspeitos de adorar uma figura conhecida como Bafomé ou uma cabeça decepada e mumificada que recuperaram em sua sede original no Monte do Templo – às vezes especulava-se que seria a de João Batista.

A pedido de Filipe, o Papa Clemente emitiu a bula papal Pastoralis praeeminentiae em 22 de novembro de 1307, instruindo todos os monarcas cristãos da Europa a prender todos os Templários e confiscar seus bens. Clemente convocou audiências papais para determinar a culpa ou inocência dos Templários, obtendo novas confissões sob tortura. Uma vez libertados da tortura dos Inquisidores, muitos Templários retrataram suas confissões. Alguns tinham experiência jurídica suficiente para se defender nos julgamentos, mas em 1310, Filipe bloqueou essa tentativa, usando as confissões previamente forçadas para mandar queimar dezenas de Templários ses na fogueira em Paris.

Livro O Julgamento dos Templários, do inglês Malcolm Barber, consideradso o melhor sobre o tema das prisões e execuções dos templário na França e outros locais.

Com Filipe ameaçando com ação militar a menos que o papa cumprisse seus desejos, Clemente finalmente concordou em dissolver a Ordem, citando o escândalo público gerado pelas confissões. No Concílio de Viena, em 1312, ele emitiu uma série de bulas papais, incluindo a Vox in excelso, que dissolveu oficialmente a Ordem, e a Ad providam , que transferiu os bens dos Templários para os Hospitalários.

Jacques de Molay

Jacques de Molay (c. 1243 – 18 de março de 1314) foi o 23º e último Grão-Mestre dos Cavaleiros Templários, liderando a Ordem de 20 de abril de 1292 até sua dissolução por ordem do Papa Clemente V. Pouco se sabe sobre sua juventude, exceto que ele se juntou à ordem em Beaune, em um edifício que ainda existe.

Rei Filipe, conhecido como “O Belo”, supervisiona a execução dos Templários queimados na fogueira

Jacques de Molay é o Templário mais conhecido, em grande parte devido ao seu destino. Já idoso, Jacques de Molay confessou sob tortura, mas posteriormente se retratou. Geoffroi de Charney, Preceptor da Normandia, também se retratou e insistiu em sua inocência. Ambos foram declarados culpados de hereges reincidentes e condenados à fogueira em Paris em 18 de março de 1314.

Segundo a lenda, ele gritou das chamas que tanto o Papa Clemente quanto o Rei Filipe logo o encontrariam diante de Deus. Suas palavras foram registradas no pergaminho da seguinte forma: “Dieu sait qui a tort et a péché. Il va bientot arriver malheur à ceux qui nous ont condamnés à mort” (tradução livre: “Deus sabe quem está errado e pecou. Em breve, uma calamidade sobrevirá àqueles que nos condenaram à morte”). De qualquer forma, o Papa Clemente morreu um mês depois, e o Rei Filipe morreu em um acidente de caça antes do final do ano.

Cópia autógrafa de uma carta de Jacques de Molay, o último Mestre do Templo, a Pedro de Sant Just – detalhe

Queimar Jacques de Molay na fogueira, junto com Geoffroi de Charney, Preceptor da Normandia, era um tópico popular para representação artística, muitas vezes com a presença do Rei Filipe, assistindo aos procedimentos.

O Destino dos Templários

Com a saída de Jacques de Molay, os Templários de toda a Europa foram presos e julgados sob a investigação papal, ou absorvidos por outras ordens militares (geralmente os Cavaleiros Hospitalários), ou aposentados e autorizados a viver o resto de seus dias em paz. Por decreto papal, os bens dos Templários foram transferidos para a Ordem dos Hospitalários. Na prática, a dissolução dos Templários tornou-se uma fusão das duas Ordens.

Alguns Templários podem ter fugido para outros territórios fora do controle papal, como a Escócia, que estava sob interdição papal, ou para a Suíça. As organizações Templárias em Portugal simplesmente mudaram seu nome, de Cavaleiros Templários para Cavaleiros de Cristo.

A queima de Templários na fogueira era um tema popular para representação artística, muitas vezes com a presença do Rei Filipe, assistindo aos procedimentos.

O Pergaminho de Chinon

Em setembro de 2001, um documento conhecido como “Pergaminho de Chinon”, datado de 17 a 20 de agosto de 1308, foi descoberto por Barbara Frale nos Arquivos Secretos do Vaticano. Trata-se de um registro do julgamento dos Templários e demonstra que o Papa Clemente absolveu os Templários de todas as heresias em 1308, antes de dissolver formalmente a Ordem em 1312. Ele efetivamente exonera os Templários das acusações forjadas contra eles. Até mesmo a Igreja Católica agora reconhece que Clemente foi pressionado a participar do julgamento e dissolução por seu parente mais poderoso, o Rei Filipe IV.

O Pergaminho de Chinon.

Cavaleiros Templários na cultura popular

Com base em especulações e na literatura popular desde o século XIX, os Templários e as “lendas” ou “mistérios” associados tornaram-se um tropo comum na cultura popular. A associação do Santo Graal com os Templários tem precedentes até mesmo na ficção do século XII; Parzival, de Wolfram von Eschenbach, chama os cavaleiros que guardam o Reino do Graal de “templarisen”, aparentemente uma ficcionalização consciente dos Templários.

A ficcionalização moderna dos Templários começa com Ivanhoé, o romance de 1820 de Walter Scott, onde o vilão Sir Brian de Bois-Guilbert é um “Cavaleiro Templário”.
O tratamento popular dos Templários como tema de “lenda” e “mistério” esotéricos começa no final do século XX.

Cavaleiros Templários – MS Robertus Monachus História da Primeira Cruzada, St Gallen, stiftsbibliotek, cod. cantou. 658, 1465

A série de romances históricos ses Les Rois maudits (1955-1977), de Maurice Druon, retrata a morte do último Grão-Mestre da Ordem e brinca com a lenda da maldição que ele lançou sobre o papa, Filipe, o Belo, e Guilherme de Nogaret. A partir da década de 1960, surgiram publicações populares em inglês especulativas sobre a ocupação inicial do Monte do Templo em Jerusalém pela Ordem e sobre as relíquias que os Templários teriam encontrado lá, como o Santo Graal ou a Arca da Aliança.

Tratamentos esotéricos tornaram-se comuns na década de 1980. Entre eles, “O Santo Graal e a Linhagem Sagrada”, de 1982, se provaria o mais influente. O romance “O Pêndulo de Foucault “, de Umberto Eco,de 1988, satiriza a representação dos Templários em teorias da conspiração esotéricas ou pseudo-históricas. Um renascimento dos temas da década de 1980 ocorreu na década de 2000 devido ao sucesso comercial de “O Código Da Vinci”, romance de 2003 de Dan Brown (adaptado para o cinema em 2006).

GUERRA EM NOME DE DEUS – A PRIMEIRA CRUZADA E O CERCO A JERUSALÉM

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

No século XI, a Europa foi profundamente penetrada pelo Cristianismo que desempenhava um papel central na vida das pessoas, influenciando as suas crenças, valores e cultura. O papado, particularmente sob o Papa Urbano II, consolidou a sua autoridade e procurou expandir a sua influência.

Já a Terra Santa, incluindo a cidade sagrada de Jerusalém, era um importante local de peregrinação para os cristãos. No entanto esses peregrinos enfrentaram muitos obstáculos e violência crescente por parte dos governadores muçulmanos da região. As histórias dos seus sofrimentos desencadearam um profundo sentimento de injustiça entre os cristãos na Europa.

De uma perspectiva cristã, as Cruzadas começaram em 1095, com um discurso apaixonado proferido pelo Papa Urbano II no Concílio de Clermont, apelando para o desenvolvimento de uma cruzada para salvar os cristãos do Oriente e libertar a Terra Santa das mãos dos muçulmanos. Este apelo teve um enorme impacto e mobilizou um grande número de crentes para apoiar a luta. Não demorou e senhores, cavaleiros e camponeses de toda a Europa começaram a responder ao apelo à cruzada.

E para aumentar o contingente de participantes, Urbano II ofereceu aos que seguissem na empreitada o perdão de todos os seus pecados. Uma promessa que, em uma época de ignorância e iniquidade, foi amplamente vista como uma oportunidade de salvação espiritual. Em meio a um enorme desconhecimento geral, a ideia de que o “fim do mundo” estava próximo também era um tema recorrente nessa época e alimentou o fervor religioso dos participantes. Os crentes também acreditavam que a libertação da Terra Santa poderia ser um prenúncio da segunda vinda de Cristo.

A Primeira Cruzada foi um empreendimento extraordinário, marcado por uma viagem perigosa por terras hostis e batalhas épicas. Com a sua complexa mistura de motivações religiosas, políticas e sociais, marcaria o início de uma série de eventos que mudariam para sempre a face do Oriente Médio e da Europa medieval.

Bárbaros e Vivendo em Chiqueiros

É claro que os muçulmanos nada sabiam sobre tal discurso. Também não havia uma palavra específica para definirem as “cruzadas”. Do ponto de vista deles, a agressão dos povos vindos do norte contra as terras muçulmanas começou muito antes, nomeadamente em 1061, quando um governante normando chamado Robert Guiscard começou a atacar a Sicília islâmica. O mais chocante para os islamitas foi que ele teve sucesso na sua empreitada, pois a ideia existente sobre os europeus era a pior possível.

Para os seguidores de Maomé o mundo que eles conheciam estava literalmente de “cabeça para baixo”. Em seus mapas o sul ficava no topo e o norte embaixo. Isto porque, segundo os maiores e mais respeitados cartógrafos muçulmanos, não havia nada de interessante mais ao norte. Ali ficavam os países dos cristãos, todos chamados de “francos” pelos islâmicos.

Esses países do norte eram conhecidos por serem úmidos e escuros, com uma cultura terrivelmente atrasada, onde todos, incluindo os reis, obedeciam a um senhor ditatorial chamado “il-baba”: o Papa. E para piorar a visão mulçumana, os viajantes que lá estiveram relataram que esses francos “só se lavavam duas vezes por ano”.

Então eles eram sujos e estúpidos, pensavam os mulçumanos, e não era de irar que os francos fossem propensos ao fanatismo religioso. Para o mundo islâmico a religião cristã parecia mais ridícula do que perigosa, sendo considerada intelectualmente pobre e onde dificilmente eles poderiam utilizar das escrituras cristãs quaisquer de suas regras para a vida quotidiana.

Os muçulmanos da Idade Média viviam, é claro, no melhor de todos os climas – onde as temperaturas eram moderadas e propício ao surgimento de uma civilização urbana e rica. Os francos, por outro lado, viviam lá no norte, numa área onde o sol pouco brilhava e o clima os condenou a permanecerem bárbaros e vivendo em chiqueiros.

Os francos pomposamente chamavam a concentração de algumas dezenas de milhares de pessoas de “cidades”, enquanto os muçulmanos viviam juntos há muito tempo em centros urbanos de centenas de milhares, com modernas infraestruturas e todos lavavam-se regularmente. Para os mulçumanos eles viviam no “Dar al-Islam”, ou seja, “o território islâmico”, o lar de uma civilização dinâmica, sustentada por uma população diversificada e uma economia robusta.

Em outras palavras, segundo Paul M. Cobb, historiador da Universidade da Pensilvânia especializado na história do mundo islâmico na Idade Média, “há mil anos no Cairo, Bagdá, ou em Córdoba, a visão da região onde viviam os francos era de uma área desagradável, cheia de lunáticos fedorentos e sobre a qual pouco se sabia”.

E esse desconhecimento faria com que os seguidores de Maomé pagassem um alto preço em sangue. Da pior maneira eles descobriram que esses francos, mesmo vivendo seu dia a dia com todos os defeitos possíveis e imagináveis, possuíam uma coragem desmedida, que os ajudavam a sobreviver em meio a uma natureza cruel e uma existência onde a belicosidade era algo permanente. Para tanto faziam uso de armas poderosas e bastante modernas para a época, além de táticas de combate desconhecidas no Islã.

A Conquista Sangrenta da Cidade Santa

Os cavaleiros e peregrinos cristãos partiram em 1096, onde as primeiras etapas da cruzada levaram-nos pela Europa Oriental. No caminho enfrentaram obstáculos como as montanhas dos Balcãs e rios caudalosos. Em Constantinopla foram recebidos pelo imperador bizantino Aleixo I Comneno.

Até chegar a Cidade Santa os cruzados realizaram numerosos cercos a fortalezas muçulmanas e participaram de batalhas ferozes. Um dos momentos mais famosos foi o Cerco de Antióquia, que começou em outubro de 1097, onde os Cruzados aram enorme sofrimento antes de finalmente tomarem essa cidade em junho do ano seguinte.

Demoraria mais um ano para finalmente, no início de junho de 1099, os cruzados chegarem ao seu destino final: Jerusalém. 

O problema foi que na chegada os suprimentos se tornaram escassos, o clima estava bem opressivo e os primeiros ataques falharam porque a cidade estava muito bem fortificada. Também se soube que um exército de socorro vindo do Egito estava a caminho. Para completar o quadro os defensores encheram de areia todos os poços de água que existiam em frente à cidade, mandaram cortar todas as árvores para dificultar o cerco e a água que os cruzados conseguiram de uma fonte distante era de má qualidade.

Liderados pelos ses Godfrey de Bouillon e Raymond de Toulouse, eles partiram para um esforço final. Os cruzados – cerca de 1.300 cavaleiros e 12.000 homens de infantaria, bem como numerosos peregrinos – perceberam que as muralhas da cidade não poderiam ser superadas sem máquinas de cerco. Mesmo assim os líderes do exército cruzado decidiram atacar a cidade em 13 de junho de 1099. Apesar da tenacidade dos francos e da captura temporária das fortificações do norte, o ataque falhou.

Depois de alguma busca, conseguiu-se madeira na distante Samaria, que foi trazida para construir torres de cerco, aríetes e catapultas. Depois de um cortejo ao redor da cidade para mostrar aos inimigos o seu poderio, o assalto dos cruzados foi organizado para ocorrer na noite de 14 de julho e assim ocorreu. A luta nas muralhas foi feroz e sangrenta e não demorou para uma torre superar os fossos exteriores. Ao meio-dia de 15 de julho, os cristãos tomaram um trecho da muralha norte e pouco depois a Cúpula da Rocha caiu.

A captura de Jerusalém foi um momento de triunfo para os Cruzados, mas também um momento de grande tristeza para os moradores da cidade. O medievalista britânico Steven Runciman escreveu que os francos, completamente alucinados depois de tanto sofrimento e privação, correram pelas ruas, casas e mesquitas como que possuídos por demônios. Ele se baseia em relatos de testemunhas oculares como este: “– Eles mataram todos os inimigos que puderam encontrar com o fio de suas espadas, independentemente de idade ou posição. E havia tantas pessoas mortas e tantas pilhas de cabeças decepadas espalhadas por toda parte, que por todos os caminhos ou agens só se encontravam cadáveres”.

Conquista de Jerusalém pelos Cruzados, por Émile Signol, no Palácio de Versalhes, Paris, França.

Cronistas cristãos e muçulmanos relatam que no massacre cruel da conquista de Jerusalém, além da população muçulmana e judaica que viviam na cidade, também foram vítimas os cristãos coptas e sírios. Segundo fontes muçulmanas, cerca de 70 mil muçulmanos, judeus e cristãos orientais foram mortos no banho de sangue. Os cronistas cruzados afirmaram que foram 10.000 vítimas. O historiador britânico Thomas S. Asbridge segue uma fonte judaica que fala de 3.000 mortes.

Os elevados números de testemunhos muçulmanos refletem, por um lado, o choque face ao sucesso inesperado da invasão estúpida e suja e por outro um alerta e incentivo para que no futuro eles não perdessem de vista a reconquista da cidade. A disputa sobre números, resume Asbridge, “– Não muda a matança sádica levada a cabo pelos Cruzados”.

Mesmo com as vestes, as mãos e as armas salpicadas de sangue, um serviço religioso de ação de graças foi organizado pelos vencedores na Igreja do Santo Sepulcro.

Depois que Raimund rejeitou a ideia de se tornar regente de Jerusalém, Gottfried assumiu o governo da Terra Santa como advocatus sancti sepulchri (“Protetor do Santo Sepulcro”) e regente do recém-estabelecido Reino de Jerusalém. Sob sua liderança, o exército do Califrado Fatímida foi derrotado na Batalha de Ascalão, em 12 de agosto de 1099. Isso encerrou a Primeira Cruzada.

Senhores de Jerusalém

Quando os autores islâmicos medievais pensavam em tais ataques observavam que os francos, mesmo sendo bárbaros e impuros, foram capazes de alcançar tais sucessos por conta da desunião interna dos próprios mulçumanos.

Na verdade, os residentes de “Dar al-Islam” não se davam muito bem. Na melhor das hipóteses, mulçumanos sunitas e xiitas viviam juntos numa espécie de guerra fria. Já os governantes Fatímidas no Egito e os seguidores do califa em Bagdá eram inimigos um do outro.

Para os estudiosos mulçumanos essa desunião fez com que os cruzados conseguissem conquistar quatro pequenos estados: o Reino de Jerusalém, o Condado de Edessa, os Principados de Antióquia e Trípoli. A unidade muçulmana chegou tarde demais!

Mas estados cruzados não eram cercados por muros e as relações entre os invasores vindos da Europa e os povos civilizados do Oriente não eram totalmente hostis. Houve fortes negociações nos mercados de Jerusalém e Acre. Os mercadores cristãos estavam interessados ​​nos seguintes produtos: pimenta, gengibre, açúcar do Vale do Rio Jordão, têxteis, marfim, ouro e porcelana. Os mercadores muçulmanos queriam em troca tecidos de lã, grãos, prata, madeira, ferro e escravos. Foi assim que o cheque (de sakh, carta de crédito) migrou para as línguas europeias. Da mesma forma a tarifa (de ta’arif, notificação). Já os muçulmanos aram a saber o que era um “sarjand” (um sargento) e quem era o “al-ray-dafrans” (que significa “le roi de ”).

Os francos permaneceram senhores de Jerusalém por 88 anos (1099-1187).

Uma Cidade, Muitos Conquistadores

Para o mercenário sírio Usama ibn Munqidh, os francos eram a prova viva de que os caminhos de Alá eram insondáveis – afinal, apesar da sua bestialidade, conseguiram alcançar vitórias brilhantes. Ele relatou que com o ar do tempo alguns europeus se aclimataram, ou seja, civilizaram-se, e procuraram a companhia dos muçulmanos. “São muito melhores do que aqueles que chegaram recentemente dos seus países, mas são uma exceção e não devem ser considerados representativos.”

Osama não conseguia encontrar muitas virtudes nos francos, além da coragem – que ele suspeitava provir de sua estupidez. Um dia alguns cruzados tentaram atacá-lo enquanto ele orava em direção a Meca. Esses idiotas nunca tinham visto nada assim! Felizmente, seus camaradas os impediram. Mas apesar do seu desdém fundamental, Osama encontrou alguns amigos entre os francos. Um deles, um Cavaleiro Templário, chegou a chamá-lo de “seu irmão” e se ofereceu para levar seu filho para a Europa “onde ele poderia aprender a razão e o cavalheirismo com os cavaleiros”, algo que, infelizmente, não aconteceu. Pois nos privou nos dias de hoje da leitura de um emocionante relatório de viagem e poderíamos saber que efeito teria a Europa medieval sobre um muçulmano instruído!

Mas voltando ao período das cruzadas – No final foi Nácer Saladim Iúçufe ibne Aiube, mais conhecido como Saladino, um chefe militar curdo muçulmano que se tornou sultão do Egito e da Síria, que liderou com eficácia a oposição islâmica aos cruzados europeus no Oriente Médio.

Paul M. Cobb chama Saladino de favorito de “historiadores, ditadores e outros criadores de mitos”. Isto é absolutamente verdade – para a retrospecção islâmica, Saladino aparece como o libertador do Oriente Médio.

A verdade é que quando ele entrou vitoriosamente em Jerusalém em 2 de outubro de 1187 – uma sexta-feira – e limpou a mesquita de Al-Aqsa e a Cúpula da Rocha dos símbolos cristãos, ele já havia travado uma guerra contra os inimigos islâmicos durante 33 meses (especialmente os Fatímidas no Egito, a quem ele destronou e substituiu pelo seu próprio clã). A luta contra os “francos impuros” foi na verdade apenas um pós-escrito, uma reflexão tardia.

Também é verdade que Saladino, como vencedor, era capaz de magnanimidades. Ele deixou a Igreja do Santo Sepulcro, que segundo a crença cristã era o local onde Jesus foi sepultado, de pé, embora houvesse vozes instando-o a destruir este eterno objeto de discórdia.

Se Saladino foi quem recapturou Jerusalém para o mundo islâmico em 1187, ela foi novamente perdida para os cristãos 42 anos depois, na Sexta Cruzada, no ano de 1229 e quem recebeu a cidade nas suas mãos foi Frederico II da Alemanha. Dez anos depois os cristãos perderam Jerusalém mais uma vez. Quem a conquistou foi an-Nasir Da’ud, o emir de Kerak (hoje uma cidade na Jordânia). Quatro anos depois, em 1243, a cidade sagrada voltou novamente ao poder dos cristãos, mas por um período muito breve. No ano seguinte o Império Khwarezmiano, grupo muçulmano sunita de origem mameluca turca, tomou novamente a cidade para os seguidores de Maomé.

Jerusalém então permaneceu islâmica por longos 673 anos, até o dia 11 de dezembro de 1917, quando o general britânico Edmund Henry Hynman Allenby, 1º Visconde Allenby, entrou a pé com suas tropas na Cidade Santa. Isso ocorreu após os britânicos vencerem os turcos otomanos na Campanha da Palestina, durante a Primeira Guerra Mundial.

30 anos depois, em 29 de novembro de 1947, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou um plano que dividia a Palestina em dois estados: um judeu e um árabe. Cada estado seria composto por três grandes secções, ligadas por encruzilhadas extraterritoriais, mais um enclave árabe em Jaffa. A Jerusalém expandida cairia sob controle internacional como um Corpus Separatum.

Mas após a Guerra Árabe-Israelense de 1948, Jerusalém foi dividida. A metade ocidental da Cidade Nova tornou-se parte do recém-formado estado de Israel, enquanto a metade oriental, juntamente com a Cidade Velha, foi ocupada por tropas da Jordânia.

Essa situação durou até a mítica Jerusalém ter sido totalmente capturada pelas Forças de Defesa de Israel em 7 de junho de 1967, durante a Guerra dos Seis Dias. Desde então já são 57 anos de domínio judeu em Jerusalém.

“Nenhum conteúdo desse site, independente da página, pode ser usado, alterado ou compartilhado (além das permitidas por meio de botões sociais e pop-ups específicos) sem a  permissão do autor, estando sujeito à Lei de Direitos Autorais n. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998”.

O RETORNO DOS MERCENÁRIOS

Há Dois Séculos, os Exércitos Públicos Substituíram os Privados Como Instrumento Dominante de Guerra. Agora, os Exércitos Privados Estão de Volta e com Força Total!

Sean McFate

É uma história familiar – Uma superpotência entra em guerra e enfrenta uma insurreição mais forte do que o esperado em terras distantes, mas tem forças insuficientes para a combater devido a restrições políticas e militares. A superpotência decide contratar empreiteiros, alguns dos quais armados, para apoiar o seu esforço de guerra. Os contratantes armados revelam-se simultaneamente uma bênção e uma maldição, fornecendo serviços de segurança vitais para a campanha, mas por vezes matando civis inocentes, causando reveses estratégicos e prejudicando a legitimidade da superpotência. Sem estes empreiteiros, a superpotência não poderia travar a guerra. Com eles é mais difícil vencer.

Encenação com utilização de trajes de mercenários medievais Fonte – https://www.medievalchronicles.com/wp-content/s/2020/08/Medieval-Times-Soldiers.jpg

Os contratantes armados em questão não estão no Iraque ou no Afeganistão, mas no norte da Itália, e o ano não é 2007, mas 1377. A superpotência não são os Estados Unidos, mas o papado sob o Papa Gregório XI, lutando contra a liga antipapa liderada pelo ducado de Milão. O trágico assassinato de civis por empreiteiros armados não ocorreu em Bagdá, mas em Cesena, 630 anos antes. As empresas militares empregadas não eram DynCorp International, Triple Canopy ou Blackwater, mas sim a Company of the Star, a Company of the Hat e a White Company.

Conhecidos como empresas livres, estes guerreiros com fins lucrativos eram organizados como corporações, com uma hierarquia bem articulada de subcomandantes e maquinaria istrativa que supervisionava a distribuição justa do saque de acordo com os contratos dos funcionários. Capitães semelhantes a CEOs lideravam essas corporações militares medievais.

Mercenários do regimento Glarus vencem o rei Henrique IV da França no campo de batalha de Arques em 1589 – Fonte – https://www.swissinfo.ch/eng/culture/mercenary-trade-paid-for-peace-and-prosperity/31568266

Os paralelos entre as empresas militares privadas (PMCs) medievais e contemporâneas são fortes. Hoje, os Estados Unidos e muitos outros contratam empreiteiros para cumprir contratos relacionados com a segurança nos locais mais perigosos do mundo. No final da Idade Média, esses homens eram chamados de condottiere – literalmente, “empreiteiros” – que concordavam em realizar serviços de segurança descritos em contratos escritos, ou condotte.

Tanto os empreiteiros modernos como os medievais eram organizados como empresas, e os seus serviços estavam disponíveis para o maior ou mais poderoso licitante em busca de lucro. Ambos preencheram suas fileiras com homens de armas profissionais vindos de diferentes países e leais principalmente ao contracheque. Ambos funcionaram como exércitos privados, geralmente oferecendo competências de combate terrestres em vez de capacidades navais (ou aéreas) e mobilizando a força de forma militar e não como forças de aplicação da lei ou policiais.

Os Mercenários Estão de Volta

Outrora brandidos como bandidos vilões, estão a emergir das sombras para se tornarem mais uma vez num instrumento dominante da política mundial. Os Emirados Árabes Unidos (EAU) contrataram centenas de mercenários latino-americanos para combater os Houthis apoiados pelo Irão no Iémen. Depois de anos de luta contra o Boko Haram, a Nigéria finalmente contratou mercenários para fazer o trabalho, e eles o fizeram. O presidente da Rússia, Vladimir Putin, enviou mercenários para “libertar” o leste da Ucrânia, um conflito que ainda ferve. Os mercenários estão supostamente trabalhando em partes do Iraque.

Os Estados não são os únicos consumidores no mercado da força. A indústria extrativista e as organizações humanitárias contratam mercenários para proteger as suas pessoas e os seus bens nos locais mais perigosos do mundo. Navios cheios de empreiteiros armados atuam como corsários no Golfo de Omã e em outras águas infestadas de piratas.

Os mercenários perseguem o ciberespaço como “empresas de hack-back”: ciber mercenários que hackearão aqueles que hackearem os seus clientes, dissuadindo os hackers em primeiro lugar.

Em 2008, a atriz Mia Farrow considerou contratar a Blackwater para realizar uma intervenção humanitária em Darfur para acabar com o genocídio ali. Alguns, como Malcolm Hugh em Privatizing Peace (2009), pensam que os mercenários deveriam aumentar a diminuição das forças de manutenção da paz das Nações Unidas, um argumento com algum mérito. Outros sugeriram que a comunidade internacional os utilizasse para derrotar o Daesh/ISIS, e os super ricos brincaram com a possibilidade de utilizar mercenários para os seus próprios fins.

Os mercenários lutam principalmente pelo lucro e não pela política ou pelo patriotismo. A palavra ‘mercenário’ vem do latim merces (‘salários’ ou ‘pagamento’); hoje, conota vileza, traição e assassinato. Mas nem sempre foi assim.

Ao Longo da História

Durante grande parte da história, ser mercenário foi considerado um ofício honesto, embora sangrento, e empregar mercenários para travar guerras era rotina: houve o exército do rei Shulgi de Ur (2.094-2.047 aC); O exército de mercenários gregos de Xenofonte conhecido como os Dez Mil (401-399 aC); e os exércitos mercenários de Cartago nas Guerras Púnicas contra Roma (264-146 aC), incluindo o exército de 60.000 homens de Aníbal, que marchou com elefantes sobre os Alpes para atacar Roma pelo norte. Quando Alexandre invadiu a Ásia em 334 a.C., o seu exército incluía 5.000 mercenários estrangeiros, e o exército persa que o enfrentou continha 10.000 gregos.

Aníbal lidera seu exército cartaginês, montado em elefantes, contra os romanos nesta pintura do século XVI – Fonte – https://warfarehistorynetwork.com/article/hannibal-and-the-failure-of-success/

Roma contou com mercenários durante todo o seu reinado de 1.000 anos, e Júlio César foi salvo em Alésia por mercenários alemães montados em sua guerra contra Vercingetorix na Gália. Quase metade do exército de Guilherme, o Conquistador, no século XI, era composto de mercenários, pois ele não tinha condições de pagar um grande exército permanente e não havia nobres e cavaleiros suficientes para realizar a conquista normanda da Inglaterra. No Egipto e na Síria, o sultanato mameluco (1250-1517) era um regime de escravos mercenários que tinham sido convertidos ao Islã.

Do final do século X ao início do século XV, os imperadores bizantinos cercaram-se de mercenários nórdicos, a Guarda Varangiana, que eram conhecidos pela sua lealdade feroz, destreza com o machado de batalha e capacidade de engolir grandes quantidades de álcool. Na Europa, os condottieres italianos, os landsknechts alemães, bem como as companhias suíças, bretões, gascões, picardos e outros mercenários dominaram a guerra dos séculos XIII a XVI. Durante pelo menos 3.000 anos, a força militar privada tem sido uma característica – muitas vezes a principal característica – da guerra.

Mercenários Escoceses na Guerra dos Trinta Anos – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/File:Scottish_mercenaries_in_the_Thirty_Years_War.jpg

A guerra começou a mudar no século XVI, transformando com ela a guerra privada. As batalhas europeias tornaram-se cada vez mais violentas à medida que os exércitos cresciam, as armas se tornavam mais destrutivas e as consequências mais graves. Durante a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), por exemplo, os principais combates envolveram normalmente 50.000 combatentes, como evidenciado pelas batalhas de White Mountain (1620), Breitenfeld (1631), Lützen (1632), Nördlingen (1634), Wittstock (1634), Wittstock (1634). (1636) e Rocroi (1643). Os exércitos eram um amálgama de mercenários com uma minoria de tropas nacionais. O patriotismo não estava ligado ao serviço militar.

Para satisfazer a crescente procura de tropas, surgiu uma nova espécie de empreendedores de conflitos – os “empreendedores militares” – que equiparam regimentos e os alugaram a quem necessitava de serviços marciais. Diferentes dos mercenários, os empreendedores militares formaram exércitos inteiros. Estes “regimentos de aluguer” ou exércitos contratados permitiram aos governantes travar guerras em grande escala sem reformas istrativas ou fiscais indevidas, reduzindo Efectivamente a barreira à entrada na guerra e encorajando batalhas cada vez maiores.

