É FATO QUE O EXÉRCITO BRASILEIRO PRODUZIU UM MATERIAL COM FOTOS E FILMES SOBRE NATAL E A BASE DE PARNAMIRIM DURANTE A SEGUNDA GUERRA? E ONDE SE ENCONTRA ESSE RARO MATERIAL?

Descobri Que o Exército Brasileiro Realizou em 1942 Todo um Trabalho Documental e Iconográfico, Com Fotos e Filmes Sobre Natal e a Base de Parnamirim. Mas onde está esse material???

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Mesmo com muitos historiadores não aceitando essa situação, o tema sobre a cidade de Natal durante a Segunda Guerra Mundial sempre foi algo que chamou (e chama) bastante a atenção do povo dessa cidade, sendo os materiais produzidos sobre esse período da história local os mais consumidos. São livros, vídeos, histórias em quadrinhos, peças de teatro e outros produtos.

NATAL, BRASIL – JUNHO 1943: A view as US servicemen at the Parnamirim airport at the US Air Force base in Natal, Brazil. (Photo by Ivan Dmitri/Michael Ochs Archives/Getty Images) *** Local Caption***

A presença de tropas estrangeiras na cidade, dos atos de espionagem nazifascista em Natal, a reação dos natalenses envolvidos nesse contexto, o que mudou na cidade, o que a população conseguiu de vantagem com tudo isso e também o que sofreu, são sempre pontos de interesse dos moradores da “Cidade do Sol”.

Enfim, devido a sua propalada posição estratégica, Natal foi seguramente a cidade mais envolvida na Segunda Guerra Mundial na América do Sul.

Parnamirim Field – Fonte – NARA.

Aqui existiu uma das maiores bases aéreas Aliadas envolvidas no conflito e daqui partiram milhares de aeronaves para atuarem em diversas frentes de combate, desde a África, ando pela Europa e chegando até a China.

Por aqui sempre chamou atenção quando surgem novos dados e materiais, principalmente iconográficos, sobre a cidade naqueles tempos turbulentos. Uma coleção de novas fotos, ou até mesmo uma simples foto, já é motivo de discussão entre aqueles que gostam de observar esse período da História da cidade.

E com muita satisfação eu descubro que o Exército Brasileiro realizou em 1942 todo um trabalho documental e iconográfico, com fotos e filmes sobre Natal e a Base de Parnamirim. Todo esse material foi destinado para a produção de uma palestra que se realizou nas primeiras semanas de janeiro de 1943, no antigo Palácio da Guerra, atual Palácio Duque de Caxias, ao lado da Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Vejam abaixo!

Maravilha! Mas como foi produzido esse material? Quem o produziu? Quem foi o oficial que apresentou esse trabalho no Rio? E o mais importante – onde está esse material?

Sobre Quem Apresentou

Nos jornais brasileiros, não consta o nome de quem realizou e produziu o material iconográfico, mas como as notícias apontam o capitão Jefferson Cardim de Alencar Osorio como o palestrante do evento no Palácio Duque de Caxias e devido a sua patente, o mais provável é que ele tenha sido o responsável por essa pesquisa.

Mas quem era Jefferson Cardim e como ele veio parar em Natal?

O capitão Jefferson Cardim de Alencar Osorio na época da Segunda Guerra.

Sabemos que nasceu em 17 de fevereiro de 1912 no Rio de Janeiro, sendo filho do capitão de corveta Roberto de Alencar Osorio e da professora Corina Cardim de Alencar Osório.

Apesar de ter um pai oficial da Marinha, Cardim decidiu seguir a carreira militar no Exército. Entrou na Escola Militar do Realengo, sendo declarado aspirante a oficial em 25 de janeiro de 1934 (Turma Marechal José Pessoa) na arma de artilharia. Logo ô jovem oficial foi promovido a segundo tenente.

