HISTÓRIA MILITAR DO RIO GRANDE DO NORTE – PARTE 1 – AS LUTAS

Felipe Nery de Brito Guerra – Publicado originalmente na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte – IHGRN, 1927, Volumes XXIII e XXIV, páginas 218 a 228.

* Informação do Blog Tok de História – Busquei atualizar alguma coisa da ortografia do texto do Desembargador Felipe Guerra, escrito em agosto de 1920, sem, contudo, alterá-lo. Devido a sua extensão, foi necessário dividi-lo em duas partes, uma dedicada as lutas e outra aos combatentes potiguares, que será a nossa próxima publicação.

Escrever a história militar do Rio Grande do Norte desde o início de sua colonização, principiada em fins do século XVI seria, pelo menos até princípios do século XVIII, escrever a história do Rio Grande do Norte, porquanto esse espaço de tempo, abrangendo um período de cerca de dois séculos, foi preenchido por sangrentas agitações, lutas e guerras.

A dominação sa, exercida então por piratas, aventureiros, desclassificados, sem outros ideais a não ser o lucro mercantil, sempre receosos e a espera de ataques dos portugueses. O que é certo, porém, é que essa permanência constante e demorada dos ses, embora sem estabelecimento conhecido, representava um perigo para as vizinhas e próximas capitanias, principalmente a Paraíba, de onde haviam sido repelidos.

“O mal vem do Rio Grande”, dizia-se em Pernambuco e na Paraíba. E assim, para acabar com esse mal, foi resolvida a conquista do Rio Grande, da qual foi incumbido Manoel Mascarenhas Homem, tendo Jerônimo de Albuquerque alcançado melhor êxito na empresa.

Piratas ses no Brasil – Fonte – httpswww.goianarte.com

Não tinham então os ses regulares instalações. Viviam, entretanto, em estreitas relações com os selvagens, habitando mesmo suas aldeias. É o que se depreende da célebre “História do Brasil” de Frei Vicente do Salvador, escrita em 1627, e onde se lê que logo ao chegar Manoel Mascarenhas Homem “ali desembarcaram e se entrincheiraram de varas de mangue para começarem a fazer o forte e se defenderem dos Potiguaras que não tardaram muitos dias. Vieram uma madrugada, infinitos, acompanhados de cinquenta ses, que haviam ficado das naus no porto dos Búzios e outros que ali estavam casados com Potiguaras”.

Manoel Mascarenhas Homem, que lutou no Rio Grande do Norte contra os ses – Fonte – https://pt.wikipedia.org/wiki/Wikip%C3%A9dia

E assim ofereceriam os selvagens, auxiliados por seus aliados ses, tenaz resistência. O que não impediu, entretanto, a fundação do “Forte dos Reys”, permitindo a criação da povoação do Natal dois anos depois — 25 de dezembro de 1599. Foi celebrada a paz com os Potiguaras, conseguida por Jerônimo de Albuquerque com a mediação de um selvagem “principal e feiticeiro”, chamado ILHA GRANDE.

A conquista do litoral brasileiro havia sido começada do norte para o sul, sendo depois continuada do sul para o norte, tendo, principalmente esta última, contado com eficaz cooperação dos naturais da terra, já representados por brancos, filhos de portugueses, por mestiços e pelos selvagens que, subjugados e pacificados pelos portugueses, eram aproveitados como seus aliados.

Os selvagens constituíam sempre o grosso das forças conquistadoras, embora não fossem, em regra, os elementos mais resistentes nos combates. Eram, entretanto, os mais resistentes às longas marchas, aos transportes e aos mais serviços exigidos em campanhas rudes e aventurosas, em que não podia se contar com auxílios minguadíssimos e retardados, senão impossíveis.

