ÍTALO BALBO – O VOO ÉPICO E O BANHO DE MAR DO PILOTO ITALIANO EM NATAL

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

O que significa essa foto com essas pessoas em uma praia? Quando e onde ela foi feita? Quem são as pessoas que estão nessa foto?

Artigo originalmente pulicado na Revista Bzzz Número 110, nov. e dez. 2024, páginas 20 a 29.

Ela foi realizada em 10 de janeiro de 1931, na praia de Areia Preta, Natal, e entre os que foram fotografados estava a matriarca de uma das mais importantes famílias potiguares, Branca Pedroza, e seus três filhos, cujo um deles seria prefeito da capital potiguar e governador do Rio Grande do Norte, Sylvio Piza Pedroza. Já os homens clicados eram dois italianos, dos mais importantes aviadores do mundo naquela época e que lideraram uma esquadrilha de doze hidroaviões hidroavião Savoia-Marchetti S.55A que voaram desde a Itália até Natal, em um voo de grande destaque mundial. Além disso, eles trouxeram do seu país o presente mais importante que Natal já recebeu em sua História, a Coluna Capitolina. Esses homens também eram membros proeminentes de uma ditadura que propagava uma ideologia política nefasta, de caráter ultranacionalista, fortemente autoritário e altamente sanguinário. Era o fascismo implantado por Benito Mussolini na Itália. Ítalo Balbo era Ministro da Aviação desse governo, sendo um dos principais executores da política de aviação italiana no período fascista..

Balbo e sua equipe iniciaram no final da década de 1920 diversos estudos para a realização de grandes voos com várias aeronaves, algo até então nunca realizado e que repercutiria nas ações da Itália Fascista em todo o mundo. Um desses voos teve como destino o Brasil.

No dia de Natal de 1930, Balbo e seus comandados chegaram na Ilha de Bolama, no arquipélago dos Bijagós, na Guiné Portuguesa, atual Guiné Bissau. Ficaram alguns dias realizando testes de decolagem e, com o resultado dessas provas, na madrugada de 5 de janeiro de 1931, segunda-feira, decolaram para várias horas depois amerissarem no Rio Potengi, em Natal. No percurso, houve problemas sérios com perdas de aeronaves e a morte de cinco homens.

O hidroavião Savoia-Marchetti S.55A – Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

Enquanto eles realizavam seu voo, em Natal, na Catedral de Nossa Senhora da Apresentação, na Praça André de Albuquerque, foram colocadas no alto da sua única torre duas grandes bandeiras do Brasil e da Itália. Escoteiros se posicionaram naquele local equipados com binóculos e lunetas. Tinham ordens expressas para quando avistassem as primeiras aeronaves informassem imediatamente o sineiro da velha igreja, que começaria a badalar os sinos pesados para que o povo fosse informado da chegada dos hidroaviões Savoia-Marchetti.

Pessoas se aglomeraram no cais do Porto de Natal, na Av. Tavares de Lira e nos prédios e casas às margens do Rio Potengi. Quem tinha alguma coisa que flutuasse estava dentro do rio, o que deu muito trabalho para o pessoal da Capitania dos Portos, pois o plácido Potengi tinha de ser liberado para a amerissagem das aeronaves.

O general italiano Aldo Pellegrini havia desembarcado em Natal no começo de dezembro para preparar a chegada de Balbo e dos seus aviadores. No dia 5 de janeiro esse militar ficou muito tempo em uma estação de rádio montada pelo Telégrafo Nacional no bairro do Alecrim, na Rua Coronel Estevão. Paulo Pinheiro de Viveiros nos conta em sua placa denominada “Presença de Roma em Natal” (1969), que essa estação possuía transmissores de ondas curtas de 250 e 500 watts e o responsável era Augusto Mena Barreto. Quando ficou certo que as aeronaves estavam chegando, o general Pellegrini foi para a Ribeira e por onde ou recebeu manifestações entusiásticas de carinho.

Os jornais comentaram que várias pessoas vieram de outros estados para acompanhar a chegada da esquadrilha italiana. Sei que por aqui se encontravam Antenor de França Navarro, então Interventor Federal da Paraíba, acompanhado de vários elementos do seu governo. Por volta das três horas o comércio e as repartições públicas fecharam suas portas e a massa de gente cresceu nas ruas. Finalmente, por volta das quatro horas os escoteiros na catedral viram surgir em direção ao norte os primeiros hidroaviões S.55A e logo os sinos começaram a badalar.

“Giovinezza” no Rio Potengi

Hidroavião italiano no Rio Potengi– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

Antes mesmo de colocarem os pés na terra, flutuando a bordo dos S.55A no Rio Potengi, Balbo e seus homens ouviram um outro som, esse mais familiar, que os deixaram maravilhados. Assim Balbo falou: “As alegres fanfarras de “Giovinezza” já tocam e saúdam nossa vitória”. A “Giovinezza” era o hino oficial do Partido Nacional Fascista Italiano e no cais da Tavares de Lira ela foi tocada pela Banda da Polícia Militar.

Desembarque de Ítalo Balbo em Natal. Fernando Pedroza é o segundo da direita para a esquerda– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

Balbo e a maioria dos seus homens desembarcaram trajados à moda fascista – calças brancas, camisas negras, luvas e botas marrons. Os jornais apontaram que o ministro italiano foi apresentado com ar fatigado, olheiras, mas afável, sorridente e a todo momento externando agradecimentos. Em meio às autoridades brasileiras e italianas que receberam os aviadores, estava o industrial Fernando Gomes Pedroza, um apaixonado pela aviação.

A Esquadrilha Balbo no Rio Potengi– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

O comandante afirmou em seu livro que desembarcou muito cansado e sem demora foi logo de carro para a Vila Cincinato, residência oficial do governador do Rio Grande do Norte. Uma verdadeira carreata, na época chamada de “corso de carros”, seguiu atrás do veículo do comandante italiano. Após chegar à residência, Balbo se trancou e foi descansar, mas lá fora uma multidão se formou na calçada para tentar ver o líder fascista italiano. Já os oficiais ocuparam a antiga sede da Escola Doméstica, na Praça Augusto Severo, que estava toda ornamentada, iluminada, com várias bandeiras italianas e brasileiras e sem alunas, pois estavam de férias. Os sargentos foram alojados num prédio recém-construído pela istração do porto. Esses últimos almoçaram no Hotel Avenida, na Tavares de Lira, pertencente ao “majô” Theodorico Bezerra.

Camisas Negras no Palácio Potengi

No outro dia, Ítalo Balbo foi até a sede do Telégrafo Nacional, na Av. Tavares de Lira, 88. Ali foi atendido por Augusto Gonçalves Marques, chefe da estação, onde Balbo lhe agradeceu o apoio nas comunicações durante o voo e depois ou a enviar telegramas. Consta que o primeiro foi para Alberto Santos Dumont, na França, com os seguintes dizeres: “Tocando na sua bela terra depois de um voo transatlântico, eivo-vos, pioneiro das empresas aeronáuticas, a minha calorosa saudação”. O segundo telegrama foi para Mussolini, onde transmitiu as últimas notícias e informou que os membros da esquadrilha “voltavam o seu pensamento devotado ao Duce”. Finalmente escreveu para o ditador Getúlio Vargas uma mensagem de agradecimento, mas sem tantos salamaleques.