A sua primeira unidade foi o 6º Grupo de Artilharia de Costa (6º G. A. Co.), no Forte de Coimbra, no atual estado do Mato Grosso do Sul. Em 1936 estava no 4º Regimento de Artilharia Montado (4º R. A. M.), em Itu, interior de São Paulo, sendo depois transferido para Santa Maria, no Rio Grande do Sul, para atuar no 5º Regimento de Artilharia Montado (5º R. A. M.), conhecido como Regimento Mallet. Na sequência veio para Niterói, Rio de Janeiro, para servir no Forte de São Luiz, como oficial da 2ª Bateria Independente de Artilharia de Costa (2ª B. I. A. C.).

Canhão alemão antiaéreo de 88m.m. do I/3º R. A. A. Ae e utilizado em Natal.

Em dezembro de 1941, um dia antes do ataque japonês a base americana de Pearl Harbor, ele concluiu o curso de defesa antiaérea e logo foi transferido para o Primeiro Batalhão do 3º Regimento de Artilharia Antiaérea (I/3 R. A. A. Ae.) que estava aquartelado em Natal, tendo sido promovido a capitão.

Como Pode Ter Sido Realizado Esse Trabalho

Certamente trabalhando com outros militares e provavelmente devido ao volume de informações, o capitão Jefferson Cardim decidiu dividir o seu trabalho em duas partes. Em uma das partes ele trabalhou com dados sobre a topografia, clima, custo de vida (que estava subindo bastante em Natal com a presença dos militares americanos), saúde, alimentação, ambiente social e cultural.

NATAL, BRASIL – JUNHO 1943: A street view as servicemen talk with locals in Natal, Brazil. (Photo by Ivan Dmitri/Michael Ochs Archives/Getty Images) *** Local Caption***

Na outra parte, segundo foi publicado nos jornais, foram basicamente contemplados os aspectos relativos a defesa militar de Natal, a defesa da Base de Parnamirim e finalizando havia o foco sobre os militares brasileiros e americanos na região. Foi visado o número de militares atuando na área e, provavelmente, nesse último quesito um dos pontos observados podem ter sido os aspectos da interação e convivência entre as forças do Brasil e dos Estados Unidos, algo que preocupava os dois governos.

NATAL, BRASIL – JUNHO 1943: US servicemen sit to have a drink at the Grande Hotel in NATAL, BRAZIl. (Photo by Ivan Dmitri/Michael Ochs Archives/Getty Images) *** Local Caption***

Outras coisas colocadas pelo capitão Jefferson Cardim nessa última parte dos estudos e da palestra são os chamados “pontos sensíveis importantes” como as vias de transporte em Natal, tanto terrestre como fluvial, nesse caso certamente o Rio Potengi. Outros pontos eram as “defesas naturais da cidade” uma parte específica sobre as dunas que cercam Natal. Havia ainda uma parte sobre “o moral da tropa” e outro sobre as “Secas na defesa do Nordeste”. Sobre essa última parte parece que esse militar e quem mais o tenha assessorado adentraram para o sertão potiguar.

Apresentação no Rio de Janeiro

Quando esse projeto teve início e quando se deu sua finalização não sabemos. Mas sabemos que o capitão Jefferson Cardim sofreu um acidente quando estava em Natal, mas não é comentado em nenhum local o que lhe aconteceu. Mas aparentemente foi algo grave, pois consta uma notícia publicada no jornal carioca Diário de Notícias, de 9 de agosto de 1942, que ele veio de Natal para o Rio de Janeiro para ficar internado no Hospital Central do Exército e estava acompanhado do soldado Antônio da Conceição, lotado no I/3 R. A. A. Ae.

Dois meses depois, dia 20 de novembro, é publicado no mesmo Diário de Notícias uma reprodução do Boletim Interno nº 269 da Diretoria de Artilharia, ordenando que Cardim fosse “inspecionado” pela Diretoria de Saúde para a conclusão da sua licença de saúde.

Jefferson Cardim quando era coronel, no início da década de 1960.

As próximas noticias sobre Cardim é a divulgação da palestra, que foi chamada “Conferência sobre a Defesa de Natal”.