Ernst von Mansfeld (na imagem com a roupa amrela – 1580-1626), líder mercenário, empreiteiro militar contra os Habsburgos na Guerra dos Trinta Anos – Fonte – Duncker & Humblot, Berlim, 2010 Walter  Krüssmann.

Exemplos dos maiores empreendedores militares incluem o conde Ernst von Mansfeld, que reuniu um exército inteiro para o Eleitor Palatino; o empresário de Amsterdã, Louis de Geer, que forneceu uma marinha para a Suécia; o marquês genovês de Spinola, que istrou os assuntos militares do rei da Espanha na Holanda; e Bernard von Weimar, que produziu exércitos para a Suécia e depois para a França. O mais famoso é que o conde Albrecht von Wallenstein gerou um enorme exército para o Sacro Imperador Romano Fernando II e se tornou o homem mais rico da Europa. No final da guerra, o mercado tinha ado de oligarcas como Wallenstein para atores mais pequenos, como coronéis mercenários e financistas mercantis, fortalecidos por redes de crédito e de abastecimento baseadas em Amesterdão, Hamburgo e Génova.

Quando os negócios estavam lentos, os mercenários saqueavam o interior até serem contratados por um cliente ou pagos para partir. Um mercado livre para a força incentiva a guerra

A Batalha do Puig de Santa Maria, obra do pintor espanhol de Andrés Marzal de Sas. A Batalha do Puig de Santa Maria foi um combate da Reconquista Espanhola e da Conquista Aragonesa de Valência. A batalha ocorreu em 1237, colocando as forças da Coroa de Aragão, sob o comando de Bernat Guillem d’Entença, contra as forças da Taifa de Valência, sob o comando de Zayyan ibn Mardanish. A batalha resultou numa vitória aragonesa decisiva e na conquista de Valência pela coroa de Aragão. A pintura faz parte de um retábulo que conta a história de São Jorge. O que poucos sabiam era que mercernário mulçumanos participaram da batalha ao lçado dos cristãos – Fonte – https://www.medieval.eu/the-mercenary-mediterranean-sovereignty-religion-and-violence-in-the-medieval-crown-of-aragon/

Os empreendedores militares eram um híbrido de ambos. Tal como os mercenários, são intervenientes do sector privado envolvidos em conflitos armados e motivados principalmente pelo lucro. Ao contrário dos mercenários, eles normalmente trabalhavam em parcerias público-privadas monogâmicas com um cliente do governo para construir exércitos em vez de comandá-los. Os empreendedores são parcerias militares público-privadas, que combinam a motivação do lucro dos mercenários com a lealdade dos exércitos nacionais.

O Conflito é Mercantilizado

Os empresários militares mudaram o negócio da guerra, transformando-a de um mercado de força livre num mercado mediado. Num mercado livre, o conflito é mercantilizado: consumidores e fornecedores de guerra procuram-se, negociam um preço e travam a guerra. Ambos os lados do acordo eram geralmente irs e o mercado era de natureza laissez-faire. Por exemplo, mercenários como os condottieres muitas vezes trabalhavam para quem pagava mais, mudavam de lado quando lhes convinha, procuravam guerras e ocasionalmente as iniciavam. Quando os negócios estavam lentos, muitas vezes saqueavam o interior até serem contratados por um cliente ou pagos para ir embora. Um mercado livre para a força incentiva a guerra.

Morte do rei sueco Gustavo II Adolfo, na Batalha de Lützen, em 1632. Pintura de Carl Wahlbom (1855) – Em 6 de novembro de 1632, Gustavo encontrou o Exército Imperial comandado por Albrecht von Wallenstein em Lützen , no que viria a ser uma das batalhas mais significativas da Guerra dos Trinta Anos. Gustavo foi morto quando, em um ponto crucial da batalha, se separou de suas tropas enquanto liderava um ataque de cavalaria em sua ala. Lützen foi uma vitória para os protestantes, mas custou-lhes o seu líder – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Gustavus_Adolphus

Isto contrasta com um mercado mediado por empresários militares, que imbuiu um mínimo de restrição aos fornecedores de força e aos seus patronos. Parcerias público-privadas exclusivas e de longo prazo alinharam os interesses de ambas as partes, tornando mais difícil para qualquer um dos lados desertar e infundindo estabilidade no mercado. Por exemplo, Albrecht von Wallenstein não teve incentivo para trair Fernando II. Pelo contrário, o governante era a sua principal fonte de receitas. Nem Fernando II estava motivado a quebrar o seu contrato com Wallenstein, já que o empresário era o seu principal fornecedor das forças armadas durante uma guerra de sobrevivência. Por outras palavras, eles eram codependentes de uma forma que os mercenários medievais e a sua clientela não eram. Tais relações existiram no ado, mas na época de Wallenstein eram dominantes. A presença de interesses partilhados e de longo prazo restringiu comportamentos corruptos e, portanto, mediou o mercado da força.

A transição dos exércitos privados para os exércitos públicos foi gradual, ao longo de séculos, à medida que os estados consolidavam o seu poder na política europeia. Em 1650, era claro que os serviços militares a pedido já não eram económicos para os governantes, dada a destruição que os mercenários causavam no campo e a ameaça que representavam para os seus empregadores. O que era necessário era um exército público de profissionais sistematicamente treinados e disciplinados, mantidos na paz e na guerra, no inverno e no verão, com meios regulares de obtenção de suprimentos e reposição. Criticamente, esta força militar seria paga e leal ao Estado.

Luís XIV em Douai, norte da França, na Guerra de Devolução de 1667 – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/War_of_Devolution

Por exemplo, após a Paz dos Pirenéus (1659), a França formou um exército permanente, absorvendo a maioria dos oficiais de Luís XIV na gendarmaria e estabelecendo seis unidades de infantaria permanentes. Estes regimentos permitiram ao Rei Sol mobilizar rapidamente os seus exércitos na Guerra de Devolução (1667-1668) e invadir os Países Baixos espanhóis controlados pelos Habsburgos e a região de Franche-Comté, no leste da França. Luís XIV, por sua vez, criou um exército permanente ainda maior no final da guerra. Ao mesmo tempo, na Inglaterra, com seu Novo Exército Modelo, Oliver Cromwell estava criando um protótipo de exército permanente. Após a Restauração de 1660, Carlos II foi autorizado a reter cinco regimentos desta força, totalizando cerca de 3.000 homens. Estas forças especializadas relativamente pequenas foram o início das grandes forças armadas nacionais que se desenvolveriam ao longo dos séculos seguintes.

Período de Resseção

Nos três séculos seguintes, os estados continuaram a expulsar os mercenários. A pólvora também os prejudicou, pois desvalorizou a habilidade dos mercenários, permitindo que os camponeses os derrotassem. As crescentes burocracias estatais tornaram possível istrar grandes forças armadas e cobrar os impostos para mantê-las. As ideias iluministas e as revoluções políticas que as acompanharam também estimularam o desaparecimento dos exércitos privados, fortalecendo o vínculo entre o soldado e o Estado.

O “contrato social”, imposto em massa, as reformas napoleónicas, a ascensão do nacionalismo e outras ideias encorajaram o “serviço” militar como um dever patriótico fundamental. Esta norma permeia os exércitos públicos hoje. No final do século XVIII, os exércitos nacionais eram tão grandes que o Ministro Friedrich von Schrötter observou: “A Prússia não era um país com um exército, mas um exército com um país”.

Com o tempo, o Estado tornou-se o principal interveniente no mercado da força e proibiu a concorrência, como a dos mercenários. A única excepção a isto foi para os estados que desejavam “alugar” os seus exércitos a outros estados com fins lucrativos. Durante a Guerra Revolucionária Americana, a Grã-Bretanha duplicou o seu exército, contratando quase 30.000 soldados de estados alemães, principalmente de Hesse-Kassel, para reprimir a revolta colonial. Os rebeldes americanos chamaram esses soldados alemães de Hessianos.

Da mesma forma, embora a pirataria fosse ilegal e, se apanhados, os piratas enfrentassem à forca, os estados contrataram navios de guerra privados, ou corsários, emitindo uma carta de marca para atacar navios inimigos. Os corsários foram autorizados a roubar como parte do prêmio. A linha entre pirataria e corsário era tênue. Os atos de pirataria foram considerados ilegais porque, como explicou um jurista do século XIX, foram “realizados em condições que tornam impossível ou injusto responsabilizar qualquer Estado pela sua prática”. Em 1856, com o nacionalismo em ascensão, a Declaração de Paris sobre o Respeito do Direito Marítimo aboliu o corsário.

Soldados durante a Guerra da Crimeia, que ocorreu de 1853 a 1856 – Fonte – https://www.britannica.com/event/Crimean-War

Os Estados também delegaram assuntos militares a empresas comerciais quase estatais, como as Companhias Holandesas ou Britânicas das Índias Orientais, que comandavam as suas próprias forças armadas. Mas a última vez que um Estado reuniu um exército de estrangeiros foi durante a Guerra da Crimeia, em 1854, quando a Grã-Bretanha contratou 16.500 mercenários.

No século XX, o poder estatal atingiu o seu apogeu e empurrou para a clandestinidade o livre mercado da força. Os grandes conflitos do período – a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, a Guerra Fria – foram travados entre nações de “grande potência” utilizando enormes forças armadas públicas.

Clandestinidade 

A presunção de que apenas os Estados podem legitimamente travar a guerra é tida como certa na teoria das relações internacionais e codificada nas “leis da guerra”, que regulam apenas a guerra interestatal, ignorando os intervenientes armados não estatais. Em Humanity in Warfare (1980), o historiador e jurista Geoffrey Best descreve o período de 1856 a 1909 como a “época de maior reputação” para a etiqueta de guerra, mas apenas ignorando as “pequenas guerras” por vezes genocidas nas colónias e nas fronteiras.

A Legião Estrangeira sa em marcha na Argélia antes de 1914 – Fonte – https://www.britannica.com/topic/French-Foreign-Legion.

Apesar do movimento no sentido da deslegitimação dos mercenários, o mercenarismo patrocinado pelo Estado continuou no século XX. A Legião Estrangeira sa recruta globalmente, mas continua a fazer parte das forças armadas sas: recebe ordens exclusivamente de Paris, segue a doutrina militar sa e é liderada por oficiais ses.

Os Flying Tigers, que realizaram missões de combate contra as forças japonesas que ocuparam a China em 1940-41, eram compostos por antigos militares dos EUA e eram uma forma de os Estados Unidos combaterem o Japão antes da guerra ser formalmente declarada. A empresa militar privada britânica Watch Guard International, fundada em 1965 e a primeira de várias empresas militares privadas britânicas, é composta quase inteiramente por veteranos dos Serviços Aéreos Especiais (SAS). Especializaram-se em travar complicadas “guerras agrícolas” e trabalharam apenas em contratos favoráveis ​​ao interesse nacional britânico, oferecendo aos decisores políticos uma negação plausível no caso de uma operação secreta correr mal. Mas estes mercenários patrocinados pelo Estado são a excepção que desrespeita a norma do século XX.

Dois mercenários detidos por tropas indianas da ONU na África na década de 1960.

A maioria dos mercenários durante este período levavam vidas ilícitas, operando como guerreiros privados nas sombras e não como empresas com fins lucrativos no mercado aberto. Soldados da fortuna individuais oscilaram entre pontos geopolíticos críticos na China, na América Latina e especialmente na África.

Os seus empregadores incluíam grupos rebeldes, governos fracos, empresas multinacionais que operam em regiões precárias e antigas potências coloniais que desejavam influência clandestina nos assuntos das suas colónias adas. A descolonização que se seguiu à Segunda Guerra Mundial ofereceu oportunidades particularmente ricas para estes guerreiros privados. A secessão de Katanga e a crise do Congo de 1960-1968 atraíram centenas de mercenários, alguns conhecidos como Les Affreux (‘Os Frightfuls’), e incluíam o belga Jean “Black Jack” Schramme (Sobre esse personagem veja no TOK DE HISTÓRIA sua biografia – /2023/04/14/jean-schramme-o-lider-mercenario-belga-que-viveu-no-mato-grosso/), o irlandês ‘Mad’ Mike Hoare e o francês Bob Denard. Suas façanhas informaram os filmes influentes The Wild Geese (1978), do qual Hoare foi consultor técnico, e The Dogs of War (1980), baseado em um romance de Frederick Forsyth inspirado na vida de Denard.

Mercenários deixando a região de Katanga.

Foram estas guerras de descolonização africana que levaram a Terceira e a Quarta Convenções de Genebra a proibir os mercenários. A definição legal de mercenário mais amplamente aceite encontra-se no Artigo 47 do Protocolo I. A sua linguagem é tão restritiva e imprecisa, no entanto, que quase ninguém se enquadra nesta categoria. Como Best observa: “Qualquer mercenário que não consiga excluir-se desta definição merece ser fuzilado – e o seu advogado com ele!” Mais importante ainda, as definições não são o problema principal; é difícil para o direito internacional regular os mercenários porque eles podem dominar a aplicação da lei.

Decada de 1970 – Mercenários portugueses na África.

O Retorno

Pouco depois da Guerra Fria, o mundo testemunhou o ressurgimento da força militar privada. A primeira verdadeira empresa mercenária surgiu na África. Com a queda do regime de apartheid sul-africano, soldados desempregados de unidades de forças especiais como o 32º Batalhão e a polícia especial Koevoet (“pé-de-cabra” em africâner) formaram a primeira companhia militar privada moderna, apropriadamente denominada Executive Outcomes.

Membros do Executive Outcomes em Serra Leoa – Fonte – https://greydynamics.com/executive-outcomes-the-rise-fall-and-rebirth/

Ao contrário da WatchGuard, a Executive Outcomes não era uma empresa militar, mas uma verdadeira empresa mercenária, travando guerra pelo melhor lance. Operou em Angola, Moçambique, Uganda e Quénia. Ofereceu-se para ajudar a pôr fim ao genocídio no Ruanda em 1994, mas Kofi Annan – então chefe da manutenção da paz da ONU – recusou, alegando que “o mundo pode não estar preparado para privatizar a paz”. A ideologia de Annan era cara, dado o facto de 800 mil pessoas terem morrido. Em 1998, a empresa fechou as portas, mas o mercado mercenário da força cresceu.

Os membros do Executive Outcomes ajudaram a fundar a Sandline International, uma empresa com sede em Londres gerida pelo antigo tenente-coronel britânico Tim Spicer, pelo ex-oficial do SAS Simon Mann e pelo coronel aposentado das Forças Especiais do Exército dos Estados Unidos, Bernard McCabe.

Sandline International Contractors – Afeganistão 1993Fonte – https://www.dayzrp.com/forums/topic/89073-sandline-international/

Em 1997, o primeiro-ministro da Papua Nova Guiné, Julius Chan, contratou a Sandline para recapturar minas de cobre detidas por separatistas na ilha de Bougainville por 36 milhões de dólares. Sandline foi rejeitado pelo exército da Papua Nova Guiné, que prendeu e deportou estes mercenários sem disparar tiros. Chan foi forçado a renunciar, e todo o espetáculo virou notícia mundial como o ‘Caso Sandline’.

Da mesma forma, o presidente deposto da Serra Leoa, Ahmad Tejan Kabbah, contratou a Sandline para treinar e equipar 40.000 milícias e forças de manutenção da paz do povo Kamajor para derrubar a junta militar e proteger as áreas diamantíferas. A Sandline também foi contratada para apoiar um golpe de Estado na vizinha Guiné. Isto também terminou em fracasso, resultando no escândalo das armas para África no Reino Unido.

Mais tarde, os guerreiros particulares aram a trabalhar para lados diferentes. Em 2004, Mann liderou um grupo de mercenários com alegado apoio financeiro de Mark Thatcher, filho da antiga primeiro-ministro do Reino Unido, numa tentativa de derrube da Guiné Equatorial, rica em petróleo, também conhecida como Golpe de Wonga. Falhou e Mann foi enviado para a prisão.

McCabe deixou a Sandline para se tornar chefe de segurança da Marathon Oil Corporation no Texas, que investiu pesadamente na Guiné Equatorial. Quanto a Spicer, pouco depois dos Estados Unidos terem invadido o Iraque em 2003, fundou uma nova empresa chamada Aegis Defense Services em Londres e ganhou um lucrativo contrato de segurança no valor de 293 milhões de dólares com o governo dos Estados Unidos no Iraque. A descendência da Executive Outcomes continua viva até hoje.

A Volta do Mercado da Força

Foram os Estados Unidos e as suas guerras no Iraque e no Afeganistão que restauraram verdadeiramente o mercado da força. Os decisores políticos dos Estados Unidos, nomeadamente o Vice-Presidente Dick Cheney e o Secretário da Defesa Donald Rumsfeld, esperavam que as guerras “durassem semanas, não meses”. Claro, isso foi há mais de uma década.

As forças armadas dos Estados Unidos, totalmente voluntárias, descobriram rapidamente que não conseguiam recrutar americanos suficientes para as suas fileiras para sustentar estes esforços, deixando aos decisores políticos algumas opções desagradáveis. Primeiro, eles poderiam recuar e itir a derrota. Em segundo lugar, eles poderiam instituir um recrutamento para preencher as fileiras. Terceiro, podiam esperar que os aliados e a ONU resgatassem os Estados Unidos das suas guerras. Por último, eles poderiam manter viva a guerra com os empreiteiros. As três primeiras opções eram suicídio político ou irrealistas, pelo que optaram por empreiteiros, uma política continuada pelo Presidente Barack Obama.

A contratação pode ser a nova forma americana de guerra. É uma forma que faz sentido para um país rico que quer projectar força no estrangeiro, mas cujos cidadãos não querem sangrar. Os empreiteiros representavam 50% da estrutura da força dos Estados Unidos no Iraque e 55% no Afeganistão. Este é um aumento notável em relação à Segunda Guerra Mundial, quando apenas 10 por cento da força foi contratada. Alguns interrogam-se se os Estados Unidos irão externalizar 80-90 por cento da sua força em conflitos futuros.

Os empreiteiros também são responsáveis ​​por 25 por cento de todas as mortes nos Estados Unidos desde o início das guerras no Iraque e no Afeganistão. Em 2003, as mortes de prestadores de serviços representaram apenas 4 por cento de todas as mortes. Em 2010, foram mortos mais empreiteiros do que militares, marcando a primeira vez na história em que as baixas corporativas superaram as perdas militares nos campos de batalha dos Estados Unidos. Além disso, estas são estimativas conservadoras, uma vez que os Estados Unidos não registam estes dados e as empresas subnotificam os seus feridos e mortos, pois isso é mau para os negócios.

A maioria dos empreiteiros no Iraque e no Afeganistão eram inofensivos, fornecendo apoio logístico desarmado. Apenas 12-15 por cento dos empreiteiros eram letais ou treinavam outros para matar. Mas os fracassos dos empreiteiros armados têm um impacto estratégico descomunal, como evidenciado pelos acontecimentos na Praça Nisour, em Bagdad, em 2007, quando um punhado de funcionários da Blackwater mataram 17 civis numa rotunda, marcando um dos pontos mais baixos da guerra.

O investimento dos Estados Unidos na indústria militar privada também tornou a guerra um negócio ainda maior. O valor do mercado permanece desconhecido; as estimativas dos especialistas variam enormemente entre US$ 20 bilhões e US$ 100 bilhões anualmente. Mais certamente, de 1999 a 2008, as obrigações contratuais do Departamento de Defesa dos Estados Unidos aumentaram de 165 milhões de dólares para 414 milhões de dólares.

Membros da Blackwater escoltando um político, ao lado de militares americanos no Iraque – Fonte –https://socialchangecourse.wordpress.com/2014/11/14/blackwater-in-iraq-the-changing-social-roles-of-mercenaries/

Em 2010, os militares dos Estados Unidos comprometeram 366 milhões de dólares em contratos, no valor de seis vezes todo o orçamento de defesa do Reino Unido. Além disso, isto envolve apenas contratos militares e não inclui aqueles celebrados por outras agências governamentais, como o Departamento de Estado ou a USAID, através dos seus “parceiros de implementação”. O montante real que os Estados Unidos pagaram por contratos puramente de segurança permanece desconhecido.

A dependência dos Estados Unidos em relação aos empreiteiros é tal que a superpotência depende estrategicamente do sector privado para travar guerras. Os Estados Unidos também legitimaram de facto a indústria militar privada, encorajando a Nigéria, os Emirados Árabes Unidos e a Rússia, por exemplo, a contratar mercenários. Até as companhias petrolíferas e as companhias marítimas os empregam agora. Estes acontecimentos suscitam pouca indignação pública (ou mesmo atenção), marcando a sua crescente aceitação nas relações internacionais. Resumindo, os mercenários estão de volta.

Decada de 1960 – Mercenário em Biafra.

Improvável Que Desapareçam

A guerra privada tem sido a norma e não à excepção na história, sendo os últimos 400 anos anómalos. As implicações deste retorno são significativas. Oferecer os meios de guerra a qualquer pessoa que possa pagar mudará a guerra, a razão pela qual lutamos e o futuro da guerra. Se o dinheiro puder comprar poder de fogo, então as grandes corporações e os indivíduos ultra ricos poderão tornar-se um novo tipo de superpotência. Novos mercenários surgirão para satisfazer esta procura, oferecendo serviços mais letais, sem serem impedidos pelas leis da guerra.

Mais mercenários significam mais guerra, pois são incentivados a iniciar e expandir guerras com fins lucrativos e a recorrer à criminalidade entre contratos. Também surgirá um novo tipo de guerra – a guerra contratual – que responde à lógica do mercado, como o suborno, as aquisições e o engano. Um mercado ativo da força tem o poder de alterar as relações internacionais. A ordem mundial irá parecer-se cada vez mais com a Idade Média Europeia, quando as guerras eram travadas com mercenários e os ricos podiam travar a guerra por qualquer razão que quisessem. Uma tal ordem mundial é melhor descrita como “desordem duradoura”: uma governação global que contém, em vez de resolver, os problemas.

Esse mundo já está sobre nós!

“Nenhum conteúdo desse site, independente da página, pode ser usado, alterado ou compartilhado (além das permitidas por meio de botões sociais e pop-ups específicos) sem a  permissão do autor, estando sujeito à Lei de Direitos Autorais n. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998”.

VIDA MEDIEVAL, VIDA VIOLENTA

Se os camponeses são velhacos, estúpidos, vesgos e feios, isso é porque nasceram do esterco do burro. Nem o diabo os quer no inferno, de tão mal que cheiram”.

Mas, a acreditarmos nessa informação de G. G. Coulton contida nos Excertos da Literatura Medieval não saberíamos explicar o que era feito dos camponeses após a morte, pois toda gente sabia que “ninguém mais entrara no céu após o Cisma do Ocidente”.

Contudo, esse problema como tantos outros estava fora das cogitações do homem medieval, para quem a verdade pertencia a Deus e só por Sua graça poderia ser revelada.

Na Alta Idade Média do século V até o século XI, aproximadamente -, a vida do indivíduo já estava traçada desde o seu nascimento, e só a morte poderia interromper o destino pré-configurado. Quem nascesse nobre, assim morreria. Quem viesse ao mundo como camponês, pereceria a arar a terra. Mesmo dentro de cada uma das camadas sociais, as opções eram poucas. Tanto o senhor como o servo praticamente não escolhiam o que fazer da própria vida. As cruzadas, o ressurgimento das cidades e a revolução comercial marcam a chamada Baixa Idade Média, que se estende até o século XV. Nela, o panorama se modifica um pouco. Enquanto a vida do nobre se altera, aparecem novas categorias profissionais: os artesãos e os comerciantes.

Nesse período, os horizontes se entreabrem e, embora de maneira precária, ao homem se coloca alguma possibilidade de opção.

Nobre: o Homem Rude

Um castelo não era mais que uma enorme choupana de madeira, uma tosca fortaleza. Do século XI em diante, ou a ser construído de pedra, mas continuou úmido, escuro, sem condições de higiene, com pouquíssimo mobiliário. Era essa a habitação da aristocracia feudal: o senhor, sua família e a corte.

Os nobres não trabalhavam, sendo sustentados pela atividade dos camponeses. Suas maneiras não eram de modo algum refinadas ou gentis. A glutonaria era um vício comum, e um beberrão moderno ficaria perplexo à vista da quantidade de vinho e cerveja consumida durante uma festa no castelo. Ao jantar, os nobres cortavam a carne com o punhal e comiam com as mãos. Os restos eram jogados no chão para os cachorros, sempre presentes.

As mulheres eram tratadas com indiferença e até com desprezo e brutalidade. Nos séculos XII e XIII, o comportamento das classes aristocráticas foi consideravelmente suavizado pelo desenvolvimento da cavalaria, com seu código ético e social. Entretanto, a cavalaria introduziu apenas um refinamento exterior. A constância das guerras e a ferocidade dos combates faziam dos nobres feudais homens basicamente rudes.

Camponês: o Sub-Homem

Manuscritos medievais descrevem que, no verão, “via-se a maioria dos camponeses, em dias de feira, andar pelas ruas e praças da aldeia sem nenhuma roupa”. Não é muito estranhável esse despudor, pois, nas miseráveis cabanas em que viviam, toda a família, e mesmo hóspedes, dormiam juntos em uma grande caixa coberta de palha.

A despeito de trabalhar de sol a sol, se a colheita fosse insuficiente, o camponês poderia morrer de inanição. Sua alimentação consistia em pão preto, verduras e sopa. Carne, só se ousasse desafiar as leis do feudo, entregando-se a caçadas proibidas. A choupana que lhe servia de moradia era construída de varas trançadas, recobertas de barro. O piso de terra e o teto de palha não ofereciam nenhuma defesa contra a chuva e a neve.

Analfabeto, vítima de temores supersticiosos e à mercê das arbitrariedades dos mais ricos e fortes, poucas maneiras tinha o camponês de alterar o seu destino. Uma delas era contrair uma moléstia contagiosa e repugnante, como a lepra. Então, deveria abandonar tudo e se unir aos companheiros de sina. Reunidos em cortejo, ariam o resto da vida a percorrer as estradas a agitar guizos que anunciavam a aproximação do tétrico desfile. A partir do século XI, muitos camponeses conseguiram migrar para as cidades ou integrar-se nas Cruzadas, mas suas condições de vida nem por isso mudaram substancialmente.

Quase toda a população do feudo compunha-se de pessoas de condição servil, divididas em quatro categorias: vilões, servos, seareiros e moradores. Os vilões pagavam ao senhor o censo e os servos a capitação. Ambos prestavam serviços obrigatórios, a corveia. Todos deviam-lhe as prestações e as banalidades. Tal regime de impostos sobreviveu em alguns países até mesmo após a Revolução sa (1789).

Os vilões não estavam pessoalmente presos à terra, como os servos que não podiam abandoná-la. Os seareiros e moradores não possuíam nenhuma terra que pudessem arar, e sobreviviam graças a expedientes avulsos. Alguns poucos escravos realizavam serviços domésticos e eram mantidos por ostentação, pois o sistema econômico vigente agricultura de subsistência dispensava-os.

Artífices Incorporados

Com a revalorização do comércio, as cidades voltaram a se expandir. A maior concentração urbana ocidental, até o final da Idade Média, foi Palermo, na Sicília, com 300.000 habitantes. Seguiam-se Paris (240.000), Veneza, Florença e Milão. Nenhuma outra atingiu 100.000 habitantes.

As cidades foram-se emancipando do feudo e adquirindo istração própria. As camadas dirigentes aram a ser os comerciantes e artesãos, reunidos em corporações. Estas eram órgãos exclusivistas, que asseguravam a seus membros o mono- pólio do comércio e das profissões na região. Regulavam o preço e a qualidade dos pro- dutos, punindo severamente os infratores.

As corporações de ofício eram dirigidas pelos mestres, que possuíam as oficinas e empregavam os diaristas e adestravam os aprendizes. Ao fim de algum tempo, os aprendizes tornavam-se diaristas, e esses por sua vez poderiam acumular algum dinheiro e abrir oficina própria. Entretanto, nos últimos decênios da Idade Média, essa ascensão tornou-se cada vez mais difícil, dada a obstinação dos mestres em preservar seu monopólio.

Na verdade, essas oficinas formavam uma indústria doméstica, pois diaristas e aprendizes, via de regra, residiam com a família do mestre, que presidia pequena comunidade. Como as cidades fossem cercadas por paliçadas que as defendiam, os terrenos interiores começaram a se valorizar, alcançando alto preço. Assim casas e oficinas aram a ter, dois ou três andares. Uma camada privilegiada pôde viver exclusivamente das rendas imobiliárias.

Os Sinos de Deus

Cada ordem ou dignidade, cada grau ou profissão distinguia-se pelos trajes. Assim também o clero. Seus membros foram ando da primitiva vida ascética e estoica para uma posição semelhante à da nobreza.

Um som se erguia sempre acima dos ruídos da vida ativa: o ressoar dos sinos. Em certas ocasiões – conclusão de um tratado, eleição de um papa – o dobrar dos sinos era ouvido durante o dia inteiro, e mesmo à noite. As igrejas eram repletas de mendigos que exibiam suas misérias e deformidades. As procissões, onde havia sempre muitas crianças, eram frequentes. Muitas vezes duravam dias e semanas, ininterruptamente. Em 1412, organizou-se em Paris uma procissão integrada por diferentes ordens e corporações, que perdurou desde maio até julho, a implorar pela vitória do rei, que havia partido para a guerra. Todos marchavam descalços, e a maioria em jejum.

A Ralé Urbana

Em algum tempo, as cidades aram a abrigar uma população muito maior que seu potencial de emprego. Na fuga à servidão dos campos, surge a grande massa urbana dos desocupados: malfeitores, ladrões, mendigos. O superpovoamento era tamanho, que por vezes dezesseis pessoas abrigavam-se num só cômodo.

Ademais, as cidades medievais cresceram rapidamente e teria sido quase impossível dotá-las de padrões razoáveis de higiene e conforto, mesmo se as autoridades se preocuem com isso, o que não ocorria. As ruas eram estreitas e tortuosas, e nesse espaço limitado meninos e rapazes entregavam-se a brincadeiras violentas, que causavam muitos protestos dos adultos e do clero.

Quase todas as cidades dependiam da água de poços ou rios, e eram comuns a febre tifoide e outras epidemias. Algumas possuíram esgotos, mas parece que nenhuma delas tomou providências no tocante à coleta de lixo. Em geral, as imundícies eram atiradas à rua para serem afinal levadas pelas chuvas ou consumidas pelos porcos e cachorros que por ali vagabundeavam.

Da mesma forma que nos campos, os bandos de salteadores trans- formavam qualquer excursão em perigosa aventura. As punições desses elementos eram atrozes e serviam de diversão pública. Certa feita, a cidade de Mons chegou a adquirir um salteador capturado, para ter a satisfação de vê-lo esquartejado numa festa popular.

O Teor Violento da Vida

A miséria, a estrutura social rígida que condenava cada homem a um destino hereditário, a insegurança do povo quanto ao futuro, a falta de defesa contra os poderosos e a penetração das ideias religiosas criaram o clima de violência e exaltação que caracteriza o período medieval.