O contratorpedeiro Lanzerotto Malocello– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

Natal estava em verdadeiro êxtase. Para aonde Balbo e seus homens seguiram eram acompanhados por muita gente. Na agem dos aviadores o povo ecoava vários “Vivas” a Balbo, Mussolini e à Itália. O movimento das pessoas foi tão grande que até os soldados do 29º Batalhão de Caçadores do Exército fizeram a guarda e a contenção nos locais onde eles se hospedaram e circularam. Enfim, eram figuras de destaque em todos os jornais do mundo e com uma atração que hoje em dia, talvez, só se compare às astronautas. Uma noite os italianos participaram de um jantar de “50 talheres” na Escola Doméstica.

Atracado no Porto de Natal estava o contratorpedeiro Lanzerotto Malocello. Do seu porão foi discretamente retirado um grande e pesado engradado. Este foi levado para uma área próxima ao porto, onde trabalhadores locais construíram uma grande base de alvenaria com três metros de altura e um imenso círculo no centro.

No Palácio do Governo, os italianos foram recebidos pelo então interventor federal Irineu Joffily e o interventor da Paraíba, Antenor Navarro, que ergueram brindes de champanhe pelo sucesso da empreitada de Balbo e seus comandados. Nessa ocasião, Balbo, general Giuseppe Valle e o coronel Umberto Maddalena estavam vestidos com uniformes de gala, mas vários italianos envergavam as nefastas camisas negras fascistas.

Ítalo Balbo e seus comandados com os interventores Irineu Joffily e Antenor Navarro (de óculos)– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

Na noite de 7 de janeiro, todos os aviadores foram para o salão nobre do Aeroclube de Natal, para um recital. Foram recebidos pelo casal Fernando e Branca Pedroza e se juntaram as autoridades, entre essas os interventores Joffily e Navarro. De início, Alberto Roseli, um rico comerciante de origem italiana que vivia em Natal há muitos anos, leu uma saudação a Balbo e aos aviadores. Após, um grupo de alunas do último ano da Escola Normal cantaram entusiasticamente a “Giovinezza”, para delírio e encanto dos militares italianos. Todos se colocaram de pé, cantando o hino com vigor e realizando a saudação fascista.

Depois, houve as apresentações musicais de alunos do Instituto de Música do Rio Grande do Norte, escola fundada pelo maestro Waldemar de Almeida. Entre os que se apresentaram estavam Dulce Cicco, Maria da Glória de Vasconcelos Sigaud, Odila Garcia, Anadyl Roseli, Eurídice Vilar Ribeiro Dantas, Dulce Wanderley, Ivone Barbalho. Waldemar de Almeida tocou ao piano a “Grande Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro”, uma composição do pianista e compositor norte-americano Louis Moreau Gottschalk. Para orgulho de Fernando e Branca Pedroza, o jovem Fernando Pedroza Filho também se apresentou, tocando ao piano as obras “Gavota” opus 123, da compositora e pianista sa Cécile Chaminade, e o Prelúdio nº 20, de Frédéric Chopin.

Balbo e seus comandados cantando a “Giovinezza”– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

Outro que se apresentou foi um garoto de nove anos chamado Orianne Corrêa de Almeida, primo de Waldemar de Almeida, que tocou uma “Marcha Militar” de Franz Shubert. Tempos depois esse garoto seria conhecido apenas como Oriano de Almeida e se tornou um dos maiores pianistas da história da música brasileira. Segundo me informou o professor Claudio Galvão, autor do livro “O Céu Era O Limite: Uma Biografia De Oriano De Almeida” (2010), não dá para cravar que essa exibição no Aeroclube em 7 de janeiro de 1931 tenha sido a primeira de Orione, provavelmente ele já tinha feito outras em Natal, mas o garoto chamava atenção pela precocidade que, talvez, tenha visto Balbo e seus comandados.

A Coluna Romana

No dia 8 de janeiro de 1931, uma quinta-feira, foi seguramente o mais movimentado dos italianos em Natal. De manhã cedo ocorreu a missa campal presidida pelo Bispo Dom Marcolino Dantas, com saudação aos aviadores que chegaram a Natal, homenagem aos que morreram na travessia e também a memória do falecido aviador italiano Carlo Del Prete, que esteve em Natal em 1928 junto com o colega Arturo Ferrarin. Estavam presentes todos os tripulantes dos hidroaviões, os militares do Lanzerotto Malocello, autoridades potiguares e italianas, além de uma multidão de natalenses, principalmente os moradores da região da Ribeira e das Rocas. Durante a realização da missa, uma aeronave Breguet, da companhia de aviação sa Latécoère, fez evoluções sobre a audiência e a multidão. Então, novamente a “Giovinezza” foi excetuada na capital potiguar e dessa vez pela banda do 29º Batalhão de Caçadores. Realmente esse hino, que não era o hino oficial do então Reino da Itália, estava fazendo um sucesso danado por aqui.

A Coluna Capitolina em Natal– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

Em seguida, Dom Marcolino benzeu uma Coluna Romana de estilo coríntio, feita de mármore cinza, com cinco metros e oitenta centímetros de altura, uma base de três metros quadrados e confeccionada há mais de dois mil anos. Ela foi originária do Templo de Júpiter, na Colina do Capitólio, ou Monte Capitolino, uma das sete elevações sobre as quais foi fundada a cidade de Roma. Essa era uma das quatro colunas romanas existentes no Novo Mundo e foi um presente do regime de Benito Mussolini à cidade do Natal. Inclusive, a razão oficial para Natal receber um presente tão interessante e importante tinha relação com a agem de Del Petre por aqui.

Após Ferrarin e Del Petre partirem de Natal em seu voo histórico de 1928, ocorreu um acidente aéreo no Rio de Janeiro e Carlo Del Petre faleceu, fato que gerou enorme repercussão mundial. No ano seguinte Arturo Ferrarin lançou um livro intitulado “Voli por Il Mondo”, onde conta detalhes do voo e descreveu de maneira muito positiva sobre como agiu o Governo do Brasil em relação a morte de Del Petre e como ele e seu amigo foram recebidos em Natal. A repercussão dessa obra então teria gerado no governo Mussolini, ao menos em parte, o desejo de realizar a doação da coluna romana para Natal. Evidentemente que razões estratégicas, ligadas à expansão da aviação comercial italiana no Brasil, também explicaram a doação desse importante monumento histórico.

Rota do voo da Esquadrilha Balbo – Fonte – Arquivo do autor..

Após a missa, Balbo e os militares italianos estiveram na Praça Augusto Severo, onde prestarem uma homenagem ao aviador potiguar, que morreu em seu balão “Pax”, na cidade de Paris em dia 12 de maio de 1902. Balbo solenemente colocou uma coroa de flores na base da estátua de bronze do antigo aviador, abraçou seu filho Sérgio Severo Maranhão e todos os italianos realizaram a saudação fascista.

A noite, novamente os italianos e a sociedade natalense estiveram no Aeroclube, onde os italianos foram apresentados a dança do Maxixe. Conhecido como “Tango Brasileiro”, o Maxixe era uma dança de salão onde um casal se apresentava com bastante sensualidade dos movimentos corporais, o que causou grande furor na arcaica sociedade brasileira. É bem verdade que no início de 1931 essa dança andava meio fora de moda nas grandes cidades brasileiras, mas naquela noite no Aeroclube ninguém se importou muito com isso. Bem, tudo indica que nessa noite, enquanto a maioria dos aviadores assistiam, ou se arriscavam, no Maxixe no Aeroclube, o comandante Ítalo Balbo e alguns poucos oficiais se dirigiram para a casa do rico industrial potiguar Fernando Pedroza.