Forte dos Reis Magos, por Frans Post (1638)
– Fonte – http://noisnafolia.no.comunidades.net/pontos-turisticos

Os Potiguares, que dominavam o litoral do Rio Grande do Norte, uma vez pacificados, foram valiosos e fortes elementos para a conquista do norte. Não existindo mais o “mal vindo do Rio Grande», que ara para o Ceará e para o Maranhão, foi resolvida a conquista desses pontos, onde os ses procuravam se firmar. Ainda foram os Potiguares elementos preponderantes para a conquista do primeiro daqueles territórios.

Expulsos os ses do litoral, de Paraíba ao Maranhão, as novas populações que procuravam se estabelecer não ficaram na tranquilidade da paz. Nem todas as tribos haviam feito amizade com os colonizadores; e mesmo no meio daquelas tidas como amigas, surgiam ataques e desconfianças que traziam para a região um verdadeiro estado de guerra, rompendo a duvidosa paz, sempre de curta duração..

Veio depois a guerra holandesa. O Rio Grande do Norte foi duramente sacrificado na luta. Tomada a Fortaleza dos Reis Magos (12 de dezembro de 1533) por uma força holandesa guiada por Calabar, sofreu o Rio Grande do Norte com o invasor até o final da guerra holandesa no Brasil. Esteve assim esta terra dezenove anos sob o domínio batavo.

Florin holandês de ouro. Essa foi a primeira moeda a conter o nome Brasil e foi produzida pelos holandeses durante a ocupação de Recife – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Dutch_guilder

Calabar conseguira angariar para os holandeses a amizade dos Índios Janduís, que unidos aqueles praticaram horríveis massacres. Fácil é de imaginar o que seria a guerra movida por selvagens açulados por aventureiros da pior espécie, como parece que eram os holandeses enviados para o Rio Grande do Norte. Chegaram a negociar prisioneiros como animais para o corte, destinado a pasto dos antropófagos Janduís.

Finda a guerra holandesa pela expulsão dos invasores, continuou a luta no Rio Grande contra os Índios, sempre dispostos a defender sua vida selvagem e sem peias. Houve mesmo uma rebelião generalizada dos nativos que durou longos anos, nada respeitando, nem a vida nem os habitantes do Rio Grande, que já contava elementos de prosperidade. Foi calculado que os índios mataram “perto do trinta mil cabeças de gado grosso e mais de mil cavalgaduras”. Essa rebelião durou de 1688 a 1720, quer dizer, 32 anos, talvez mais, porquanto não se acha bem estudado esse ponto da história. Foi um movimento sério e perigoso. Pedidos insistentes de socorro partiram para Pernambuco, para a Bahia, e até diretamente seguiu um emissário para Lisboa, levando uma representação do Senado da Câmara ao Rei, tais as delongas do auxílio reclamado.

“Cena da Expedição do Tenente-Coronel Affonso Botelho”, aquarela do artista Joaquim José de Miranda (1771) que retrata o confronto entre indígenas e bandeirantes. Provavelmente cenas como essa ocorreram no Rio Grande do Norte – Fonte – https://www.historia.uff.br/impressoesrebeldes/revolta/guerras-barbaras/

Do litoral ao alto sertão era grande o perigo que ameaçava a própria Natal, sendo, o ponto culminante da rebelião a ribeira do Assú. Vieram em excursões guerreiras tropas da Paraíba, de Pernambuco e da Bahia. Vieram os ”terços paulistas” que haviam lutado em Palmares, vieram companhias do Batalhão de Henrique Dias. Essas forças, os melhores elementos de luta então disponíveis pelo Governo do Brasil, subiram até as cabeceiras do rio Assú, foram às ribeiras do Seridó, do Apodi até ao Jaguaribe, em perseguição dos índios que foram afinal pacificados, isto é, aniquilados, escorraçados, sendo tomada a providência de aldear os restantes. Ainda em tais aldeamentos apareciam insurreições dos índios motivadas por excessivos rigores e injustiças. Nenhuma condescendência havia para o infeliz selvagem, a quem de fato era negado qualquer direito.