Procissões, colunas de leprosos, cortejos de príncipes ataviados, execuções e prédicas de pregadores itinerantes, roubos e assaltos, eis as variações mais comuns do horizonte medieval.

Johan Huizinga, em seu livro O Declínio da Idade Média, assim se manifesta: “Será de surpreender que o povo considere o seu destino e o do mundo apenas como uma infinita sucessão de males? Mal governo, extorsões, cobiça e violência dos grandes. Guerras, assaltos, escassez, miséria e peste a isso, basicamente, se reduz a história da época aos olhos do povo. O sentimento geral de insegurança causado pelas guerras, pela ameaça dos malfeitores, pela falta de confiança na justiça, era ainda agravado pela obsessão da proximidade do fim do mundo, pelo medo do inferno, das bruxas e demônios. O pano de fundo de todos os modos de vida parecia negro. Por toda a parte, a injustiça reina.”

Fonte – Enciclopédia Conhecer, Abril S.A, Cultural e Industrial, São Paulo-SP, 1974 – Volume VII – páginas 1537 e 1539.

JEAN SCHRAMME – O LÍDER MERCENÁRIO BELGA QUE VIVEU NO MATO GROSSO

Nasceu Em Uma Família Rica e Foi Viver Como Fazendeiro na África – Foi Expulso de Suas Terras Após a Independência do Congo e Se Tornou um Mercenário – Participou de Vários Combates na África e Mostrou Muita Liderança e Coragem – Após o Fim da Luta Decidiu Morar no Brasil – Enganou os Militares da Ditadura Brasileira – Vivia em Paz com Sua Família em Rondonópolis, Mato Grosso – Foi Preso Pela Polícia Federal e Quase Foi Extraditado Para Bélgica

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Jean Marie Joseph Antoine Thomas Schramme nasceu em 5 de março de 1929, na cidade belga de Bruges, um antigo burgo que ganhou o status de cidade no ano de 1128 e era conhecida na Idade Média por sua sofisticada indústria de linho. Os Schramme eram uma família de classe média alta e bem situada na sociedade local. Joseph Marie Pie Schramme, avô de Jean, foi um advogado de renome, que atuou durante algum tempo como vereador na cidade.

Durante a Primeira Guerra Mundial quase toda a Bélgica foi ocupada por tropas alemãs e Bruges sofreu muito com essa situação. Pie Schramme, diante da sua resistência ativa, foi preso e deportado para a Alemanha, onde ou por sérias privações e só voltou para casa no final da guerra.

Seu filho, Joseph Marie Camiel Schramme, serviu durante a Primeira Guerra na artilharia belga, onde foi agraciado com a medalha Croix du Feu. Após o conflito Joseph seguiu os caminhos do seu pai e se tornou um advogado de sucesso em Bruges, casou com Elza Dassonville e dessa união nasceram quatro filhos, sendo o caçula Jean Schramme. Este foi criado na mansão ancestral de sua família na Rue Haute, número 20, onde seus pais lhe transmitiram que os princípios da lei, da ordem e da justiça não eram meras palavras, mas “motivos para viver e morrer“.

Jean Schramme na juventude – Fonte – Facebook.

Durante a Segunda Guerra Mundial o jovem Jean sobreviveu junto com a sua família o terrível período da ocupação nazista na Bélgica. Depois de estudar no Collège Saint-Louis, sem nenhuma vocação particular, Jean decidiu ir para o Congo Belga em 1947. Seu pai, presidente da Ordem dos Advogados da cidade, saudou essa reviravolta. Para a sua família francófona da região de Flandres Ocidental, foi uma revelação que o caçula de 18 anos deixasse uma Europa devastada pelo conflito e fosse viver no Continente Africano.

O ídolo do jovem Schramme era seu tio Joseph Muylle, que desde 1914 atuava como funcionário público na região congolesa de Katanga. Foi ele que transmitiu a Jean informações sobre a colônia e a “missão civilizadora” da Bélgica no Congo.

Schramme na África.

Na África o céu azul do Congo suplantou em seu coração o cinza da Bélgica. Consta que Jean Schramme prestou serviço militar na Force Publique, nas Bases de Kamina e Kitona, e depois trabalhou como aprendiz de fazendeiro na plantação de Joseph Dobbelaere, um comerciante de café e borracha que lhe mostrou os meandros da colônia belga. Como possuía uma forte veia empreendedora, aos 22 anos Schramme já tinha sua própria plantação de café na área perto de Bafwakwandji, ou Bafwasende, uma floresta selvagem e posto avançado da fronteira a cerca de 60 quilômetros a nordeste de Stanleyville, atual Kisangani, na parte oriental do Congo.

Segundo todas as informações apuradas, Schramme gostava profundamente da África, dos africanos e se autodenominava Un Africain Blanc, ou Africano Branco. Aos amigos Jean dizia que o Congo era “a sua pátria”, onde istrou sua propriedade sob um estilo de liderança autoritário, mas ao mesmo tempo paternalista, ao ponto dos seus trabalhadores africanos o chamarem de père (pai).

Marfim de elefantes em um depósito na África Oriental.

Schramme achava que entendia o Congo muito melhor do que os congoleses e acreditava que o país deveria permanecer uma colônia belga para sempre. Consta que ele odiava os évolués, ou evoluídos, os congoleses com educação ocidental, que para ele não eram congoleses de verdade. Seu congolês ideal eram os trabalhadores da sua fazenda. No ponto de vista de Schramme, ele e os outros colonos belgas deveriam fornecer o cuidado paternalista estrito, mas amoroso, que ele acreditava ser o que os congoleses precisavam.

Por mais de dez anos ele istrou a sua vasta propriedade, permanecendo solteiro e vivendo a típica vida de um colonialista europeu na África.

A Independência do Congo e a Secessão de Katanga

Na antiguidade a região ao longo do rio Congo foi ocupada por povos bantos da África Oriental e povos do rio Nilo, que ali fundaram os reinos de Luba, Lunda e do Congo, entre outros. Em 1878, o explorador britânico Henry Morton Stanley fundou entrepostos comerciais ao longo do rio Congo.

O polêmico Leopoldo II

Na Conferência de Berlim de 1885, que dividiu a África entre as potências colonizadoras europeias, a região do Congo foi fatiada entre três países europeus – Bélgica, França e Portugal. Só que o rei Leopoldo II da Bélgica recebeu o território como uma possessão pessoal, uma imensa propriedade particular com área equivalente aos estados do Pará e da Bahia. O rei então colocou es brancos para tomar conta do seu super latifúndio, onde em poucos anos conseguiu amealhar uma fortuna com o marfim dos elefantes e a extração da borracha, utilizando para isso o trabalho forçado da população nativa.

A istração de Leopoldo II no Congo foi caracterizada por atrocidades e brutalidades sistemáticas, incluindo tortura, assassinato e amputação das mãos de homens, mulheres e crianças quando as cotas de produção de marfim e borracha não alcançavam as metas desejadas. Canalhamente esse soberano batizou a sua propriedade como Estado Livre do Congo.

Atrocidades cometidas contra os habitantes do Congo na época de Leopoldo II.

Mas em 1908, depois que as brutalidades ali realizadas foram escancaradas na imprensa ocidental, o tal Estado Livre do Congo deixou de ser propriedade do rei e se tornou oficialmente uma colônia da Bélgica, com a istração sendo realizada por funcionários públicos. A região então ou a se chamar Congo Belga e um ano após essas mudanças, talvez abalado pela perda da sua imensa propriedade, Leopoldo II morreu aos 44 anos.

O controle do continente africano pelos europeus aconteceu até o final da Segunda Guerra Mundial, quando então boa parte dos países africanos conquistaram suas independências.

Belgas mortos no Congo.

Em janeiro de 1959, tumultos eclodiram quando centenas de milhares de congoleses saíram às ruas para exigir a independência do país, o que levou o estado belga a concordar que o Congo se tornaria independente em 30 de junho de 1960. Grande parte dos quase cem mil belgas que ainda permaneciam na região preferiram abandonar o país às pressas, deixando seus pertences para trás. Mas outra parte dos brancos preferiu ficar em suas fazendas, sem aceitar a independência congolesa.

Prevendo a deflagração de conflitos, o empreendedor Jean Schramme começou a estocar armas e munições, enquanto prendia em seu carro placas de metal e uma metralhadora, para assim criar um veículo blindado improvisado.

Alegria dos congolenses com a independência do seu país.

Na data combinada, o Congo Belga conquistou a independência, tornando- se a República Democrática do Congo. Joseph Kasa-Vubu foi empossado como presidente e Patrice Lumumba, que tinha o apoio dos comunistas da União Soviética, foi eleito primeiro-ministro. Pouco depois, o neófito exército congolês se amotinou contra seus oficiais belgas, que haviam sido colocados no comando devido à falta de oficiais nativos. Não demorou e começaram saques desenfreados por todo o país, com alguns congoleses atacaram seus antigos mestres brancos e vários foram mortos.

Exército congolês.

Com o Congo caindo no caos, Schramme forneceu uma guarda armada para mover os colonos belgas da sua região para a colônia britânica de Uganda. Ele afirmou que nessa época foi preso duas vezes e teria visto oito colonos brancos enforcados sem julgamento. O próprio Schramme teve sua fazenda invadida e queimada e assim fugiu para Uganda. Ali onde soube que Moise Tshombe, governador da área de Katanga, pretendia separar sua região da República Democrática do Congo.

Moise Tshombe.

Tshomb era um empresário e político anticomunista, que rompeu com o governo nacional e criou a província autônoma de Katanga em 11 de julho de 1960, onze dias depois da independência do Congo. Rica em minerais como diamantes, estanho e cobre, a independência de Katanga era intensamente desejada por grandes empresas exploradoras de minérios, como a poderosa Union Minière du Haut Katanga (UMHK). Tshomb então exigiu a ajuda militar e logística belga que, a pretexto de proteger seus cidadãos na região, enviou tropas para Katanga.

No entanto, o Estado de Katanga nunca seria reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) e não demorou para que essa organização, através do seu Conselho de Segurança, respondesse ao apelo do primeiro-ministro congolês Lumumba e criasse a Operação das Nações Unidas no Congo (ONUC), que enviou 20.000 soldados da paz, provenientes de vários países, para tentar restaurar a ordem.

Patrice Lumumba.

Mesmo com as forças da ONU substituindo gradualmente as tropas belgas, estas não intervieram diretamente para encerrar a secessão de Katanga. A partir de então, Lumumba voltou-se abertamente para os soviéticos, seguindo o exemplo de Fidel Castro em Cuba. Não demorou para Patrice Lumumba ser preso, levado para Katanga e cruelmente executado, com a cumplicidade dos governos belga e norte-americano.

Embora o novo Estado de Katanga mantivesse muitos quadros técnicos e conselheiros militares belgas, teve desde muito cedo de reforçar as suas forças militares recorrendo a mercenários, que ficariam conhecidos como Affreux, ou Horríveis.

Mercenários no Congo.

Tshombe contratou os chamados “Soldados da Fortuna” principalmente na Europa, onde não faltavam ex-combatentes de muitos conflitos dispostos a ganhar algum dinheiro “fazendo guerras”. Sobre essa questão historiadores militares acreditam que esse único movimento de contratação é responsável por reviver a profissão de mercenário nos tempos modernos.

A Guerra dos Mercenários

Entre os contratados se destacaram alguns ex-oficiais superiores do exército francês, como Roger Trinquier e Roger Faulques, muito ligados à sua instituição de origem e que só agiam sob ordens secretas de Paris. 

Civis belgas deixam o Congo em meio aos conflitos.

Mas logo outras grandes figuras surgiram: o irlandês Thomas Michael Hoare, que tinha o apelido de “Mad Mike Hoare” e o francês Bod Denard, ou Gilbert Bourgeaud. Schramme voltou rapidamente ao Congo e foi alistado como oficial de treinamento na Base de Kamina. Não podemos esquecer que esses mercenários também atendiam os interesses das mineradoras estrangeiras na região, mas no caso de Schramme ele sempre afirmou que o seu objetivo maior sempre foi se restabelecer como fazendeiro após ter abandonado sua propriedade.

Mercenário abre fogo com metralhadora em uma estrada do Congo.

Schramme estava no Groupe Mobile E, uma unidade de mercenários comandada por um escocês beberrão chamado Robert Chambers, que se autodenominava Louis Chamois e cujo francês era péssimo. Schramme não ficou impressionado com Chambers, a quem afirmou: “À primeira vista, pensei que estava lidando com um bêbado duplamente louco. Ele fingiu ser um oficial, mas não estava interessado em nada além de sua garrafa e seu revólver“. O Groupe Mobile E tinha uma terrível reputação de crueldade, ao ponto de um colono belga, Frans Heymans, reclamar em maio de 1961 das “brutalidades nas mãos de Chamois e seus homens“.

Jean Schramme nos combates do Congo.

Schramme não era um soldado mercenário na acepção da palavra. Seus críticos afirmaram que ele era um indivíduo tímido e nervoso, um homem quase servil que desejava agradar aos outros. Entretanto, outras fontes apontam que rapidamente Schramme se tornou um dos principais conselheiros militares de Tshomb. Seus companheiros o iravam pela sua calma, seus longos silêncios e sua inegável ascendência sobre os africanos, que ele liderava com firmeza, mas sem brutalidade. “É um homem gentil que sabe fazer-se obedecer”, diziam dele.

Durante o famoso Cerco de Jadotville, em setembro de 1961, no qual uma pequena companhia irlandesa de Capacetes azuis da ONU resistiu bravamente aos mercenários e soldados catangueses, Schramme serviu como oficial subalterno do comandante mercenário francês Robert Falques, um antigo coronel do exército e paraquedista da Legião Estrangeira.

Acredito que por essa época Schramme foi se destacando na luta e ou a ser conhecido como Jean “Black Jack” Schramme.

Forças suecas da ONU em ação no Congo.

Não demorou e mais de duzentos mercenários da França, África do Sul, Alemanha Ocidental, Reino Unido, Irlanda, Espanha, Portugal e Angola chegaram à província de Katanga.

Os homens liderados por Mad Mike Hoare estavam no Commando 5, com a maioria vindo da África do Sul, complementados por outros elementos de origem anglo-saxã. Apesar da grande maioria desses combatentes ser abertamente racista, eles ganharam uma reputação muito boa em combate, sendo considerados um grupo de elite entre as unidades estrangeiras. 

Símbolo do Batalhão Leopardo

Havia também o Commando 6 sob as ordens de Bob Denard e o Commando 10 com Jean Schramme como líder. Esses dois últimos grupos possuía um grande número de combatentes negros em seus quadros. O belga ou a chamar a sua unidade como “Batalhão Leopardo” e se destacou ao liderar seus homens em batalha, particularmente na guerra móvel, onde se especializou na capacidade de resistir a forças muito superiores.

Mas não demorou e Schramme e muitos outros mercenários foram presos por soldados da força de paz da ONU e, depois de dois meses de cadeia, foi expulso para a Bélgica em 17 de setembro de 1961. Outros afirmam que um padre ajudou o belga a escapar.

Dois mercenários detidos por tropas indianas da ONU.

Após ar várias semanas em seu país natal, seguiu para a colônia britânica da Rodésia do Sul, atual Zimbábue, onde comprou o livro Citações do Presidente Mao para conhecer seu inimigo, como ele se expressou.

Durante seu tempo na Rodésia do Sul, Schramme recrutou vários colonos brancos britânicos e sul-africanos para acompanhá-lo na luta por Katanga, onde voltou clandestinamente. Ele foi enviado para Kansimba, no norte de Katanga, para reunir novas forças e lá recrutou um grupo de jovens entre quinze e dezoito anos, membros das tribos locais, além de alguns outros antigos plantadores.

Tropas da ONU respondendo ao fogo inimigo utilizando um veículo blindado como proteção.

Em outubro de 1961 tomou a cidade de Kisamba dos congoleses, relatando orgulhosamente que, devido à sua disciplina superior, sua pequena unidade havia derrotado dois batalhões do Armée Nationale Congolaise. A princípio não foram dados maiores créditos as alegações de Schramme, mas o fato veio a ser comprovado e chamou bastante atenção dentro e fora do exército de Katanga.

Mas em 15 de janeiro de 1963 ocorreu a derrota final de Katanga e Schramme levou uma força de cerca de 400 gendarmes catangueses para a colônia portuguesa de Angola.

Mercenários deixando a região de Katanga.

Não demoraria e ele retornaria ao Congo para novas lutas.

A Terrível e Cruel Rebelião Simba

No final de 1963, guerrilheiros chamados Simbas, ou “Leões”, se rebelaram no leste do Congo e receberam o apoio de soviéticos e cubanos. Eles foram inicialmente bem-sucedidos, tomando uma quantidade significativa de território e proclamando a cidade de Stanleyville a sua capital da “República Popular do Congo”, de orientação comunista.

Guerreiros Simbas.

Enquanto o governo congolês reclamava o território dos Simbas, o exército do Congo se desintegrou diante dos rebeldes, que muitas vezes conseguiram intimidar unidades bem equipadas do exército para que recuassem ou desertassem sem lutar. Na sequência os combativos Simbas recorreram a tomar como refém a pequena população branca na região. No final de julho de 1964, os insurgentes controlavam cerca de metade do Congo. Totalmente desmoralizados por repetidas derrotas, muitos soldados do exército congolês acreditavam que os rebeldes Simba haviam se tornado invencíveis graças a rituais mágicos realizados por xamãs insurgentes.

Área controlada pelos Simbas no auge da rebelião.

À medida que o movimento rebelde se espalhava, os atos de violência e terror aumentavam. Milhares de congoleses foram executados em expurgos sistemáticos pelos Simbas, incluindo funcionários do governo, líderes políticos de partidos de oposição, policiais provinciais e locais, professores de escolas e outros que acreditavam terem sido ocidentalizados. Muitas das execuções foram realizadas com extrema crueldade e apenas em Stanleyville foram assassinados cerca de 1.000 a 2.000 congoleses ocidentalizados.

General Mobutu.

O comandante do exército congolês, o general Joseph-Désiré Mobutu, persuadiu o presidente Joseph Kasa-Vubu a nomear Moise Tshombe como primeiro-ministro em 9 de julho de 1964. O novo líder então chamou de volta os mesmos mercenários que ele usou para lutar pela libertação de Katanga, para agora salvar o Congo. Schramme foi um dos mercenários que Tshombe recrutou.

Enquanto isso se desenrolava, os rebeldes começaram a fazer reféns da população branca local nas áreas sob seu controle. No final de outubro de 1964, quase 1.000 cidadãos europeus e americanos foram feitos reféns pelas forças rebeldes em Stanleyville. Em resposta, tropas da Bélgica e dos Estados Unidos lançaram uma ação militar, em parceria com o exército congolês e os grupos de mercenários.

Paraquedistas belgas na Operação Dragon Rouge.

Foi realizado em 24 de novembro um ataque aerotransportado, que recebeu o codinome Dragon Rouge e teve como alvo Stanleyville. Cinco aviões de transporte Hércules C-130 da Força Aérea dos Estados Unidos lançaram 350 pára-quedistas belgas do Régiment Para-Commandos no Aeroporto Simi-Simi, na periferia oeste de Stanleyville. Assim que os paraquedistas protegeram o campo de aviação e limparam a pista, eles seguiram para o Victoria Hotel, o principal da cidade, onde impediram que os rebeldes Simbas matassem um grupo de 60 reféns. Nos dois dias seguintes, mais de 1.800 americanos e europeus foram evacuados, bem como cerca de 400 congoleses.

Freiras confraternizando com mercenários no Congo.

Não foi por outra razão que na época as imagens de freiras e padres sendo libertados por mercenários correram o mundo, tornando esses “Soldados da Fortuna” heróis mundiais e ampliando fortemente a mística envolvendo esses combatentes. No entanto, os Simbas executaram 20.000 reféns congoleses e 392 ocidentais, incluindo 268 belgas, entre estes vários missionários.

Cerca de 500 mercenários, muitos do Commando 10 de Jean Schramme, participaram da retomada de Stanleyville, em meio a combates muito duros. Nesse período, a lenda de Schramme afirmou-se durante esse período e o próprio general Mobutu concedeu-lhe uma medalha chamada Ordre de la Bravoure e oficialmente o comissionou como coronel do exército congolês.

Jean Schramme como oficial.

Se esse general, que um dia mudaria seu nome para Mobutu Sese Seko, soubesse o que Jean Schramme e seus homens iriam fazer tempos depois, teria enfiado a medalha e a patente pela goela abaixo do belga.

A Revolta dos “Soldados da Fortuna”

Em novembro de 1965, o general Mobutu tornou-se presidente do Congo e a partir de então a Bélgica ou a proteger seu regime contra rebeliões. Mobutu imediatamente começou a prender os ex-ministros do governo do Congo. Como ele não gostava dos mercenários brancos em seu país, dizem por conta de um comentário adverso sobre sua competência militar, de dezembro de 1966 a julho de 1967 o novo líder congolês reduziu o número de mercenários de 650 para 189.

Jean Schramme mostrando no semblante os sinais do cansaço da luta no Congo.

O mercenário francês Bob Denard alertou a Schramme que Mobutu planejava dissolver a última das unidades mercenárias, o que deu o ímpeto a um plano de restauração de Moise Tshombe no poder. Esse plano foi batizado como “Kerille” e planejado para se iniciar em julho.

Mauríce Quintin – Fonte – SOF.

É dessa época que surge o maior problema na vida de Jean Schramme – O “Caso Quintin”. O heroísmo abstrato da luta, caro aos amantes da epopeia maniqueísta, não resiste, porém, a derrapagens individuais concretas. Porque Jean Schramme, durante esse período conturbado foi acusado de assassinato.

Seis semanas antes do início programado do Plano Kerille, um empresário da cidade belga de Tournai, chamado Mauríce Quintin, visitou Schramme em seu posto em uma localidade chamada Yumbi. Ele disse que havia sido enviado por Tshombe em Madrid, Espanha, onde estava exilado, com ordens para iniciar o ataque contra o governo e o exército congolês antes do previsto. Quintin indicou que a unidade de Schramme tomaria a cidade de Goma no início de junho, um mês antes do planejado. Schramme não confiava em Quintin, o vê como um agente provocador enviado pelo general Mobutu e afirmou que seu relato era “falso”. Daí houve uma violenta discussão no refeitório dos oficiais em Yumbi e Schramme dá um tiro no peito de Quintin com um rifle. Depois ordena que um de seus comandados, Rodrigues, ou Rodrigue Roger, ou ainda Roger Rodrigue (um barman mercenário), desse um golpe de misericórdia com sua pistola e jogasse o cadáver no rio Lowe, que era infestado de crocodilos. Tempos depois Schramme afirmaria que Quintin era um “espião” (Revista Soldier of Fortune, edição de agosto de 1985, págs. 74 a 77). Episódio trágico, talvez de pouco peso no meio dos abusos cometidos nos estertores da descolonização, mas que, embora ainda estivesse longe de o suspeitar, perseguirá Schramme até ao fim da sua vida.

Tshombe morreu sem retornar ao Congo.

Em 30 de junho de 1967, quando Moise Tshombe retornava para o Congo do seu exílio na Espanha, o seu avião foi sequestrado – provavelmente por agentes da CIA e do serviço secreto francês – e seguiu para Argel, capital da Argélia, onde foi preso. Em 29 de junho de 1969, quase dois anos depois de sua captura, ele morreu em sua cela em circunstâncias suspeitas.

Para Schramme, a prisão de Tshombe foi um sinal de que algo deveria ser feito.

Mercenários em jipes, fazendo fogo com metralhadoras .50.

Na manhã de 3 de julho de 1967, o Commando 10 sob o comando de Schramme, junto com seus companheiros mercenários Bob Denard e Jerry Puren, lançaram ataques surpresa nas cidades de Stanleyville e Kindu.

Schramme liderou o ataque ao quartel do exército em Stanleyville, com uma força de onze mercenários brancos e cerca de 100 catangueses. O ataque matou centenas de soldados congoleses, levando os irados membros desse exército a executarem traiçoeiramente 31 mercenários que não estavam envolvidos na tentativa de golpe. O ataque que Schramme planejou foi descrito como “mal executado“, pois ele se comportou com excesso de confiança ao acreditar que sua pequena força seria suficiente para tomar Stanleyville. O certo é que os congoleses reagiram e, em uma semana, Schramme foi forçado a se retirar dessa cidade.

Coluna motorizada de mercenários.

Os mercenários então planejaram se mudar para o sul e se unir aos exilados de Katanga que estavam em Angola. Essas ações ficaram conhecidas como A Revolta dos Mercenários. Jack Malloch, um piloto rodesiano e traficante de armas, apoiou as forças de Schramme com voos transportando mantimentos, armas e munições.

Imagens reais de combates de mercenários no Congo .

Em 10 de agosto, suas tropas conquistaram a cidade fronteiriça de Bukavu e cresceram consideravelmente em número. Essa cidade era uma espécie de “Hollywood africana”, localizada à beira de um lago infinitamente azul. Casas suntuosas, cercadas por parques de estilo francês, serviram de acampamento para mercenários brancos e gendarmes catangueses. Caves cheias de vinhos, champanhe e uísque, armazéns cheios de provisões, quatro bancos com cofres bem cheios suprem as necessidades da mordomia. Talvez por isso Schramme conseguiu segurar Bukavu por sete semanas e derrotou todas as tropas do exército congolês enviadas para retomar a cidade.

Os militares congoleses sofreram com a falta de artilharia eficaz e estavam frustrados e desmotivados com suas perdas contínuas. Algumas das missões executadas por sua força aérea foram tão ineficazes, que acabaram atacando seus próprios homens em vez dos de Schramme. A escassez de munição foi um grande problema para o exército congolês, mas as forças de Schramme sofriam com uma escassez ainda maior de munição, pois o esperado apoio do exterior não chegou.

Mercenário ensinando táticas de combate.

Schramme então pediu que o presidente Mobutu entrasse em negociações com ele e exigiu que o regime democrático fosse restabelecido com Tshombe como parte do novo gabinete. Mobutu obviamente recusou, afirmando que não se sentaria e falaria com os “assassinos brancos“. Schramme, em troca, zombou e disse que “mostramos que o Exército Nacional Congolês é incapaz de nos derrotar” e ameaçou marchar sobre Kinshasa, a capital do Congo.

No mesmo período que Jean Schramme deixava a África, estourou na Nigéria conflito separatista da região de Biafra, onde vários mercenários europeus estiveram presentes. Na foto soldados biafrenses transpõem um riacho transportando op corpo de um mercenário abatido pelos nigerianos.

Por mais irável que fosse a posição de Schramme em Bukavu, ele não poderia resistir indefinidamente. Bob Denard, agora em Angola, reuniu uma força e tentou invadir o Congo para ajudar seus companheiros mercenários de armas, apenas para ser repelido por ataques aéreos. Mobutu então reuniu mais de 15.000 militares para eventualmente dominar o belga e o seu “Batalhão Leopardo”. Finalmente, em 5 de novembro de 1967, o exército congolês conseguiu derrotar Schramme, cujas tropas sobreviventes, 129 mercenários e 2.500 catangueses, atravessam a fronteira de Ruanda. 

Schramme e seus comandados entrando em Ruanda em novembro de 1967.

A Ditadura Militar Brasileira de Olho no Mercenário Belga

Schramme finalmente trocou a África pela Europa em 1968, foi quando escreveu um livro sobre suas experiências no Congo — Le Bataillon Leopard — e manteve-se compreensivelmente quieto. Mas logo foi preso na Bélgica pelo assassinato de Mauríce Quintin. Ele defendeu suas ações como as de uma conduta normal nas circunstâncias da guerra, citando que “Era meu dever impedi-lo de colocar seu plano em ação, então atirei nele e ordenei acabar com ele e despejar seu corpo no rio Lowa”.

Anos depois ele comentou que a Bélgica o libertou após 44 dias de confinamento, devolveu o seu aporte e o dossiê judicial onde constava seu caso foi classificado como ultra secreto. Com autorização do governo, Schramme deixou a Bélgica. Outras fontes informam que enquanto estava sob fiança e ainda aguardando sua sentença, Schramme decidiu sair do país em 1969. Já o governo belga, através do Ministério de Assuntos Exteriores, comunicou que ele havia deixado o país e “provavelmente estaria tentando voltar à África”.

Jean Schramme na Europa após seus dias na África.

Os belgas sabiam da capacidade de liderança de Schramme, seu poder de arregimentar homens, sua larga experiência em combate e disposição para luta. Para os belgas certamente seria uma baita fonte de dor de cabeça se Schramme abrisse uma nova frente de combate no Congo, que iria gerar problemas aos escorchantes e corruptos negócios com mineração que esses europeus mantinham na sua antiga colônia.

De toda maneira, ao sair do seu país natal, Schramme decidiu ir para Portugal, mas antes esteve em Madri, Espanha, onde deu uma entrevista à agência espanhola EFE e comentou sobre o seu futuro. Schramme se defendeu das acusações de assassinato de Quintin, afirmou que “não queria mais voltar a África” e informou que desejava “montar uma granja e viver no Brasil”. Não demorou e essa mesma entrevista foi reproduzida no jornal carioca O Globo (28/07/1969).

Só que um mês antes dessa publicação, os órgãos de informações e segurança da Ditadura Militar no Brasil já tinham ligado todas as antenas e abriram todos os olhos sobre a figura de Jean Schramme, conforme se pode ver no documento abaixo, produzido em 24 de junho de 1969 pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil, com informações readas pelo governo belga, que solicitaram às autoridades brasileiras informar se o antigo mercenário havia entrado no nosso país. Os militares daqui prontamente buscaram atender o pedido dos europeus.

Em um documento emitido em 27 de junho pela Quarta Zona Aérea da Força Aérea Brasileira (FAB), Schramme era enquadrado como um tendo uma pretensa periculosidade para “Subversão” e “Sabotagem/terrorismo”, além de haver um apontamento para “Assuntos especiais”, que em canto nenhum encontrei uma explicação sobre o que seria isso. O certo é que esse documento foi transferido para todas as unidades subordinadas à Quarta Zona Aérea e cópias foram enviadas ao Exército, Marinha e ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo. No mesmo dia foi emitido pela Primeira Zona Aérea da FAB um documento considerado “Confidencial”, onde caso fosse confirmado a presença de Schramme no Brasil, as autoridades deveriam “prendê-lo incomunicável”.

Realmente as forças de segurança brasileiras estavam com muita vontade de colocar as mãos no belga. Mas qual o interesse do nosso governo em Schramme?

Fica difícil pensar que os milicos e os burocratas do governo brasileiro imaginavam que esse calejado combatente iria negociar seus “serviços profissionais” com os militantes de esquerda que buscavam “lutar contra o Regime Militar” através da luta armada e implantar a “Ditadura do Proletariado”.

A capacidade de liderança e experiência de combate de Jean Schramme alertou o governo e os militares brasileiros.