Fonte – Arquivo do autor.

E o Banho na Praia de Areia Preta?

A mansão dos Pedroza se localizava onde atualmente existe o encontro das Avenidas Nilo Peçanha e Getúlio Vargas, bem próximo do Hospital Universitário Onofre Lopes. Então, para saber mais desse encontro e sobre os anfitriões, procurei o funcionário público Antônio Carlos Magalhães Alves, mais conhecido em Natal como Toninho Magalhães, filho de Elza Pedroza e neto de Fernado e Branca Pedroza. Toninho me narrou que seu avô Fernando Gomes Pedroza nasceu em 30 de março de 1886, no chamado Casarão dos Guarapes, na zona rural da cidade potiguar de Macaíba. A família Pedroza possuía muitos recursos, tendo Fernando ido estudar na Inglaterra e junto com ele seguiu o natalense Manoel Augusto Pereira de Vasconcelos. Um dia Fernando e Manoel viajaram para a Suíça, onde duas irmãs de Manoel estudavam em uma tradicional escola feminina daquele país. Nesse encontro, Fernando conheceu uma moça chamada Branca Fonseca Toledo Piza, natural de Sorocaba, São Paulo e amiga das irmãs de Manoel. Não demorou e o namoro começou entre Fernando e Branca, tendo logo resultado em casamento. Vieram viver em Natal e Fernando Pedroza cresceu na exportação de algodão, a principal fonte de riqueza do Rio Grande Norte durante décadas.

Poster do voo da Esquadrilha Balbo entre a Itália e o Brasil – Fonte – Wikipedia.
Toninho Magalhães fala sobre a recepção pelos seus avós Branca e Fernando Pedroza – Foto – Rostand Medeiros

Certamente deve ter sido um encontro bem interessante e positivo. Tanto que no outro dia, 10 de janeiro, enquanto Balbo e seus oficiais aguardavam a chegada do último S.55A de Fernando de Noronha, ele e o coronel Umberto Maddalena foram aproveitar a praia de Areia Preta. Estavam acompanhados de Dona Branca Pedroza, seus filhos Fernando, Sylvio Piza Pedroza e a caçula Elza Piza Pedroza, e quem fez a foto foi Fernando Pedroza. Todos se mostram muito alegres e molhados, realizando aquilo que é muito normal e natural aos natalenses – Levar para as nossas belas e calientes praias, os visitantes que vem de perto e de longe. Ali já não estavam mais dois dos membros mais importantes do Partido Fascista Italiano e renomados aviadores do seu tempo. Eram apenas dois turistas italianos deslumbrados com nossas belezas naturais e recebendo atenções que tão bem sabemos ofertar a quem nos visita.

Ítalo Balbo em foto após o voo para o Brasil – Fonte – Arquivo do autor.

Já Ítalo Balbo, após completar com sucesso o voo para o Brasil, realizou entre julho e agosto de 1933 um voo com vinte e cinco hidroaviões S.55X, com destino final aos Estados Unidos, sendo essa uma empreitada de enorme repercussão internacional. Balbo levou adiante a construção de um culto político em torno da aviação, tendo alcançado enorme popularidade em todo o planeta, mas sendo considerado politicamente um forte rival de Mussolini. Então a situação de Balbo começou a declinar ante o Regime Fascista.

O final do voo da Esquadrilha Balbo foi no Rio de Janeiro– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

OS VELHOS CAMINHOS DO RIO GRANDE DO NORTE

Luís da Câmara Cascudo – Publicado originalmente no livro HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE, Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1955. 1ª EDIÇÃO, Capítulo XIII, páginas 307 a 312.

A primeira estrada conhecida no Rio Grande do Norte e, durante séculos, a mais trilhada, foi pelo litoral, beirando quase o mar, rumo da Paraíba. Os colonizadores vieram pelo Atlântico, mas a parte da tropa que devia vir por via terrestre recuou na baía da Traição ante a peste de bexigas. Mascarenhas Homem, fundador do Forte dos Reis Magos, regressou por terra. Esse primeiro caminho teve, no correr da guerra contra os indígenas no final do século XVII, uma série de casas fortes, protegendo o trânsito que seria relativamente vultoso. Vinha-se pela baía da Traição ou Mamanguape, Tamatanduba, Cunhaú, Goianinha, Guaraíras (Arês), Mipibu, Potengi, Utinga, ou seguindo o vale do Cajupiranga, diretamente a Natal. A jornada para o interior ia até o vale do Ceará Mirim, limite do conhecimento geográfico, útil até mesmo depois da expulsão do holandês em 1654.

Fortaleza dos Reis Magos no período colonial

Quando o mestre de campo Luís Barbalho Bezerra realizou a famosa contramarcha de fevereiro-maio de 1640, calcou a estrada já histórica. O genealogista Pedro Taques diz ter sido o desembarque a 7 de fevereiro no porto de Aguaçu, topônimo desaparecido, junto ou nos arredores da atual cidade de Touros. Em nomeações reais encontro baixios de São Roque. O caso é que Barbalho Bezerra veio até o Potengi, quase vendo Natal ou vendo, onde se bateu, derrotou e aprisionou Joris Gartsman, capitão flamengo do Reis Magos, e o conduziu para a cidade do Salvador. De Cunhaú é que o mestre-de-campo escreveu ao conde de Nassau pedindo agem. Encontramos sua espada vencendo Alexandre Picard em Goiana. Era a trilha secular para ó sul, Natal, vale do Cajupiranga, vale do Capió, Cunhaú, rio Guaju para a Paraíba e daí para Pernambuco, por Mamanguape e Goiana como ainda nos nossos dias é a maior rodovia interestadual.

Riacho seco no Vale do Cafundó, zona rural da cidade pernambucana de Flores, Região do Pajeú. No ado essas eram as primeiras estradas da ocupação do interior do Nordeste. – Foto de Alex Gomes.

A repressão oficial à revolta da indiaria provocou o alargamento das fronteiras corográficas. Antônio de Albuquerque Câmara bate-se em 1688 nas cabeceiras do rio Açu e entre as serras do João do Vale e Santana do Matos. A revolta abrangia as ribeiras do Açu e Jaguaribe. A zona teve de ser batida e tresada pelas colunas militares. Nesse 1688 os paulistas vieram ajudar a corrigir a indiada e se encontraram, vindos da Paraíba, com Albuquerque Câmara que se batia no baixo Açu. Domingos Jorge Velho viera de seus currais do São Francisco, por terra e mergulhara pelo boqueirão de Parelhas, no chamado “Sertão de Acauã”, que enrolava serras e capoeirões desde os atuais Jardim do Seridó até Currais Novos. Toda essa região, Focinho dos Picos, Picuí, Caiçara e Bico da Arara, até roçar o rio Acauã, era terra do gentio da nação Canindé e Janduí (Cariri) que se alargava por Quacari, Quimbico, Quintururé, Umvibico, Amoré, Onaxi, Acinum, Quindê, Arari, Jucurutu até a misteriosa serra, do Araridu ou Papuiré até Ticoiji e Tipuí, julgadamente a serra do Coité no território paraibano. São topônimos ·cariris que orlam a peregrinação dos aldeamentos e ficaram como testemunhando a agem dos Janduí e Canindé antes do desaparecimento. Esse povo dos Canindé foi derrotado em 1690 por Afonso d’Albuquerque Maranhão, da casa de Cunhaú, neto de Jerônimo, 1.º capitão-mor do Rio Grande. O tuxaúa Canindé, soberano do sertão da Acauã, foi batizado e tomou o nome de João Fernandes Vieira. Dois anos depois o Senado da Câmara de Natal pedia a criação de arraiais, povoados com defensão militar nos quatro pontos extremos da região pacificada: Jaguaribe, Açu, Acauã e Curimataú. As estradas ligavam entre si esses lugares e se articulavam nas duas vias-tronco para o sul, o caminho do litoral, já mencionado, e a estrada por onde nasceria a estrada das boiadas. Em 1697 os indígenas Paiacu e Caratéu, da nação cearense dos Icó que viviam desde o Catolé do Rocha até as margens do rio Piranhas, na Paraíba, fixaram-se entre as ribeiras do Apodi e Jaguaribe, formando um liame de ativa comunicação pela chapada.

