RAUL FERNANDES E O LIVRO “A MARCHA DE LAMPIÃO – ASSALTO EM MOSSORÓ”

Reprodução do jornal natalense O Poti, edição de 12 de março de 1978.

O Governo do Estado e a Universidade federal do Rio Grande do Norte (UFRN) deverão editar até o final do mês o livro “Marcha de Lampião – Assalto a Mossoró”, de Raul Fernandes. Filho de Rodolfo Fernandes, prefeito de Mossoró quando da invasão da cidade, Raul Fernandes demonstra além do conhecimento de longos anos de pesquisa, a experiência de quem teve a casa assaltada pelos cangaceiros.

Capa da terceira edição do livro de Raul Fernandes.

Formado em Direito e Medicina (especializado em otorrinolaringologia que ensina na UFRN), Raul Fernandes diz não ter escrito antes o livro, porque isso o afastaria dos clientes, que ariam a vê-lo como um escritor, um literário e não um médico. Aos quase setenta anos de idade e pensando na aposentadoria, ele diz ter sido criado com um rifle nas costas, servindo ao Exército Americano na época da guerra e com alguns anos de est5udos nos Estados Unidos e na Alemanha.

Como que querendo justificar-se pelo lançamento do livro, quase vinte anos depois que resolveu escreve-lo, explica que “todos que assistiram à luta sempre me assediaram para que eu escrevesse”. O próprio José Lins do Rego solicitou sua ajuda quando se dispôs a escrever seu último livro, “O Cangaceiro”. Além do mais afirma “não existiam livros sobre o assalto a Mossoró, apenas depoimentos”, o que tornou difícil a execução do trabalho.  

NOTA DO TOK DE HISTÓRIA – É de estranhar essa declaração de Raul Fernandes, pois em 1955 foi lançado o livro “Lampião em Mossoró”, de Raimundo Nonato, pela Editora Pongetti, do Rio de Janeiro. No ano seguinte foi impressa uma segunda edição.

NÃO ACREDITAVAM

Muito à vontade, enriquecendo o assunto com suas próprias experiências, ele fala sobre a tarde em que Lampião entrou em Mossoró, acompanhado de onze reféns, “hoje gente importante do Estado”. Seu pai é, na verdade o foco principal do livro, “o que me coloca numa situação delicada, pois podem dizer que escrevi o livro apenas porque o centro da resistência era meu pai. Mas não foi assim, eu realmente vi tudo muito de perto”.

Nascido em Mossoró, Raul Fernandes estudava na Bahia. “Vindo de férias encontrei minha casa protegida pelas trincheiras. Minha casa foi a única que se preparou a resistência, porque meu pai estava avisado. Mas a cidade de Mossoró não acreditava no ataque”.

Mossoró era um dos centros mais importantes do Nordeste e tinha comércio maior que Natal.

Lampião e seu bando após a derrota em Mossoró.

ERA UM CANGACEIRO INTELIGENTE

Preocupado em esclarecer  pontos um tanto desconhecidos, Raul Fernandes lembra que o ataque a Mossoró não foi feito apenas pelo grupo de Lampião, mas pelos cinco grupos existentes na época (1927) liderados por João Marcelino, Jararaca, Sabino Gomes e Massilon.  

A decisão de atacar Mossoró teria partido exatamente de Massilon, que não era propriamente um cangaceiro, mas um tropeiro. Massilon teria assassinado um soldado e precisava fugir do Nordeste. Vindo da Paraíba, ele idealizou o assalto para fazer reféns para conseguir dinheiro para sua fuga.

Raul Fernandes.

Juntou-se aos demais grupos, e segundo as pesquisas do professor Raul, Lampião teria relutado muito em concordar. “Ele mal sabia ler e escrever, era um homem rude, grosseiro, mas um cangaceiro muito inteligente”. Por ordem do prefeito, a cidade foi evacuada na noite anterior ao assalto (Rodolfo havia sido avisado por amigos da Paraíba que o grupo marchava para Mossoró). Conseguindo no comércio um pouco de armamento e o auxílio de vinte soldados de polícia. Os homens armados (quem não possuía armas foi obrigado a deixar a cidade) conseguiram repelir o ataque.

Aqui, o professor Raul faz uma homenagem à Paraíba: “Bandido nenhum ataca de dia (os cangaceiros atacaram entre 16 e 17 horas), mas Lampião vinha sendo perseguido por duas volantes da Paraíba e se demorassem no assalto acabariam nas mãos dos perseguidores”.

Trincheira do prefeito Rodolfo Fernandes em Mossoró.

GRANDE EXPERIÊNCIA

Raul Fernandes confessa que essa foi uma experiência incrível: Ver de perto os terríveis bandidos e entrevistar várias vezes o famoso Jararaca aprisionado em Mossoró, e lamenta estar desarmado na época. Com dezenove anos foi obrigado a levar sua família para fora da cidade em lugar protegido, sem participar ativamente da resistência.