Acredito que o governo brasileiro buscava prender Schramme para utilizá-lo como peça de propaganda e mostrar ao mundo que eles tinham feito “algo de bom” ao capturar o “malvado mercenário que tanto fez sofrer os congoleses e matou um compatriota”. Era o tipo de notícia que na Europa faria um ótimo contraponto às várias manchetes de torturas e desaparecimentos dos opositores do brutal regime militar brasileiro.

Só que essa estratégia, se é que ela existiu, não funcionou, pois o antigo mercenário sumiu. Eu não sei como, mas no período mais terrível da Ditadura Militar, o belga Jean Schramme conseguiu entrar no Brasil e desaparecer das vistas dos agentes consulares do seu país e dos “secretas” da FAB, do Exército, da Marinha e da Polícia Federal.

Viver em Paz

Ninguém acreditou em Schramme, mas desde o começo ele falou a verdade – Não queria voltar à África, queria viver no Brasil e montar uma granja – E assim ele fez!

Avenida em Rondonópolis – Fonte – primeirahora.com

Segundo documentos existentes no Ministério da Justiça, Jean Schramme foi para a cidade de Rondonópolis, no estado do Mato Grosso, a 212 km da capital Cuiabá. No começo da década de 1970, cerca de 63.000 pessoas moravam em Rondonópolis, que cada vez mais se consolidava como uma das principais fronteiras agrícolas do Brasil, onde não faltava espaço para quem desejasse trabalhar e desenvolver algum negócio nessa área. 

Rondonópolis na época em que Schramme chegou na região – Fonte – primeirahora.com

Consta que Schramme trabalhou como técnico em agronomia em uma fazenda chamada Três Irmãos, localizada no Km 30 da rodovia que liga Rondonópolis a Campo Grande e cujos proprietários eram conhecidos como “Irmãos Araújo”. Havia também a informação que o belga era proprietário da “Imobiliária Rondonópolis”, localizado na Avenida Fernando Corrêa da Costa e possuía em sociedade uma propriedade rural denominada “São Paulo”, no município de Itiquira, próximo a Rondonópolis, onde trabalhava com o cultivo de arroz e criava gado. Segundo jornais de Cuiabá (Jornal do Dia, 24/10/1984, pág. 8 e 25/10/1984, pág. 3), Schramme e foi um dos sócios fundadores da Associação dos Produtores Rurais do Sul de Mato Grosso (APRUSMAT). Descobri que o antigo combatente  havia adquirido no Loteamento  Chácara Beira Rio, na rua Quatro, uma  chácara a qual deu o nome de “Repouso do Leopardo”. Comentaram também que “se não fosse pelo seu sotaque” ninguém pensaria que aquele morador de Rondonópolis era belga e ele “nunca ocultou sua condição de ex-oficial”. 

Outra notícia interessante era que Schramme havia começado um relacionamento com uma jovem mato-grossense da cidade de Tesouro, que tinha 18 anos em 1974, se chamava Edith da Silva Pinheiro e dessa união nasceram três filhos. Edith era filha de Abner Araújo, um dos donos da propriedade Três Irmãos. 

Paisagem normal no Mato Grosso nos primeiros anos da década de 1970.

Trabalhando no que gostava, tendo uma companheira, filhos, vivendo em uma terra produtiva, boa e acima de tudo em paz, Jean Schramme talvez tenha pensado que o mundo e o Sistema teriam esquecido dele. Mas o Sistema, seja lá onde e como atua, jamais esquece de alguém que abalou as suas estruturas e lhe gerou problemas. Em finais de 1974, ou no ano seguinte, o Sistema voltou a focar em Jean Schramme. 

A coisa toda aparentemente começou com uma plantação de arroz que o belga implantou na cidade de Pedro Juan Caballero, no vizinho Paraguai, que fazia fronteira com o Mato Grosso antes da divisão territorial de 1977. Em uma ocasião, Schramme foi à embaixada do seu país em Asunción, capital paraguaia, para regularizar seu aporte. Se saiu de lá com o aporte novo eu não sei, mas documentos do Ministério da Justiça mostram que o nosso Ministério das Relações Exteriores recebeu dos belgas a informação que o antigo mercenário continuava por aqui. 

Para o Reino da Bélgica, ao menos naquele momento, seu famoso súdito não estava lhe causando problemas e nem eles nada pediram aos brasileiros. Mas para o governo brasileiro a informação era importante, pois a situação diplomática na África era especial. 

Nessa época, a presença de um antigo mercenário europeu que lutou no Congo e enfrentou o ditador Mobutu poderia ser um gerador de problemas. Em termos de política externa o governo do general Ernesto Geisel, que governou o Brasil de 1974 a 1979, procurou ampliar a presença do nosso país na África através do trabalho do Ministro das relações Exteriores Antônio Francisco Azeredo da Silveira Geisel, que desenvolveu com sucesso uma orientação denominada “Pragmatismo responsável“. O governo brasileiro mostrou então uma postura favorável em relação à descolonização na África, onde reconheceu a independência de Guiné-Bissau, de Angola e de Moçambique, além de apoiar o ingresso dessas ex-colônias portuguesas na ONU e abrir embaixadas em várias ex-colônias europeias na África.

Documento do Ministério da Justiça de 1981 que mostra a situação de Schramme no Brasil.

Certamente os barnabés do Ministério das Relações Exteriores pensaram que não ficava muito bem que os países africanos soubessem que o mítico Jean “Black Jack” Schramme vivia tranquilamente no interior do Brasil. O problema para esses funcionários públicos era que o belga havia casado com uma brasileira, tinha três filhos para sustentar, negócios legais no país, não havia praticado nenhum crime em nosso território e, diante dessas situações, a lei impedia sua deportação. Mesmo assim, conforme é possível ver no memorando abaixo, o pessoal do Ministério das Relações Exteriores queria mesmo era ver Schramme bem longe do Brasil. 

O Sistema Não Esquece 

O tempo foi ando e Schramme continuou no Brasil. Mas, como escrevi anteriormente, o tal do Sistema não esquece jamais e mais uma vez ele veio atrás de Jean Schramme. 

No ano de 1984 o Brasil se encaminha para a normalidade democrática, mas em uma quarta-feira, 17 de outubro de 1984, um grupo de policiais invadiu a casa de Schramme e o levou preso para a sede do Departamento da Polícia Federal, em Brasília. Notícias da época informaram que a prisão foi tão abrupta, que o belga nem pode “se preparar para acompanhar os agentes”. 

A princípio os jornais noticiaram que o ditador Mobutu Sese Seko, que por essa época tinha mudado o nome do seu país para Zaire, era quem estava pedindo a extradição de Schramme. Mas os federais explicaram que estavam cumprindo determinações de Ibrahim Abi-Ackel, então Ministro da Justiça, e a bronca tinha relação com o “Caso Quintin”, onde seu país natal pedia sua extradição para realização de um julgamento.

Somente quase dois meses depois, em 12 de dezembro, Jean Schramme foi interrogado pelo Ministro Aldir Guimarães arinho, do Supremo Tribunal Federal (STF), sobre a sua situação. Segundo o Jornal do Brasil (1° Caderno, pág. 12, 13/12/1984), Schramme confessou abertamente que matou Quintin, mas disse que o fato se deu para “evitar riscos” para si e sua tropa. Com base no seu depoimento o Procurador-Geral da República Inocêncio Mártires Coelho, iria dar um parecer sobre a permanência, ou não, do belga no Brasil. Então o Ministro Aldir arinho realizaria uma análise sobre o caso. Mas veio o recesso de fim de ano do STF e o caso do belga ficou para ser finalizado em fevereiro de 1985. Enquanto isso, o antigo mercenário iria aguardar a decisão em uma cela do Departamento da Polícia Federal. 

Capa da revista Soldier of Fortune, edição de agosto de 1985, onde foi publicada a entrevista de Schramme quando estava detido na Polícia Federal em Brasília.

Desde que ficou preso em Brasília, Schramme recusou pedidos para falar com a Associated Press (AP) e a United Press International (UPI), mas deu uma entrevista para a revista americana Soldier of Fortune, ou SOF. Fundada em 1975 por um antigo boina verde que serviu na Guerra do Vietnã, essa revista alcançou muito sucesso editorial como um informativo dedicado a reportagens sobre conflitos em todo o mundo e sobre para trabalhos mercenários, além de divulgação de materiais bélicos. 

Fumando muito Schramme comentou ao jornalista muito sobre seu período no Congo e as crises ocorridas naquele país. Ao ser perguntado se odiava a Bélgica, ele disse “não”, mas acrescentou: “Eu odeio os ministros belgas que jogaram um repugnante papel duplo com o antigo Congo Belga. E eu odeio alguns belgas magistrados da corte que após todos esses longos anos ainda querem a minha cabeça…” 

Foto de Jean Schramme publicada na revista Soldier of Fortune, edição de agosto de 1985.

Schramme continuou afirmando que não fez nada errado em relação à morte de Mauríce Quintin – “O que eu fiz foi certo. E eu estava mesmo totalmente autorizado a fazê-lo. Mobutu havia me dado poderes absolutos. E eu estava, naquele momento em particular, oficialmente como um coronel ativo no regular Armée Nationale Congolaise.” E continuou – “Minha libertação da prisão na Bélgica e a devolução do meu aporte era uma espécie de compromisso entre o Ministério Belga do Exterior e eu. Me foi dada permissão para sair do país depois que prometi manter minha boca fechada sobre os negócios do Congo. Muitas pessoas de alto escalão em Bruxelas sabiam muito bem quantos documentos incriminatórios eu tinha em minha posse sobre o papel secreto da Bélgica nas crises do Congo”.

No final da entrevista comentou “Sim, sinto muita falta da minha esposa e dos meus filhos. Mas não me arrependo”. 

No dia 29 de maio de 1985 o Supremo Tribunal Federal negou por unanimidade a extradição de Jean Schramme. O Ministro Aldir arinho, relator do caso, sustentou a incompetência do governo belga para requerer a extradição, alegando que o delito foi praticado no Congo. 

Schramme deixou sua cela no Departamento da Polícia Federal, depois de sete longos meses de cadeia, e voltou para sua esposa e filhos em Rondonópolis.

Enquanto o belga vivia tranquilo no Brasil, no dia 17 de abril de 1986 um tribunal na sua terra natal condenou-o à revelia a vinte anos de trabalhos forçados. Todos os pedidos de extradição foram recusados ​​pelas autoridades brasileiras. Afinal, Schramme adquiriu dupla nacionalidade por meio de seu casamento com uma brasileira e o Brasil não extradita seus nacionais. Dois anos depois, em 14 de dezembro de 1988, Jean Schramme morreu de forma totalmente inesperada, aos 59 anos, em sua fazenda em Rondonópolis. 

A última notícia que consegui sobre a vida do antigo mercenário em Rondonópolis foi que o vereador Orivaldo Alves Moreira, conhecido como Kaza Grande, propôs em 21 de março de 2023 a alteração da rua Quatro da Chácara Beira Rio para “Rua Coronel Jean Schramme”.

UM HERÓI POTIGUAR DA FEB – A HISTÓRIA DO SARGENTO RODOVAL CABRAL DA TRINDADE E O COMBATE DE SAN QUIRICO

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Agradecimento especial ao escritor e pesquisador Durval Lourenço Pereira pela ajuda com informações adicionais para esse texto.

Sabemos que seis potiguares morreram na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, integrando a Força Expedicionária Brasileira, a famosa FEB. Eles eram os soldados Belarmino Ferreira da Silva, José Varela, Manoel Lino de Paiva, Cosme Fontes Lira e os sargentos Wilson Viana Barbosa e Rodoval Cabral da Trindade.

Mas quando buscamos maiores informações sobre cada um desses participantes do conflito, os resultados são bem limitados, com lacunas bastante amplas para compreender suas histórias. Um exemplo é o caso do sargento Rodoval Cabral da Trindade.

Rodoval Cabral da Trindade.

Basicamente temos as informações que ele era um sargento do Exército Brasileiro, que havia nascido na cidade de Ceará-Mirim e que morreu de um acidente de jipe no dia 6 de junho de 1945, após o final da Guerra na Europa.

Mesmo com dificuldades, conseguimos mais detalhes sobre a vida desse homem e a sua participação nesse conflito. Elas mostram interessantes informações do envolvimento de um potiguar na Segunda Guerra e aprofunda o entendimento sobre aqueles que partiram para lutar na Europa.

Tiro de Guerra 18

Rodoval era filho do funcionário público João Cândido da Trindade, casado com Emília Cabral da Trindade. Tudo indica que o casal era natural da cidade de Ceará-Mirim, onde seu filho Rodoval nasceu em 1909. Ele era um dos nove filhos do casal, sendo seis homens e três mulheres. Não sabemos a data, mas, provavelmente, em algum ano da década de 1920 a família Cabral da Trindade se mudou de Ceará-Mirim para Natal, onde moravam na Rua Laranjeira, número 26, na Cidade Alta, perto da Igreja do Galo.[1]  

A antiga e simples residência da família Cabral da Trindade em Natal.

Tudo aponta que essa família era muito católica, pois todos os anos, sempre no mês de abril, Seu João Cândido participava da tradicional e secular Procissão do Encontro. Essa tendência foi seguida pelo seu filho Rodoval, que participou da Congregação Mariana de Moços, tradicional organização católica da cidade. E Seu João tinha de ter mesmo muita fé, pois para sustentar a esposa e nove filhos só possuía os minguados salários do cargo de porteiro do Serviço de Estatística do Estado do Rio Grande do Norte.[2]

Mesmo com as limitações, sabemos também que o jovem Rodoval foi membro do tradicional Centro Náutico e remava com seus amigos no tranquilo e, na época, limpo rio Potengi, certamente competindo com os adversários do Sport Club de Remo.

Outra atividade desse jovem em Natal, que certamente marcou sua vida, foi participar do Tiro de Guerra 18, ou T. G. 18.

Rodoval Cabral da Trindade – Foto gentilmente cedida pelo escritor e pesquisador Durval Lourenço Pereira.

Essa era uma pequena unidade do Exército Brasileiro mantida em parceria com o município de Natal e responsável pela formação de reservistas de segunda categoria do serviço militar. Fundado em 1908, tinha sede no bairro do Alecrim, sendo normalmente comandada por um sargento, ou um tenente, com turmas que variavam anualmente de 35 a 45 rapazes. Esse pessoal fazia muita ordem unida, longas marchas, treinos de tiro ao alvo e desfilava garbosamente na Avenida Deodoro durante as comemorações do 7 de setembro. Entre os participantes ilustres do Tiro de Guerra 18 consta o maestro Waldemar de Almeida [3], que lá esteve na segunda metade da década de 1920. Outro que recebeu a sua carteira de reservista de segunda categoria foi o advogado, professor e político mossoroense Otto de Brito Guerra. Esse último foi contemporâneo do jovem Rodoval Cabral da Trindade quando esteve nessa instituição em 1928. Consta que Otto Guerra participou da marcha de 24 quilômetros, com fuzil no ombro e tudo mais.  

O Tiro de Guerra 18 era um lugar onde o esporte era intensamente praticado e incentivado.[4] Um dos feitos esportivos mais marcantes foi ter participado e vencido a primeira competição pública de basquete realizada no Rio Grande do Norte.

Arquibancada coberta do “Stadium” Juvenal Lamartine, onde aconteceu a primeira disputa pública de basquete no Rio Grande do Norte em 1931 e o Tito de Guerra 18, onde Rodoval Cabral serviu ganhou a disputa com o 29º Batalhão de Caçadores.

O fato ocorreu em 1931, em pleno estádio de futebol Juvenal Lamartine, onde improvisaram uma quadra de basquete não sei de que jeito e o Tiro de Guerra 18 venceu a poderosa equipe do 29º Batalhão de Caçadores do Exército Brasileiro. Digo poderosa porque o pessoal do 29º treinava muito e tinha até mesmo à disposição uma quadra de basquete. Mesmo sendo de barro batido essa quadra possuía dimensões oficiais e ficava onde atualmente se encontra o SESC da Cidade Alta. A equipe do 18 era formada, entre titulares e reservas, por Humberto Nesi, Luiz Tavares de Souza, Alberto Gentile, Zacarias Cunha, José Maia Mousinho e Miguel Ferreira da Silva. Esse pessoal era treinado pelo tenente Francisco Antônio do Nascimento, o conhecido “Chicó”, por anos comandante do Tiro de Guerra, e pelo soldado Severino Estevam dos Santos, o “Jaú”. Todo esse pessoal foi contemporâneo de Rodoval.[5]

Caminho da Guerra

Após deixar o Tiro de Guerra 18 temos a informação que Rodoval Cabral da Trindade ou a ser aluno da Escola Técnica de Comércio do professor Ulisses de Góis, que na década de 1930 ficava na Rua João Pessoa, no Centro de Natal [6]. Rodoval se preparava para exercer a função de guarda-livros, ou seja, escriturar e manter em boa ordem os livros mercantis das empresas comerciais. O que hoje chamamos de contadores.

Bairro da Ribeira, na bucólica Natal das primeiras décadas do século XX. : Fonte – https://www.brechando.com/2017/09/esta-praca-parece-do-interior-do-estado-mas-fica-em-natal/

Naquela época esse era o típico trabalho desejado pelas famílias de classe média baixa de Natal. A maior parte delas formada por funcionários públicos de baixo escalão, que recebiam minguados rendimentos e que através de favores políticos entravam aos montes no serviço público estadual.

Certamente pelo tempo e pelas experiências vividas no Tiro de Guerra 18, o jovem Rodoval largou a Escola de Comércio no último ano e se alistou voluntariamente no Exército Brasileiro como soldado. Provavelmente essa sua deliberação não deve ter sido tomada sem rupturas na sua família, pois Rodoval acabava de tomar a decisão de descer voluntariamente os poucos degraus que a sua condição social lhe proporcionava naquela provinciana Natal de pouco menos de 40.000 habitantes e uma elite extremamente preconceituosa e abertamente racista.

Foto de um soldado da Forças Pública, nesse caso de Pernambuco. Nas décadas de 1920 e 1930 os uniformes militares dessas instituições militares estaduais pouco diferiam, sendo sempre na predominante cor cáqui. na imagem vemos o Soldado Heleno Tavares de Freitas – Fonte – Valdir José Nogueira de Moura.

Naqueles dias para ter prestígio como membro das Forças Armadas só sendo oficial, algo para poucos. Já ser um soldado no Exército Brasileiro não era uma situação considerada “desrespeitosa” pela sociedade, mas era o tipo de profissão que, no entendimento geral, só entrava quem não tinha maiores perspectivas, ou por pura vocação. Mas estava um patamar acima da pessoa que era soldado na Força Pública, atual Polícia Militar.

No caso de Rodoval eu acho que foi vocação mesmo, pois ser um guarda-livros em Natal, mesmo com perspectivas salariais baixas, poderia ser um caminho para conseguir através de apadrinhamento político uma sinecura em alguma repartição pública e ter a tão sonhada estabilidade.

1939 – 6º Regimento de Infantaria de Caçapava. Foto: Iris, Créditos: Nelson de Luccas – Fonte – Caçapava/SP História, Fotos e Caçapavenses

A próxima notícia que temos sobre esse potiguar é que ele foi servir bem longe do Rio Grande do Norte. Seguiu para São Paulo, onde esteve aquartelado em unidades militares existentes nas cidades de Jundiaí, Taubaté e Caçapava. Nessa parte do Brasil ele se casou com a jovem Araci Marques da Trindade, mas não tiveram filhos.[7]

Em 1941 encontramos Rodoval servindo no 6º Regimento de Infantaria de Caçapava, com a extinta patente de “primeiro cabo”, sendo promovido em 25 de julho daquele ano ao posto de terceiro sargento, conforme está descrito na notificação existente no Boletim Interno número 171 do Exército Brasileiro.[8]

Nesse meio tempo nuvens negras surgiram no horizonte do Brasil, com o intenso rufar dos tambores de guerra ecoando na Europa e na Ásia. Em 22 de agosto de 1942, após a declaração de guerra do Brasil à Alemanha Nazista e à Itália Fascista, o país entra em mobilização total.

Militares norte-americanos em Parnamirim Field – Fonte – Getty Images

Não sei se através de jornais, ou por contatos com a sua família, Rodoval soube que na cidade onde seus parentes viviam e onde ou grande parte de sua juventude, estava ocorrendo uma intensa mudança. Milhares de militares dos Estados Unidos e do sul do Brasil ocupavam a capital potiguar. Nos céus aeronaves de vários tipos partiam e chegavam diariamente, aproveitando a privilegiada posição estratégica do Rio Grande do Norte em relação ao Atlântico Sul e a costa ocidental africana.

Através de outras pesquisas realizadas pelo autor, descobri que não era raro a transferência para Natal de militares nascidos no Rio Grande do Norte e que se encontravam servindo em outras regiões do país. Isso certamente se destinava a facilitar o entrosamento dos muitos militares brasileiros que desembarcavam em Natal para reforçar as defesas na região. Mas essa situação não aconteceu com o sargento Rodoval.

No começo de 1943 ele recebeu ordens de se apresentar no Quartel General do Exército no Rio de Janeiro, para participar do C. R A. S, sigla do Curso Regional de Aperfeiçoamento de Sargentos.[9] Dois meses depois, Rodoval foi promovido a segundo sargento, junto com outros 21 colegas do 6º Regimento de Infantaria.[10] Em agosto ele concluiu o C. R. A. S. e aguardou novas ordens.[11]

Símbolo da FEB.

Certamente o sargento Rodoval e seus companheiros sentiam que se aproximava a hora de pegar em armas e partir para o front de combate, onde comandariam grupos de soldados destinados a matar o maior número de inimigos, pois era para nisso que treinavam arduamente. Logo o governo brasileiro publicou a Portaria Ministerial nº 4.744, que criava a Força Expedicionária Brasileira, que se tornaria a primeira e única força militar formada na América Latina a lutar na Europa. Rodoval recebeu o número 2-G-87320 para sua identidade militar.

No General Mann

Quase um ano depois, em uma quinta-feira, 29 de junho de 1944, o sargento Rodoval e centenas de companheiros partiram da Vila Militar, na zona oeste do Rio, em um trem da Estrada de Ferro Central do Brasil até o cais da Praça Mauá. Ali começou o embarque dos soldados da FEB no grande navio USS General William Abram Mann (AP-112), ou simplesmente General Mann, como ficou mais conhecido entre nossos soldados.

Força Expedicionária Brasileira embarcando no Rio de Janeiro. Destino – A frente italiana.

Aquela grande nave da Marinha dos Estados Unidos (US Navy) estava atracada no Píer 10 e era enorme. Pesava mais de 17.000 toneladas, tinha quase 200 metros de comprimento, navegava com a velocidade máxima de 19 nós (35 km/h) e podia transportar 5.000 homens destinados ao combate em qualquer parte do Globo. A grande nave era comandada pelo capitão Paul Sylvester Maguire.

Ao redor do porto havia muita segurança e isolamento. Gente de toda parte do país, com seus sotaques, cores, trejeitos e maneiras próprias entraram na grande nave carregando sacos de lona. O general Mascarenhas de Moraes, o comandante da FEB, embarcou para o exterior junto com 5.074 homens que formavam o 1º Escalão de combatentes.

Navio transporte de tropas USS General W. A. Mann. Em 1944 ele levou os primeiros combatentes da FEB para a Itália.

Mascarenhas de Morais listou as primeiras unidades da FEB transportadas no General Mann – Escalão Avançado do Quartel General da 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária (1ª DIE), Estado Maior da Infantaria Divisionária da 1ª DIE, 6º Regimento de Infantaria, 4ª Companhia e 1º Pelotão de Metralhadoras do 11º Regimento de Infantaria, II Grupo do 1º Regimento de Obuses Auto Rebocados, 1ª Companhia do 9º Batalhão de Engenharia, uma parte da Seção de Suprimento e Manutenção do 9º Batalhão de Engenharia, 1º Pelotão do Esquadrão de Reconhecimento, Seção de Exploração e elementos da Seção de Comando da 1ª Companhia de Transmissões, 1ª Companhia de Evacuação, o Pelotão de Tratamento e elementos da Seção de Comando, todos do 1º Batalhão de Saúde, Companhia de Manutenção, Pelotão de Polícia Militar, um pelotão de viaturas, uma Seção do Pelotão de Serviços e elementos da Seção de Comando da 1ª Companhia de Intendência, o Correio Regulador, o Depósito de Intendência, a Pagadoria Fixa, os jornalistas que iriam trabalhar como correspondentes de guerra, elementos do Hospital Primário, Serviço de Justiça e o pessoal do Banco do Brasil.[12]

Militar brasileiro de patente elevada ando em ordem a guarda de Fuzileiros navais (Marines) a bordo do General Mann. Eram estes fuzileiros que mantinha a ordem a bordo.

Não sabemos quantos, mas temos a certeza que o sargento Rodoval Cabral da Trindade não era o único potiguar a bordo do General Mann. Outro Norte-rio-grandense era o soldado João Alves Coelho, nascido em 1923 e que em 1940 havia seguido para o Rio de Janeiro com o intuito de aprender uma profissão para melhorar a sua vida e a de sua família. Ele estudou mecânica na então Capital Federal, quando foi convocado para a guerra como integrante da FEB. Foi incorporado na Companhia de Manutenção, onde praticou extensamente a profissão que aprendeu no Rio. Não sabemos se o sargento Rodoval e o soldado Coelho se conheceram.[13]

No domingo, 2 de julho, às cinco e quarenta e três da manhã, o General Mann desatracou e partiu. Nos próximos quatorze dias a nave seguiria pelo Oceano Atlântico e pelo Mar Mediterrâneo a velocidade média de 17 nós e sempre ziguezagueando para evitar ataques de submarinos. Inicialmente essa nave americana foi escoltada pelos destroieres brasileiros Marcílio Dias, Greenhalgh e Mariz e Barros.[14]

A chegada no Porto de Nápoles, sul da Itália, ocorreu no dia 16 de julho, às 12:20 horas, também num domingo. No cais havia um destacamento norte-americano de quarenta e cinco homens e uma banda para as honras militares.

A guerra para a FEB estava começando!

Um Líder Controverso

Desembarque da FEB em Nápoles em 1944.

Após o desembarque em Nápoles, a FEB ficou acampada no subúrbio da cidade, na região de Agnaro/Bagnoli, perto do mar. O interessante foi que eles acamparam dentro da cratera do extinto vulcão Astroni, cujas bordas possuem 70 metros de altura e atualmente é uma área de preservação. Nessa cratera a temperatura variou bastante, com picos de elevação durante o dia de 30 graus à sombra e a noite descendo para terríveis 10 graus. O contingente brasileiro logo se mudou desse local complicado e ficou aguardando receber seus equipamentos de combate e suas viaturas. 

Veículos da FEB prontos para serem entregues em 1944.

Um dia, em 19 de agosto, enquanto recebeiam seus apetrechos e mais de 220 veículos de todos os tipos, quem deu uma adinha para dar um alô a brasileirada foi ninguém menos que Sir Winston Churchill, primeiro ministro do Reino Unido e um dos principais líderes Aliados. A ilustre figura estava inspecionando as tropas do 5º Exército dos Estados Unidos (US Army), sob o comando do tenente-general Mark Clark. O contingente da FEB fazia parte do 5º Exército e o general Mascarenhas de Morais respondia a Clark, um militar tido como controverso, planejador débil, líder fraco, além de ser considerado um “caçador de publicidade” e com extrema aversão aos seus aliados ingleses.

Mas o fato que pesou mais negativamente na biografia de Mark Clark durante a Segunda Guerra ocorreu em junho de 1944, durante a chamada Operação Diadem (Diadema).

O mais alto na foto é Mark Clark e o mais baixo Mascarenhas de Moraes.

Comandada pelo general inglês Sir Harold Alexander, líder do 8º Exército Britânico, essa operação consistia em um cerco aos alemães, com o objetivo de fazer com que as forças inimigas ficassem amarradas na Itália e não pudessem ser redistribuídas para a França. O problema foi que para muitos Clark não comandou corretamente o seu 5º Exército, o que permitiu que o 10º Exército Alemão escae do cerco. Para piorar a situação pesa sobre Mark Clark a acusação de que ele priorizou tomar Roma (o que realizou com relativa facilidade) em uma tentativa de ganhar a glória marcial imortal. Consta que ele desejava ser o primeiro general a “tomar Roma pelo sul em 1.500 anos”. Se assim foi, Clark recebeu apenas um dia de publicidade por dominar a “Cidade Eterna”, pois após a sua conquista ocorreu o grande desembarque Aliado na França, o famoso “Dia D”, e sua glória foi totalmente ofuscada.[15]

Para os soldados da FEB essas tricas e futricas de altos comandantes pouco importava. Importava mesmo era quando entrariam em combate e, principalmente, fazer tudo para voltarem vivos para o Brasil.

Encarando a Linha Gótica

Na noite de 15 para 16 de setembro o contingente do 6º Regimento de Infantaria, comandado pelo coronel João de Segadas Viana substituiu na frente de combate o 434th Antiaircraft Artillery Automatic Weapons Battalion (434th AAA-AW Bn), ou 434º Batalhão de Armas Automáticas de Artilharia Antiaérea, que foi convertido em batalhão de infantaria. Ficou sob a responsabilidade dos brasileiros uma frente de combate de uns 4.500 a 4.800 metros.

Símbolo da 232a Infantariedivision der Wehrmacht, ou 232º Divisão de Infantaria do exército nazista.

Os pessoal da FEB naquele setor eram inferiores a 900 homens e seus comandantes sabiam que a sua frente estavam elementos da 232a Infantariedivision der Wehrmacht, ou a 232º Divisão de Infantaria do exército nazista. Unidade comandada pelo generalleutnant (tenente-general) Eccard Freiherr von Gablenz, um veterano das campanhas da Polônia, França e da invasão da União Soviética, onde combateu nesta última área de 1941 a 43 e ele escapou por pouco do cerco realizado pelos soviéticos na Batalha de Stalingrado. Von Gablenz estava comandando a 232 na Itália desde o primeiro semestre de 1944 e junto a essa divisão estavam unidades militares formada por italianos favoráveis aos alemães.

O círculo negro mostra a área de atuação da FEB nos primeiros meses de combate na Itália.

A partir desse ponto o avanço brasileiro colidiu com um setor da chamada Linha Gótica, a última linha de defesa inimiga na Itália.[16]

Em agosto de 1944 as forças alemãs estavam há mais de dois anos travando uma guerra defensiva e se retirando para o norte da Itália. Foi quando decidiram criar a linha defensiva chamada Gótica, que atravessava o país de um lado ao outro, desde o mar da Ligúria até o mar Adriático, aproveitando o terreno montanhoso e assim deter seus inimigos. Os alemães esperavam que a defesa da cordilheira dos Apeninos negasse aos Aliados a vantagem tática que significaria a conquista do Vale do Pó, pois ali ficavam as cidades de Bolonha, Modena e Milão, além das ricas terras agrícolas que forneciam grande parte dos alimentos. Para reforçar a Linha Gótica os alemães construíram muitos baluartes de defesa.