Ilustração de Jean Baptiste Debret

Por onde, durante as guerras contra o cariri, entraram os Terços Paulistas, as tropas de auxílio, vindas para conter os Janduí, Icó, Paiacu, Pega e Panati insubmissos?

Desceram da Paraíba, vindos por Soledade-Picuí ou Piranhas, depois Pombal, Brejo do Cruz e Catolé do Rocha, varando a fronteira depois da reentrância paraibana, ou vinham pela mesopotâmia do Panema-Açu? As tropas que voaram em socorro de Albuquerque Câmara tomaram o primeiro caminho e as do sertanista Domingos Jorge Velho creio que escolheram o segundo, ainda hoje piso batido e tradicional.

ada a guerra ficou a lembrança da terra pisada para baixo e para cima. Do Açu sobe-se pelo rio Paraú até o fim e apanha-se a estrada paraibana depois de Belém. Lembremo-nos que a Paraíba não tinha gado e sim açúcar. O Rio Grande do Norte possuía tanto gado que podia suprir a Paraíba, Itamaracá e Recife. Os currais paraibanos são posteriores ao domínio holandês na vigência do qual o Rio Grande exportava, de graça e a força, milhares de cabeças. Irineu Joffily (Notas sôbre a Paraíba, 124) diz que as “fazendas apareceram normalmente quando os exploradores galgaram o planalto da Borborema e os paulistas penetraram no Piancó. Depois de 1690 é que temos indícios das atividades bandeirantes dos Oliveira Lêdo no Piancó e Piranhas. Os núcleos iniciais foram o Boqueirão a leste e Piranhas a oeste até que Oliveira Lêdo reuniu e sistematizou o esquema do povoamento pela fixação das tribos disseminadas.

Estrada de rodagem do Seridó, início da década de 1920

Durante muitos anos os pontos povoados do sertão paraibano não tiveram intercomunicação. Piancó conhecia a ligação com a Bahia, e Boqueirão, nos Cariris Velhos, com Pernambuco. Entre nós, já no século XIX, sucedia o mesmo. Mossoró ia para o Aracati e Caicó para Campina Grande. O sertão escapou secularmente à capital que vegetava, humilde e minúscula, junto ao Potengi. As ligações orientavam-se para Pernambuco e Paraíba, para as grandes feiras de gado, Igaraçu, Goiana, També (Pedra de Fogo), Itabaiana e depois Campina Grande. Daí a rede de estradas e variantes que sempre aglutinaram esses lugares e os articulavam às regiões do Seridó e sertão de Piranhas, ribeira da Panema, enquanto a zona do Mossoró se escoava para o Ceará pelo chapadão do Apodi. Com o desenvolvimento do Aracati ou este a dirigir Mossoró e Mossoró ao seu sertão na linde do Oeste.

Do Mossoró, a velha estrada ia a São Sebastião (Governador Dix-Sept Rosado), como presentemente a estrada de ferro, Jurumenha, perto de Caraúbas, Atoleiros, Piranhas, Mombaça, Boa Esperança (Demétrio Lemos, atual Antônio Martins) nos batentes da serra do Martins, Carnaúba, Barriguda (Alexandria), Tabuleiro Formoso onde se bipartia. Um ramal ia para o Catolé do Rocha e outro à cidade de Sousa, tocando em Santa Rosa. Em Sousa entroncava-se com a estrada-das-boiadas que era uma reminiscência das estradas de penetração povoadora. Daí a importância de Sousa, Cajazeiras e Pombal na formação comercial de uma zona do Rio Grande do Norte. Para lá, como depois para o Caicó, envia-se o menino aos estudos do latim e o ador-de-gado, afoito e lendário.

Antiga estação ferroviária de Demétrio Lemos, atual Antônio Masrtins – Foto – Rostand Medeiros

Sousa centralizava muito e uma sua estrada vinha morrer na antiga rota dos conquistadores de Natal. Partia de Sousa e atravessava sucessivamente Catolé, Belém, Amazonas, São Miguel (já em nossa província), Serra de Santana por Flores (hoje Florânia). Santa Cruz, centro de irradiação do Seridó depois de ar a serra do Doutor nas vizinhanças de Currais Novos, daí para Nova Cruz por Campestre (São José do Campestre) onde se via o caminho que levava à Paraíba ou Pernambuco por Mamanguape. Quando se criou o correio, Mamanguape era o ponto de intersecção entre Paraíba e Rio Grande do Norte. Aí o estafeta recebia a correspondência para Pernambuco e distribuía a carga entre as duas coterminas. A posição de Mamanguape explica a predileção dos grandes latifundiários por suas terras. Os Albuquerques Maranhões, da casa de Cunhaú, possuíam vários sítios e engenhos em Mamanguape.

Vaqueiros potiguares – Foto – Rostand Medeiros

A estrada-das-boiadas na Paraíba era muito mais seguida pelos vaqueiros norte-rio-grandenses que qualquer outra nossa. Ia-se por ela para o Piauí e o Piauí, de fins do século XVIII em diante, muito valia à nossa vida de pastorícia. Irineu Joffily reconstruiu-a e posso completá-la.

Do oeste do Espinharas, ribeira de Santa Rosa, Milagres, tocando depois na lagoa do Batalhão (Taperoá), seguia-se o rio, descendo a Borborema até Piranharas e daí a Patos, Piranhas (Pombal), Sousa, São João do Rio do Peixe (Um ramal recebia a contribuição de Cajazeiras) ia-se ao Ceará pelos Cariris Novos, Icó, Tauá, atingindo-se Crateús, inesquecível pelo encontro de centenas de vaqueiros que demandavam o Piauí. Outros preferiam acompanhar a vaqueirama divertida e pousar ali mesmo, mas eram em parte menor. A maioria furava, do Tauá, diretamente para o Piauí. De Crateús comprava-se a gadaria em Santo Antônio do Surubim de Campo Maior, núcleo influenciador de cantigas sobre o ciclo do gado, Valença, Oeiras, que fora capital até 1852, Jatobá (São João do Piauí) e Picos, fornecedor dos primeiros cavalos pampas, ornamentais e vistosos, orgulho do patriarcado rural no Rio Grande do Norte. uns vaqueiros arrastavam a jornada até São Gonçalo de Amarante e outros a Jerumenha. As maiores feiras eram nas localidades citadas.

Foto – Rostand Medeiros

Os norte-rio-grandenses do oeste iam via Ceará. De Tauá para Crateús e daí seguiam galgando a Ibiapaba para Campo Maior, ·banhado pelo rio Surubim ou, dos cearenses Arneiros e Cococi, alcançavam Valença no Piauí ou em diagonal para Picos.