Em um mesmo dia (03/12/1942) foram publicadas três notas explicativas sobre a conferência em jornais do Rio (Jornal do Brasil, Diário de Notícias e Gazeta de Notícias). Dois dias depois esse material foi repetido na imprensa natalense no jornal A Ordem. Todos esses jornais comentaram que a palestra iria ocorrer no dia 9 de dezembro, uma quarta feira, às duas da tarde. Depois surgiu outra nota informando que foi alterada para o dia 13, no mesmo horário.

Bem, se a conferência aconteceu, ou não, sinceramente eu não sei!

Como o evento se desenrolou e como foi apresentado, ou como foi visto e recebido pelos presentes e até quem estava por lá é um mistério!

Soldados dos Dragões da Indepêndencia no interior do Palácio Duque de Caxia em 1942.

E a razão foi porque não encontrei nenhuma indicação sobre isso nos jornais e revistas disponíveis no site da Biblioteca Nacional. Também fiz uma busca nos riquíssimos sites do Arquivo Nacional e nada. Mas eu não acredito que depois de tanta propaganda, tanta divulgação em alguns dos principais jornais do país, esse evento deixou de acontecer.

Evento no Palácio Duque de Caxias em 1945, com a participação do general Eurico Gaspar Dutra e o general norte-americano Mark Clark, comandante do 5º Exército dos Estados Unidos na Itália.

Mas no final das contas, o mais importante é saber o que foi feito desse importante material, que teoricamente foi apresentado pelo capitão Jefferson Cardim.

Guerrilha de Três os

Jefferson Cardim continuou no Exército Brasileiro, progrediu na carreira militar, mas adentrou bastante no aspecto político e houve consequências para ele e sua família.

O coronel Jefferson Cardim e sua esposa em uma solenidade.

Segundo os sites Memória da Democracia e Memória da Ditadura ( https://memorialdademocracia.com.br/card/ditaduras-se-unem-as-ordens-de-tio-sam e https://memoriasdaditadura.org.br/personagens/jefferson-cardim/  ), esses são os fatos envolvendo Cardim e a criação de um núcleo de guerrilheiros contra o Regime Militar em 1965.

Na noite de 26 de março de 1965, um grupo de camponeses, militares e profissionais liberais liderado pelo coronel do Exército Jefferson Cardim Osório e pelo sargento da Brigada Militar (PM) Albery Vieira dos Santos toma a cidade de Três os (RS).

Militares coletando informações na região de Três os, Rio Grande do Sul.

Depois de cortar a comunicação telefônica da localidade e levar armas, fardas e munição do destacamento policial, o comando invadiu a rádio local e transmitiu um manifesto contra a ditadura. Dali, o grupo partiu para os municípios de Tenente Portela e Barra do Guarita, no Rio Grande do Sul, e Itapiranga, em Santa Catarina, onde tomaram os postos da Polícia Militar.

A prisão dos guerrilheiros deu-se na cidade paranaense de Capitão Leônidas Marques dois dias mais tarde. O coronel Cardim fazia parte do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), grupo de militares ligados ao ex-governador Leonel Brizola, exilado no Uruguai. 

Jefferson Cardim preso.

Cardim é conhecido por ser o líder de um dos primeiros movimentos armados contra a ditadura. Filho de um oficial da Marinha, em diversas situações se posicionou contra as orientações do exército. Com o golpe, a ditadura cassou sua patente e o aposentou depois do Ato Institucional Nº 1 (AI-1).

Quando ele já estava no Uruguai, por auxílio de João Goulart, organizou o Movimento 26 de Março, também conhecido como Guerrilha de Três os. Da cidade do Rio Grande do Sul de mesmo nome, o grupo do coronel subiu em direção ao Paraná. Isso porque, no dia 26 de março de 1965, o presidente Castelo Branco estaria em Foz do Iguaçu para a inauguração da Ponte da Amizade, na fronteira entre Brasil e Paraguai.

Solenidade no velório do sargento Carlos Argemiro de Carvalho, paranaense, única vítima da Guerrilha de Três os.