Foto ilustrativa que mostra o terreno de luta da FEB, nesse caso na região de Montese.

Os brasileiros do 6º Regimento de Infantaria atuavam intensamente a linha de frente, onde seus homens foram gradativamente ganhando experiência. Sofriam e infligiam baixas, mas a FEB ganhava terreno. Em 16 de setembro os brasileiros conquistaram as localidades de Massarosa e no dia seguinte Camaiori.

No início de outubro, com o frio aumentando pela iminente chegada do inverno, o 6º de Infantaria foi deslocado para o vale do rio Serchio, ao norte da cidade de Lucca. Nessa área as operações começaram no dia 6 e aos soldados da FEB foi ordenado lutar e ocupar pequenas comunidades e elevações, que eram chamadas “Cotas” e recebiam um número. O 6º Regimento de Infantaria atacou um setor defendido pelos italianos da 4ª Divisione Alpina Monterosa, formada pelos batalhões Bergamo, Aosta e Bréscia e comandadas pelo general Mario Caloni, que seis meses depois se renderia aos brasileiros da FEB.[17]

Símbolo da Divisão Monterosa.

Os combatentes sul-americanos avançaram para o norte por treze quilômetros, onde atravessaram o riacho Lima em Bagni di Lucca, cerca de vinte quilômetros ao norte da cidade de Lucca. Já os italianos, mostrando pouca ânsia de se levantar e lutar, recuaram lentamente para a solidez das altas montanhas que conheciam tão bem. No dia 11 de outubro a FEB capturou as cidades de Barga e Gallicano.

Ao completar um mês da entrada do 6º Regimento na área de combate, a imprensa nacional divulgou que os soldados brasileiros haviam avançado 28 quilômetros para o norte, conquistando do inimigo uma área de 273 Km², onde viviam mais de 100.000 pessoas, em sete cidades e vinte e três vilas. Não sabemos o grau de envolvimento do sargento Rodoval nessa fase da luta, mas o seu regimento participou ativamente desses combates, como ponta de lança da FEB.[18]

A aldeia medieval de San Quirico, município de Pescia, província de Pistoia, região da Toscana. Itália.

Daí então, entre os dias 12 e 30 de outubro, os brasileiros conquistaram várias outras vilas e pequenas aglomerações urbanas italianas, entre elas um lugar chamado San Quirico, que caiu no dia 30 de outubro de 1944, no começo da tarde. O lugarejo era defendido pelos italianos do batalhão Aosta, da divisão Monterosa, mas não ofereceram muita resistência.[19]  

O Massacre na Aldeia Medieval

O sargento Rodoval Cabral da Trindade estava entre os brasileiros que ocuparam San Quirico. O correspondente de guerra Sílvio Fonseca, enviado da Agência Nacional junto a FEB, comentou que em 31 de outubro de 1944 os militares do 6º Regimento de Infantaria conquistaram “La Rochette, Lama di Soto e Pradoscello”, entre outras localidades que se localizavam nas proximidades do rio Serchio. Informou também que outros soldados “mais a oeste, apoderaram-se de San Quirico”. Era a tropa que o potiguar Rodoval fazia parte.[20]

Soldados brasileiros encarando o frio italiano com a ajuda de um aquecedor à lenha.

Ao chegar em San Quirico estava frio e chovia, com a temperatura caindo para uns 10 ou 12 graus com a chegada da noite. A tropa brasileira estava cansada após vários dias de lutas e avanços pelas elevações daquela região da Toscana. É provável que a antiga igreja e o fato da maioria das casas estarem queimadas, tenha chamado a atenção de Rodoval e seus colegas. Mas o que importava naquele momento era consolidar a conquista do lugar, comer algo, descansar e seguir adiante.

Acredito que eles então se dirigiram para uma das poucas casas que não estavam queimadas e se acomodaram. Também é provável que sobre aquela pequena comunidade e seu montanhoso entorno, o potiguar só soubesse informações militares. Enfim, a vila e a região eram muito parecidas com outras tantas vilas e montanhas que ele vinha combatendo e ocupando no último mês junto com seus companheiros. Mas talvez Rodoval se espantasse ao saber o quanto aquele lugarejo era antigo.

A igreja de San Quirico, com seus mais de 10 séculos de construida.

Quando a primeira notícia oficial e conhecida sobre San Quirico foi publicada, um pequeno texto sobre os bens da “Ecclesia S.Quirici de Arriano“, somente 520 anos depois o navegador luso Pedro Álvares Cabral colocaria seus pés nas belas praias de Porto Seguro.[21]

Atualmente San Quirico pertence ao município de Pescia, na província de Pistoia, região da Toscana. Está fincada no alto de um monte com quase 550 metros de altitude e foi um lugar que presenciou guerras, agem de exércitos em luta, pestes, terremotos, secas, enchentes e muito mais. É um lugar conhecido por ali ter vivido famílias que se especializaram na fabricação de sinos, sendo respeitados em toda a península italiana. Sua arte remonta à Idade Média, onde em algumas casas do lugarejo ainda é possível ver lagartos esculpidos em pedra, símbolo desta arte na Itália. É um testemunho da presença de tais mestres, sendo os mais conhecidos pertencentes às famílias Angeli, Fontana e Magni.[22]

Rua em San Quirico.

Durante a Segunda Guerra Mundial, dois meses antes da FEB chegar a essa vila medieval e do potiguar Rodoval ter combatido nas suas ruas, San Quirico viveu uma tragédia, quando foi palco de um dos muitos massacres perpetrados pelos alemães contra os civis italianos.

A coisa toda começou assim – Na noite de 7 de agosto de 1944, dois oficiais alemães foram convidados para jantar em uma casa da aldeia e tudo parecia estar indo bem. Por volta das 11 da noite, quando retornavam ao seu acampamento, eles foram mortos. Para alguns foi obra de guerrilheiros italianos que lutavam contra a ocupação alemã, os chamados “Partigiani”, mas outras fontes apontam que os atiradores seriam seis soldados alemães desertores e um deles, chamado Franz, foi quem matou os oficiais. Independentemente disso, a resposta alemã não se fez esperar! 

Outra vista da vila.

Naquela época os nazistas deixaram claro que para cada alemão morto, dez italianos pagariam com a vida. Na manhã do dia 19, muitos soldados da 65º Divisão de Infantaria da Wehrmacht chegaram a San Quirico e cercaram a aldeia[23]. Aos gritos, empurrões e muita violência mandaram todos sair das casas somente com a roupa do corpo e começaram a saquear e queimar praticamente todo o pequeno burgo, deixando de incinerar umas poucas casas e a igreja milenar. Roubaram gado, objetos de valor, os melhores móveis, roupas de cama e provisões. As antigas casas da vila de ruas apertadas arderam fortemente. Às quatro da tarde os nazistas separaram da população detida um grupo de velhos, doentes e mulheres, que imaginaram o pior para eles, pois todos foram obrigados a abrir uma grande cova coletiva no cemitério local.

San Quirico e as montanhas do seu entorno.

Mas o comandante alemão informou ao pároco Dom Vicenzo del Chiaro que seriam fuzilados vinte homens detidos pela manhã, na estrada que ligava a localidade de Pietrabuona até a cidade de Pescia. Eram pessoas de várias vilas da Toscana que, depois de serem obrigadas a trabalhar para os alemães no reforço de fortificações da Linha Gótica, foram libertadas e voltavam para suas casas, quando foram novamente detidas. Esse grupo foi conduzido para perto do cemitério de San Quirico em um caminhão. No local da execução um dos presos tentou escapar, mas foi perseguido e morto. Os dezenove restantes foram divididos em três grupos e sumariamente fuzilados. Hoje um desses infelizes ainda repousa neste campo santo e, para se ter uma ideia do nível de destruição em San Quirico, provocado pelos nazistas naquele 19 de agosto de 1944, ainda na década de 1970 cerca de 50% das casas do lugar estavam destruídas e enegrecidas.[24]

Monumento existente em San Quirico para homenagear os vinte fuzilados de 19 de agosto de 1944.

Enquanto os cansados oficiais e praças brasileiros do 16º Regimento de Infantaria encontraram abrigo do frio da noite nas casas de San Quirico, na madrugada os alemães e italianos contra-atacaram os brasileiros sem dó e nem piedade!

O Duro Combate de San Quirico

Em 2012, quando se comemorou os 70 anos da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, o jornalista Marcelo Godoy participou de uma série de reportagens do jornal paulista Estadão sobre a participação brasileira nesse conflito. Ele escreveu um interessante material sobre o combate de San Quirico – “Os brasileiros dormiam, quando começaram a ouvir vozes na madrugada fria. Eram do inimigo. De repente, um tiro de carabina. A bala tombou um alemão que descia a colina em direção à ravina atrás da casa dos brasileiros. Atratino Côrtes Coutinho, comandante da 1.ª Companhia de Petrechos Pesados (PI), foi o autor do disparo que instalou o inferno na paisagem. A resposta veio das metralhadoras alemãs. Tiros encurralaram o capitão e sua tropa. Havia uma única saída: fugir pela janela dos fundos. Todos aram. Chegou a vez do tenente José Maria Pinto Duarte. Ao pular, balas lhe alcançaram o corpo. Uma rajada apanhou o tenente no ar. Os tiros do inimigo não permitiram que o corpo do oficial fosse resgatado e enterrado. “O Atratino tentava arrastar, mas ele (Duarte) era muito alto, pesado, era difícil… Lembro quando (Duarte) falou: “Cuidem bem da minha filha’, como uma súplica”, diz João Gonzales, de 92 anos (em 2012), na época da guerra um terceiro sargento. Atratino não se conformava. Montou duas patrulhas para encontrar o corpo. Sem sucesso. Cansado, escreveu: “O moral da tropa foi abalado pelos insucessos causados pelo contra-ataque inimigo”. A ideia de que era preciso enterrar Duarte atormentaria o capitão até o fim da guerra”.[25]

Soldados da FEB em posição de combate.

Outro oficial da FEB presente ao confronto de San Quirico foi o então capitão Moziul Moreira Lima, que deixou o seguinte registro – “O Destacamento da FEB conquistou Barga e tentou conquistar as alturas dos Montes Quíricos (SIC) e infelizmente essa tentativa terminou em revés sério e serviu-nos como um grande ensinamento. Casualmente eu estava lá, junto do comandante do 1º Batalhão do 6º RI (Regimento de Infantaria), Major João Carlos Gross, meu grande amigo. A ordem fora conquistar aquelas alturas. Era uma conquista difícil, um terreno escarpado e o Comandante do Batalhão foi comigo ao Quartel-General pedir que ficasse à disposição da Unidade, uma Companhia de muares, porque ele achava difícil levar munição e alimento quando estivéssemos lá na crista do monte.

Poder de fogo de um militar da FEB com uma submetralahdora M3  “Grease Gun” e fitas de munição. Foi apontado para o autor desse texto que o militar da foto seria o sargento Rodoval Cabral da Trindade, mas sem confirmação.

Foi prometida essa Companhia de muares, mas a mesma não nos foi fornecida e com muito sacrifício o Batalhão conquistou aquela posição. Pela experiência que tínhamos das nossas guerras, quando escurecia as operações paravam e, conquistada a posição, o pessoal se preparava apenas para ar a noite. Pois nessa noite o alemão desencadeou um contra-ataque com uma Unidade de Choque, especializada em ataques noturnos. Essa Unidade veio em cima do flanco esquerdo do nosso dispositivo e fomos tomados de surpresa, inesperadamente e sem a munição necessária. Foi uma surpresa total, o Batalhão começou a recuar pelo flanco esquerdo e foi nessa ocasião que morreu o tenente Pinto Duarte. Dois oficiais se atiraram por uma janela para não caírem prisioneiros, ele e o capitão Atratino, que era o Comandante da Companhia. O tenente foi ferido numa perna e na barriga e não conseguia se locomover, o Atratino procurou carregá-lo, mas não conseguiu e o corpo teve que ficar insepulto naquele local. Com esse revés ficou evidente que deveríamos nos reajustar muito rapidamente ao modo de combater de elementos que já tinham no mínimo cinco anos de experiência de guerra, enquanto estávamos começando a adquirir a nossa naqueles combates” [26].

Tropa do 2º Pelotão, da 8º Companhia, do 6º Regimento de Infantaria da FEB. É provável que alguns dos fotografados estiveram no combate de San Quirico – Foto devidamente cedida pelo Museu da Imagem e do Som da Associação Nacional da FEB.

O então capitão Hélio Portocarrero de Castro foi outro oficial da FEB que lutou em San Quirico naquela madrugada e deixou o seguinte registro – “Cheguei no 2º Escalão e, logo em seguida, fui designado para assumir o Comando da 7ª Companhia, 3º Batalhão do referido 6º Regimento de Infantaria. Não tive nenhuma adaptação. Segui direto, assumi o comando num ataque ao Morro de San Quirico. Foi um batismo de fogo sui-generis. Ataquei e fui contra-atacado violentamente pelos alemães. Eles avançavam gritando Heil Hitler! Portavam suas “lurdinhas” (apelido), excelentes metralhadoras de mão, com uma violenta cadência de tiro. Suas rajadas se assemelhavam a uma gargalhada. Algum soldado brasileiro colocou esse apelido nessa arma e pegou. Toda a FEB a designava pelo nome de “lurdinha”. [27]

Soldados da FEB.

O soldado José Otaviano Soares, que morava na rua Dr. Betim, 315, Vila Marieta, em Campinas, São Paulo, tempos depois comentou ao correspondente de guerra americano Henry Bagley, da Associated Press, que naquela madrugada estava com outros dezesseis companheiros da 8º Companhia, do 16º Regimento de Infantaria, quando “capturaram uma casa na aldeia de San Quirico, ao norte de Barga, no vale do rio Serchio, mas os alemães contra-atacaram pela madrugada de 31 de outubro. O inimigo concentrou um fogo de morteiro e metralhadoras contra a casa, matando um e ferindo oito, inclusive José Soares, que foi ferido por estilhaço de morteiro desde o pé ao ombro esquerdo, bem como dois fragmentos maiores na perna direita”. José Soares foi capturado bastante ferido, mas se recuperou em um campo de prisioneiros na Itália, de onde foi libertado ao final do conflito. Ao retornar ao encontro da sua tropa, concedeu essa entrevista a Henry Bagley[28].

Foto ilustrativa de soldados da FEB em uma cidade italiana e sobre um veículo de combate.

O que sabemos da participação do sargento Rodoval são informações muito limitadas, mas é certo que durante o tiroteio o seu pelotão recuou de sua posição original, talvez a mesma casa onde estava o capitão Atratino, ou alguma outra que foi “requisitada” para descanso. É provável que Rodoval tenha continuado na casa para cobrir a retirada dos seus companheiros. A vivenda foi então cercada pelos alemães. Tudo indica que o potiguar, mesmo com sua munição escasseando, ficou na casa até o último disparo. Os registros existentes não explicam como, mas Rodoval manteve a calma e de alguma forma conseguiu romper o cerco para retornar as linhas brasileiras. Sabemos que na madrugada de 31 de outubro de 1944 predominava a lua cheia no norte da Itália, o que possibilitou aos participantes daquele combate vantagens e desvantagens. Talvez o sargento potiguar tenha utilizado o luar para sair vivo daquela complicada situação. Ao sobreviver a esse combate Rodoval foi agraciado com a medalha da Cruz de Combate de 2ª Classe, destinada a participantes de feitos excepcionais praticados em conjunto por vários militares.[29]

Para Sílvio Fonseca a localidade de San Quirico era “uma importante posição dominante que os alemães tentaram inutilmente conservar em seu poder”. Tanto era importante que os nazistas e fascistas executaram o contra-ataque. O jornalista informou que os brasileiros resistiram a três investidas dos inimigos, mas na quarta recuaram.[30]

O complicado terreno de luta da FEB na Itália.

Segundo a falecida historiadora paranaense Carmen Lúcia Rigoni, na página 122 de sua interessante tese de mestrado intitulada La forza di spedizione brasiliana” (FEB) – Memória e história: Marcos na monumentalistica italiana, defendida 2003 na Universidade Federal do Paraná, informou que no momento da ocupação de San Quirico pelos membros da FEB o ambiente entre eles era de “otimismo”. Contudo a autora aponta, através de relatos de participantes, que “ninguém no comando se apercebia de que os combatentes estavam no limite e o cansaço era extremo”. A autora também conseguiu a informação que o “otimismo exacerbado e a subestimação do inimigo” estavam na ordem do dia dos brasileiros. E continua Carmen Lúcia Rigoni – “Segundo as narrativas de diversos veteranos, a frente de combate era muito extensa e o terreno criava todo o tipo de dificuldades, em razão da topografia ser acidentada, e era de difícil o. O transporte de víveres e munição para a tropa, debaixo de chuva, comprometia as reservas, entre outras questões afeitas ao comando” (Pág. 122).

Soldados da FEB.

Em outra parte do seu trabalho Carmen Lúcia Rigoni comentou o final da luta – “Diante das intempéries climáticas daquela jornada e da falta de munição e mais a desorganização do comando, a FEB se retira, deixando sobre o terreno mortos, feridos e muitos prisioneiros. As brigadas italianas sofreram também pesadas baixas. Os mortos e prisioneiros do efetivo de 200 homens da Companhia Aosta somaram-se mais de 80 homens” (pág. 126).  

Como um jornal dos Estados Unidos comentou as vitórias da FEB em outubro de 1944.

A Morte em Voghera

A partir desse momento da história da FEB na Itália não consegui encontrar mais nenhuma referência sobre o sargento Rodoval Cabral da Trindade.

Soldados da FEB em uma aparente comemoração, com instrumentos musicais em um caminhão de transporte. Talvez algo alusivo ao final da guerra.

Finalmente a Guerra na Europa se encerra em 8 de maio de 1945 e a Força Expedicionária Brasileira se preparava para retornar ao Brasil. É quando o sargento Rodoval morre em um acidente de jeep em Voghera, uma cidade ao norte de Gênova, no dia 6 de junho de 1945. Das causas e razões do acidente automobilístico não consegui nenhuma informação. 

Apenas descobri que Rodoval não foi o primeiro membro da FEB a morrer nessa estrada. No dia 8 de maio de 1945, no Dia da Vitória, e praticamente um mês antes da morte de Rodoval, o segundo sargento Fábio Pavani, de Capivari, São Paulo, faleceu ao cair da viatura em que estava se deslocando na mesma estrada de Voghera. Segundo a listagem de mortos da FEB, encontrada no texto intitulado Lista detalhada e ilustrada dos mortos da Força Expedicionária Brasileira na Campanha da Itália, constam os nomes de 34 militares que morreram em acidentes de veículos [31].

Para o pesquisador Durval Lourenço Pereira, essa situação ocorreu por várias razões. Desde a imperícia pura e simples dos motoristas da FEB, a complicada situação das estradas italianas, nevoeiro, fadiga, lama, neve, stress por dirigir em zona de guerra e outras mais.

Notícia da morte do sargento Rodoval em jornal de Natal.

Em Natal a notícia foi divulgada com bom espaço nos três principais jornais da cidade – A República, A Ordem e O Diário.  A única rádio da cidade, a REN – Rádio Educadora de Natal, noticiou extensivamente o falecimento do sargento Rodoval. Vários membros da comunidade foram pessoalmente até a casa da família externar os pêsames pelo ocorrido. Já o tenente coronel Edgar Alves Maia e o Dr. Jacob Wolfson, oftalmologista de renome e um dos líderes da comunidade judaica natalense, foram até a casa da família Cabral da Trindade levar o apoio da Comissão de Homenagem, Assistência e Recepção à FEB.[32]

Cemitério de Pistoia e o enterro de um combatente da FEB.

O corpo do sargento Rodoval Cabral da Trindade foi primeiramente sepultado no Cemitério Militar Brasileiro de Pistoia, na quadra D, fileira nº 1, sepultura nº 5. Depois seus restos foram transladado para o Rio de Janeiro, onde repousam no Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, no Aterro do Flamengo. No Rio Grande do Norte ele é lembrado com seu nome em uma rua em Ceará-Mirim e outra em Natal. Na capital essa artéria fica na Cidade Alta, vizinho a Igreja do Galo e perto de onde ele viveu.

Pessoalmente a história do sargento Rodoval me traz maravilhosas lembranças do meu tio-avô Luís de França Moraes, o nosso poeta e um devotado funcionário dos Correios e Telégrafos. 

Ainda garoto, foi dele que ouvi pela primeira vez os fatos ligados ao sargento Rodoval, até porque tio Luís moravam na Rua Laranjeira, número 18, a poucos metros da casa de Seu João Cândido da Trindade. Ele conheceu Rodoval, foi um dos que foram à casa de seu pai dar os pêsames pelo seu falecimento na Itália, esteve no enterro de Seu João em 1957 e chegou a trabalhar nos Correios e Telégrafos com José Augusto, Clotilde e Margarida, todos irmãos de Rodoval. Eu era muito jovem quando ouvi seu relato, mas jamais esqueci quando ele me narrou do orgulho que ele e todo o pessoal da Rua Laranjeira ficou ao saber que Rodoval tinha ido para a Guerra e da enorme tristeza que se abateu com a notícia da sua morte.

NOTAS

——————————————————————————————————————–

[1] Ver O Poti, Natal-RN, ed. 06/07/1957, sábado, pág. 3.

[2] Ver A Ordem, Natal-RN, ed. 14/03/1940, quinta-feira, pág. 2. Não encontramos nenhuma outra indicação de fonte de renda desse funcionário público para sustentar sua família.

[3] Ver Galvão, Claudio. O nosso maestro: biografia de Waldemar de Almeida – Natal, EDUFRN, 2019, pág. 97.

[4] O antigo Tiro de Guerra 18 não existe mais, contudo esse tipo de organização é bastante presente em outros estados brasileiros e no Rio Grande do Norte ainda existe um em Mossoró, com mais de 120 anos de atuação.

[5] Ver O Poti, Natal-RN, ed. 09/08/1981, domingo, pág. 14.

[6] A Escola Técnica de Comércio foi fundada em 1919 pelo professor Ulysses de Góis. Em dezembro de 1950 essa escola se mudou da Rua João Pessoa para a Avenida Junqueira Aires, 390, na Ribeira e serviu de embrião para a criação da Faculdade de Ciências Contábeis e Atuariais de Natal em 1957.

[7] Ver A Ordem, Natal-RN, ed. 17/07/1945, quarta-feira, pág. 4.

[8] Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro, ed. 26/07/1941, sábado, pág. 10.

[9] Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro, ed. 17/01/1943, domingo, pág. 14. A ordem veio através do Boletim Interno nº 13, de 16/01/1943.

[10] Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro, ed. 16/03/1943, terça-feira, pág. 6. A ordem veio através do Boletim Interno nº 62, de 15/03/1943.

[11] Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro, ed. 14/08/1943, sábado, pág. 8.

[12] Enciclopédia da II Guerra Mundial, Editora Globo, Livro VI, páginas 285 e 286, 2ª edição, 1956.

[13] Informações transmitidas oralmente por José Renato Coelho ao autor. Renato é filho do soldado Coelho, já falecido.

[14] Diário de bordo do USS General A. W. Mann, 2 de julho de 1944, pág. 2.

[15] Sobre essa questão ver https://www.vqronline.org/essay/question-leadership-5th-army-italy (em inglês).

[16] Mais detalhes sobre a 232º Divisão, ver https://www.axishistory.com/

 [17] A divisão Monterosa nasceu em 1 de janeiro de 1944 em Pavia, mas foi mobilizada apenas em 15 de fevereiro do mesmo ano. Em 16 de julho Benito Mussolini entregou a bandeira aos regimentos em Münsingen, Alemanha, no final do período de treinamento realizado com padrões germânicos. Era composta por cerca de 20.000 homens, dos quais 20% provenientes do Exército Real Italiano, que se rendeu aos Aliados em 1943. Foi criado pelos líderes fascistas da chamada República Social para combater nas montanhas ao lado do exército alemão e suas armas vieram dos armazéns da Wehrmacht. A divisão voltou à Itália em julho de 1944 e ficou na área da Ligúria, para neutralizar um possível desembarque das forças aliadas. Posteriormente foi transferido para a Garfagnana entre o rio Serchio e os Alpes Apuanos, combatendo as unidades brasileiras da FEB e outras forças do 5º Exército.

[18] Ver A Noite, Rio de Janeiro, ed. 27/04/1946, sábado, pág. 8.

[19] Segundo o ótimo material produzido pelo escritor e pesquisador Durval Lourenço Pereira, que apresenta um interessante e didático roteiro do avanço da FEB, os locais e as datas das conquistas da foram as seguintes – 11/10/1944 – Ocupação de Barga e Gallicano; 24.10.1944 – Ocupação de Sommocolonia; 25.10.1944 – Ocupação de Trassilico e Verni; 28.10.1944 – Captura de Monte Facto; 29.10.1944 – Ocupação de Colomini; 30.10.1944 – Conquista de San Quirico, Lama di Sotto, Lama di Sopra, Pradoscello e Pian de Los Rios. Ver https://memorialdafeb.com/2012/05/15/roteiro-da-feb-na-italia-o-destacamento-feb2/

[20] Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro, ed. 02/11/1944, quinta-feira, pág. 1

[21] No entorno de San Quirico já foram encontrados marcos do Império Romano e até ferramentas do neolítico, que apontam uma antiguidade muito mais ampla.

[22] Sobre San Quirico e sua história ver https://digilander.libero.it/sanquiricovalleriana/lastoria.htm  https://www.ilturista.info/guide.php?cat1=4&cat2=8&cat3=5&cat4=142&lan=ita

[23] Na área de operações da 65ª Divisão foram identificados 26 atos separados de violência onde civis italianos foram sumariamente mortos. Em junho de 1944 aconteceram cinco massacres (18 vítimas), três em julho (22 vítimas), nove em agosto (42 vítimas, entre estas as de San Quirico), oito em setembro (125 vítimas, o pior mês) e um em outubro de 1944 (2 vítimas). Entre 28 e 30 de setembro, em Ronchidoso, na região da Emilia-Romagna, foram executados 66 civis pelos homens da 65º Divisão, que nesse caso atuaram juntos com membros da 42ª Divisão Jäger. Várias dessas execuções foram represálias precipitadas pela morte de soldados alemães por guerrilheiros do movimento de resistência italiano, que surgiu no norte da Itália para se opor ao estado fantoche fascista. Mas os revisores dessas histórias, muitos deles neonazistas disfarçados de pesquisadores, comentam que muitos dos relatórios carecem de evidências dos perpetradores específicos. Minimizam que esses relatórios apenas apontam que os assassinatos ocorreram na área de operações da 65ª Divisão. Pode até ser que esses argumentos sejam verdadeiros, mas fica difícil justificar que ao longo de cinco meses, na área de atuação dessa divisão, ocorreram 26 massacres de gente detida e desarmada, com um total de 205 vítimas. Ver – https://en.wikipedia.org/wiki/65th_Infantry_Division_(Wehrmacht)#Partisan_warfare_and_alleged_war_crimes

[24] A memória da tragédia continua presente naquela gente até hoje, onde todos os dias 19 de agosto existe uma comemoração em Pescia rememorando o que ocorreu em San Quirino e em outras comunidades da região. Ainda sobre o massacre de San Quirico ver o documento existe neste sítio da internet – http://www.straginazifasciste.it/wp-content/s/schede/SAN%20QUIRICO%20IN%20VALLERIANA%20PESCIA%2019.08.1944.pdf

[25] Ver https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,na-linha-de-frente-a-historia-da-primeira-tropa-a-lutar-na-italia,921569

[26] História oral do Exército na Segunda Guerra Mundial / Coordenação geral de Aricildes de Moraes Motta. – Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2001. T. 3. Págs. 56 e 57. O capitão Moziul Moreira Lima era gaúcho de Cruz Alta e alcançaria o posto de general de brigada do Exército Brasileiro.

[27] História oral do Exército na Segunda Guerra Mundial / Coordenação geral de Aricildes de Moraes Motta. – Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2001. T. 4. Págs. 70 e 71. O capitão Hélio Portocarrero de Castro era natural da cidade do Rio de Janeiro e alcançaria o posto de divisão do Exército Brasileiro.

[28] Ver O Jornal, Rio de Janeiro, ed. 30/05/1945, quarta-feira, pág. 8.

[29] Sobre a atribuição dessa medalha e sobre os 68 sargentos do Exército Brasileiro mortos na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, ver o interessante trabalho Os 68 sargentos mortos em operações de guerra, do coronel Cláudio Moreira Bento, em http://www.ahimtb.org.br

[30] Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro, ed. 02/11/1944, quinta-feira, pág. 1

[31] Ver https://xdocs.com.br/doc/lista-detalhada-e-ilustrada-dos-mortos-da-fora-expedicionaria-brasileira-na-campanha-da-italia-4ol2mkp55ynm Infelizmente não descobri o autor desse trabalho.

[32] Ver A Ordem, Natal-RN, ed. 04/08/1945, sábado, pág. 2.

O MITO DO TESOURO DOS CAVALEIROS TEMPLÁRIOS

Graças às pseudo-histórias do livro e película O Código Da Vinci e dos livros em que se baseia, como O Sangue Sagrado e o Santo Graal, os míticos Cavaleiros Templários se encontraram no nexo de um notável emaranhado de mistérios históricos e na percepção geral do público eles se tornaram um sinônimo de história oculta e conhecimento misterioso, cujo núcleo é representado pela noção popular da existência de um grande tesouro perdido que teria pertencido a essa ordem.

As Cruzadas, guerra entre cristãos e mulçumanos.

O Tesouro dos Templários

Jerusalém, a Cidade Santa, é uma das cidades mais antigas do mundo, localizada em um planalto nas montanhas da Judéia e havia sido conquistada pelos cruzados europeus foi dos mulçumanos em 15 de julho de 1099, como parte da série de conflitos inseridos na Primeira Cruzada. Dezenove anos depois o rei cristão de Jerusalém Balduíno II autorizou o cavaleiro francês Hugues de Payens (ou Hugo de Payens) e mais oito devotados companheiros a fundar a Ordem dos Cavaleiros Templários e concedeu a Payens uma parte do complexo do Monte do Templo, daí o nome da ordem.

Representação de Jerusalém da Líder Cronicarum de Hartmann Schedel.

Inicialmente a humilde tarefa dos Templários era escoltar e proteger os peregrinos cristãos no caminho entre Jerusalém e o rio Jordão. Apesar do número pequeno de membros iniciantes, das simples missões dos primeiros tempos, logo os Templários foram sendo notados pelas vestes brancas e a cruz pintada de vermelho. O grupo tornou-se de grande importância na defesa dos Estados Cristões no Oriente, constantemente atacados pelas tropas muçulmanas. Logo a Ordem dos Templários alcançou enorme respeito, proeminência, riqueza e poder. 

Retirado das Chroniques de vemos uma representação de templários diante do Papa e do Rei Felipe, o Belo, da França.