Essa toponímia ficou registrada na cantiga velha. Desaparecida quase a estrada das boiadas, rara a viagem do vaqueiro, a poesia tradicional guardou os nomes dos lugares de outrora. Essa toada, verdadeira canção de marcha dos vaqueiros, recorda o percurso (!) de Campo Grande (Augusto Severo) no Rio Grande do· Norte até o ·Piauí, envolvendo dois perfis femininos, cuidados amorosos do vaqueiro cantador.

Como Xiquinha não tem

Como Totonha não há;

Xiquinha de Campo Grande

Totonha do Lagamá !

Xiquinha vale dez fio (filhos)

Totonha vale dez vó. . . (avós)

Xiquinha do COCOCl

Totonha do Arneiró …

Xiquinha prá querer bem

Totonha prá carinhá;

Xiquinha é de Crateús

Totonha é lá do Tauá

Xiquinha vale uma vila,

Totonha vale ela só;

Xiquinha nasceu nos Pico (Picos)

Totonha em Campo Maió …

Um ramal da estrada das boiadas ficou popularíssimo na “cantoria”. É o do Piancó, Misericórdia, Milagres (Ceará), Missão Velha, Crato, nos Cariris Novos. Do Mossoró viajava-se outrora, como atualmente, pelo araxá do Apodi (Pedra de Abelha, atual Felipe Guerra). Outras estradas partindo de Mossoró, iam rio acima até as cabeceiras do Apodi, Portalegre, Pau dos. Ferros, São Miguel e Luís Gomes. Uma variante de Pau dos Ferros, velhíssimo rancho de comboieiros e tangedores de gado, chega a Alexandria, antiga Barriguda e seguia para Tabuleiro Formoso, pegando o caminho paraibano. De Pau dos Perros a vizinhança cearense animava as visitas por Pereiro. Do Patu ia-se para Catolé do Rocha. Do Açu caminhava-se para Campo Grande (Triunfo, Augusto Severo), Martins, no pé da serra, onde se continuava em um dos ramos para a estrada das boiadas pela Ribeira do Rio do Peixe.

Foto – Rostand Medeiros

O inverno era mais cedo. Dizia tão certo como chuva em janeiro. No Piauí as águas vinham em novembro. Iam vaqueiros de toda parte comprar bois de carro e de corte e novilhos para reprodução e engorda. Voltava-se em fins de dezembro ou começos de janeiro, tocando, para aproveitar as babugens verdes e ralas que as chuvas faziam nascer.

As datas quase infalíveis criavam ponto de reunião para que a jornada fosse menos enfadonha e monótona. Especialmente ficavam juntos no regresso para o auxílio mútuo nas travessias sem água ou agens difíceis nos rios e riachos, estouro de boiada e moléstias súbitas na gadaria. Essas estradas todas, como vimos, em pleno sertão, determinaram a necessidade das vendas, feiras rápidas de suprimento ligeiro e descanso ao longo da rota. Fizeram casas. As fazendas se aproximaram. Ergueram a capela. Foi vila e muitas são sedes municipais.

Para o sul do Rio Grande do Norte a viagem continuava margeando. As praias, caminho feito por Nosso Senhor. Assim voltou, agonizante, Pêro Coelho de Sousa, em 1605, ando Amargosa e Guamaré na costa de Macau.

Capela de Nossa Senhora das Candeias, no Engenho Cunhaú, município de Canguaretama, no litoral sul potiguar, onde aconteceu o Massacre de Cunhaú em 16 de julho de 1645 – Foto – https://joaobosco.wordpress.com/2007/09/22/onde-esta-a-verdade-sobre-o-masacre-de-cunhau/

Em 1810 Henry Koster fez sua excursão ao Ceará partindo do Recife, por Goiana, Espírito Santo, Mamanguape (Paraíba), Cunhaú (Rio Grande do Norte), Papari (Nísia Floresta), São José de Mipibu, Natal, Açu, Santa Luzia (Mossoró), praia do Tibau, Aracati (Ceará) e Fortaleza.

Quando o bispo de Pernambuco, Dom João da Purificação Marques Perdigão, visitou o Rio Grande do Norte em 1839, vinha do Ceará. Penetrou pelo Apodi, descansando em “Sabe Muito”, nos arredores da cidade de Caraúbas, dormindo no então povoado; almoçou em Coroas, perto da vila de Campo Grande (Augusto Severo), alcançando o Açu. Atravessou Santa Quitéria, depois Patachoca (Pataxó), vila dos Angicos e pelo seu Itinerário sabemos que o prelado veio por São Romão (Fernando Pedrosa), Santa Cruz, ambas estações da Estrada de Ferro Sampaio Correia, Riacho Fechado, Várzea dos Bois, Umari, Boa Água, Ladeira Grande, Taipu do Meio (sede municipal), Capela, no vale do Ceará-Mirim e Extremoz. É a travessia do poente ao nascente, oeste-leste. De Natal, Dom João partiu para a Paraíba repetindo quase o trajeto de Mascarenhas Homem no percurso de regresso em 1598. Natal, São Gonçalo, São José de Mipibu, Papari, Arez, Goianinha, Vila Flor, Tamanduba, Comatanduba (Paraíba), Mamanguape. É a descida norte-sul.

Pelos caminhos do sertão potiguar – Foto – Rostand Medeiros.

No interior as primitivas e grandes vias de povoamento e penetração foram as margens dos álveos dos rios Piranhas e Apodi-Mossoró. A oeste a chapada do Apodi com o rush cearense. A linha Natal-Macau estirão solitário de areias inúteis, com água rara, esteve despovoado, afora os breves oásis de coqueirais plantados na segunda metade do século XVIII em diante e que abrigaram povoações de pescadores, Genipabu (estrema do mapa de Marcgrav). Pitangui, Jacumã, Muriú, Maxaranguape, Caraúbas, Maracajaú, Touros, Olhos d’Agua, Santo Cristo, Reduto, Caiçara, Galinhos; Diogo Lopes, etc.

COMO ERA NATAL EM 1872

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Por esses dias encontrei um interessante texto bem interessante, que mostra vários aspectos da minha velha cidade Natal em 1872.

Foi um trabalho publicado no jornal “A República”, edição de 14 de maio de 1972, intitulado “Natal há 100 anos atrás” e de autoria do escrito pelo advogado, juiz, professor e jornalista Veríssimo de Melo. O autor resgatou um texto escrito originalmente por João Lindolpho Câmara e publicado em 1938, como um dos capítulos do seu livro Memórias e devaneios.

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Mas quem foi João Lindolpho Câmara?

Não encontrei nenhuma foto que mostre seu semblante, mas sabemos que nasceu em Natal no dia 14 de maio de 1863. Estudou no Ateneu e ingressou no Tesouro Provincial em 1881. Em Natal atuou politicamente em prol da campanha abolicionista e foi um dos que am a Ata da Proclamação da República no Rio Grande do Norte. Formado em Direito no Recife ou a viver no Paraná, Bahia e depois no Rio de Janeiro. Neste último local atuou como inspetor e conferente da Alfandega e foi deputado federal pelo Rio Grande do Norte entre 1908 e 1911, onde se destacou por apresentar o primeiro projeto de repatriação dos restos mortais de Dom Pedro II para o Brasil e o de anistia da família Imperial.