Seguramente Miguel Joaquim de Almeida Castro, o Padre Miguelinho, foi o potiguar que mais expresivamente tomou parte na revolução de 1817 e acabou sendo fuzilado. Em junho de 1906, no 89º aniversário do fuzilamento, o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, promoveu uma série de homenagens em Natal . Houve uma sessão solene no então Teatro Carlos Gomes, atualmente Teatro Alberto Maranhão, na noite de 12 de junho de 1906, onde um coro feminino cantou o “Hino de Miguelinho”, letra de Henrique Castriciano e música de Luigi Maria Smido, cuja a capa da partitura apresentamos acima – Fonte – https://gamfrente.blogspot.com/2017/03/padre-miguelinho-luz-do-rio-grande-do.html

Na revolução de 1817, não é ignorado o papel que representou o Rio Grande do Norte. Pode-se dizer que essa página luminosa da história nacional se caracteriza no seu conjunto mais pela pureza de seus chefes, pelo estoico heroísmo dos que nela figuram, pela elevação dos ideais, pelo pendor doutrinário, do que por feitos militares e ação guerreira. E foi essa seguramente uma das causas que apressaram o fracasso da revolução.

Em agitações partidárias ou a Província as fases da Independência Nacional. Tomou parte na revolução da “República do Equador”.

Os corajosos e mal organizados destroços das forças revolucionárias de 1824 seguiram por terra, em dificultosa marcha por ínvios sertões de Pernambuco ao Ceará, procurando junção com as forças que nessa Província apoiavam o movimento revolucionário. Foi uma verdadeira retirada de cerca de três mil pessoas, conduzindo duas peças de artilharia, arrastadas por caminhos impraticáveis e arrostando todas as dificuldades que podem acompanhar forças sem disciplina, sem organização militar, sem recursos e sem alentadoras esperanças.

Quadro “Estudo para Frei Caneca”, de Antônio Parreiras (1918), mostrando o padre revolucionário em seu julgamento – Fonte – https://en.wikipedia.org/

Atravessaram o sertão do Rio Grande do Norte entrando pelo Seridó, seguindo para Pau dos Ferros pelos limites entre Rio Grande do Norte e a Paraíba. No Seridó, onde o presidente provisório da Paraíba deixou sua família, que com ele vinha acompanhando a expedição, da qual também fazia parte o nobre, elevado e culto espírito que era Frei Caneca, não foram hostilizadas as forças. Em Caicó, demoraram-se oito dias, concertando as carretas das peças que eram puxadas por bois. Em Patu de Fora, começou a expedição a sofrer hostilidades e também a hostilizar. Foram incendiadas algumas casas e fazendas.

Em Torrões (ou Torões), Patu, houve forte tiroteio, morrendo mais de trinta pessoas de parte a parte. Parece que batalhões irregulares de Portalegre organizaram guerrilhas, unindo-se depois com as forças legalistas do Rio do Peixe (PB).

Foto – Rostand Medeiros.

Serenada a luta pela submissão dos rebeldes, seguiram-se o martírio e as exageradas punições de infelizes chefes rebeldes, sonhadores antecipados dos ideais republicanos, vítimas da crueldade das juntas militares, tão tristemente célebres na história pátria.

Os habitantes do Rio Grande do Norte conservaram sempre prontos para qualquer emergência, chegando a formar batalhões de tropas irregulares, contra os reacionários de 1832, apoiando a política do então ministro da justiça e depois Regente do Império, padre Diogo Antônio Feijó.

Iniciada no Ceará em dezembro de 1831, com a proclamação de Joaquim Pinto Madeira, essa revolta obedecia aos ideais do Partido Restaurador, ou Caramuru, apoiado pelos portugueses. Formou-se no sertão do Rio Grande do Norte batalhões de tropas irregulares que marcharam para o Crato contra os revolucionários. De Martins e Portalegre seguiu um batalhão sob o comando do coronel Agostinho Pinto de Queirós. Conta-se que na primeira noite de marcha dois soldados de família do Martins, os irmãos Patrícios, tentaram voltar para casa, sendo por isso, ao amanhecer, sumariamente fuzilados. O comandante da tropa foi processado por esse fato e depois, por prescrição, isento da pena.