189 anos depois, com ciúmes de seu poder, ou desejoso de se apoderar das supostas riquezas da Ordem para equilibrar as contas de sua nação – e possivelmente por motivos mais sombrios – o rei francês Filipe, o Belo, agiu para destruí-los. Sob a alegação de cometerem pecados diversos contra a doutrina católica, este rei e o Papa Clemente V determinaram a extinção da ordem religiosa e seu líder, o Grão-mestre Templário Jacques de Molay, foi condenado à morte na fogueira.

Na véspera da prisão simultânea de todos os Templários na França, em 13 de outubro de 1307, um quadro de cavaleiros teria sido alertado por um informante para a iminente traição. Assim os membros da Ordem conseguiram retirar da fortaleza dos Templários em Paris as riquezas da instituição e elas foram levadas para a cidade de La Rochelle, na costa oeste da França. As arcas contendo uma grande quantidade de ouro e pedras preciosas, além de algo ainda mais valioso – relíquias cristãs, documentos, artefatos ou conhecimentos secretos, foram embarcadas em navios da poderosa frota da Ordem e seguiram para a Escócia.

Os cavaleiros cruzados entram em confronto com as tropas muçulmanas durante o segundo cerco de Antioquia da Primeira Cruzada. De um manuscrito francês da década de 1200.

Quando a Ordem foi finalmente destruída em 1312, para alguns o rei Filipe ficou de mãos vazias, enquanto a frota dos Templários aparentemente desapareceu da face da Terra.

Em torno do esqueleto deste relato, uma grande quantidade de detalhes intrigantes e potencialmente explosivos se acumulou. Com relatos que vão desde como os Templários conseguiram seu grande tesouro, do que ele era feito, o que aconteceu com ele e com os cavaleiros nos séculos seguintes.

Descanso de um cavaleiro templário.

Fontes do tesouro templário

As histórias alternativas parecem bastante confusas sobre este assunto, com pelo menos três fontes separadas fornecidas para a transmissão do “Segredo(s) final(is)” que os Templários supostamente possuíam, embora seja frequentemente sugerido que as fontes estão conectadas e formam um fio contínuo.

O Priorado de Sion

Selo dos Cavaleiros Templários.

Uma sugestão é que os Templários foram formados por uma organização anterior mais misteriosa e poderosa, o chamado Priorado de Sion.

Para os seguidores desta organização, Jesus e Maria Madalena haviam se casado, tiveram filhos, vieram para o sul da França e seus descendentes por sua vez fundaram a linhagem merovíngia de reis ses. Para os defensores da existência do Priorado de Sion, embora os herdeiros desta linhagem fossem supostamente os reis legítimos do Ocidente (se não do mundo inteiro), seus poderes foram usurpados pela Igreja Católica. O Priorado então foi criado para proteger a linha de sangue dos herdeiros de Cristo, mas também os vários aspectos dos segredos envolvendo conhecimentos sobre o Cristianismo e outros mistérios antigos. Os Templários foram então criados pelos membros do Priorado do Sião para aumentar seu poder de combate e ter mais influência no mundo cristão.

Caçadores do templo perdido

A segunda explicação para o conhecimento e o tesouro secreto dos Templários, é que o grupo original de nove cavaleiros que fundou a Ordem descobriu algo de muito importante no subsolo do Templo de Salomão em Jerusalém.

De acordo com esta teoria, esses nove homens ao serem alojados em uma série de corredores subterrâneos conhecidos como Estábulos de Salomão, uma das poucas estruturas associadas ao antigo templo ainda existente, encontraram túneis e câmaras abaixo do Monte, descobrindo um esconderijo secreto que continha documentos, artefatos e preciosas relíquias. Assim equipados, os Templários foram capazes de enviar emissários de volta à Europa e começar sua notável ascensão ao poder e a fortuna.

Cruzados em uma pintura, no interior de uma igreja na Espanha.

Logo os senhores e príncipes da Europa ajudaram os Templários com doações de terras e prometeram outras formas de apoio. O Papa lhes concedeu privilégios extraordinários, isentando a Ordem de quaisquer jurisdições reais, exceto a sua. Os Templários tinham suas próprias leis e muitos jovens europeus, vários oriundos de famílias nobres, aram a se reunir sob a cruz templária e serem iniciados em seus rituais.

A Conexão Cátara

Uma terceira explicação, também potencialmente ligada à linhagem da história de Cristo e do Priorado de Sião, é que os Templários herdaram seus tesouros dos cátaros.

Os cátaros são expulsos de Carcassone, França, no ano 1209 – Grandes Chroniques de – Fonte – https://en.wikipedia.org/

Os cátaros (também conhecidos como Albigenses) foi uma seita cristã herética, que se tornou popular e poderosa no sul da França a partir do século XI. Seguiam um tipo de cristianismo derivado do Oriente, com muitos elementos gnósticos. O princípio básico do gnosticismo (o nome deriva do grego gnosis, conhecimento) é que o divino está presente dentro de cada indivíduo, e que a maneira de alcançar a união com o divino é através da gnose pessoal, ou auto exploração. Isto está em contraste com a abordagem católica, que diz que os padres são necessários como intermediários entre os indivíduos e Deus.

Os cátaros impressionaram muitos com sua piedade e pureza, ganhando seguidores e a proteção de poderosos nobres de Languedoc, uma área da Occitânia, no sul da França. Foram feitas numerosas tentativas por parte da Igreja para sufocar a disseminação dos Cátaros, que culminou em 1208 no lançamento da Cruzada Albigense, sendo seguida em 1229 pelo estabelecimento da inquisição contra esse grupo. O holocausto sangrento resultante quase exterminou os cátaros, com o último líder sendo executado em 1321.

Uma vista do Chateau de Montsegur no topo da montanha – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Siege_of_Monts%C3%A9gur#/media/File:Montsegur_montagne.jpg

O elemento crucial nesta triste história se dá em 1244, no cerco de Montségur. Esta era uma fortaleza dos cátaros no topo de uma montanha, no Departamento do Ariège, na região de Midi-Pyrénées, sudoeste da França. Os cátaros supostamente guardavam nesse local uma taça sagrada que era venerada em seus rituais e que foi associado ao Santo Graal, o cálice supostamente usado por Jesus Cristo na Última Ceia e tinha o poderes mágicos. Além dessa peça, vários outros tesouros também se encontravam nessa fortaleza.

De acordo com uma lenda popular, que tem uma forte semelhança com a história da fuga dos Templários de Paris a meia-noite de 13 de outubro de 1307, pouco antes da fortaleza catará cair para as forças católicas sitiantes, quatro cátaros desceram as muralhas e levaram o tesouro para um local seguro.

Como muitos Cavaleiros Templários vieram da região da fortaleza de Montségur, muitos acreditam que deve ter havido ligações entre os dois grupos, e que o tesouro cátaro teria assim ado para os Templários.

Fonte – http://legiaovertical.blogspot.com/2010/10/foi-revolucao-sa-uma-vinganca-dos.html

Leve isso para o banco

Além de qualquer tesouro secreto ou sagrado que os Templários possuíssem, esses cavaleiros se tornaram extremamente ricos de uma forma bem mais convencional e materialista.

Em uma época anterior aos bancos, era costume que os ricos armazenassem seus ativos líquidos no lugar mais seguro possível. Muitas vezes isso significava uma sala forte em uma fortaleza, ou castelo, de uma ordem militar composta de cavaleiros extremamente bem armados, preparados para o combate e possuindo uma reputação impecável. Os Templários eram então candidatos óbvios para salvaguardar esses tesouros.

Os Templários também acumularam experiência na transferência de valores da Europa para a região de Jerusalém e toda a Terra Santa, além de realizar empréstimos. Eles até diversificaram o transporte marítimo, criando um serviço de transporte de peregrinos para a Terra Santa, ao lado de seus próprios homens e suprimentos. Já os assim chamados “Teóricos da conspiração dos templários” olham além desses convencionais métodos de negócios e argumentam que era a posse de conhecimentos secretos e das relíquias que tornaram a Ordem dos Templários um sucesso.

A Igreja do Templo, , consagrada em 1185 como a residência dos Cavaleiros Templários em Londres. não é apenas um importante local arquitetônico, histórico e religioso, é também o primeiro banco de Londres. – Fonte – https://tokdehistoria-br.informativoparaibano.com/news/business-38499883

O certo é que em meio a essas operações na Europa e na Terra Santa os Templários acumularam prestígio, riqueza, propriedades enormes, valiosos ornamentos para suas igrejas e muito poder. O que lhes permitiu influenciar, intimidar ou chantagear os que se colocavam no seu caminho. Isso igualmente criou uma legião de inimigos, como o rei Felipe da França.

Grande parte dessas vastas riquezas seriam parte tesouro supostamente desaparecido na noite de 13 de outubro de 1307.

O grande segredo

O que mais foi levado para a segurança naquela noite? Exatamente o que era o tesouro secreto dos Templários?

Relíquias

Talvez o tesouro consistisse em relíquias sagradas e importantes para os cristãos. As sugestões incluem fragmentos da Verdadeira Cruz, a Lança do Destino (a lança que supostamente perfurou o lado do corpo de Cristo enquanto ele era crucificado), a Arca da Aliança e o Sudário de Turim (cujo rosto alguns acreditam ser de Jacques de Molay, último Grão-Mestre da Ordem dos Templários) e o Santo Graal de Jesus é um candidato óbvio. Outra opção seria que os Templários possuíam Evangelhos diferentes que revelassem alguma outra versão da história de Jesus, destruindo alguma versão católica convencional, como a história de Jesus Cristo sendo casado e tendo filhos.

Conhecimento Secreto

Além de tudo isso, sugere-se que os Templários eram herdeiros de uma antiga tradição de sabedoria esotérica, o que explicaria a sua estranha mística gnóstica e outras práticas não cristãs. Entre as mais famosas eram seus rituais de iniciação, que envolviam cuspir para o lado da cruz, paródias da missa e, supostamente, negação de Jesus.

O Que Aconteceu Depois?

Como e o que os Templários adquiriram para seu propalado tesouro é apenas o começo da história. A verdadeira história é o que aconteceu depois, embora, novamente, existem várias versões distintas, cada uma com implicações diferentes para o local do tesouro dos Templários hoje.

Ruínas da antiga igreja Balantrodach, no sul da Escócia, construída pelos Templários. Foi o próprio Hugues de Payens que recebeu o terreno para construir esse templo do rei escocês David I, em 1128 – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Temple,_Midlothian

A Conexão Escocesa

A Escócia é frequentemente apontada como um destino potencial para os fugitivos da frota com o tesouro templário que pretensamente desapareceu da França na noite de 13 de outubro de 1307. É importante comentar que desde os primórdios da Ordem dos Templários, estes tinham uma relação próxima e positiva com os escoseses.

Na época, o rei da Escócia estava no meio de uma briga com o papado e, portanto, foi excomungado. Isso significa que na Escócia os Templários estariam além da autoridade do Papa e pelos próximos anos longe de torturas e julgamentos no continente. Além disso, acreditava-se que os governantes da Escócia eram amigáveis aos Templários e eles teriam inclusive lutado lado a lado com os escoceses em 1314 na Batalha de Bannockburn, contra os ingleses.

Os mistérios da Capela Rosslyn

Rosslyn foi construída entre 1440 e 1480 por William Sinclair, da família Sinclair, Condes de Orkney e também Senhores de Rosslyn, nas terras baixas da Escócia, entre as cidades de Edimburgo e Glasgow.

Capela Rosslyn, Midlothian, Escócia – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Rosslyn_Chapel

A família Sinclair era supostamente composta de Templários importantes no século XIII e a Maçonaria na Escócia foi supostamente fundada por William Sinclair, conectando assim os Templários com os maçons, seus pretensos sucessores.

A Capela Rosslyn representa o uso que os Sinclair fizeram da arquitetura e dos segredos dos Templários e está repleta de simbolismos maçônicos. Acredita-se que esse templo é uma cópia do Templo de Salomão, deliberadamente deixado inacabado para parecer com o original em ruínas. Dentro da capela o ornamentado e esculpido Pilar do aprendiz é sugerido como sendo um esconderijo para o saque dos Templários, assim como vários grandes baús que poderiam estar enterrados perto da propriedade.

A Conexão Americana

Esculturas, que alguns acreditam representar milho do Novo Mundo – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Rosslyn_Chapel

A Capela Rosslyn também exibe esculturas de elementos da flora americana, aparentemente esculpidas antes das viagens de Colombo. Isso se relaciona com lendas sobre Henry Sinclair, ancestral do construtor da capela e outro suposto Templário, que teria feito viagens secretas através do Atlântico, possivelmente usando conhecimentos secretos obtidos do tesouro dos Templários. Essas viagens possivelmente teriam a missão de enterrar o tesouro da Ordem a salvo de mãos europeias, no que depois ficaria conhecido como Novo Mundo.

Rennes-le-Château

Além de Rosslyn se tornar o foco dos caçadores do tesouro dos Templários, surgiu uma nova pista na pitoresca aldeia de Rennes-le-Château, em Languedoc, na antiga região cátara. Aqui o mistério de Bérenger Saunière entusiasma os caçadores de tesouros há décadas.

Padre Bérenger Saunière em frente ao pórtico da igreja de Rennes-le-château (data desconhecida) – Fonte – https://fr.wikipedia.org/

Saunière foi o padre da pobre aldeia de Rennes entre 1889 a 1905 e, devido a sua mirrada renda oficial, ele deveria ter ado a maior parte de sua vida na obscuridade e perto da pobreza. Mas durante a década de 1890 o padre Saunière começou a gastar abundantemente muita grana. Primeiro reformando a igreja e mais tarde construindo para si uma casa luxuosa. Na cosmopolita Paris esse padre teria convivido com ocultistas ricos e famosos e em sua suntuosa casa ele dava festas luxuosas para essa gente.

Acredita-se que a fonte desta riqueza foi um pergaminho misterioso que Saunière encontrou escondido dentro de um pilar na igreja da aldeia. O pergaminho, por sua vez, levou o padre a descobrir algum tesouro escondido nas proximidades. Possivelmente o tesouro perdido dos cátaros ou dos Templários.

No entanto, com sua morte em 1917, o segredo do tesouro foi perdido, talvez enterrado em algum lugar na zona rural circundante.

Castelo de cartas

Em conclusão, o tesouro dos Templários agora está escondido, ou enterrado ao redor da Capela Rosslyn na Escócia, em algum lugar na América do Norte, ou no subsolo de Rennes-le-Château.

Essas versões alternativas da história são uma leitura empolgante, mas a verdade é que esta teia complicada é construída quase inteiramente de especulações infundadas, erros simples ou ficções definitivas.

Quase todos os aspectos podem ser desmascarados, embora seja difícil saber por onde começar.

Os Templários realmente descobriram ou herdaram algo incrível?

Apesar das várias teorias, não há evidências de que os Cavaleiros Templários descobriram, ou herdaram algo de extraordinário.

As três principais fontes sugeridas para o tesouro são o chamado Priorado de Sion, os subterrâneos do Monte do Templo e os cátaros.

A história do Priorado de Sião é uma invenção de um vigarista e fantasista francês condenado, chamado Pierre Plantard de Saint-Clair.

Depois da Segunda Guerra Mundial Plantard inventou uma elaborada versão fantasiosa de uma história na qual ele era descendente dos reis merovíngios e, por extensão, do próprio Cristo. Ele então criou de sua mente uma sociedade secreta com antecedentes supostamente místicos e portentosos. A denominou de Priorado de Sião e recrutou alguns membros para as quase religiosas atividades nacionalistas e monarquistas, de desagradável caráter político. Ele chegou até mesmo a falsificar documentos contrabandeados para os arquivos nacionais ses na Bibliothèque Nationale de Paris. Quando pesquisadores posteriores os encontraram, isso deu crédito a história que o próprio Plantard estava contando para eles.

Embora ele eventualmente tenha violado a lei e condenado pelos seus golpes, o então Priorado de Sion e sua longa tutela da linhagem de Cristo ficaram firmemente estabelecidos na imaginação popular. A conexão Priorado com a Ordem dos Templários era outro elemento da história inventada por Plantard.

Atual Abadia da Dormição, em Jerusalém. No século XII, os cruzados construíram uma igreja ainda maior chamada Santa Maria do Monte Sião, mas também foi destruída em 1187. O local permaneceu abandonado até o final do século XIX, quando por iniciativa do imperador alemão Guilherme II, a atual basílica foi construída e inaugurada em 1910.  

Deve ser apontado que embora houvesse, brevemente, uma Ordem de Sião real. Mas ela não tinha nada a ver com o Priorado criado pela cabeça amalucada de Plantard. Essa foi uma ordem monástica criada pelos cruzados, chamada Nossa Senhora do Monte Sião, com uma igreja denominada Santa Maria do Monte Sião, construída sobre as ruínas da grande basílica de Hagia Sion, no Monte Sião, na Terra Santa. Essa igreja construída pelos cruzados desabou após as vitórias mulçumanas no final do século XIII.

Conforme comentamos anteriormente, outro elemento comum da história dos Templários é que os cavaleiros fundadores escavaram sob o Monte do Templo e encontram “coisas incríveis”.

Foto dos antigos “Estábulos de Salomão”, onde a Ordem dos Templários se iniciou. Essa foto foi realizada no período do Império Otomano. Em 1996 os mulçumanos transformaram esse local em uma mesquita o que alterou as características históricas do local e gerou problemas com os israelenses – Fonte – https://commons.wikimedia.org/

Na prática não há um fragmento de evidência primária (por exemplo registros da época) para sugerir que quaisquer escavações foram realizadas pelos Templários, além de quaisquer obras de construção para ampliar ou equipar suas dependências no Monte do Templo. Embora existam túneis no Monte, não há nenhuma evidência de que os Templários já exploraram ou estavam até interessados ​​neles.

Afirmações sobre a escavação são frequentemente apoiadas pela suposição de que os nove cavaleiros fundadores eram muito poucos em número para estar lá com o propósito declarado de proteger os peregrinos e, portanto, devem ter tido “segundas intenções”.

Esta suposição é extremamente suspeita, especialmente considerando que cada cavaleiro pode ter tido um séquito de homens em armas, tornando-os uma força mais formidável do que é sugerido. Além disso, como comentamos anteriormente, a tarefa inicial dos Cavaleiros Templários era simplesmente escoltar os peregrinos de Jerusalém ao rio Jordão, para o qual um exército não era necessário.

A conexão cátara é igualmente suspeita.

Não há provas que os cátaros possuíam algum tesouro secreto, nem para o conto da fuga de Montségur, que parece ser pura ficção romântica. Nem há evidências de ligações especiais entre os Templários e os cátaros – apenas a informação circunstancial de que eles coexistiram e de que havia fortalezas dos Templários em área cátara, como havia em toda a França.

Existia algum tesouro templário?

A ascensão dos Templários à riqueza e ao poder foi realmente notável. Mas era realmente inexplicável?

Talvez eles fossem simplesmente as pessoas certas, no lugar certo e na hora certa.

A Ordem dos Templários deveu seu rápido crescimento em popularidade ao fato que combinou as duas grandes paixões da Idade Média, fervor religioso e proezas marciais. Não se pode esquecer sua prática na época para a caridade, doações a serem dadas em caráter institucional e não pessoal, foi uma base que favoreceu instituições como a dos Templários.

Outro conceito comum sobre os Templários é que eles eram imensamente ricos quando foram suprimidos e que esta riqueza desapareceu misteriosamente. Isso é um mito.

Na verdade, na hora de sua dissolução, os Templários estavam no vermelho por uma variedade de razões. A maioria de seus ativos estava na forma não líquida e eles precisavam de quaisquer aluguéis ou renda que suas propriedades pudessem auferir para suas aventuras extremamente caras no Oriente.

Vale recordar que no final do Século XIII eles, junto com os outros cruzados, foram expulsos da Terra Santa pelos mulçumanos, com uma concomitante perda de prestígio e, portanto, doações. Há evidências consideráveis ​​de que em 1307 os Templários estavam lutando para pagar a manutenção básica de seus comandantes e muitos de seus membros viviam na penúria.

A Frota dos Templários

A famosa frota desses cavaleiros é igualmente mítica.

Embora estivessem fortemente engajados no transporte e no comércio, com viagens constantes de ida e volta para a Terra Santa, é improvável que eles já tivessem mais do que um punhado de navios.

Em 1312 sua grande ordem rival, os Cavaleiros Hospitalários, que eram especificamente envolvidos em operações navais, possuía apenas quatro navios de guerra, e é improvável que os Templários tivessem muitos mais.

Existem poucos registros que afirmam explicitamente quantos navios eles tinham, mas a maioria do que é mencionada é que só havia dois. Quando precisassem de navios extras, eles os alugariam. Além disso, seus navios eram galés, totalmente inadequados para o tipo de exploração Atlântica atribuída a eles por alguns historiadores alternativos.

Novos Rumos

Mais equívocos se acumulam em torno do destino dos Templários.

Mulçumanos matando um Cruzado em combate, em um um romance francês do século XIV sobre
as primeiras cruzadas.

Sabemos que sua destruição surgiu em parte por causa de sua própria fraqueza, ao invés do medo de sua força.

Na França os Templários realmente tiveram uma jornada difícil, com muitos executados por heresia, mas em grande parte da Europa eles não sofreram perseguições.

O Papa Clemente inicialmente tentou parar a perseguição, mas Filipe, o Belo, tinha feito um bom trabalho ao destruir a reputação dos Templários na França por meio de calúnias e aquisição de confissões por tortura. Mas muito dos que os Templários possuíam foram compartilhados entre outras ordens, incluindo um par de Ordens sucessoras em Portugal e na Espanha, sobre as quais nada houve de secreto ou clandestino.

Os Templários Realmente Tinham um Conhecimento Secreto ou Relíquias Preciosas?

Não há evidências de que os Templários possuíam algum grande segredo.

As estranhas práticas que deram origem a muitas das suposições e as lendas sobre os Templários foram exageradas pelos promotores do rei Filipe como parte da trama para denegrir seus nomes.

O conhecimento secreto que eles supostamente possuíam e que teria sido transmitido aos maçons é pura especulação, tendo sido inventados por alguns grupos e escritores maçônicos do século XVIII em diante, na tentativa de se darem um aspecto mais impressionante de proveniência.

A Capela Rosslyn Tem Alguma Ligação Com os Templários?

Na verdade, não há nenhuma evidência para isso e de acordo com Evelyn Lord, autor de The Knights Templar in Britain, o templo foi construído cem anos depois que a Ordem foi suprimida.

Outra vista da Capela Rosslyn – Fonte – https://www.visitscotland.com/info/tours/rosslyn-chapel-dc460ecf

Já a alegada conexão escocesa é algo geralmente tênue.

Ao contrário da lenda, não há registro de Templários lutando com rei escocês da época Robert the Bruce. Além disso, os Templários geralmente se davam bem com os reis ingleses. Já a proeminente família Sinclair não eram amigos dos Templários e há registros de que testemunharam contra eles nos julgamentos de 1309. Dito isto, um dos primeiros Sinclairs pode muito bem ter sido um Templário nas primeiras décadas da Ordem, mas esta era uma situação comum a muitos nobres do período.

A capela de Rosslyn em si é quase certamente uma cópia da Catedral de Glasgow e provavelmente foi deixado inacabado por falta de dinheiro, o que era comum nas capelas particulares.

Supostas conexões entre o construtor da capela, William Sinclair e a Maçonaria na Escócia são consideradas espúrias e com base em ficções posteriores. Não há evidências de que qualquer tesouro ou outros segredos estejam enterrados dentro ou ao redor da capela Rosslyn. Também não há evidências, além algumas cartas de autenticidade extremamente duvidosa, que Sinclair foi uma das primeiras pessoas que viajou pelo Atlântico para o Novo Mundo.

Existe um verdadeiro mistério de Rennes-le-Château?

Nöel Corbu – Fonte – https://alchetron.com/No%C3%ABl-Corbu

Muito parecido com a fraude de Pierre Plantard e o Priorado do Sião, a maioria do mistério de Rennes pode ser rastreado até uma farsa sa dos anos 1950. Neste caso Noël Corbu, o proprietário de um restaurante recém-inaugurado na antiga vila do padre Bérenger Saunière, imaginou que um bom tesouro misterioso poderia impulsionar seu novo negócio.

Já a riqueza inexplicável de Saunière veio de sua prática de vender indulgências, onde, em troca de uma taxa, ele realizaria uma missa para encurtar a permanência do pagador no purgatório. Esta prática havia sido proibida pela Igreja Católica e, de fato, Saunière foi suspenso e eventualmente demitido por violações persistentes.

O padre Saunière não morreu um homem rico. Muito pelo contrário, pois ele viveu muitos de seus últimos anos na quase pobreza, desesperado por dinheiro. O pilar oco no qual ele supostamente descobriu o pergaminho que lhe trouxe sua fortuna, e que é exibido aos visitantes desse templo na atualidade, quase certamente é uma farsa completa que nunca fez parte da Igreja. Não há evidências que qualquer tesouro tenha sido enterrado ou encontrado na área.

O Engano dos Templários

Um cavaleiro templário em armadura pronto
para a batalha, de um manuscrito francês do século 14.

As mentiras e invencionices de Pierre Plantard e Nöel Corbu, junto com sua repetição por autores subsequentes, que recentemente alcançou a sinergia maior e final no trabalho de Dan Brown, significa muito de um interesse genuíno sobre os Templários.

Por exemplo, é possível que os Templários adotassem algumas abordagens não convencionais para o Cristianismo devido às suas experiências no Oriente?

É verdade que pouco se sabe sobre os Cátaros, além da tragédia envolvendo sua brutal repressão.

A Capela Rosslyn é realmente uma extraordinária e bela peça de arquitetura, genuinamente rica em simbolismo estranho. Mas a forma como os pseudo historiadores reciclam a ficção e desinformação que envolvem esse local significa que os chamados “Mistérios Templários” funcionam tal como uma bola de neve rolando colina abaixo, ganhando massa e impulso, mas com nada mais do que lama em seu núcleo.

FONTE – LEVY, Joel. LOST HISTORIES – EXPLORING THE WORLD’S MOST FAMOUS MYSTERIES, London, UK, 1ª Edição,  2006, Págs. 115 a 129.

“QUEREMOS BOLSOS!” — GRITAVAM AS MULHERES HÁ 137 ANOS

moda-vitoriana-1097848
Moda da Era Vitoriana: apertada e sem bolsos Foto:Wikimedia Commons

Em 1881, na era do espartilho, Sociedade Por Vestimentas Racionais ou a encorajar as mulheres a usarem peças largas e confortáveis. E com bolsos

Letícia Yazbek

Fonte – https://tokdehistoria-br.informativoparaibano.com/noticias/reportagem/a-campanha-por-bolsos-nas-roupas-femininas.phtml?utm_source=facebook.com&utm_medium=facebook&utm_campaign=facebook

A luta pela liberação feminina sempre ou pelas roupas. Quando as sufragistas pediam pelo voto, no final do século 19, também pediam pelo fim das roupas extremamente opressivas da época. Anquinhas ficaram para trás e espartilhos podem se só um fetiche hoje. Mas uma questão nunca foi resolvida: onde estão os bolsos?

rational-dress-society-1097850
Reunião de mulheres vestidas de acordo com as ideias da RDS – Domínio Público

Em 1881, a organização Rational Dress Society (“Sociedade por Vestimentas Racionais”) foi fundada em Londres, com o objetivo de lutar contra peças como espartilhos e sapatos de salto alto, que deformavam o corpo feminino e impediam os movimentos. Elas encorajava as mulheres a vestirem peças largas e confortáveis. E com bolsos.

A escritora Charlotte Perkins Gilman publicou no The New York Times em 1905: “As mulheres têm carregado bolsas, às vezes costuradas dentro das roupas, às vezes amarradas na cintura, às vezes carregadas nas mãos, mas uma bolsa não é um bolso”. Em 1920, Coco Chanel, que ajudou a popularizar as calças femininas e o fim do espartilho, começou a costurar bolsos em suas jaquetas.

A história de uma ausência

Quando um homem anda por aí com as mãos nos bolsos costuma ser visto como uma pessoa despojada, sem preocupações. O que se acharia de uma mulher assim, mal temos como saber. 

As peças masculinas são cheias de bolsos grandes e robustos, feitos realmente para carregar objetos. Aparecem em jaquetas, escondidos na parte de dentro dos paletós, em camisas, calças e, às vezes, até dentro de outros bolsos. Enquanto isso, as roupas femininas raramente têm bolsos. E, quando têm, eles são frágeis e rasos, muito mais costurados para efeito decorativo do que para ser úteis.

bolsos-1097775
No século 15, camponeses usavam bolsas penduradas em cintos Reprodução

O bolso é uma novidade histórica. Na Idade Média, homens e mulheres carregavam pequenas bolsas, que eram penduradas nos cintos ou amarradas ao redor da cintura. Por volta do século 16, com o crescimento dos centros urbanos e a necessidade de esconder os pertences de possíveis ladrões, as bolsas aram a ser costuradas na parte de dentro das jaquetas masculinas e das anáguas femininas.

Na Revolução Industrial, as pessoas aram a ter mais objetos para carregar, e os bolsos foram permanentemente incorporados a jaquetas, coletes e calças masculinas. Mas as mulheres continuaram usando bolsas, que balançavam, cheias de pertences, presas ao corpo.

bolsos-1097779
No fim do século 17, as mulheres aram a levar as bolsas nas mãos Reprodução

Na Era Napoleônica, a saia comprida e volumosa da era do Iluminismo entrou em decadência e em seu lugar entraram vestidos que revelavam a silhueta. Não havia mais como esconder as bolsas na parte de dentro das roupas. Então, as mulheres foram obrigadas a usar bolsas externas, ocupando eternamente um dos braços.

O desconforto provocado pelas bolsas fez com que as mulheres se manifestassem a favor de peças femininas mais confortáveis.

bolsos-1097773
Na Segunda Guerra, as roupas ganharam praticidade Reprodução

Durante a Segunda Guerra, quando as mulheres tiveram que assumir trabalhos tradicionalmente masculinos, aram a usar roupas mais práticas. As calças e jaquetas com bolsos se tornaram comuns, principalmente com a popularização do jeans, nos anos 1960. Mas os próprios jeans logo se separaram por gênero: os femininos ganharam bolsos pequenos e rasos, se não meramente decorativos.

bolsos-1097774
Coco Chanel usando calças com bolsos Wikimedia Commons

Alguns antropólogos acreditam que a falta de bolsos é uma estratégia para vender mais bolsas às mulheres, enquanto outros afirmam que o problema está relacionado à dominância masculina na indústria da moda dominada por homens. Apesar dos avanços conquistados nas últimas décadas, as roupas femininas continuam sendo fabricadas para serem bonitas, não úteis.