A ação foi frustrada pelas tropas do governo, resultando na dispersão e posterior prisão de todos os insurgentes. Preso e levado a Curitiba (PR), Cardim foi torturado e ficou detido até 1968, quando conseguiu fugir. Em 1970, foi sequestrado na Argentina, como uma das primeiras ações da Operação Condor”.

Em 1985, Jefferson Cardim teve a sua anistia cassada e foi viver fora do país como refugiado Através da ação de setores da Organização das Nações Unidas (ONU), o governo francês o acolheu e durante a sua permanência em Paris. lhe concederam uma ajuda de 3.600 francos, que, segundo Cardim declarou, dava para comer em restaurantes universitários e dormir em um quartinho de hotel no Quartier Latin.

Faleceu no Rio de Janeiro, em 29 de janeiro de 1995.

HISTÓRIA DE SOBREVIVÊNCIA – COMO DESOBEDECI AO COMISSÁRIO DE BORDO E ME TORNEI O ÚNICO AGEIRO A SOBREVIVER AO DESASTRE DE UM BOEING 707

Aos 21 anos, Ricardo Trajano desobececeu ordens de tripulação durante incêndio à bordo de voo da Varig em 1973, em Paris – A transgressão salvou sua vida.

Em 1973, um avião em chamas fez um pouso forçado em um campo nos arredores de Paris. O acidente deixou 123 pessoas mortas. Entre os 11 sobreviventes, apenas um era ageiro. E por que sobreviveu? Porque o ageiro, um brasileiro com 21 anos à época, desobedeceu todas as instruções de segurança que havia recebido. Seu nome é Ricardo Trajano.

Hoje, aquele jovem transgressor – cujo estado ao ser retirado do avião em chamas era tão grave que os médicos não lhe davam mais do que uma semana de vida – é pai de duas filhas e descobriu uma nova paixão: auxiliar outros sobreviventes de acidentes a superarem seus traumas.

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Acidente com o avião da Varig em Orly deixou 123 mortos em 1973 — Foto: Reprodução – Fonte – https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/10/13/como-desobedeci-comissario-de-bordo-e-me-tornei-o-unico-ageiro-a-sobreviver-a-desastre-de-aviao.ghtml

No texto a seguir, Ricardo Trajano relembra a experiência em comovente depoimento a Thomas Pappon, do programa Witness, do BBC World Service.

“Eu estava estudando engenharia em Petrópolis, no Rio. Era músico, roqueiro, já tinha tocado em bandas. E decidi visitar Londres, que era a Meca do rock na década de 1970.”

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“Era meu primeiro voo e eu tinha lido que a cauda do avião ficava mais protegida em acidente aéreo, então decidi me sentar atrás. Era um Boeing 707, da Varig.”

Mas Ricardo não ficou na última fileira. Naquela época, as tripulações dos aviões eram numerosas, e alguns dos 17 comissários ocupavam os últimos assentos. Ricardo sentou-se na penúltima fileira, logo à frente deles.

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Revista de 1973 sobre artistas e cantores, noticiando a morte do paulistano Agostinho dos Santos nesse acidente – Fonte – http://revistaamiga-novelas.blogspot.com/2015/03/agostinho-dos-santos.html

Na poltrona à frente de Ricardo estava um artista famoso.

“Você já ouviu falar do Agostinho dos Santos, um cantor muito famoso naquela época? Era como se (hoje) entrasse no avião o Gilberto Gil. Todo mundo ia reconhecer – e todo mundo reconheceu o Agostinho. Ele se sentou na minha frente.”

E mais à frente ainda, estava a ageira Rita, com quem Ricardo aria horas conversando.

“Ela era filha do embaixador da Índia no Brasil, morava com o pai em Brasília. Tinha a minha idade, era inteligente, simpática. Trocamos contato porque ela também ia para Londres, íamos nos encontrar lá.”