Hoje ele fala do assunto com uma certa emoção, lembrando os tempos em que o Nordeste era dominado pelo cangaço, que por um longo tempo sofreu pouca repressão.

“Em 1935 eu vi um assalto ao Banco do Brasil, aqui em Natal e ninguém pôde fazer nada”. Depois da Revolução de 1930, conta, os governos se uniram para acabar com o cangaço. O cangaceiro que era preso era imediatamente fuzilado.

“Foi o único meio de reprimir o cangaço que tanto assustava o Nordeste”.

CANGACEIROS & CANGACEIRISMOS

Fonte - www.luciodiaenoite.com.br - CLIQUE NAS IMAGENS PARA AMPLIAR
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O primeiro cangaceiro a assombrar o Nordeste foi o Cabeleira, nascido em Gloria do Goitá, no interior de Pernambuco, presumivelmente no ano de 1751, conforme o seu biografo, Luís da Câmara Cascudo. O Cabeleira morreu enforcado, no Largo das Cinco Pontas – em Recife – em 1776 – “A sua figura de homem belo, de cabeleira loura – escreveu José Lins do Rego – aria a figura de ninar nos cantos das pretas velhas. – Seria um dos modelos para a figura de Aparício Vieira, protótipo dos bandidos do sertão brasileiro” (conforme a definição de Antônio da Cunha, no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa), que o romancista paraibano levanta nos livros Pedra Bonita e Cangaceiro. José Lins mostra com força dramática, nos seus romances sertanejos, esse mundo “dos santos e dos cangaceiros, dos que matam e rezam com a mesma crueza e humanidade”.

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A figura de Jose Gomes já aparecera, muito romantizada, no livro de Franklin Távora O Cabeleira. O cangaceiro e seu bando aterrorizavam as populações, “estripando mulheres a punhal, incendiando casas, depredando tudo, espalhando a morte”, no dizer de Cascudo. O Cabeleira, como ocorria com Jesuíno Brilhante, Antônio Silvino e, claro, Lampião, o mais célebre e temível de todos os cangaceiros, cujo sobrenome chegou a adjetivar-se, como sinônimo e arquétipo – seria também personagem dos poetas populares e cordelistas. Silvio Romero registra seu nome em Cantos Populares do Brasil. Pereira da Costa trata dele no Folclore Pernambucano e Leonardo Mota escreveu um drama sobre suas façanhas, intitulado Cabeleira vem aí, cujo título se origina, certamente, dessas quadrinhas populares – citadas por José Lins e Cascudo, com algumas variações – hoje praticamente esquecidas na memória popular nordestina:

 

Fecha a porta gente

Cabeleira aí vem

Ele não vem só

Vem seu pai também.

 

Fecha a porta gente

Cabeleira aí vem

Vem matando menino

E velho também.

 

Fonte - http://www.onordeste.com/
Fonte – http://www.onordeste.com/

Cascudo o descreve como um tipo forte, alto, airoso, com extensa cabeleira anelada que lhe cobria a nuca, dizendo que madrugou nas tropelias e violências, guiado por seu pai, Joaquim Gomes, e em companhia do mameluco Teodósio. José Bernardo Fernandes Gama, nas Memórias Históricas da Província de Pernambuco, registrou as façanhas do Cabeleira, confundido o apelido que atribui ao pai do cangaceiro: fala de um celerado, a quem chamavam de Cabeleira, um filho deste (sic), e “um pardo, de nome Teodósio, ladrão mui astuto”, que aterrorizavam esta província com seus enormes crimes. Entretanto, como ocorreria com a maioria dos cangaceiros célebres, o Cabeleira encontrou simpatias populares. Cascudo explica: “Sua mocidade, beleza física, a graça de maneiras, as lágrimas de arrependimento, as evocações constantes a figura da mãe e aos conselhos, sua arte de tocar viola, horas e horas encantando os soldados (sic) e assistentes, foram modificando a impressão corrente, e o Cabeleira começou a encontrar defensores e mesmo simpatias”.

Mais ou menos nesta mesma linha José Lins do Rego escreve sobre José Gomes, o Cabeleira: “Apesar de toda crueldade, ainda chegou a impressionar a massa sobre a qual afligia tamanha servidão. Contava-se que morreu por amor. Apaixonado por uma linda moça, o seu coração ficou terno e não resistiu ao mágico poder da mulher, deixando-se enfeitiçar para morrer na forca”.

José Lins do Rego - Fonte - www.vacatussa.com
José Lins do Rego – Fonte – http://www.vacatussa.com

Um dos episódios sinistros do Cabeleira reporta que ele matou a tiros de bacamarte umas crianças que se haviam refugio com temor de seu bando em uma árvore, numa estrada de Vitória de Santo Antão, em Pernambuco (para alguns, local de nascimento do cangaceiro). Outra versão sustenta que a vítima foi um adulto, que, por estar defendendo-se com um galho de árvore, o cangaceiro compara a um grande macaco guariba – um guaribão -, daí a denominação de “macacos” para as volantes de soldados que se opunham aos cangaceiros e os enfrentavam nas caatingas nordestinas. Silvio Romero colocou em versos, que imitam o ritmo do cordel, o episódio de “guaribão”. Na peça fala o próprio Cabeleira, lembrando seus feitos mais heroicos:

 

Lá na minha terra

la em Sant’ão

encontrei um homem

feito um guaribão.