O COMO DO MUNDO: TUDO SOBRE A MAÇONARIA

Freemasonry-Masonic-Masonry
Fonte – https://openclipart.org//245371/Freemasonry-Masonic-Masonry.svg

Como a mais célebre sociedade secreta moldou a história dos últimos três séculos

AUTOR – Tiago Cordeiro

O primeiro presidente dos Estados Unidos, George Washington, era maçom. Depois dele, outros 16 líderes da nação mais poderosa do mundo também foram: a lista inclui John Edgar Hoover, diretor do FBI por 45 anos, e Harry Truman, o homem que autorizou o ataque com bombas atômicas sobre o Japão. Também fizeram parte da sociedade secreta dois políticos decisivos para a vitória aliada na Segunda Guerra Mundial, o presidente americano Franklin Delano Roosevelt e o primeiro-ministro britânico Winston Churchill. Eram maçons alguns dos mais importantes líderes da Revolução sa, como Jean-Paul Marat e La Fayette. O revolucionário italiano Giuseppe Garibaldi e os libertadores da América espanhola, o argentino José de San Martín e o venezuelano Simon Bolívar, também. O articulador da independência do Brasil, José Bonifácio de Andrada e Silva, pertencia à ordem, assim como o duque de Caxias e nosso primeiro presidente republicano, marechal Deodoro da Fonseca.

Freimaurer-sehendes-Auge-720x340
Fonte – http://xn--jl-3sulen-z2a.de/freimaurer-in-der-neuen-zuercher-zeitung/

Por tudo isso, não é exagero afirmar que o mundo em que vivemos foi definido por essa sociedade secreta, que por três séculos vem reunindo a elite política e militar (e cultural) do Ocidente em rituais cheios de códigos misteriosos.

Mas o que é maçonaria? Existem várias versões para a criação da organização. A mais confiável remete à Idade Média, quando o controle do comércio era feito pelas guildas, corporações de ofício que reuniam artesãos do mesmo ramo e funcionavam como um anteado dos sindicatos. Um dos grupos mais poderosos era o dos pedreiros (em inglês, masons). Que era um trabalho de alto status então, pois eram responsáveis pela engenharia e pela construção de castelos e catedrais. Pedreiros tinham o aos reis e ao clero e circulavam livremente entre os feudos. Apelidados de free masons (pedreiros livres), se reuniam nos canteiros de obras e trocavam segredos da profissão. Um dos documentos mais antigos sobre essas guildas é a carta de regulamentos de Londres, 1356. Na época, era só um conjunto de regras para pedreiros. 

freimaurer
Fonte – https://www.star-of-africa.de/was-wissen-sie-%C3%BCber-freimaurerei/

Para se identificarem em locais públicos e evitarem o vazamento de suas conversas, criaram um sistema de gestos e códigos. Durante o Renascimento, os pedreiros livres ficaram na moda. Seus encontros aram a acontecer em salões, chamados de lojas, que geralmente ficavam sobre bares e tavernas das grandes cidades, onde a conversa continuava depois. Intelectuais e membros da nobreza engrossaram a turma. Por influência deles, os debates aram a abranger religião e filosofia. Em 24 de junho de 1717, numa reunião das quatro maiores lojas de Londres (então o maior centro maçom europeu), na taverna The Goose and Gridiron nasceu uma federação, a Grande Loja de Londres. Era o início oficial da maçonaria.

A Marselhesa

Em apenas três décadas, a organização já tinha se espalhado por toda a Europa ocidental e havia alcançado a Índia, a China e a América do Norte. ou a ser conhecida, respeitada, mas, principalmente, temida. Não era para menos. Ficava difícil confiar em um grupo de homens ricos e poderosos, de diferentes áreas, que se reuniam a portas fechadas, usavam símbolos esquisitos (veja explicações ao longo da reportagem) e faziam juramentos de fidelidade à tal organização e ainda voto de silêncio. Também não ajudou muito o tanto de lendas que surgiu sobre a origem da maçonaria (em 1805, o historiador francês Charles Bernardin pesquisou 39 diferentes). Tinha para todos os gostos: alguns integrantes da ordem diziam que Noé era maçom, outros transformaram o rei Salomão ou os antigos egípcios em fundadores. Nem os templários escaparam (leia ao final). A Igreja Católica se incomodou tanto que, em 1738, divulgou uma bula papal atacando a ordem, que décadas depois foi perseguida pela Inquisição.

Mistérios revelados  Os principais símbolos da maçonaria

maconaria-670x421
Fonte – http://www.pnp900.de/freimaurerei.html

Como

Um dos instrumentos dos pedreiros. Representa a racionalidade científica. Por desenhar círculos perfeitos, também simboliza a busca pela perfeição moral

Esquadro

Outro instrumento da construção civil que lembra a capacidade transformadora do homem sobre a natureza. Seu ângulo reto é uma indicação para os homens de que eles devem ser honestos

Letra G

Vem de God, Deus em inglês. Os integrantes da fraternidade também o chamam de GAU, sigla para Grande Arquiteto do Universo

170228_Tomb_White_Header_R1a
Maçons ingleses – Fonte – http://www.freemasonrytoday.com/magazine

Olho

Geralmente representado dentro de um triângulo, tem o mesmo significado da letra G. É Deus, que tudo vê

Triângulo

Refere-se ao lema liberdade, igualdade e fraternidade, às virtudes fé, esperança e caridade, e nascimento, vida e morte. Por isso, os maçons também fazem três pontos em suas s

Martelo

Pequeno, simboliza o trabalho dos pedreiros que inspiraram a fraternidade, e também a força material que muda o mundo. É usado pelo grão-mestre durante as cerimônias

Sol/Lua

Como o chão de mosaico preto e branco (veja no rodapé da reportagem), usado nas lojas, simboliza a dualidade entre bem e mal, espírito e corpo, luz e trevas.

MasonicTemple-9
Templo maçônico da Filadélfia (EUA) construído em 1873 – Fonte – https://pamasonictemple.org/temple/

Além do sigilo, o que perturbava era a atitude sempre à frente de seu tempo. Setenta anos antes da Revolução sa, esses homens cultos e influentes já defendiam a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Tratavam-se sem distinção e aceitavam todos os credos religiosos, uma atitude tremendamente avançada para a época. Os ateus, porém, eram barrados. Não formamos uma religião, mas somos um grupo de pessoas religiosas.

Nosso lema é fazer os homens bons ficarem melhores, diz o maçom paulistano Cassiano Rampazzo, advogado de 35 anos. Com ele concorda a historiadora mineira Françoise Jean de Oliveira, coautora do livro O Poder da Maçonaria. A maçonaria não é religião, não tem dogmas. É um grupo que defende a liberdade de consciência e o progresso. Isso não quer dizer que cada participante possa agir como bem entende. Ao entrar na ordem, o membro é instruído sobre a moral universal, um conjunto de virtudes obrigatórias, como bondade, lealdade, honra, honestidade, amizade, tranquilidade e obediência, diz Françoise.

barkerville_masons
Membros de uma loja maçônica no oeste canadense em 1890 – Fonte – http://freemasonry.bcy.ca/textfiles/history.html

A falta de preconceito se restringia a diferenças políticas e religiosas. A fraternidade vetava analfabetos, deficientes e homens que não se sustentavam. As mulheres até hoje não são bem-vindas (com exceção da França).

Além disso, no ado como no presente, só entra na ordem quem for convidado e ar por uma avaliação rigorosa: nada de gente indiscreta, protagonistas de escândalos, bêbados, brigões e adúlteros notórios.

Ainda assim, para os aprovados, a maçonaria foi a primeira entidade a funcionar de acordo com os preceitos da democracia moderna. Eles estimulavam debates abertos, em que todos podiam participar, além das eleições livres e diretas. Nada disso estava na moda no século 18. E, muito por influência dos próprios maçons, tornou-se corriqueiro no século 21, afirma o historiador alemão Jan Snoek, professor da Universidade de Heidelberg e especialista no assunto.

1500-Freimaurer-in-der-Hamburger-Michaeliskirche
Grande ritual maçônico em Hamburgo, Alemanha – Fonte – http://www.abendblatt.de/hamburg/article109558266/1500-Freimaurer-bei-Ritual-im-Michel.html

Assim, nada mais natural que os líderes da Revolução sa de 1789 aderissem à maçonaria. Nos anos que antecederam a queda do Antigo Regime, os adeptos se multiplicaram. A influência foi tanta que uma canção composta e cantada na loja de Marselha foi batizada de A Marselhesa e transformada no hino do país. Nem todos os ideólogos da revolução foram maçons. Marat e La Fayette eram, Robespierre e Danton, não. Mas, entre os inimigos da monarquia, mesmo quem não participava da ordem tinha sido influenciado por suas ideias, afirma o historiador americano W. Kirk MacNulty, maçom há mais de 40 anos.

Nas verdinhas

Além de divulgar ideias que atraíam a elite progressista de seu tempo, a maçonaria era também um espaço propício à conspiração política. Ao ingressar na ordem, os integrantes prometiam (e até hoje prometem) não divulgar seus segredos e nem mesmo revelar a nenhum profano (como são chamados os não iniciados) o que é dito nas reuniões.

Was-ist-Freimaurerei-1200x440
Trajes maçônicos – Fonte – al-prudens.de

As lojas maçônicas eram o lugar ideal para membros da elite de diferentes pensamentos políticos se encontrarem, diz o pesquisador Jesus Hortal, reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Além disso, quanto mais a maçonaria era acusada de ser um local de conspiração política, mais ela era procurada por conspiradores. A proteção das lojas ajudou a garantir o sucesso de um dos movimentos históricos mais influenciados pela organização: a independência americana, episódio que muitos historiadores chamam de revolução maçônica.

Grandes maçons – Algumas figuras centrais que se juntaram à ordem

image
George Washington – Fonte – https://www.star-of-africa.de/was-wissen-sie-%C3%BCber-freimaurerei/

George Washington (1732-1799)

Juntou-se bem jovem, enquanto ainda era soldado do Exército britânico, em 1752. Ocupado com sua luta, nunca foi muito ativo. Recusou o cargo de Grande Mestre na Virgínia em 1777, para se dedicar à luta contra a dominação britânica. Deram o cargo mesmo assim, sem seu consentimento, em 1788. Washington gostava do programa iluminista dos maçons, e também do fato de, nos EUA, serem menos anticlericais que na Europa. 

Voltaire (1694-1778)

O filósofo iluminista atacava a monarquia sa e defendia princípios maçons. Acabou sendo iniciado em uma loja de Paris em abril de 1778, só dois meses antes de morrer. Voltaire, que tinha 83 anos, entrou no local apoiado no braço do americano Benjamin Franklin.

Goethe_(Stieler_1828)
Johann Wolfgang von Goethe – Fonte – https://.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/0e/Goethe_%28Stieler_1828%29.jpg

Goethe (1749-1832)

O escritor e poeta alemão foi aceito em uma loja de Weimar em 1780. Escreveu vários poemas em homenagem à maçonaria. Os mais famosos são A Loja Maçônica e Symbolum (composto quando seu único filho, Auguste, foi iniciado).

Mozart (1756-1791)

O compositor austríaco entrou para a ordem em Viena, aos 28 anos. Compôs várias peças para serem executadas durante cerimônias maçônicas. Sua última ópera, A Flauta Mágica, tem tantas referências à ordem que Mozart foi acusado de revelar segredos maçons.

Gustave Eiffel (1832-1923)

Além de projetar a Torre Eiffel, em Paris, o engenheiro francês desenhou a Estátua da Liberdade, enviada como presente de comemoração dos 100 anos da independência americana . O projeto foi executado em parceria com o escultor Frederick Bartholdi (1834-1904), que também era maçom.

Charles Lindbergh – Fonte – https://www.usnews.com/photos/famous-freemasons?slide=8

Charles Lindberg (1902-1974)

O aviador foi aceito por uma loja de Saint Louis em 1926. No ano seguinte, tornou-se o primeiro homem a fazer um voo solitário transatlântico sem escalas. Durante a viagem, ele teria levado consigo um distintivo com os símbolos da régua e do como.

Buzz Aldrin (1930)

O segundo homem a pisar na Lua em 1969, após Neil Armstrong, pertence a uma loja maçônica no Texas. Queria ter levado um anel maçom de seu avô para a Lua, mas o perdeu antes da viagem. Mas ninguém sabe se ele teria mesmo levado uma bandeira com símbolos da ordem para lá.

Benjamin Franklin, um dos grandes responsáveis pela criação dos Estados Unidos da América, era grão-mestre (o líder máximo na hierarquia) na Filadélfia e responsável pela publicação no país do livro Constituições, escrito pelo britânico James Anderson em 1723 e considerado a declaração de princípios da entidade. O líder dos rebeldes, George Washington, e o principal autor da Declaração de Independência, Thomas Jefferson, também eram membros ativos, assim como um terço dos 39 homens que aprovaram a primeira Constituição do país. Os três usaram seus contatos com as maçonarias de outras nações, em especial da Inglaterra, para garantir o sucesso da rebelião.

Beschürzte-Brüder-Freimaurerei
Trajes maçônicos na Europa – Fonte – http://www.katholisches.info/2013/04/freimaurer-suchen-neuen-grosmeister-geht-es-logen-wirklich-nur-um-ethik-oder-auch-um-politik/

Há quem diga que a nota de 1 dólar, com seu olho solitário, é inteiramente marcada por símbolos maçons o olho, por exemplo, simbolizaria Deus (leia sobre os símbolos no decorrer da reportagem), coisa que os autores da cédula nunca confirmaram. Reza a lenda que George Washington teria vestido um avental da ordem durante a inauguração da capital, em 16 de julho de 1790, batizada em sua homenagem. Ele ainda teria orientado os engenheiros a encher a cidade de símbolos secretos da entidade. Por exemplo: algumas pessoas identificam o desenho de um como unindo a cúpula do Capitólio, a Casa Branca e o Memorial Thomas Jefferson.

Pelo mundo

No século 19, a maçonaria deu outras provas de sua capacidade de mudar a história. Por volta de 1810, um grupo de defensores da unificação italiana se reuniu com o nome de Carbonária. Inspirado nas estratégias e na hierarquia maçons, a sociedade secreta, que continuou atuante até 1848, tentava estimular uma rebelião espontânea dos trabalhadores, que implantariam os ideais liberais. Dois dos maiores heróis da construção da Itália unificada participaram desse grupo e depois foram aceitos pela maçonaria. Um deles, Giuseppe Mazzini (1805-1872), acabou rompendo com os maçons por acreditar que a ordem mais debatia que agia. Outro, Giuseppe Garibaldi (1807-1882), seria mais tarde condecorado o primeiro maçom do novo país.

c6024050e3c3f577421fa4c7390b8a91
Giuseppe Garibaldi – Fonte – https://br.pinterest.com/pin/116038127878095348/

Depois de participar de um levante malsucedido em Gênova, Garibaldi fugiu para o Rio de Janeiro em 1835. Encontrou um grupo de carbonários exilados que mantinha contatos com a maçonaria brasileira. Através deles conheceu o maçom Bento Gonçalves, o líder da Revolução Farroupilha. Em 1840, Garibaldi instalou-se no Uruguai, onde se tornou oficialmente participante da sociedade secreta. Quando morreu, em seu país, deu nome a lojas no Uruguai, Brasil, França, Estados Unidos, Inglaterra e Itália. Nas décadas seguintes, os democratas italianos de esquerda, cujos integrantes cerrariam fileiras na maçonaria, se destacaram pela defesa do sufrágio universal, da educação gratuita de qualidade e da independência do Estado com relação à Igreja.

É fácil entender como Garibaldi se tornou maçom na América do Sul. Desde o começo do século 19, a ordem cresceu a ponto de ser fundamental para a independência dos países da região. Nos países de língua espanhola, um dos precursores do pensamento pela soberania foi o venezuelano Francisco de Miranda (1750-1816), que, depois de participar da Revolução sa, foi iniciado na maçonaria por George Washington. Miranda fundou uma loja em Londres, batizada de Gran Reunión Americana.

csm_freimaurer_logo_mauer_715_pixabay15_4490d3245b
Fonte – http://www.idea.de/gesellschaft/detail/ezw-die-freimaurer-in-deutschland-legen-zu-92634.html

Ali, atuou na formação de três libertadores da América: o chileno Bernardo O’Higgins (1778-1842), o venezuelano Simon Bolívar (1783-1830) e o argentino José de San Martín (1778-1850). Eles frequentavam a mesma loja, Latauro, com sede em Cádiz, Espanha, e filiais latino-americanas. Seus membros se denominavam cavaleiros da razão e previam a independência, o fim da escravidão e a proclamação de repúblicas. Estima-se que a iniciação de Bolívar tenha ocorrido na Europa, entre 1803 e 1806. San Martín, adepto desde 1808, fundou lojas no Chile, no Peru e na Argentina (que já abrigava casas maçônicas desde 1775). O’Higgins frequentava a de Mendoza.

Em terras brasileiras

A fraternidade existia em nosso país desde o início do século 19 e contava com confrades de altos cargos da colônia. Entre os maçons decisivos para a separação de Portugal estava José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838). A ideia de conceder o título Defensor Perpétuo e Imperador do Brasil ao príncipe herdeiro da coroa portuguesa surgiu na própria Latauro, mesmo lugar que organizou as primeiras festas de rua pela independência, no Rio, em 12 de outubro de 1822.

Brasil maçonaria
Fonte – http://robertomacom.blogspot.com.br/2015_02_01_archive.html

O envio de emissários às grandes províncias brasileiras para articulação da Independência foi organizado pelo Grande Oriente do Brasil, a federação maçônica nacional fundada em 17 de junho do mesmo ano, de onde José Bonifácio foi grão-mestre. Em 2 de agosto de 1822, o próprio dom Pedro I entrou para a entidade, sob o codinome Pedro Guatimozim, uma homenagem ao último rei asteca. Apenas três dias depois de iniciado, ele já tinha sido alçado a mestre. Mais dois meses e já era o grão-mestre do país. ados apenas 17 dias da promoção, Pedro, já imperador, abandonou a fraternidade e proibiu suas atividades no Brasil. A melhor explicação dos especialistas para a atitude é a insatisfação do monarca com uma entidade onde a hierarquia era submetida a regras e podia ser questionada.

Em 1831, de volta legalmente à ativa, após a renúncia de dom Pedro e seu retorno a Portugal, a maçonaria brasileira se multiplicou. Em 1861, a ordem se mobilizou em apoio ao movimento abolicionista. No Ceará, lojas se reuniram para comprar e libertar escravos. Eusébio de Queiroz (1812-1868), que batizou a lei que proibia o tráfico de escravos, era maçom. O visconde do Rio Branco (1819-1880), abolicionista e chefe de Gabinete Ministerial entre 1871 e 1875, foi grão-mestre. Quando a Lei Áurea foi assinada pela princesa Isabel (1846-1921), em 1888, o presidente do Conselho de Ministros era o grão-mestre João Alfredo Correa de Oliveira (1835-1919). Das lojas também veio o apoio à mudança no regime de governo. Em 1889, a República foi proclamada pelo confrade marechal Deodoro da Fonseca (1827-1892), que formou um ministério só com maçons. Dos 12 chefes de Estado até 1930, oito eram maçons; dos 17 governadores de São Paulo durante a República Velha, 13 pertenciam à ordem.

689769-entenda-os-significados-dos-simbolos-maconicos
Fonte – http://www.mundodastribos.com/entenda-os-significados-dos-simbolos-maconicos.html

Caça aos bruxos

A partir de 1930, com a ascensão de Getúlio Vargas (1882-1954) ao poder, a maçonaria brasileira ou a ser estigmatizada. Os delírios do integralista Gustavo Barroso (1888-1959), de que a entidade unira-se ao judaísmo para controlar a humanidade, faziam sucesso. O mesmo surto ocorreu em outros países. Na União Soviética, Leon Trótski (1879-1940) denunciou um suposto complô maçom-judaico para dominar o planeta. Adolf Hitler (1889-1945), que dizia que a maçonaria era uma arma dos judeus, mandou fechar todas as lojas alemãs, prendeu líderes e, em 1937, organizou a Exposição Antimaçônica. Aberta em Munique pelo ministro da propaganda, Joseph Goebbels, a mostra reunia peças de lojas invadidas. Na Espanha, em 1940, o general Francisco Franco (1892-1975) proibiu a existência dos grupos e condenou seus membros a seis anos de prisão.

Nem só a perseguição fez organização perder poder. A maçonaria não se adaptou aos novos tempos, diz Françoise Souza. Ela foi poderosa enquanto era um local único de reunião de pessoas. Com a consolidação da sociedade civil, surgiram outros espaços associativos, como partidos, sindicatos e organizações não governamentais. Além disso, causas clássicas da maçonaria, como a liberdade religiosa, viraram direitos. Mas ainda existem locais onde a segurança e a valorização da liberdade de expressão são fundamentais. É o caso de Israel. Em Jerusalém, as lojas reúnem cristãos, judeus e muçulmanos, que conversam abertamente, trocam experiências e sabem que podem confiar uns nos outros, afirma o historiador Jan Snoek. Em lugares assim a maçonaria continua, como era em suas origens, uma organização inovadora.

Fundadores legendários  Estes seriam os primeiros maçons, segundo as lendas

Adão

Alguns integrantes da ordem defendem que Deus foi o primeiro maçom afinal (como um bom pedreiro) ele construiu o mundo inteiro em seis dias. Para outros, esse cargo cabe a Adão. Ao ser expulso do paraíso, ele teve de encontrar uma forma de construir abrigo. Seus ensinamentos teriam sido levados adiante por seu filho Caim.

Noé

De acordo com a Bíblia, depois de construir um barco e escapar do grande dilúvio com um casal de cada espécie animal, Noé precisou começar tudo do zero. Para alguns maçons, isso faz dele um pioneiro na arte da construção logo, um fundador da maçonaria.

Egípcios

Só mesmo grandes engenheiros seriam capazes de construir as pirâmides do Egito antigo. Por isso, não falta quem diga que entre os egípcios também estavam os primeiros maçons. Por essa versão, eles teriam criado ritos ocultos, os mesmos que teriam usado na construção da Grande Pirâmide de Quéops.

Hiram Abiff

Segundo a Bíblia, o rei Salomão teria contratado um outro rei, chamado Hiram Abiff, para ser o engenheiro-chefe de seu templo. De acordo com a maçonaria, Hiram foi morto por funcionários que queriam roubar os segredos de Salomão. Assim, Hiram acabou virando um mártir e também um exemplo de discrição.

Pitágoras

Além de fundador da Matemática como disciplina de estudos, o grego fundou a escola pitagórica, que tratava seus seguidores como uma irmandade sem superiores e seguia rígidos princípios religiosos e de comportamento. Assim, não é difícil entender a ligação que fizeram entre ele e a maçonaria.

Templários

Os sobreviventes da poderosa ordem, destruída em 1312 a mando do papa Clemente V, teriam continuado a se reunir em segredo até voltar a público em 1717, na forma da maçonaria. Algumas palavras em código dos maçons seriam inspiradas nas senhas usadas pelos templários.

SAIBA MAIS:

►A Maçonaria Símbolos, Segredos, Significado, W. Kirk MacNulty, Martins Fontes, 2007
►Arquivos Secretos do Vaticano e a Franco-Maçonaria, José Ferrer Benimeli, Madras, 2007
►O Poder da Maçonaria, Françoise Jean de Oliveira e Marco Morel, Nova Fronteira, 2008

Fonte – http://tokdehistoria-br.informativoparaibano.com/noticias/reportagem/o-como-do-mundo-tudo-sobre-a-maconaria.phtml#.WL39T4WcHIW

AS DESCOBERTAS MAIS RECENTES SOBRE A VIDA DE JESUS CRISTO

289-jesus-01

Relíquias e manuscritos encontrados nos últimos anos têm ajudado arqueólogos e cientistas a compreender com mais detalhes as pessoas com quem o Messias dos cristãos viveu e revigoram a busca por evidências sobre seu ado

Por Humberto Abdo

http://revistagalileu.globo.com/Revista/noticia/2015/08/novas-descobertas-sobre-verdade-historica-de-jesus.html

Nutridas por boatos e muitos fãs, algumas figuras públicas continuam notórias com o ar dos anos. Mas existe um personagem que, mesmo após mais de dois milênios, continua encantando o público. Você já ouviu seu nome antes: de uma forma ou de outra, todos já foram apresentados a Jesus de Nazaré. Mas descrever seu ado em detalhes é um desafio que também resiste ao tempo.

Recém-lançado no Brasil, o livro Em busca de Jesus (Objetiva) reúne as mais recentes tentativas de reconstituir a vida do famoso filho de Deus e mostra que esse ainda é um tema bem popular. A partir de seis relíquias encontradas nos últimos anos, os autores David Gibson e Michael McKinley analisaram pesquisas e argumentos de profissionais envolvidos na busca pelo misterioso homem nascido em Nazaré e crucificado na província romana da Judeia, região da atual Cisjordânia.

A história de Jesus é formada por pouquíssimas informações comprovadas por cientistas ou especialistas, mas já existem algumas certezas. “Acredita-se que Jesus só sabia falar aramaico e muito provavelmente era analfabeto”, diz André Chevitarese, professor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de Jesus histórico: uma brevíssima introdução. “Ele viveu e morreu como judeu de origem campesina; o cristianismo que conhecemos hoje é um movimento posterior àquela época.” Através da reconstrução facial de crânios encontrados perto de Jerusalém, especialistas estabeleceram como seria a verdadeira aparência física de um morador típico da região. Diferentemente do homem branco, alto e de olhos azuis idealizado pelos artistas, é mais provável que Jesus tenha sido moreno, de olhos castanhos, cabelo curto e estatura baixa: um judeu comum nascido no Oriente Médio. Sobre seu local de nascimento, os teólogos insistem em Belém, terra natal de Davi, um dos antigos reis de Israel. “Mas nada favorece essa versão, e do ponto de vista histórico não há dúvidas: Jesus é nazareno”, afirma Chevitarese.

289-jesus-02

PLOT TWIST BÍBLICO

Enquanto o mundo se concentrava nos momentos finais da Segunda Guerra Mundial, em 1945, um camponês foi responsável pela descoberta de 13 manuscritos encontrados no Egito. Eles ficariam conhecidos mais tarde como Biblioteca de Nag Hammadi, nome da cidade onde foram localizados. Historiadores confirmaram que a data estimada dos textos corresponde ao século 4 e que são traduções de originais em grego. “São achados cruciais para a compreensão do cristianismo em seu período de formação e demonstram a existência dessa pluralidade de manifestações religiosas nos quatro primeiros séculos”, explica Vagner Porto, professor de arqueologia clássica da USP. Boa parte desses papiros, escritos em copta (mistura dos idiomas grego e egípcio), estava ligada ao movimento cristão conhecido por gnosticismo. “Os ensinamentos gnósticos diferem na crença de que cada um é responsável por seus atos e por sua própria salvação espiritual”, explica Karlos Bunn, presidente da Igreja Gnóstica do Brasil.

Judas Iscariotes e Maria Madalena exerceram papéis decisivos na trajetória de Jesus. Seus possíveis Evangelhos foram encontrados em péssimas condições, e hoje são considerados textos gnósticos. A primeira aparição do Evangelho de Maria foi registrada em 1896, mas uma sequência de atrasos — incluindo um cano de água estourado na casa de uma editora e a eclosão da Primeira Guerra Mundial — fez que ele só fosse publicado em 1955, com algumas páginas perdidas e bastante deteriorado. Assim como certos textos de Nag Hammadi, esses fragmentos apresentavam Maria como grande seguidora dos ensinamentos de Jesus. “O conceito de Maria Madalena como a discípula amada indica que um grupo de cristãos do primeiro século a considerava uma das líderes desse movimento”, disse Paulo Roberto Garcia, professor de teologia e ciências da religião na Universidade Metodista de São Paulo. Não existe, contudo, confirmação de que os manuscritos se refiram a Maria Madalena no lugar da própria mãe de Jesus.

Já o Evangelho de Judas, identificado nos anos 1970 por dois agricultores, foi recuperado após um roubo repentino e examinado pela primeira vez em 1983. Nos anos 2000, ou por um processo de restauração, e 85% do material foi preservado. De início, o documento foi divulgado como um plot twist, isto é, uma reviravolta na história. O texto conta a redenção de Judas, afirmando que teria sido o mais fiel dos seguidores e que cumprira ordens de Jesus para ajudá-lo a livrar-se de seu corpo após a morte. “O problema foi todo o sensacionalismo empregado na tradução, trabalhada com a expectativa de mudar o papel de Judas”, disse Garcia. “Um dos textos diz que ele subiria aos céus pelo que fez, sendo que dois dos tradutores concordaram que a versão correta teria sido ‘não subiria’, por exemplo.”

Para muitos dos arqueólogos e historiadores envolvidos na busca por evidências que remontem, de alguma forma, ao ado de Jesus, é pouco provável que objetos relacionados a sua história continuem a aparecer nos próximos anos. “Hoje as pesquisas não se concentram tanto em itens que pertenceram a Jesus”, diz Chevitarese. “O objetivo maior é conhecer o ambiente físico, geográfico e político dele, além de suas crenças, seus amigos, inimigos e, sobretudo, quem foi ele.”

APP EM NOME DE JESUS

A suposta urna funerária com os ossos de Tiago, um dos 12 apóstolos, desperta algumas dessas características. “Tiago, filho de José, irmão de Jesus”, diziam as inscrições do ossuário, em aramaico. Oded Golan, colecionador de antiguidades pouco familiarizado com religião, afirma ter comprado o objeto em Israel, nos anos 1970, no início sem assimilar seu verdadeiro significado. Uma análise de escrita feita em 2002 sugeriu que a segunda parte das inscrições teria sido gravada pelas mãos de outro escriba. “Supondo que Tiago tenha morrido na década de 40 do século 1, Jesus já teria de ser uma figura reconhecida em todo o ambiente da Judeia para que seu nome fosse agregado como forma de distinção, mas Jesus de Nazaré só se torna amplamente conhecido um século e meio depois”, disse Chevitarese. “A frase gravada refere-se a Jesus de Nazaré? Tiago foi seu irmão? Maria foi, como dizem, virgem a vida inteira, ou teve outros filhos?”, pergunta McKinley no livro. Sem a chance de confirmar se o artefato é genuíno, essas dúvidas devem continuar sem respostas.

Objetos que um dia estiveram em contato com Jesus até hoje provocam fascinação. Nos tempos da Idade Média, eles movimentaram um comércio bem incomum. Imitações de artefatos eram fabricadas com mais frequência do que os arqueólogos contemporâ­neos gostariam de itir. “Para explorar a crença popular, encorajava-se a ideia de que possuir uma relíquia traria bênçãos e também serviria como amuleto”, diz Garcia.

Um deles é o Sudário de Turim, o manto que teria envolvido o corpo de Jesus. Atualmente, o objeto descansa numa capela no norte da Itália, equipada com controle de temperatura e vidro à prova de balas. A peça de linho retangular exibe manchas de sangue e vincos equivalentes a um rosto. É o artefato mais bem documentado de todos, mencionado nos quatro Evangelhos e nos Livros Apócrifos (relatos de Cristo não reconhecidos pela Igreja). A relíquia também repousa em milhões de celulares e tablets espalhados pelo planeta: embora o Vaticano não tenha se posicionado enfaticamente sobre o assunto, aproveitou para lançar, em 2013, o primeiro aplicativo dedicado ao Santo Sudário. O Shroud 2.0 permite ampliar a imagem para uma análise mais detalhada do pano — sem ter de viajar até a Itália.