Era extremamente destacado na função e duro com os que erravam. Lindolpho da Câmara chamou a atenção da imprensa nacional quando descobriu um desfalque na Caixa Econômica 400 contos de réis no Paraná e um outro desfalque de 178 contos no quartel do 39° Batalhão de Infantaria.

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Anos depois, com a vitória da Revolução de 1930, teve o nome cogitado para ser o primeiro interventor do novo regime no Rio Grande do Norte, mas abriu mão por problemas de saúde e o cargo foi ocupado por Irineu Joffily. Aposentou-se do serviço público em 1931.

Lindolpho da Câmara escreveu alguns livros, a maioria com foco técnico na área da atividade alfandegaria. Foram eles Contas assinadas (1923); Projeto de reforma das tarifas (1928); Projeto de Código Aduaneiro (1929); Tarifa dos impostos de consumo (1930). Escreveu um livro de cunho histórico intitulado Na República Velha: aspectos istrativos, econômicos, financeiros, políticos e sociais (1931) e seu último trabalho de prosa e versos denominado Memórias e devaneios (1938). É nesta derradeira obra onde se encontra um capítulo denominado “Natal do meu tempo”, onde o autor trás as suas memórias sobre a sua cidade de nascimento nos primeiros anos da década de 1870.

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Foi casado com Constança Valença Câmara, gerando uma família com dez filhos, mas ela faleceu em 1938. Lindolfo Câmara por sua vez morreu no Rio de Janeiro, em 2 de julho de 1944, aos 81 anos, tendo o corpo sido enterrado no Cemitério São João Batista. O seu detalhado necrológico foi publicado no diário carioca Jornal do Commercio, edição de segunda e terça-feira, 3 e 4 de julho de 1944, na página cinco.

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Veríssimo de Melo – Fonte – http://tokdehistoria-br.informativoparaibano.com/

Aparentemente como resultado da publicação feita por Veríssimo de Melo no jornal “A República” de maio de 1972, esse material foi também publicado na Revista do Instituto de Ciências Humanas da UFRN em 2006 foi reeditado pela Editora Sebo Vermelho.

O leitor deve ficar atento que algumas agens escritas por Veríssimo de Melo estão bem ligados a situações típicas do início da década de 1970, quando o texto foi escrito.

Gostaria de informar que devido a exiguidade de fotos da década de 1870 sobre Natal, utilizei o material do início do Século XX, quando muita coisa na cidade ainda tal e qual como visto e relatado por Lindolfo Câmara.

O TEXTO DE VERÍSSIMO DE MELO SOBRE AS MEMÓRIAS DE LINDOLPHO DA CÂMARA

“Natal há 100 anos ados”

Como seria Natal há cem anos ados? Quais as dimensões da cidade, topônimos, festas, superstições, costumes, condições gerais de vida da Província do Rio Grande do Norte aí pelos idos de 1872?

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Mapa de Natal nas últimas décadas do Século XIX. basicamente só existiam a região do centro da cidade e a Ribeira, cujo manguezal desta última área ainda não tinha sido aterrado.

Temos agora em mãos um depoimento de valor histórico, que nos permite visão e comentário em torno dos aspectos mais interessantes da nossa cidade, naqueles velhos tempos. Documento que não vimos citado pelos nossos historiadores, mas que tem valor não somente histórico, mas igualmente sociológico e antropológico. Trata-se do capítulo “Natal do Meu Tempo”, do livro “MEMÓRIAS E DEVANEIOS”, de autoria de Lindolpho Câmara, editado em 1938 no Rio de Janeiro. (Devemos ao Dr. Marciano Freire a lembrança de nos permitir compulsar o documento).

Esse Lindolpho Câmara, estamos sabendo agora, era homem probo, ligado à tradicional família Câmara, do Estado, tendo exercido postos os mais elevados no funcionalismo provincial e federal.

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Comparando-se os dados históricos de Lindolpho Câmara com os do historiador Manoel Ferreira Nobre, (“BREVE NOTÍCIA SOBRE A PROVÍNCIA DO RIO GRANDE DO NORTE”-1877), vemos que eles se completam e ampliam as informações sobre a época. Ferreira Nobre foi o nosso primeiro historiador. Seu livro já obedece a uma sistemática, atendo-se, preferentemente, aos aspectos político, educacional, istrativo e socioeconômico da Província. Lindolpho Câmara, embora consigne alguns dados estatísticos da cidade, estende-se mais a respeito de costumes e tradições. Seu depoimento, menos extenso, é mais pitoresco, mais vivo do que o de Ferreira Nobre. Em muitas agens, escreve com objetividade e graça.

A primeira impressão de Lindolpho Câmara sobre Natal é a respeito da extrema pobreza da população. Em 1870, a cidade contava 12 mil almas. A população total da Província, segundo o censo de 1872, por ele citado, elevava-se a 233.960 habitantes, número quase idêntico ao que nos dá Ferreira Nobre.

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Os que aqui nasciam, diz o autor, em face da precariedade do meio, só tinham condições de ser pescadores, roceiros ou soldados de Polícia. O comércio era pobre. Não havia água encanada, nem esgoto, nem luz. Os poucos lampiões existentes, que queimavam azeite de mamona, antes do querosene, não se acendiam nas noites de lua… O 33º Presidente da Província, Henrique Pereira de Lucena, em 1872, pronunciava-se tristemente sobre Natal: “Vila insignificante e atrasadíssima do interior”. Daí o trocadilho da época, sobre Natal: Cidade? Não-há-tal.

A respeito da mendicância, Lindolpho Câmara afirma, simplesmente, que não havia em Natal, porque ninguém tinha o que dar… Nesse sentido, evoluímos muito.

Natal constituía-se da Cidade Alta e da Cidade Baixa ou Ribeira. As tradicionais lutas entre Xarias e Canguleiros são mencionadas pelo autor como fato de um século atrás, embora nada tenha visto a respeito. Além dos prédios públicos principais, a casa dos governadores, a Câmara e Cadeia e o Erário, só existiam quase as mesmas igrejas de hoje: a da Matriz, de Santo Antônio, do Rosário e do Bom Jesus.

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Os nomes de logradouros e ruas foram quase todos mudados, o que é lamentável, pois eram muito mais bonitos do que os atuais. O Canto do Mangue, por exemplo, era chamado o Canto das Jangadas. E as ruas principais eram a da Tatajubeira, das Virgens, das Laranjeiras, do Fogo, Rua Grande, Praça da Alegria, Rua da Palha, Rua Nova, Rua dos Tocos, Uruguaiana, Beco Novo. Os logradouros mais famosos eram o Baldo, a grande piscina pública, e o cais do o da Pátria, onde ancoravam as embarcações vindas do interior. A única devoção popular conhecida era a da Santa Cruz da Bica, hoje decadente. Há referência a uma lagoa de José ou João Felipe, e que deve ser a atual lagoa de Manoel Felipe.

Os dois mercados existentes eram precários: o da Ribeira funcionava debaixo de uma velha Tatajubeira. O da Cidade Alta, à Rua Nova, sob “frondosas gameleiras”. As medidas e pesos usados na época eram a cuia, a vara e a libra. As moedas eram o xenxém de 10 réis; dobrões de cobre de 20 e 40 réis; notas de 1$000 e 2$000; sendo que unidade era pataca, equivalente a dezesseis vinténs. Lindolpho Câmara faz uma afirmação importante do ponto de vista financeiro: “Naquele tempo, tudo era barato, menos o dinheiro”. É que a desgraçada da inflação ainda não tinha sido inventada pelos economistas…

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COMER E BEBER

Parece oportuno verificar o que comia e bebia o natalense há cem há anos ados: as frutas, os peixes, os doces, as bebidas, os pratos típicos.