Pintura em azulejo de Armando Lopes Rafael (2010), representando Joaquim Pinto Madeira – Fonte – https://www.historia.uff.br/impressoesrebeldes/revista/a-guerra-dos-cacetes-bentos/

Sob o comando do coronel José Teixeira se organizou um batalhão no Seridó, do qual faziam parte os homens válidos das principais famílias. Incorporada à força combatente e reunida em Caicó, o padre Francisco de Britto Guerra, então vigário da cidade e representante da Província na Câmara Temporária, onde entrara como suplente, intimamente relacionado com o padre Feijó, e talvez o principal fator do movimento, promoveu uma grande solenidade cívico-religiosa por ocasião da partida da força. Seguiram todos montados para Pombal onde se uniram as forças da Paraíba, principiaram a receber instrução militar ministrada pelo alferes Canuto, de tropa de linha do Ceará.

Nas várzeas do Rio do Peixe (PB), houve o primeiro encontro entre esse batalhão do Seridó e as forças de Pinto Madeira, tendo estas atacado de surpresa, procurando tomar o valioso comboio dos víveres e munições dos seridoenses. O resultado foi as forças de Madeira retirando-se do combate com a perda de doze homens.

Manuel de Assis Mascarenhas, presidente da Província do Rio Grande do Norte ente 1838 a 1841, em cujo governo concedeu a patente de Coronel Comandante ao seridoense Joãop Gomes da Silva, pela sua capacidade de luta nos combates contra as forças de Pinto Madeira em 1831 – https://pt.wikipedia.org

O batalhão do Seridó continuou em marcha afim de reunir-se com as forças legalistas que no Ceará procuravam abafar a revolta, havendo pelo caminho alguns encontros. Terminada a luta, voltou a tropa ao Caicó, onde foi recebida com festas, aclamações, Te Deum na igreja, etc. Por ocasião dessas festas da chegada, foi aclamado pelos soldados o comandante das forças o quartel mestre João Gomes da Silva, que se havia distinguido na expedição, aclamação que anos depois no governo de Manoel de Assis Mascarenhas (1838 – 1841) foi confirmada com a patente de Coronel Comandante.

Muito é de notar que em todas essas lutas político-partidárias, os sertanejos do Rio Grande do Norte, serenados os ânimos, evitavam ódios inúteis, crueldades, perseguições e delações contra os vencidos.

A tradição narra mesmo o fato de haver Simão Gomes de Britto, capitão de milícias em Campo Grande, recebido ordem superior para prender o Coronel Cavalcante, implicado na revolução de 1817. Mas este apresentou a ordem de prisão ao seu amigo e pediu para que tomasse suas precauções. Acrescentou: — “Dê no que der, não o prenderei, porque sei que não cometeu crime”. E efetivamente não tentou fazer a prisão. Entretanto, o Coronel Cavalcante, ou porque se julgasse inocente, ou por altivez de caráter, ou ainda para evitar a responsabilidade do amigo, foi se entregar, e sofreu os rigores daqueles horríveis cárceres, onde foram martirizados os patriotas de 1817.

Óleo sobre tela de Eduardo de Martino, que retrata a troca de tiros que culminaram na primeira agem de navios brasileiros por o de Tonelero em 1851, onde os argentinos construíram fortificações que bloqueavam a navegação no Rio Paraná. Domínio público, Revista de História da Biblioteca Nacional – Fonte – https://multirio.rio.rj.gov.br/index.php/historia-do-brasil/brasil-monarquico/8979-quest%C3%B5es-platinas-a%C3%A7%C3%B5es-militares-no-segundo-imp%C3%A9rio

Nas guerras contra as repúblicas do Rio da Prata numerosos filhos do Rio Grande do Norte acudiram em defesa da pátria.