289-jesus-03

HOMEM PROCURADO

Várias análises do manto foram realizadas e comprovaram que o material realmente cobriu o corpo de um ser humano e que as manchas de sangue eram de fato compostas por hemoglobina. O estudo mais recente, publicado em 2014 na revista científica Injury, também aponta que os ferimentos sofridos por esse indivíduo correspondem aos de uma crucificação. Apesar dos resultados, a data do manto — muito distante dos anos vividos por Jesus Cristo — ainda é um contra-argumento forte. “O maior desafio é conseguir permissão para novos testes”, explica McKinley. “O Sudário provavelmente permanecerá atrás de um vidro blindado para sempre.” A aparição desses objetos, relacionados a períodos tão distantes, simboliza a caçada interminável a possíveis referências de Jesus como figura histórica. “Resultado de uma percepção sustentada exclusivamente pelo ponto de vista científico, com análises da história, arqueologia e sociologia”, explica Chevitarese.

Talvez o discernimento científico explique a desconfiança inicial de Karen King, professora da Universidade Harvard, quando um colecionador anônimo resolveu entrar em contato, convencido de que havia encontrado o papiro do Evangelho da Esposa de Jesus, como seria chamado mais tarde. Apesar do nome chamativo, o achado — um pequeno fragmento bastante deteriorado — não tem qualquer relação com o Evangelho de Maria, texto gnóstico encontrado décadas antes, e tampouco reforça hipóteses de que Jesus tivesse sido casado. Em 14 linhas, o manuscrito parece debater a real necessidade do celibato na religião cristã, reflexão inédita nos demais Evangelhos canônicos.

RESISTENTES AO TEMPO

“A questão principal do papiro é assegurar que mulheres casadas e com filhos também possam ser discípulas de Jesus — uma discussão frequente nos tempos do cristianismo primitivo, conforme a virgindade celibatária ava a ser mais valorizada”, disse Karen em relatório divulgado pela Harvard Divinity School.

Após a publicação de sua análise ter sido desconsiderada por uma porção de estudiosos, Karen reforçou a veracidade do documento com o resultado de exames feitos ao longo de dois anos, até a confirmação em abril de 2014: o material não era uma imitação moderna e foi escrito entre os séculos 6 e 9. Entretanto, não existe consenso sobre os significados desse pequeno pedaço de história, talvez pelo seu estado de conservação ou pelo conteúdo incompleto do texto. Mas to­das as características são compatíveis com a longa e constante busca por Jesus: fragmentadas, ambíguas e, ainda assim, resistentes ao tempo.

AS OITO RELÍQUIAS
Os artefatos que ajudam a entender o que era a Judeia no século 1
EVANGELHO DA ESPOSA DE JESUS
Escrito em copta, questiona a necessidade do celibato no cristianismo.
COMO FOI ACHADO
Colecionador anônimo comprou das mãos de um negociante alemão.
 
 

 

BIBLIOTECA DE NAG HAMMADI
A coleção de papiros inclui Evangelhos, como os de Tomé e de Filipe.
COMO FOI ACHADO
Por um camponês egípcio que fazia escavações nos arredores à beira do rio Nilo.
 

EVANGELHO DE MARIA
Publicado em 1955, o texto gnóstico reforça a presença da discípula em vários momentos da vida de Jesus.
COMO FOI ACHADO
O estudioso alemão Karl Reinhardt comprou em 1986 o documento original, que encontrou na aldeia de Akhmin, no Alto Egito, no Cairo.
 
EVANGELHO DE JUDAS
A descoberta de seu Evangelho continua a confundir: Judas traiu mesmo Jesus?
COMO FOI ACHADO
Dois agricultores encontraram o manuscrito no final dos anos 1970, no sul da cidade do Cairo.
 
RELICÁRIO DE MÁRMORE DE JOÃO BATISTA
Fragmentos de ossos de um homem que viveu no Oriente Médio, sem provas de que eram de João Batista.
COMO FOI ACHADO
Em 2010, durante buscas nas ruínas de uma basílica do século 5, na Bulgária.
 
SANTO SUDÁRIO
O manto sagrado pode ter sido usado para cobrir o corpo de Jesus — ou para colocar essa ideia na cabeça de fiéis.
COMO FOI ACHADO
As referências são antigas e muito vagas, mas o manto voltou a aparecer na França no século 14.
 
URNA FUNERÁRIA COM OSSUÁRIO DE TIAGO
Urna onde se lê “Tiago, filho de José, irmão de Jesus” significaria que o messias teve um irmão.
COMO FOI ACHADO
Foi comprada em Haifa, em Israel, nos anos 1970.
PEDAÇO DA CRUZ
Como o próprio nome diz, seria um pedaço da cruz em que Jesus foi crucificado.
COMO FOI ACHADO
Em 2013, arqueólogos alegaram ter encontrado o pedaço durante uma escavação no norte da Turquia.

CONHEÇA A VERDADE POR TRÁS DA TÁVOLA DO REI ARTUR

King_ArthurMEDIUM

A mítica história do Rei Artur é um dos grandes temas da literatura britânica. Mas existe alguma verdade por trás do mito? E por que ele é ainda tão influente após séculos? 

O Rei Artur que conhecemos hoje é uma junção de diferentes lendas, escritas por diferentes autores, em épocas distintas. Todas são unidas pelo tema comum de que o Rei Artur foi um general britânico do século V que lutou contra tribos anglo-saxônicas e garantiu que a Grã-Bretanha permanecesse um paraíso ocidental. A primeira menção ao Rei Artur na história data de 830 e é atribuída a um autor chamado Nennius. Ele escreve: “Naqueles dias, então, Artur lutou junto aos reis britânicos, e ele era o comandante nessas batalhas”. 

Um conto mais elaborado sobre o Rei Artur surgiu no século XI, quando Geoffrey de Monmouth publicou seu livro “The History of the Kings of Britain” (em tradução livre, “A História dos Reis da Grã-Bretanha”). A vida inteira de Arthur é descrita pela primeira vez nessa publicação, desde seu nascimento, em Tintagel, até sua morte, e as figuras de Guinevere e Merlin são introduzidas. Esse livro teve um impacto enorme na época. Até hoje, ainda existem aproximadamente 200 manuscritos. 


Com o casamento de Henrique II de Inglaterra com Leonor da Aquitânia, as histórias de Artur começaram a florescer nas cortes sas, e a lenda tomou ares românticos e espirituais. Foi nesse contexto que o misterioso Cálice Sagrado aparece pela primeira vez pelas mãos do escritor da corte sa Chrétien de Troyes. Em seu poema “Perceval ou le Conte du Graal” (1181-90), ele fala: 

“Uma garota chegou, bela, formosa e lindamente enfeitada, e entre suas mãos ela segurava um cálice. E quando ela trouxe o cálice, o local foi inundado por uma luz tão brilhante que as velas perderam seu brilho, assim como a lua ou as estrelas quando o sol nasce”. 

Os contos do Rei Artur se tornaram tão incorporados às mentes dos britânicos que quando Henrique VIII chegou ao trono, em 1509, ele mandou repintar a Távola Redonda de Winchester, de Eduardo III, com seu semblante retratado no topo, como um novo Artur, um imperador cristão e chefe do Império Britânico. 

s9FvA
Outro exemplo da influência de Artur data de 1834, quando as Casas do Parlamento foram reconstruídas após um incêndio desastroso. Imagens do Rei Artur, do livro de Thomas Malory “The Death of Arthur” (1846), ou “A Morte de Artur”, na tradução, foram selecionadas para a decoração da antessala cerimonial da rainha na Câmara dos Lordes.

Até hoje, o mito não perdeu seu apelo e é ainda tema de muitos livros e filmes. Porém, apesar da presença forte de Artur no folclore Celta, são poucas as evidências sobre a sua real existência. Na história, não há menção a nenhum Artur. A única fonte contemporânea, “The Ruin and Conquest of Britain” (em tradução livre, “A Ruína e a Conquista da Grã-Bretanha”), livro escrito pelo historiador e monge britânico Gildas, menciona apenas um líder sem nome e Rei dos Britânicos – seria Artur? 

An undated handout photos shows Lancelot & Gawain in a cart being pelted with filth

O consenso entre a maioria dos historiadores é que Artur provavelmente existiu, ou como um indivíduo, ou mesmo como uma série de indivíduos. Como muitos dos heróis da Idade Média foram homens reais cujos talentos foram aceitos como verdade pela maioria dos historiadores, há uma grande possibilidade de que Artur tenha sido um guerreiro Celta que deu origem ao resto das estruturas mitológicas. 

Por que, mesmo sem evidências concretas, Artur figura tão fortemente na mitologia britânica? Uma explicação seria que Artur representa a história britânica em sua totalidade, sendo seus contos um modo de explicar como nasceu a Grã-Bretanha, especialmente com relação aos Saxões e Celtas. Certamente, a história se tornou popular durante tempos de inquietação social devido à sua inquestionável estabilidade moral. E os últimos séculos só serviram para provar que a história do Rei Artur está longe de perder seu magnetismo.

FONTE – http://seuhistory.com/microsite/o-ultimo-reino/noticias/tavola-do-rei-artur-e-revelada

 

 

 

ARQUEÓLOGOS BRITÂNICOS MAPEIAM CIDADE MEDIEVAL SEM FAZER ESCAVAÇÃO

141203071610_muralha

Usando modernas técnicas de varredura, especialistas britânicos conseguiram produzir um mapa detalhado de uma cidade medieval sem precisar escavar o local.

As técnicas revelaram uma rede de edifícios que se ergueram em um local do século 11 conhecido como Old Sarum, no condado de Wiltshire, na Inglaterra.

Old Sarum foi originalmente uma fortaleza da Idade do Ferro, criada por volta de 400 AC e ocupada pelos romanos após a conquista da Grã-Bretanha em 43 DC.

O sítio arqueológico é o ponto original da cidade de Salisbury, que fica a pouco mais de 3,5 km de distância. Ao longo dos séculos, romanos, normandos e saxões deixaram suas marcas no local.

A pesquisa da Universidade de Southampton revelou uma série de grandes estruturas, possivelmente de defesa, com grandes áreas ao ar livre, possivelmente para reunir pessoas ou estocar recursos.

Vista do local atualmente.
Vista do local atualmente.

A pesquisa se concentra nas muralhas do interior e exterior do que teria sido o forte.

“Os arqueólogos e historiadores sabiam há séculos que havia uma cidade medieval em Old Sarum, mas até agora não havia nenhum mapa adequado do sítio”, disse o diretor do setor de serviços de prospecção arqueológica da universidade, Kristian Strutt.

“Nossa pesquisa mostra onde estão localizadas as construções individuais. A partir disso podemos ter uma imagem detalhada do plano urbano dentro dos muros da cidade.”

As técnicas modernas utilizadas para o levantamento do terreno incluíram magnetometria, resistência de terra, radar de penetração no solo e tomografia de resistividade elétrica, que utiliza eletrodos para sondar o subsolo.

Fonte – BBC

ARTHUR, O HERÓI DA BRETANHA

487892_608480622501553_1258568449_n

No mundo real, o dono da lendária Excalibur não foi rei nem se reunia com seus cavaleiros em torno da távola redonda, mas organizou uma resistência sem precedentes contra os bárbaros que ameaçavam sua terra

Para a maioria dos europeus, o fim do mundo talvez nunca tenha estado tão próximo quanto lá pelo fim do século 5. A única ordem que a região havia conhecido por quase 500 anos – o poder de Roma – tinha virado pó depois de uma longa agonia e o futuro parecia pertencer aos bandos de bárbaros do norte e do leste, fundando reinos que brotavam e sumiam como cogumelos nas terras do antigo império. Mas havia um lugar em que a vida não estava sendo nada fácil para os invasores. Na ilha da Bretanha, os ex-súditos de Roma montaram a resistência mais bem-sucedida da Europa e detiveram a maré bárbara por décadas. Cada vez mais parece provável que um líder militar poderoso conduziu os bretões, um guerreiro que iria virar lenda: Arthur.

A figura que está emergindo das brumas do ano 500 muito provavelmente não era um soberano e com certeza jamais botou os pés num castelo. Mesmo assim, existem paralelos intrigantes entre o Arthur lendário e o do mundo real, que podem incluir detalhes como o local de nascimento, a morte nas mãos de um conterrâneo bretão e, segundo uma das teorias mais polêmicas, até batalhas travadas do outro lado do canal da Mancha, em pleno território da atual França.

c1BT10

Muito antes da carreira militar de Arthur, a Bretanha romana (que correspondia mais ou menos à Inglaterra, ao País de Gales e ao sul da Escócia de hoje) já andava em maus lençóis havia um bom tempo. Em parte, isso era culpa dos próprios soldados que deviam comandar a defesa da ilha: volta e meia a Bretanha exportava um general que almejava tonar-se imperador, como o famoso Magnus Maximus, que chegou perto de conseguir seu intento antes de ser derrotado no ano 388. Esses sujeitos arrastavam consigo os exércitos responsáveis por patrulhar a província, deixando-a cada vez mais vulnerável à sanha dos piratas bárbaros.

Esse problema era endêmico no império todo na época, mas, no caso da Bretanha, o incômodo era triplo. Do norte da Alemanha e do sul da Dinamarca vinham tribos germânicas, os anglos, saxões e jutos, falantes de dialetos ancestrais do inglês de hoje. Do nordeste da Escócia atacavam os escotos e os pictos, guerreiros violentos que lutavam de um jeito selvagem, quase nus, com o corpo coberto por tatuagens. Para completar a desgraça, havia os escotos da Irlanda, que também eram um povo celta como seus primos bretões e gauleses, mas tinham ficado de fora do domínio romano.

Muita gente costuma imaginar que, em dado momento, Roma acabou desistindo de manter a ilha dentro de seus domínios, já que tinha de se preocupar com a própria sobrevivência, e abandonou a Bretanha. Mas o que aconteceu foi exatamente o contrário: os bretões ficaram de saco cheio de serem deixados na mão por mais um general que queria virar imperador (um tal de Constantino III) e declararam independência. “A idéia de que a ilha ficou indefesa porque os romanos retiraram suas legiões não a de um mito. As legiões foram embora porque Constantino as levou com ele para tentar conquistar o continente, sem sucesso, e a mudança seguinte no status da Bretanha foi ativa, e não iva”, afirma o historiador britânico Geoffrey Ashe, autor de Kings and Queens of Early Britain (“Reis e Rainhas da Antiga Bretanha”, inédito no Brasil). O imperador legítimo, Honório, reconheceu a independência da região em 410, numa carta em que delegou às cidades bretãs a responsabilidade de se defenderem militarmente.

Hadrians-wall-Greenhead-Lough-Velela-pub-e1334082953226

Uma lança de duas pontas

Parecia ousadia demais dos bretões. E era mesmo. A estratégia de defesa que a Bretanha independente ou a adotar seguia os padrões dos romanos em seus anos finais de dominação: contratar mercenários bárbaros, normalmente germânicos, para fazer o trabalho sujo. Muitos deles eram saxões, parentes dos invasores, como mostra a presença de fivelas de cintos militares típicos desse povo em sítios arqueológicos da época.

Sujeitos ambiciosos e com alguma tradição de liderança aproveitaram o momento para ganhar poder. “Os aristocratas nativos tinham se romanizado, mas, quando a ligação com Roma foi cortada, as antigas tradições de nobreza retornam com força. Os bretões eram muito conservadores nesse sentido”, diz o historiador Christopher Snyder, da Universidade Marymount, nos Estados Unidos. Um desses homens, chamado Vortigern, parece ter conseguido se tornar superbus tyrannus (“governante supremo”, em latim) de boa parte da Bretanha por volta do ano 430.

Mas algo deu muito errado. Talvez os mercenários saxões não tenham sido pagos, ou talvez apenas tenham percebido que seria fácil tomar mais do que os bretões lhes haviam prometido. O fato é que o tiro saiu pela culatra, e os saxões se apossaram de terras por todo o leste da atual Inglaterra. Mais e mais levas deles vinham se juntar aos que já estavam na Bretanha, e os ataques de pictos e escotos voltaram com força total. Os bretões chegaram a pedir a ajuda de Roma, numa carta desesperada ao general Aetius: “A Aetius, três vezes cônsul, os lamentos dos bretões. Os bárbaros nos empurram para o mar; o mar nos empurra de volta para os bárbaros. Entre esses dois tipos de morte, somos ou afogados ou assassinados”, dizia a mensagem, datada de 446. Às voltas com os hunos de Átila batendo nos portões de Roma, Aetius não tinha como ajudar.

arthur

É uma tarefa ingrata reconstruir o que aconteceu nas décadas seguintes. Além dos restos arqueológicos (que dizem pouco sobre pessoas ou batalhas específicas), tudo o que temos são anais compilados por monges na Bretanha e na Gália, às vezes séculos depois dos eventos narrados, e o apocalíptico De Excidio et Conquestu Britanniae (Da Destruição e Conquista da Bretanha), do também religioso Gildas. Esse livro tem, pelo menos, a vantagem de ter sido escrito mais ou menos perto dos eventos narrados, lá pelo ano 530. A principal preocupação de Gildas era moralizante (o monge diz que os bretões andavam levando a pior por causa de seus pecados), mas, no meio de tanto sermão, há também informações preciosas.

Segundo o monge, os bretões finalmente conseguiram iniciar uma resistência, sob o comando de um certo Ambrosius Aurelianus. “Gildas o descreve como um vir modestus, ou seja, um homem decente, e afirma que seus pais usavam a púrpura, o que é uma indicação de que eles eram de uma família romana de origem nobre”, diz Christopher Snyder. A partir daí, a briga ficou indefinida, com vitórias de um lado e de outro, até que os bretões conseguiram um grande triunfo, num lugar chamado monte Badon (Gildas não deixou claro se foi Ambrosius quem conduziu os bretões nessa vitória). Dali por diante, os bretões teriam conseguido uma trégua de quase meio século. Textos compilados séculos mais tarde, provavelmente com base em antigos anais do século 5, não deixam dúvidas sobre quem teria sido o vencedor de Badon: seu nome era Arthur.

round table

Num dos raros momentos em que dá para comparar dados históricos com os da arqueologia, parece que ao menos o esquema básico dessa narrativa está correto: pesquisadores como John Hines, da Universidade de Cardiff, no País de Gales, verificaram que os cemitérios saxões (caracterizados pelas jóias e armas típicas dos mortos) avançam progressivamente para o oeste, sinalizando a expansão dos invasores, até pararem de repente por volta do ano 500. O avanço só recomeça meio século depois. Alguém ou algo deteve os saxões – resta saber se o fenômeno atende mesmo pelo nome de Arthur.

Curiosamente, outras pistas quase contemporâneas sobre o líder bretão são exatamente isso: nomes. Praticamente não há menção a pessoas chamadas “Arthur” na Bretanha antes de Badon, mas o nome, de repente, se torna um dos favoritos da nobreza nos dois séculos seguintes. “Há uma série de breves referências a reis e príncipes galeses e irlandeses chamados Arthur a partir do fim do século 6”, conta Kenneth Dark, historiador da Universidade de Reading, na Inglaterra. “Nenhum desses homens deve ser o Arthur histórico, mas o que eles mostram é que o nome se tornou popular entre as famílias reais, e que pode ter havido um Arthur famoso que inspirou o batismo deles”, afirma Dark. O poema épico “Y Gododdin”, provavelmente do século 6, cita Arthur como modelo de bravura em combate. Dali por diante, o guerreiro começa a ser chamado de rei e vira presença constante nas lendas galesas, até ser transformado na figura cavalheiresca e mágica que conhecemos (com Merlin, Guinevere e tudo o mais) pelo clérigo Geoffrey de Monmouth, num livro de 1136.

King-Arthur-manuscript-kn-006

Lendas, mitos e tradição

É nesse ponto que comparar a lenda com a história começa a se tornar um exercício útil. Diz a tradição, por exemplo, que Arthur teria nascido no castelo de Tintagel, na Cornualha (região sudoeste da Inglaterra). Acontece que escavações e análises feitas no final dos anos 90 nessa região mostraram que, de fato, Tintagel foi o lar de um nobre poderoso no fim do século 5. Havia ali um movimentado porto, que comerciava com a Gália (atual França), a Itália e o norte da África. Quem quer que habitasse o lugar podia pagar pelo luxo de beber vinho e usar azeite do Mediterrâneo, carregados em vasilhas de fina cerâmica. Mas a descoberta mais impressionante no local foi uma laje de pedra com uma espécie de de quem mandou construir o lugar: Artognou (pronuncia-se “Arthnou”). No mínimo, é uma coincidência das grandes.

A 100 quilômetros de Tintagel, escavações que se sucedem desde os anos 60 têm mostrado que a região de Cadbury, identificada com a lendária Camelot há séculos, realmente abrigou a maior praça forte da Bretanha nos séculos 5 e 6. Um colosso com muralhas de madeira e pedra que iam subindo, em círculos, as encostas de uma colina até terminar num portão, cercado por torres.

Tudo indica, então, que as áreas por onde Arthur andava ainda eram prósperas e bem guarnecidas militarmente. Mas será que ele as governava? Arthur deve ter sido um nobre bretão, mas as referências mais antigas às batalhas vencidas por ele, no manuscrito do século 6 conhecido como Historia Brittonum (“História dos Bretões”), de autoria desconhecida, o chamam de dux bellorum, “líder de batalhas”, e dizem que ele lutava ao lado dos reis bretões. Esse texto também mostra que a imagem de Arthur como um herói cristão é muito antiga: numa de suas vitórias, ele teria carregado uma imagem de Nossa Senhora. Em Badon, teria empunhado “a cruz de Nosso Senhor Jesus” (provavelmente uma referência a um amuleto muito comum na época: um pedaço de madeira supostamente retirado da cruz em que Cristo morreu). Ser um líder guerreiro, na época, significava trabalhar muito. Lutava-se um tipo de guerra altamente móvel e sobre qualquer terreno. “A maioria de suas tropas provavelmente era montada e lutava com espadas, lanças e dardos, aproximando-se do inimigo numa série de investidas, e não numa carga de cavalaria coordenada”, diz Leslie Alcock, arqueólogo da Universidade de Glasgow, na Escócia, e autor de Arthur’s Britain (“A Bretanha de Arthur”, sem versão em português).

Satellite

Até a idéia de que Arthur teria levado um exército para a Gália, por séculos considerada uma invenção de Geoffrey de Monmouth, tem sido reconsiderada. Para Geoffrey Ashe, registros sobre um chefe bretão chamado Riothamus, que levou 12 mil homens para ajudar os romanos contra os visigodos, poderiam, na verdade, se referir a Arthur. É que Riothamus aparenta ser não um nome, mas um título, significando “rei supremo”. No entanto, como a aventura de Riothamus data de 470 e ele desaparece logo depois, fica difícil reconciliá-lo com a vitória de Arthur em Badon (por volta do ano 490).

O fim de Arthur registrado por antigos textos galeses oferece mais uma conexão intrigante entre história e lenda. No mito, o rei teria sido traído por seu sobrinho, Mordred, conseguiu matá-lo em combate, mas recebeu um ferimento letal. Os anais registram “a contenda de Camlann, em que Arthur e Medraut [Mordred?] pereceram”. Nos dois séculos seguintes, os bretões seriam cada vez mais empurrados para o oeste, embora sempre lutassem para preservar sua identidade, ainda viva no País de Gales de hoje.

No fundo, os detalhes íveis de recuperação são poucos para uma vida que inspirou tantas lendas. “Não acho que algum dia teremos mais informações seguras sobre o Arthur histórico além das que já conhecemos e, para falar a verdade, isso não me parece um problema”, diz Christopher Snyder. “Há uma mágica em torno do personagem que é parte de seu fascínio.” Considerando os ideais de cavalheirismo e resistência que essa mágica inspirou, não dá para dizer que Arthur não concordaria.

Cronologia da Grande Bretanha – Dos antigos celtas a Elizabeth I, dos romanos ao maior império sobre a Terra

2000 a.C.

Em várias etapas, povos pré-célticos de agricultores constroem o santuário e observatório astronômico de Stonehenge, um dos maiores monumentos da Europa pré-histórica

1000 a.C.

Começam a chegar às Ilhas Britânicas as tribos célticas, em duas levas distintas (uma se estabelece na Grã-Bretanha e a outra na Irlanda). Os celtas trazem conhecimentos avançados de metalurgia e guerreiam em carros puxados por cavalos

2482677_com_coursdephi

55 a.C.

Depois de lutar na Gália, o general romano Júlio César desembarca na Bretanha e consegue a submissão de alguns chefes, mas não chega a estabelecer um domínio romano efetivo na ilha

43

O imperador romano Cláudio retoma o projeto de César e ordena a invasão da Bretanha por um exército de 40 mil soldados. O sul da ilha torna-se província do Império e muitos chefes bretões aderem ao novo governo

60

Boadicéia, rainha dos icenos, inicia uma revolta contra os romanos, depois de ser chicoteada e ver suas filhas serem estupradas. A rebelião é sufocada

122

Começa a construção da Muralha de Adriano (sob orientação do imperador romano de mesmo nome). Com 120 quilômetros de extensão, ela ajuda a proteger a Bretanha dos ataques de caledônios e pictos, da Escócia

1540331_1fdaa912

383

O general espanhol Magnus Maximus, comandante das tropas romanas na Bretanha, é aclamado imperador por suas tropas e governa por cinco anos a parte ocidental do Império Romano

410

O imperador romano Honório reconhece o direito dos bretões à autodefesa e aconselha as cidades da ilha a se armarem contra os bárbaros. A soberania romana na região está encerrada

597

Uma missão enviada pelo papa Gregório Magno inicia a conversão do reino anglo-saxão de Kent ao cristianismo. Um a um, os reinos germânicos que iriam formar a Inglaterra se tornam católicos

871

Sobe ao trono o rei saxão Alfred, que começa a contra-atacar os invasores vikings e dá os primeiros os para unificar o que se tornaria a Inglaterra

letters-20110web_1766732c

1066

Guilherme, o Conquistador, duque da Normandia (norte da França), invade a Inglaterra e mata o último rei saxão, Harold. Seus sucessores atacarão Gales

1215

O rei inglês João Sem Terra é forçado por seus barões a a chamada Magna Carta, considerada o embrião das constituições do Ocidente por limitar os poderes do soberano

1283

Último reduto da antiga resistência bretã, o País de Gales é conquistado pelo rei inglês Eduardo I e se torna um feudo dos herdeiros da coroa, chamados então de príncipes de Gales

1532

O rei Henrique VIII rompe com o papa e nomeia a si mesmo chefe da Igreja , tornando a Inglaterra um país protestante, embora teologicamente muito próximo do catolicismo

1559

Elizabeth I, filha de Henrique VIII, sobe ao trono. Em seu reinado, os ingleses vencem a invasão da frota espanhola conhecida como Invencível Armada

Mito e história lado a lado – Os elementos da lenda que até podem ter uma base factual e os que são pura invenção

Pode até ser

Excalibur e o lago

Prestes a morrer, Arthur manda que joguem sua espada num lago. Esse era um costume comum entre os antigos soberanos celtas

Avalon

O melhor candidato para ser a ilha de Avalon é Glastonbury, que hoje fica em terra firme. Mas estudos mostram que no século 5, com as cheias, o local ficava ilhado

Espada na pedra

O mito de que o jovem Arthur retirou sua espada de uma pedra remonta à Idade do Bronze, quando elas eram forjadas em moldes de pedra

Tristão

Na lenda, ele é um dos cavaleiros. Uma lápide do século 6, encontrada na Cornualha, tem o nome Drustanus, a forma céltica original de Tristão.

wiki_space (1)

Não é de jeito nenhum

Castelo de Camelot

Os bretões do ano 500 usavam técnicas toscas de construção e até palácios e igrejas eram feitos de madeira. Camelot certamente não era um castelo

Lancelot e Guinevere

O amor entre a esposa do rei e seu melhor amigo é uma invenção medieval, criada pelo poeta francês Chrétien de Troyes, no século 12

Cavalaria

O Arthur histórico provavelmente lutou a cavalo, mas o conceito medieval das ordens de cavalaria só iria aparecer séculos mais tarde

Merlin

Os romanos perseguiram ferozmente os druidas (sacerdotes celtas), e nenhum deve ter sobrado nos séculos 5 e 6, ainda mais com tanto poder sobre um rei

Os outros “Arthurs” – Teorias sobre a verdadeira face de Arthur nunca faltaram. Conheça algumas das principais interpretações sobre o personagem

Guerreiro bretão

Para os defensores dessa tese, Arthur teria sido um bretão com poucas influências de Roma, e talvez nem pudesse ser considerado cristão. Seu principal campo de atuação teriam sido os reinos celtas do norte da Bretanha, no território da atual Escócia, e seus inimigos foram os invasores anglos do reino de Nortúmbria. Tudo indica, no entanto, que a cultura romana e principalmente o cristianismo já estavam bastante espalhados pela elite bretã da época, o que torna essa versão improvável

Último romano

Argumentando que Gildas não cita o nome de Arthur e que as referências ao personagem são todas muito tardias, alguns estudiosos preferem considerar Ambrosius Aurelianus como o melhor candidato a “Arthur histórico”. Nesse caso, o grande líder da resistência bretã seria descendente direto de uma família nobre romana e teria tentado manter as conexões da ilha com o antigo Império, ao mesmo tempo em que teria combatido o surgimento de heresias cristãs na Bretanha

Cavaleiro bárbaro

Essa tese é baseada na presença de um oficial da cavalaria romana, Lucius Artorius Castus, na Bretanha do século 2. Ele liderou um grupo de cavaleiros sármatas (bárbaros da Europa oriental) numa série de batalhas que parecem bater com as do Arthur lendário. Essa, aliás, é a versão escolhida pelo filme Rei Arthur – só que no filme a história se a no século 5 mesmo, e Arthur é meio romano e meio bretão. Enfim, Hollywood adora um samba do bretão doido

Saiba mais

Livros

Arthur·s Britain, de Leslie Alcock, Penguin, 1990 – O autor traduz as partes relevantes dos textos antigos sobre o herói, como os livros de Gildas e Nennius, e proporciona um panorama completo de como era a Bretanha do século 5 ao 7. Há mapas, fotos e desenhos.

Kings and Queens of Early Britain, de Geoffrey Ashe, Methuen Publishing, 2000 – Detém-se sobre os personagens desse período nebuloso da história bretã e mostra como os erros romanos conduziram à independência.

The Age of Tyrants, de Christopher Snyder, Sutton Publishing, 1998 – Um completo e claro relato sobre a vida dos bretões no final da presença romana na ilha.

Site

http://www.mun.ca/mst/heroicage/ – Quem estiver interessado em acompanhar os estudos mais recentes sobre o mundo arturiano e temas correlatos pode acompanhar a revista científica eletrônica The Heroic Age, no endereço acima.

Autor – Reinaldo José Lopes

Fonte – http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/arthur-heroi-bretanha-433765.shtml?utm_source=redesabril_jovem&utm_medium=facebook&utm_campaign=redesabril_avhistoria&