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Ricardo Trajano tinha 21 anos quando sobreviveu ao acidente aéreo — Foto: Reprodução – Fonte – https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/10/13/como-desobedeci-comissario-de-bordo-e-me-tornei-o-unico-ageiro-a-sobreviver-a-desastre-de-aviao.ghtml

Fumaça no banheiro

O voo foi tranquilo. O avião faria uma escala no aeroporto de Orly, em Paris.

“Quando faltavam cinco minutos para pousarmos, uma fumaça branca começou a sair do banheiro atrás de mim. Os ageiros sentados atrás notaram, e os comissários, também. Um deles veio com um extintor e tentou apagar o fogo, mas eu vi que a fumaça não estava diminuindo.”

O avião já tinha iniciado a descida e todos os ageiros estavam sentados, com os cintos afivelados. Nesse momento, Ricardo decidiu sair do seu assento.

“Eu simplesmente desconectei o cinto e fui caminhando para a frente do avião. Eu já tinha visitado a cabine duas vezes, naquela época você podia fazer isso. Então, fui para a frente do avião. Todos os outros ageiros ficaram nos seus lugares. Eles devem ter pensado que eu estava indo ao outro banheiro lá na frente.”

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O Boeing 707-345C da Varig, o avião do acidente – (Werner Fischdick – aviation-safety.net) – Fonte – https://www.autoentusiasttokdehistoria-br.informativoparaibano.com.br/2018/04/aviacao-comercial-tragedia-de-orly-45-anos/#foobox-2/0/Varig.jpg

“Quando cheguei lá, um comissário estava dizendo aos ageiros que ficassem tranquilos, que eles estavam resolvendo um problema lá atrás, e que todo mundo devia ficar onde estava, com os cintos afivelados. Quando ele me viu, me deu uma bronca. ‘Rapaz, o que você está fazendo aqui? Vai sentar no seu lugar, você não pode ficar aqui, em pé!'”

“E aí, por impulso, não sei o que foi, instinto, eu desobedeci o cara. Eu podia ter voltado. E se eu não tivesse feito essa transgressão, eu provavelmente não estaria aqui hoje.”

“Andei mais para a frente. Fiquei na divisória, aquela área que fica entre a cabine do piloto e a primeira classe. Tinha alguns comissários ali perto.”

Mortes silenciosas

Agora, a fumaça já não era branca. E tomava conta de toda a aeronave.

“Era uma fumaça densa, negra e muito tóxica – como aquela fumaça de pneu queimado, sabe? Você inalava aquilo, na primeira vez, já ficava paralisado. Na segunda ou terceira, te matava. Todos os ageiros morreram sentados, com seus cintos afivelados, asfixiados.”

A fumaça já tinha chegado à parte fronteira do avião, onde Ricardo estava. Os comissários ao seu lado, que antes conversavam nervosamente entre si, agora estavam calados.

“Eu senti que eles estavam morrendo porque pararam de falar. Eu não via mais de um palmo na minha frente. Estava tudo negro. Eu fechei o olho. O que me ajudou muito é que eu fiquei calmo. Veio aquele flashback na minha cabeça, me despedindo da vida, dos amigos, da minha família. Sentindo a morte me abraçar. Mas a calma me ajudou muito.”

“Senti que o avião perdeu muita altura. Parecia que estava a 90 graus. Claro que não estava, mas estava muito inclinado, então eu caí. A fumaça embaixo é mais rarefeita e isso te ajuda (a respirar).”

Cabeça fria

A cabine do avião também havia sido tomada pela fumaça.

“Senti, ou ouvi, o co-piloto abrir a janelinha para poder pilotar o avião.”

Estranhamente, não houve gritaria.

“A fumaça foi envolvendo todo mundo, foi saindo pelo revestimento do avião. O revestimento era polipropileno, era plástico. Você imagina aquilo queimando. Era uma fumaça muito forte e foi pegando todos os ageiros desprevenidos. Eu, lá na frente, não ouvi absolutamente nada. Podia ter havido tumulto, gente correndo lá para a frente. Não teve nada disso. “

Dentro da cabine, no entanto, o cenário era outro. Vários comissários tinham se refugiado ali.