Botei o bacamarte,

Foi pá – pí no chão.

 

No ensaio Presença do Nordeste na Literatura Brasileira, José Lins do Rego aborda o tema do cangaço nordestino, assinalando que está intimamente ligado à história social do patriarcalismo, à vida de uma região dominada pelo mandonismo do senhor da terra e de homens, como se fossem barões de feudos.

José de Alencar - Fonte - www.seuhistory.com
José de Alencar – Fonte – http://www.seuhistory.com

Já em O Sertanejo, – livro que influenciou a obra, de Euclides da Cunha – José de Alencar retratava esses “barões sertanejos”, tão poderosos e autossuficientes nos tempos coloniais do Brasil, que “só nominalmente rendiam preito e homenagem ao rei de Portugal, seu senhor e sano”. José Lins mostra, ainda em nosso século, “o chefe que continuava a mandar de baraço e cutelo, na família, nos aderentes e nos eleitores”; por isso, precisando muitas vezes de “uma força acima da lei, para impor-se a dominar sem limites”. Assim o chefe sertanejo cria um poder que nem o estado – pelo menos durante algum tempo – seria capaz de enfrentar, pois “o chefe era, no sertão, mais que o estado”.

Desenho de Ronald Guimarães - Fonte - http://marvel-nat.forumeiros.com/t186-trama-base-do-forum
Desenho de Ronald Guimarães – Fonte – http://marvel-nat.forumeiros.com/t186-trama-base-do-forum

Para firma-se de pé e impor sua lei – para “pré-firmasse sanamente”, conforme as palavras de José Lins, ele próprio neto de um desses poderosos das terras nordestinas, conforme conta em livros como Menino de Engenho e Meus Verdes Anos – o chefe recorria aos seus “homens dispostos, aos cabras de olho virado, aos que matavam sem dor na consciência”. Assim, a função do cangaceiro, em certa medida, a de uma espécie de “gendarmeria às avessas”. Como, nessa inversão, o crime adquiria um poder corretivo (a lá Esquadrão da Morte de nosso ado recente e urbano), surgiram cangaceiros que, revoltando-se contra o senhor a cujas terras literalmente pertenciam, fizeram trabalhar por sua conta, tornando-se chefes de bandos e ando eles próprios a ditar as leis do sertão. É a estrutura social que determina o aparecimento do cangaceiro, conforme nos mostram em seus romances, um José Lins do Rego, mais recentemente, um Adonias Filho. 

FONTE – Jornal da Paraíba, Campina Grande-PB, 2 de fevereiro de 1983, pág. B-5 

Edilberto Coutinho, escritor e jornalista - Fonte - www.onordeste.com
Edilberto Coutinho, escritor e jornalista – Fonte – http://www.onordeste.com

AUTOR – JOSÉ EDILBERTO COUTINHO  – Nasceu em 28 de setembro de 1938, em Bananeiras, Paraíba. Advogado, jornalista, professor e escritor dedicado ao folclore nordestino. Diplomado pelo World Press Institute, escreveu nos principais jornais e revistas do Brasil e durante algum tempo, foi correspondente, na Europa, do Jornal do Brasil e da Revista Manchete e, nos Estados Unidos, dos Diários Associados (O Jornal e O Cruzeiro). Em 1970, transferiu-se, definitivamente, para o Rio de Janeiro. Pela atuação nos meios intelectuais e literários, conquistou vários prêmios, tanto no Brasil como no exterior, entre os quais, destacamos: “Ensaios de Jornalismo Literário e de Ficção”, conferido pela Academia Brasileira de Letras; “Crítica Literária”, da Associação Paulista de Críticos de Arte; “Estudos Brasileiros de Ficção”da Fundação Cultural de Brasília-Conselho Federal de Cultura; “Ensaio Biográfico”, da Associação Brasileira de Crítica Literária e o primeiro brasileiro a ganhar o prêmio “Casa de Las Americas”, de Havana, com o livro Maracanã, adeus: onze histórias de futebol (1980). Ingressou na Academia Paraibana de Letras, em 28/05/1982. Principais livros publicados: Onda boiadeira e outros contos (1954), Erotismo no romance brasileiro, anos 30 a 60 (1967), Rondon e a integração amazônica (1968), Um negro vai à forra (1977), Sangue na praça(1979), 1979; Criaturas de papel (1980), Erotismo no conto brasileiro (1980),Memória  demolida (1982), O jogo terminado (seleta de contos), (1983), A imaginação do real, (1983). Sua última publicação foi a obra póstuma: Bar Savoy. Faleceu em 1995. 

Fonte – http://www.tirodeletra.com.br/biografia/EdilbertoCoutinho.htm