Quatro meses depois de declarada a Guerra do Paraguai, embarcou em Macau um contingente de mais de sessenta voluntários, dos quais trinta e três eram do Assú, além de onze de Campo Grande, que haviam seguido diretamente para a Capital. É conhecido o fato de haver o Dr. Olinto José Meira de Vasconcelos, então Presidente da Província (1863 – 1866), dirigido a palavra na capital, a grupos que se achavam em manifestações em frente ao quartel, apelando para o patriotismo de todos e pedindo dar um o à frente aqueles que quisessem seguir para a guerra. Mais de 400 voluntários moveram-se para a frente. De todos os pontos da Província seguiram Voluntários da Pátria, sendo também crescido o número de recrutados. E o papel que na guerra desempenharam os rio-grandenses-do-norte ajudou ao merecido renome adquirido pela infantaria do norte.

O brasileiro Symphonio dos Santos uniformizado para combater na Guerra do paraguai – Fonte – http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=92142

Na proclamação da República, na revolução federalista do sul, na revolta da armada, em Canudos, os filhos do Rio Grande do Norte cumpriram sempre seu dever.

Sob as ordens de Plácido de Castro, nas lutas acreanas, encontraram-se também inúmeros rio-grandenses-do-norte, destemidos e audazes pioneiros da colonização e conquista das mais recuadas fronteiras da Pátria, os quais tangidos do torrão natal por atormentadoras secas, forneceram, com seus irmãos de outros Estados, por igual vítimas da calamidade, os elementos vitais, talvez os únicos possíveis para o colossal empreendimento da colonização da Amazônia.

De fato, outras populações vivendo certamente sob um clima mais doce e uma natureza mais amena, não estariam, como os nossos sertanejos, tão habituados a receber e aguentar o choque e a destruição das mortíferas forças da natureza amazônica, com a mesma resignação, com o mesmo esforço e coragem com que encaram e recebem as furiosas cargas das nossas devastadoras secas.

Na execução da recente lei do serviço militar (1916) raro é o sorteado dessa terra que deixa de acudir ao chamado: talvez nenhum listado da União apresente menor número de insubmissos.

Eis aqui, a largos traços, a vida militar do Rio Grande do Norte: lutas constantes durante dois séculos, sempre aceso o sentimento de patriotismo, de abnegação, de sofrimento. E por isso mesmo, apesar de uma bissecular educação guerreira, os filhos do Rio Grande do Norte têm acentuadamente o caráter pacífico: o banditismo, o caudilhismo, e as lutas por fanatismo nunca encontraram apoio entre eles.

Para conhecerem a biografia de Felipe Guerra é só ar esse link – https://fatosdefelipeguerra.blogspot.com/2019/10/felipe-guerra_31.html 

JORGE FERNANDES – POETA E DRAMATURGO

Em 25 de novembro de 1957, o escritor Luís Patriota realizou o seu discurso de posse na Cadeira nº 9, da Academia Potiguar de Letras, cujo patrono era o poeta Jorge Fernandes. Trago parte desse discurso, que foi publicado na REVISTA DA ACADEMIA POTIGUAR DE LETRAS, Natal, 1964, número 02, páginas 7 a 14.

Senhores Acadêmicos: Aqui me tendes para fazer o elogio do patrono de minha cadeira, Jorge Fernandes — Poeta e Dramaturgo. À primeira vista se vos afigurará, talvez, um paradoxo, porque eu, integrante da velha guarda, haja escolhido para meu patrono nesta Academia um poeta filiado à nova escola, da qual, aliás, era ele o mais legitimo representante no meio intelectual da província e quiçá um dos mais prováveis precursores desse movimento de renovação nacional, que, não obstante contar com a adesão de figuras exponenciais da literatura brasileira, não conseguiu ainda, nem conseguirá jamais, (queiram ou não queiram os modernos Zoilos) sobrepujar a poesia antiga, cingida de metro clássico, tão ao gosto da nossa gente, por índole, sentimental e emotiva. Eu vos darei a resposta convincente e clara: Jorge Fernandes foi um poeta na legítima acepção do termo, abrangendo todas as escolas com arte e perfeição absoluta, assim é que, tanto fazia um soneto, com a célebre chave de ouro, rimas ricas e bom jogo de palavras, como sabia compor versos modernos, penetrando até à geração que sucedeu ao modernismo e ao pós-modernismo..