“A única coisa que eu ouvi foi o tumulto dentro da cabine, dos comissários apavorados. Um deles falou para o piloto: ‘joga logo esse avião no chão que eu não aguento mais!'”

“Mas os pilotos foram muito frios e corajosos. Primeiro, não desceram as máscaras de oxigênio porque o oxigênio é inflamável, então o fogo ia se alastrar mais ainda.”

Os pilotos também tomaram a decisão de pousar antes de chegar ao aeroporto – embora já houvesse bombeiros de prontidão no local.

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A bela atriz Regina Maria Rosemburgo Leclery, uma das vítimas fatais do acidente – Fonte – http://www.alemdaimaginacao.com/Noticias/o_numero_7_e_o_desastre_do_aviao.html

“Não dava tempo de chegar ao aeroporto porque o avião podia explodir no ar. Então, o comandante Gilberto Araújo fez um pouso forçado. Desviou de um vilarejo, de um fio de alta tensão, e pousou numa plantação de cebola. Quando ele pousou, eu apaguei.”

Resgate

Lutando contra dificuldades de o, as equipes de resgate demoraram entre dez e 15 minutos para chegar ao avião.

“Ainda fiquei naquela fornalha uns dez minutos.”

Tomado pelas chamas, o teto da aeronave começou a cair sobre as pessoas. ageiros que talvez tivessem sobrevivido até aquele momento, possivelmente desmaiados, morreram carbonizados.

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Considerado herói, o piloto do 707 do acidente de Orly sobreviveu à tragédia. Seis anos depois Gilberto Araújo da Silva, paraibano da cidade de Santa Luzia, desapareceria com toda sua tripulação enquanto comandava outro voo, de carga, sobre o Oceano Pacífico, na rota Tóquio–Los Angeles–Rio de Janeiro – Fonte – http://www.desastresaereos.net/historia_08_Varig_967_desaparecimento.htm#heroi

“Caiu uma placa de metal grande, da fuselagem, nas minhas costas. Por sorte eu estava de costas. Se eu tivesse caído de barriga para cima, provavelmente teria morrido porque os órgãos teriam ficado mais expostos.”

A placa queimou a metade inferior das costas, parte das nádegas e das coxas de Ricardo.

Ele não tem qualquer lembrança do resgate. “Acordei no hospital sem entender nada, tinha ficado desacordado, em coma, 30 horas.”

Segundo Tempo

Ricardo chegou ao hospital sem roupas – e, portanto, sem documentos ou objetos que permitissem sua identificação. No entanto, seu porte físico – ele é magro e tem 1m e 92cm de altura – era muito parecido com o de um membro da tripulação. Isso levou a equipe do hospital a concluir que ele era o comissário da Varig Sérgio Balbino.

A primeira notícia, quando eu entrei no hospital, era de que eu era o comissário, Sérgio Balbino.

“Ligaram para o Brasil avisando a família do Sérgio Balbino que ele estava vivo. E para a minha família, avisando que eu estava morto.”

O pai de Ricardo já estava encomendando a sepultura do filho e os amigos foram informados sobre sua morte.

“Minha mãe, que faleceu no ano ado, aos 96 anos de idade, era a única que dizia, ‘não, meu filho não morreu’. A mamãe falava isso e todo mundo dizia, ‘coitada da dona Quéti, não quer cair na real.’ “

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‘Esse bilhete, eu posso dizer que psicografei’, diz Trajano — Foto: Reprodução – Fonte – https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/10/13/como-desobedeci-comissario-de-bordo-e-me-tornei-o-unico-ageiro-a-sobreviver-a-desastre-de-aviao.ghtml

“Eu fiquei 30 horas em coma, mas em um determinado momento, pedi uma folha (de papel e uma caneta). Esse bilhete, eu posso dizer que psicografei. Eu estava desacordado, mas peguei uma caneta e com uma letra de criança, toda tremida, coloquei os telefones, o nome do meu pai, (meu) endereço.”