Nos dois mercados, além da feira no o da Pátria, encontravam-se várias frutas apanhadas nos sítios e matas em redor da cidade. Umas abundantes ainda hoje. Outras, já raras. Por exemplo: eram e continuam abundantes, a mangaba, os cajus, cajaranas. Mas já não é fácil, nos mercados, frutas como a maçaranduba, guabiraba, camboins, oitis, ingás de corda, como ele chamava. E outras que até desconhecemos, como as ubais e os guajerus. Todavia, para colher essas frutas, havia que enfrentar os inimigos traiçoeiros dos matos: as formigas de fogo, cobras nas moitas e vespas na galhada. As caças mais abundantes na época eram os jacus, inhambus, cotias e tatus.

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Diz Lindolpho Câmara que não havia terra com maior abundância de peixes e crustáceos do que Natal daquela época. Trazidos pelas jangadas dos pescadores, enumeravam-se a cavala, o dentão, a cioba, o pargo, a pescada, a bicuda, o dourado, a corvina, o beijupirá e o cação. Nas praias, através dos currais ou da pesca de arrastão, com tresmalhos ou tarrafas, estavam as tainhas, sardinhas, espadas, palombetas, galos, carapebas, carapicus, bagre, baiacu, agulhas e agulhões. Pescados nos mangues e recifes da Fortaleza, lembra os camarões, lagostas, lagostins,  caranguejos, siris e aratus. Outras variedades eram os ouriços, ostras, mariscos, unhas de velho e polvos. De Ponta Negra, apesar da “longitude da travessia”, vinham os xaréus. Quanto à carne verde, o autor informa que eram abatidas duas rezes nos dias comuns e três, do sábado para o domingo e dias festivos, para toda população.

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A venda dos peixes, nos mercados, era feita tradicionalmente anunciada pelo eco de um grande búzio, “soprado por sujeito de fôlego e que estrondava pela cidade silenciosa até os seus confins”.

Os pratos típicos mais famosos parecem que eram as “dobradinhas”, “cobiça dos gastrônomos”, diz o autor, feitas com “livros” ou “folhoso”. A propósito desses “livros”, conta uma anedota de certo tipo popular, o negro Moisés, servente ou oficial de justiça, que andava sempre de sobrecasaca e cartola. Ao cruzar com o juiz de direito, sobraçando um “livro” (estômago de boi), indagou a autoridade:

– O que levas aí, é a Bíblia?

Resposta rápida do negro:

– Não senhor, é o Código Penal.

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O autor faz referências a outros pratos cuja fama chegou até nós: os mocotós, para as mãos-de-vaca ou ada; os miolos, para as fritadas; as tripas e linguiças.

Das bebidas, só há registro da cachaça de Papari, que ele chama “a deusa dos ébrios”, e a “laranjinha”. Para as pessoas de categoria, havia a “genebra de Holanda”, importada em botijas de barro vidrado.

Já há cem anos certas bebidas se confundiam com remédios poderosos: a genebra era receitada também para cólicas intestinais, defluxeiras, espinhela caída, maus-olhados, sarampo e bexiga recolhida… Hoje, a cachaça corta resfriado e o uísque é bom para o coração…

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Em matéria de fumo, o melhor cigarro era o de fumo picado em papel de milho.

Só o nome depreciativo chegou até nós: Era o mata-rato…

SERENATAS E TERTÚLIAS

Há cem anos ados, Natal apresentava alguns costumes e tradições que chegaram até nós. Outros, porém, já se diluíram no tempo. Praticamente desapareceram da cidade em crescimento. Claro que ainda hoje, por exemplo, temos serenatas e tertúlias (estas com outros nomes). Mas os “Cantões”, – de que nos fala Lindolpho Câmara, – já desapareceram.

As festas de São João e Natal ainda persistem, embora perdendo sempre o brilho e entusiasmo de antigamente. Sobraram alguns vestígios, mas, estes mesmos, parece que estão fadados a se transformar rapidamente. Examinemos.

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As serenatas, há cem anos atrás, nas noites de lua, eram feitas ao som de violões, flautas, clarinetes e pistões. (Ora, quem sair, nos dias de hoje, com pistom e clarinete, pela madrugada, estará muito arriscado a ser levado pela Radiopatrulha. A lei do silêncio será logo lembrada, pelo telefone).

Lindolpho Câmara nos fala com tal entusiasmo das serenatas, do seu tempo, que chega a afirmar: “… até as pedras das calçadas se levantavam para ouvir” os seresteiros. Cantavam coisas assim: “Linda deidade chega à janela, vem ver a lua como está bela”. (A lua, coitada, depois que os astronautas estão lá dentro, já está meio desacreditada pelas moças). Mas frisa o autor que não era só a janela, que se abria, para os seresteiros. Era a porta, para deixar entrar “o bando canoro”. E o trago de vinho do Porto era servido a todos, “em um copo único”. A tradição do copo único, que já não existe, lembra a do mate gaúcho, servido de igual maneira. Com a divulgação dos princípios de higiene, ninguém mais se arrisca a beber no copo usado até mesmo por uma donzela… As festinhas familiares de hoje, aniversários, comemorações de qualquer espécie, entre amigos, eram chamadas antigamente de “tertúlias”.

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Lindolpho Câmara refere que a falta de clubes recreativos na cidade determinava as comemorações caseiras. Parece que esse não era o motivo principal. Hoje, a cidade está cheia de clubes e as festinhas familiares continuam. São as mais gostosas.

Naquele tempo, já se recitava ao som de Dalila, um dedilhado ao violão, que chegou até nós. Alguns conservadores ainda fazem questão de Dalila, para recitar besteira. Numa dessas tertúlias, há cem anos ados, o autor lembrou distinta dama da sociedade, que a todos encantou interpretando uma melodia e acompanhando-se ao violão. Atualmente, de tanto “encher” a cidade as Maysas Matarazzos e outras vedetes do gênero, é mais aplaudida a dama que não canta e nem toca violão.

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Os “Cantões” eram reuniões permanentes de pessoas amigas, nas calçadas de certas residências, para bater papo e falar da vida alheia. O mau hábito de falar da vida alheia é universal e eterno. Mas em Natal, já agora, não se fala apenas em locais determinados. Fala-se por toda parte. Lembra Lindolpho Câmara o “Cantão” famoso do capitão José Antônio de Souza Caldas, na calçada da sacristia da Matriz. O capitão, que morava defronte, fornecia as cadeiras e a turma se reunia, toda tarde. Era uma roda de Conservadores, diz o autor, o que excluía os Liberais da época. Sabemos hoje, de raros casos de pessoas distintas de Natal, que ainda se reúnem em cadeiras nas calçadas, para papear. Mas, Deus nos livre de citá-los nominalmente e nem lembrar de quem ali se fala e toda a cidade sabe no dia seguinte… O perigo maior de sentar na calçada, nos dias atuais, para falar da vida alheia, não é tanto devido à possível repercussão dos assuntos tratados. O perigo mesmo está na agem dos chamados “playboys”, com suas máquinas voadoras, podendo levar todos nós de roldão, para o beleléu…

SÃO JOÃO E NATAL

Duas grandes festas do povo, na cidade, há cem anos ados, eram também o São João e o Natal, afirma o memorialista Lindolpho Câmara.