Outro motivo da preferência na escolha do meu patrono, reside no fato de, nos últimos anos de atividade funcional do poeta, no antigo Departamento Estadual da Fazenda, haver trabalhado eu, ao tempo do Conselho istrativo, junto a ele já alquebrado e desiludido de todos e de tudo, cujas funções a seu cargo se limitavam ao fatigante serviço de carimbar talões de guias fiscais.

Tive o feliz ensejo de, naquele tempo, privar de sua intimidade e ouvir-lhe, com a máxima atenção, a narrativa minuciosa e completa de suas profundas queixas e decepções, como um “desabafo” para o seu coração de poeta, porque alto demais pairava o seu sonho, para ser alcançado…

E de tanto desejar descobrir esses arcanos da Natureza e de tanto se convencer da impossibilidade de atingi-los, foi que Jorge Fernandes começou a fazer ironia, na prosa e no verso, como se em nada mais pudesse acreditar..

Hoje praticamente esquecidea, a Academia Potiguar de Letras foi criada por vários intelectuais locais e conseguiu deixar algumas revistas com interessante material.

Veríssimo de Melo que, através da Revista BANDO, forneceu-me abundante subsídio para este modesto trabalho acerca de Jorge Fernandes, chamou-me ainda a atenção, numa das suas apreciáveis crônicas diárias publicadas n’A REPÚBLICA, para o Jorge Fernandes — Concretista, nas seguintes palavras: — “Em palestra com Luís Patriota e Newton Navarro, eu dizia ontem e agora torno “público que não há em toda a nossa literatura provinciana, nenhuma poesia mais atual do que a de Jorge Fernandes. A propósito, Navarro acrescentou um fato que não deve ar sem um registro, principalmente nesta hora em que um nosso intelectual se prepara para escrever-lhe o elogio acadêmico.

Se o movimento moderno, chamado “concretismo”, consiste principalmente na representação das ideias ou palavras em linhas ou formas geométricas, não se pode negar que Jorge Fernandes também foi um precursor desse concretismo. No seu poema “Rede”, que é, aliás, delicioso, Jorge Fernandes fala sobre os prazeres que uma boa rede nos proporciona e termina por colocar a referida palavra em forma de semicírculo, exatamente como uma rede armada.

Foi a maneira mais viva que ele encontrou para nos transmitir a ideia de uma rede.

Jorge Fernandes.

E não é isto que os chamados poetas concretistas têm feito para aludir às coisas que podem ser representadas em formas geométricas?

Pois bem, senhores acadêmicos, é outra faceta por demais interessante do talento poético de Jorge Fernandes, e uma demonstração evidente do quanto era ele capaz, fazendo à moderna poética brasileira vaticínios sobre o que seria realmente a poesia do futuro, sem expressão nem sentimento, e já de si inaceitável, por insubsistente.

A poesia de Jorge Fernandes é bem outra, moderna, porém expressiva e de roupagem adequada ao gosto, por que não dizê-lo? até mesmo dos filiados à velha escola, pelo encanto, graça e ironia que emprestava aos seus poemas.

Documento de Jorge Fernandes.

Escrevia-a com naturalidade e sem preocupações de forma e de estética, mais chegada ao coração e aos motivos do povo. E assim mereceu a consagração de pioneiro do movimento modernista, em nossa terra, confirmada por Mário de Andrade, através da seguinte carta:

Jorge Fernandes — Por intermédio desse queridíssimo Luiz da Câmara Cascudo faz já um mundo de tempo que recebi uns poemas de você, entre os quais dois dedicados a mim. Só agora, e como sempre de carreira, venho lhe dizer o muito obrigado efusivo e a sinceridade enorme com que me agradam os seus versos. Tem neles um certo at brusco meio selvagem, meio ríspido e, no entanto, côa de tudo uma doçura e um carinho gostoso. Tudo isto eu tenho apreciado e me tem dado vontade de ter mais coisas suas. Você é original e incontestável, e é duma originalidade natural nada. procurada. Isso é dom preciosíssimo, meu amigo. Fique certo que ando guardando os poemas de você como um dos mais interessantes dentre os do nosso Brasil de hoje. Veja se me manda mais coisas. Estou com ideias de escrever chamando a atenção sobre vocês daí norte-rio-grandenses e você terá lugar. importante nesse artigo. Vá mandando coisas que fizer, pois, mesmo que não seja por causa disso, só por causa da nossa amizade que no ano que vem será conversada, voz contra voz, nós dois aí mesmo em Natal bonita. (Não pense que este “bonita” é para agradar, tenho umas fotografias de Natal aqui e gostei muito). Veja se escreve um pouco e mande dizer se recebeu o livro que mandei para você. Conte coisas e retribua este abraço do Mário de Andrade.”

Ouçamos, agora, Peregrino Junior, atual Presidente da Academia Brasileira de Letras, em carta dirigida a Lenine Pinto:

Agradecendo o exemplar do “Diário de Pernambuco”, que me enviou, quero felicitá-lo calorosamente pela entrevista com Jorge Fernandes — a maior figura literária de nossa terra. Foi justa e oportuna sua iniciativa. Jorge Fernandes — grande poeta, grande contista, grande dramaturgo, —merece todas as homenagens, que nenhuma é bastante alta para o seu valor, apesar da modéstia e do silêncio em que ele vive. Velho fã de Jorge Fernandes, se faz que possamos crer no homem, mas sem nenhum motivo para descrer nas suas palavras”.

Reportagem onde Jorge Fernandes deu um depoimento a Lenine Pinto em 1949, quantro anos antes de sua morte e reproduzida no Diário de Pernambuco. Na época essa matéria repercutiu muito.
O saudoso Lenine Pinto e Rostand Medeiros.

Octacílio Alecrim, no seu primoroso livro PROVÍNCIA SUBMERSA, faz inúmeras referências a Jorge Fernandes, com transcrição de vários dos seus poemas, entre outros: REDE, (pag. 27); A RODA (pag. 72) e CANÇÃO DO INVERNO (pag. 94)

Declamemos dois deles.

REDE

Embaladora do sono…

Balanço dos alpendres e dos ranchos…

:E- vaivém de modinhas langorosas….

Vaivém de embalos e canções…

Professora de violões…

Tipoia de amores nordestinos…

Grande… larga e forte… para ensaios…

Berço de grande raça

Suspensa…

Guardadora de sonhos…

Pra madorna ao meio-dia…

Grande… côncava…

Lá no fundo dorme um bichinho

— Ô… ô… ô… ôô… ôôôôôôôôôô…

— Balança o punho da rede pro menino dormir…

A RODA

Lá vai rodando a roda

        Pelo fio do eio

Equilibrada por um arame…

       Ninguém lhe esbarra a carreira…

Aquela roda já teve raios dourados

         E uma borracha em torno…

Era de um velocípede de criança rica…

Depois perdeu os raios dourados…

         Perde tudo…

Sozinha… ôca… vagabunda

         Lá se vai rua afora:

               Dourada…

                 Macia…

             Ambicionada

Aos olhos satisfeitos do menino pobre...

Como acabámos de ouvir, há muito de apreciável nesse gênero de poesia, dependendo unicamente dos recursos do poeta a maneira de tocar à sensibilidade e ao paladar do leitor, na exaltação de suas faculdades mentais, desenvolvidas em relação ao culto da Beleza e da Verdade.

Nenhum poeta deve simular aquilo que não sente, ‘nem disfarçar os seus próprios sentimentos, porque “escrever mentindo é um sacrilégio do coração”.