Festa no velório

Os atendentes procuraram o nome de Ricardo na lista dos tripulantes e não encontraram. Então, olharam a lista de ageiros. Lá estava o nome. Ricardo Trajano.

“Quando me resgataram, havia vários corpos de tripulantes mortos (perto de mim). ‘Como é que esse cara estava lá na frente, com os tripulantes?’ “

“Aí, a Varig liga para a família do Balbino comunicando que, infelizmente, ele tinha morrido. E liga para a minha casa, meu pai atende: ‘Queremos comunicar que seu filho está mal, mas ainda está vivo.’ “

“Você imagina? Lá em casa tinha um velório, virou uma grande festa.”

Cicatrização demorada

A companhia aérea enviou agens e, imediatamente, os pais de Ricardo voaram para a França.

“Aí tem o segundo tempo, no hospital. Eu acordo e não entendi anda, era tudo um grande quebra-cabeças e faltavam dezenas de peças.”

“Quando eu acordei e comecei a ter a ideia de que tinha acontecido um acidente, a primeira pergunta que eu fiz – eu estava todo entubado, todo escangalhado, numa tenda de oxigênio – eu perguntei pelo Agostinho dos Santos e o resto do pessoal.”

Os atendentes diziam que estava tudo bem, mas Ricardo sabia que não era bem assim. Ele sabia, por exemplo que seu estado de saúde não era bom.

“Fiquei sabendo, bem mais tarde, que os médicos não me davam uma semana de vida. Minha primeira radiografia de pulmão é um atestado de óbito. Minhas vias aéreas estavam todas queimadas pela fumaça que eu tinha respirado. Eu expelia todo o meu sangue envenenado pela boca. Tinha taquicardia. Minha queimadura não cicatrizava e podia infeccionar os rins. Tomei muitas transfusões de sangue, tinha febre alta.”

Rumo ao Rio

Ricardo ficou 52 dias no CTI (Centro de Terapia Intensiva) do hospital na França.

“Eu procurava extrair daquele ambiente conturbado as coisas boas que me rodeavam. Para começar, os enfermeiros. Um pessoal jovem, legal demais, uma energia boa. Um bom humor incrível.”

“Minha recuperação foi lenta e gradual. Depois de dois meses no hospital, de um dia para o outro, minhas queimaduras começaram a cicatrizar. Os médicos começaram a pensar no meu retorno para o Rio. E eu comecei a pensar em continuar minha viagem pra Londres, olha que loucura. Os médicos falaram, ‘meu amigo, negativo. Você vai ter de voltar para o Brasil e ainda vai ter de ficar no hospital.’ “

Encontro com bombeiro: abraço e muito choro

A equipe médica temia que Ricardo tivesse problemas para voltar a voar de avião.

“Conversei com eles. ‘Por favor, eu quero viajar aceso o tempo todo. Não me deem comprimidos, suco de maracujá, injeção. Quero vir aceso.”

E assim foi feito. Ricardo viajaria em um compartimento separado, criado especialmente para ele.

“Fui o primeiro a entrar no avião. E aí chegaram umas pessoas na minha frente com um cara jovem, um pouco mais velho do que eu. Eles falaram, ‘esse aqui é o bombeiro, que subiu a escada e te tirou do avião.’ “

“Foi um momento único. Segurei a mão dele, abraçava ele. Eu e ele não conseguíamos falar, chorávamos o tempo todo. É um momento em que penso até hoje, está muito presente, esse encontro.”

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Visão assustadora dos estragos do incêndio a bordo. Observem que o fogo queimou o teto da aeronave. Essa imagem foi feita olhando de frente para a cauda da aeronave pelo lado esquerdo. Note os flaps “Krueger” do bordo de ataque acionados. (baaa-acro.com) – Fonte – https://www.autoentusiasttokdehistoria-br.informativoparaibano.com.br/2018/04/aviacao-comercial-tragedia-de-orly-45-anos/#foobox-1/1/PP-VJZ-2.jpg?ssl=1

Pai de Rita: ‘Corajosa até o fim’

No Brasil, Ricardo ficou mais um mês no hospital. Quando chegou em casa, recebeu uma carta do embaixador da Índia, o pai da Rita.