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No São João, acendiam-se as fogueiras diante dos lares pobres ou remediados, para assar o milho verde e as batatas doces. Dentro das casas, armavam-se altares de banqueta, com a efígie de São João no alto. Entoavam-se cantos alusivos à data e na mesa de jantar estavam os pratos de canjica e bolos os mais variados. Moças e rapazes tiravam sortes, – como ainda hoje, – para saber com quem casavam. À meia-noite, diante do altar, cumpria-se velha superstição: todos deveriam olhar um espelho, para verificar se viam a própria cabeça. (É claro que todos a viam). Mas afirmava-se que, aquele que não a visse, deveria logo mandar encomendar o caixão mortuário…

Variante da mesma abusão, que já registramos no ado, mandava que se olhasse para o fundo de uma jarra com o mesmo fim. Sobre a festa do Natal, o autor refere que saíam às ruas o Bumba-meu-boi, o samba, o maracatu e o batuque. A referência ao maracatu é curiosa. Sabíamos da existência do tradicional maracatu do Recife, e, mais recentemente, em Fortaleza. Mas nunca tivemos notícia de maracatu em Natal. Pena que o autor não tivesse descrito o folguedo popular.

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Nas casas de famílias armavam-se os “vistosos presépios”, a nossa verdadeira tradição latina, hoje praticamente substituída pelas chamadas “árvores de natal”, pagãs e sem qualquer vinculação com a tradição brasileira e portuguesa. À meia-noite, informa Lindolpho Câmara, serviam-se comidas típicas, algumas “hoje” quase desconhecidas: os pastéis de carne de porco, o chouriço, os doces secos, os sequilhos, as castanhas de caju confeitadas.

Os cordões de pastorinhas invadiam as casas, entoando os cânticos tradicionais: “Entrai, entrai Pastorinhas, entrai, entrai em Belém vinde ver nascido Jesus, nosso Bem”. É preciso considerar o comportamento das moças nessa época, segundo refere o autor. O recato era rigoroso: “Não podiam pôr o pé fora do sapato,não podiam cruzar as pernas, nem falar alto, nem comer qualquer iguaria à porta ou à janela, nem olhar para rapazes”.

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O namoro era considerado indecoroso. As moças só casavam com quem os pais determinavam. Conta, a propósito, o que se verificou na casa do Dr. Loló, senhor de engenho no Ceará-Mirim. Certo dia apareceu um sujeitinho para pedir a mão de uma das suas filhas em casamento. Dr. Loló reuniu as meninas, avisou-as antecipadamente de que não deveriam aceitar a proposta e mandou-as para a sala. Falou na presença de todos: – O Sr. Manuel veio pedir uma de vocês em casamento. Qual a que quer? – Eu não quero, disse uma. – Eu também não, disse outra. Então o Dr. Loló exclamou diante do fracassado pretendente: – Está vendo Manuelzinho, elas não querem. Não posso satisfazer o seu pedido, embora fosse muito do meu agrado…

Mas, apesar disso, é fora de dúvida que as moças namoravam e casavam, vencendo ou driblando os obstáculos paternos. E havia muitas que fugiam, exatamente como hoje.

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MEIOS DE COMUNICAÇÃO

Quanto menor a cidade e mais pobre, mais precários são os seus meios de comunicação. Por aí já se tem uma ideia de como seriam os veículos de comunicação na velha cidade do Natal, há cem anos ados.

Das memórias de Lindolpho Câmara, que estamos comentando, destacam-se, nesse sentido, os sinais semafóricos, através do telégrafo ótico da Catedral e o movimento dos carretos à cabeça, em animais e carros de bois. Esse telégrafo, por meio de bandeiras e cores, montado no alto da torre da Matriz, foi também um dos nossos alumbramentos na meninice. Muitas vezes, foi também um dos nossos alumbramentos na mesmice. Muitas vezes, ficávamos horas esquecidas sentados no telhado de casa, só prá ver os escoteiros mudar as bandeiras coloridas. Mesmo sem entender o significado dos sinais, estamos convencidos, hoje, de que aquele serviço foi, na verdade, a nossa primeira TV a cores.

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Temos agora em mãos o folheto intitulado “CÓDIGO DO TELÉGRAFO ÓPTICO”, trazendo o Decreto Estadual n.º 156, de 18 de novembro de 1921, do Governador Antônio José de Mello e Souza, que restabeleceu o serviço semafórico, sob a direção da Associação dos Escoteiros do Alecrim. Segundo as “explicações”, o telégrafo começaria a funcionar a “um quarto antes do nascimento do sol, terminando um quarto de hora depois do ocaso”.

São centenas as convenções, de acordo com o Código Marítimo Internacional, mas o nosso, da Catedral, só empregava três bandeiras – azuis e vermelhas, quadradas e em forma de quadriláteros, – e três galhardetes. Entre outras informações, os sinais indicavam a saída e entrada dos navios; se eram de guerra ou transporte; nacionalidade; se estavam ando noutra direção ou vinham ancorar em Natal; se havia enfermo a bordo; se pediam o prático; nome da embarcação e da companhia de navegação, etc. Havia até um sinal que indicava se o navio batera na “baixinha”, a pedra famosa onde encalharam várias embarcações. O telégrafo óptico prestou serviço real à população natalense desde o século ado até, talvez, a década de trinta.

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Sobre os outros meios de comunicação, convém registrar a observação de Lindolpho Câmara quanto ao nosso primeiro carro de eio. Afirma que, há cem anos ados, Natal não dispunha de um só veículo para tráfego na cidade. Tudo era feito a pé ou em animais. E ninguém cogitava de adquirir nem mesmo “uma caleça ou um tilbury”.

Daí, relata coisas incríveis como estas: o Presidente da Província, com o seu séquito, partia a pé, do Palácio (na Rua do Comércio, na Ribeira), subia a ladeira e vinha abrir a sessão da Assembleia Legislativa na Cidade Alta. Diz ele: “… chegavam esbaforidos, suarentos, que quase nem podiam subir as escadas do edifício…” Finda a cerimônia , tornava pela mesma rota ao Palácio.

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Os enterros eram penosos, acrescenta. Todos “chegavam deitando a alma pela boca, menos o defunto“.

Os casamentos “eram ridículos”: todo mundo a pé, inclusive os noivos, na frente, subindo e descendo ladeira, dando topadas nas pedras pontudas…

Só nas proximidades da proclamação da República, o Dr. Celso Caldas, médico, adquiriu um carro usado, no Recife, nele atrelando dois cavalos magros. Fazia as visitas aos doentes nesse carro e também eava, emprestando-o, muitas vezes, para cerimônias oficiais.

CONCLUSÃO

Foi esta a imagem que pudemos inferir de Natal há cem anos ados, segundo o depoimento do Dr. Lindolpho Câmara.

Era, positivamente, uma cidade pobre, desprovida dos meios mais elementares ao desenvolvimento urbano. De certa forma, refletia a influência do plano nacional. Todavia, nestes cem anos de existência, Natal cresceu e desenvolveu-se muito mais do que poderia imaginar os já nascidos nas primeiras décadas deste século XX. Daqui a cem anos, isto é, no ano de 2072, o que dirão de nós os nossos pósteros? Possivelmente, ainda nos considerarão subdesenvolvidos como nós achamos hoje os nossos anteados do ano de 1872. E assim é a vida…