E, como a palavra é realmente para o poeta a expressão da alma, D. Silvério Gomes Pimenta já dizia que, na boca do poeta, a palavra fala à fantasia e ao coração, povoando aquela de imagens e revolucionando este de afetos, acrescentando que Jesus é a imagem substancial da inteligência eterna, e a palavra é a imagem acidental da inteligência criada.

Falar em Jorge Fernandes, senhores acadêmicos, é lembrar o último fidalgo, no conceito luminar de Câmara Cascudo: — Sebastião Fernandes, o poeta de fina sensibilidade, o orador fluente e primoroso e o exímio cultor do Direito, em nossa terra, a quem Jorge dedicou o MEU POEMA PROVINCIANO Nº 5, aludindo ao sino grande da Matriz:

“Foi a este sino que meu irmão, num soneto,

pediu que ele dobrasse muito no dia que ele morresse…

(Felizmente o meu irmão está vivo e tomara

que ele tão cedo não dobre muito por ele)”.

TRAÇOS BIOGRÁFICOS

Jorge Fernandes nasceu em Natal, aos 22 de agosto de 1887, sendo seus pais o professor Manoel Fernandes de Oliveira e Dona Francisca Fagundes de Oliveira. Ao concluir os seus estudos escolares, colocou-se no antigo estabelecimento industrial “Fábrica Vigilante”, de Filadelfo Lira, e, no desempenho das funções de pracista, viajava periodicamente o sertão, oportunidade que sabia aproveitar, na obtenção de valiosos subsídios para vários de seus poemas que constituem, hoje em dia, o mais apreciável regalo espiritual de seus inúmeros iradores.

Do seu primeiro consórcio com Dona Maria da Conceição Fernandes de Oliveira, realizado em 1º de janeiro de 1910, houve quatro filhos: Alba, Iara, Ilka e Rui Fernandes de Oliveira. Contraindo segundas núpcias, aos 29 de março de 1924, deixou viúva d. Alice Fernandes de Oliveira e filha Alice, além de outra, de nome Jurema, já falecida.

No dia 17 de agosto de 1953, aposentado como oficial istrativo do Departamento da Fazenda Estadual, veio a expirar em sua residência, à rua Vigário Bartolomeu, aos 66 anos de idade.

O POETA E SUA OBRA

Jorge Fernandes de Oliveira escreveu e publicou um único trabalho — LIVRO DE POEMAS (Tip. d’“A Imprensa”, Natal, 1927), prefaciado por Luís da Câmara Cascudo, e as seguintes peças teatrais: ASSIM MORREU… MANHÃ DE SOL, ANTI-CRISTO (de colaboração com Virgílio Trindade), A MENTIRA, O BRABO, PELAS GRADES e DE JOELHOS. Em parceria com Virgílio Trindade e Ezequiel Wanderley, escreveu CÉU ABERTO, algumas delas ou todas representadas no antigo Teatro Carlos Gomes, por iniciativa do “Ginásio Dramático de Natal”, e que muito contribuíram para os aplausos recebidos por Jorge Fernandes.

São estes, srs. acadêmicos, os ligeiros densos biográficos que pude obter, em relação ao patrono de minha cadeira nesta Academia, nas fontes a que. recorri, e estou certo de que mais não será preciso dizer, mesmo porque a personalidade inconfundível de Jorge Fernandes foi por demais conhecida de todos nós, como uma glória das letras norte-rio-grandenses.

Ao tomar posse de minha cadeira, prezados confrades, não tenho palavras para agradecer tão importante distinção que me proporcionais com a vossa companhia; e, em’ particular, ao ilustre confrade Marcos Falcão, quero – também expressar o meu sincero e profundo agradecimento pela generosidade de suas palavras amigas e o estímulo de sua amizade e valiosíssima contribuição à magnificência desta noite.

Senhores Acadêmicos: Olavo Bilac disse, certa vez, que à Academia, como ao Paraíso e ao etos se pode chegar por diversos caminhos…

Não quis eu chegar, pois, sozinho a esta Casa; poderia tomar rumo diferente… Por isso escolhi esse companheiro para a minha jornada. Aqui estou, deixai-me entrar!…