“Ele soube que eu tinha estado com ela. Eu conversei com ela várias horas no avião e isso saiu no jornal. Ele viu e me mandou uma carta, que eu guardo com muito carinho. Uma carta singela, uma folha. Falando, ‘eu soube que você esteve com a minha filha no avião, fico muito feliz de saber que você está bem.’ No final, ele coloca, ‘espero que ela tenha sido corajosa até o fim.’ Foi muito emocionante.”

Um ano depois, Ricardo voltou à mesma agência da Varig onde havia comprado sua agem. Estava determinado a completar a viagem interrompida.

“Voltei lá e falei, ‘quero uma agem para Londres com escala no aeroporto de Orly, em Paris.’ Cabeça dura, teimoso.”

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Atualmente, Trajano auxilia outros sobreviventes de acidentes a superarem o trauma – Foto: Reprodução – Fonte – https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/10/13/como-desobedeci-comissario-de-bordo-e-me-tornei-o-unico-ageiro-a-sobreviver-a-desastre-de-aviao.ghtml

A atendente lhe ou o preço.

“Eu falei, ‘você não está entendendo. Sabe aquele acidente um ano atrás? Que teve um sobrevivente? Pois é, fui eu. Paguei minha agem de ida e volta, em dinheiro, e não cheguei nem na primeira escala da ida. Você não acha que a Varig tem de me dar uma agem?’ “

“A mulher olhou – ‘é você!’ – me deu um abraço super carinhoso. Minutos depois, eu já estava com a agem no bolso.”

Ricardo viajou com um amigo, o fotógrafo e apresentador de rádio Maurício Valadares.

“Finalmente, assisti o (Led) Zeppelin. Eu queria ver Zeppelin, (The) Who, (The Rolling) Stones. Vi um monte de coisas, no Rainbow (Theatre), no Royal Albert Hall, no One Hundred Club. E fui lá no Marquee, que foi fechado anos depois. Fiquei doidão vendo as bandas ali – ali era o templo (do rock), né?”

Hoje: uma nova razão para viver

As únicas sequelas físicas deixadas pelo acidente são as queimaduras nas costas, nádegas e coxas de Ricardo. Ele não quis fazer cirurgia para removê-las.

“Eu quero fazer disso o meu troféu, que carrego até o final da vida.”

“O pulmão, eu recuperei. Seis meses depois, estava jogando basquete na faculdade. Eu fui atleta, fui nadador. , competi pelo Flamengo na adolescência. Depois joguei basquete pelo Botafogo. Isso também me ajudou muito, com certeza.”

Ricardo se formou engenheiro civil, mas hoje trabalha com comércio – é dono de uma loja de sapatos em Belo Horizonte. E, não faz muito tempo, meio por acaso, descobriu, talvez, uma nova vocação. Foi convidado para contar a história de seu acidente em uma palestra. E percebeu que tem uma contribuição importante a fazer.

“Não tenho o menor trauma, nunca sonhei com esse acidente. Fui. Sem roteiro. As coisas foram saindo, fui falando. (No final), um garoto chegou e falou, ‘uns anos atrás sofri um acidente e minha cabeça está zonza o tempo todo. Ouvir você falar foi bom para mim’.”

Agora, Ricardo está apresentando sua palestra, “Reflexões de um sobrevivente”, pelo Brasil.

“Tem sido de uma realização interna muito grande. Falo muito sobre a vida. Estou aqui. É possivel recomeçar a vida após um trauma, um fracasso, uma perda. A vida continua. Isso aqui é um grande palco.”

Segundo autoridades da aviação, o fogo no avião foi, provavelmente, causado por um cigarro aceso jogado no compartimento de lixo de um dos banheiros.

Esta reportagem foi adaptada a partir de depoimento dado a Thomas Pappon, do programa de rádio Witness, do BBC World Service.