O que significa essa foto com essas pessoas em uma praia? Quando e onde ela foi feita? Quem são as pessoas que estão nessa foto?
Artigo originalmente pulicado na Revista Bzzz Número 110, nov. e dez. 2024, páginas 20 a 29.
Ela foi realizada em 10 de janeiro de 1931, na praia de Areia Preta, Natal, e entre os que foram fotografados estava a matriarca de uma das mais importantes famílias potiguares, Branca Pedroza, e seus três filhos, cujo um deles seria prefeito da capital potiguar e governador do Rio Grande do Norte, Sylvio Piza Pedroza. Já os homens clicados eram dois italianos, dos mais importantes aviadores do mundo naquela época e que lideraram uma esquadrilha de doze hidroaviões hidroavião Savoia-Marchetti S.55A que voaram desde a Itália até Natal, em um voo de grande destaque mundial. Além disso, eles trouxeram do seu país o presente mais importante que Natal já recebeu em sua História, a Coluna Capitolina. Esses homens também eram membros proeminentes de uma ditadura que propagava uma ideologia política nefasta, de caráter ultranacionalista, fortemente autoritário e altamente sanguinário. Era o fascismo implantado por Benito Mussolini na Itália. Ítalo Balbo era Ministro da Aviação desse governo, sendo um dos principais executores da política de aviação italiana no período fascista..
Balbo e sua equipe iniciaram no final da década de 1920 diversos estudos para a realização de grandes voos com várias aeronaves, algo até então nunca realizado e que repercutiria nas ações da Itália Fascista em todo o mundo. Um desses voos teve como destino o Brasil.
No dia de Natal de 1930, Balbo e seus comandados chegaram na Ilha de Bolama, no arquipélago dos Bijagós, na Guiné Portuguesa, atual Guiné Bissau. Ficaram alguns dias realizando testes de decolagem e, com o resultado dessas provas, na madrugada de 5 de janeiro de 1931, segunda-feira, decolaram para várias horas depois amerissarem no Rio Potengi, em Natal. No percurso, houve problemas sérios com perdas de aeronaves e a morte de cinco homens.
O hidroavião Savoia-Marchetti S.55A – Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.
Enquanto eles realizavam seu voo, em Natal, na Catedral de Nossa Senhora da Apresentação, na Praça André de Albuquerque, foram colocadas no alto da sua única torre duas grandes bandeiras do Brasil e da Itália. Escoteiros se posicionaram naquele local equipados com binóculos e lunetas. Tinham ordens expressas para quando avistassem as primeiras aeronaves informassem imediatamente o sineiro da velha igreja, que começaria a badalar os sinos pesados para que o povo fosse informado da chegada dos hidroaviões Savoia-Marchetti.
Pessoas se aglomeraram no cais do Porto de Natal, na Av. Tavares de Lira e nos prédios e casas às margens do Rio Potengi. Quem tinha alguma coisa que flutuasse estava dentro do rio, o que deu muito trabalho para o pessoal da Capitania dos Portos, pois o plácido Potengi tinha de ser liberado para a amerissagem das aeronaves.
O general italiano Aldo Pellegrini havia desembarcado em Natal no começo de dezembro para preparar a chegada de Balbo e dos seus aviadores. No dia 5 de janeiro esse militar ficou muito tempo em uma estação de rádio montada pelo Telégrafo Nacional no bairro do Alecrim, na Rua Coronel Estevão. Paulo Pinheiro de Viveiros nos conta em sua placa denominada “Presença de Roma em Natal” (1969), que essa estação possuía transmissores de ondas curtas de 250 e 500 watts e o responsável era Augusto Mena Barreto. Quando ficou certo que as aeronaves estavam chegando, o general Pellegrini foi para a Ribeira e por onde ou recebeu manifestações entusiásticas de carinho.
Os jornais comentaram que várias pessoas vieram de outros estados para acompanhar a chegada da esquadrilha italiana. Sei que por aqui se encontravam Antenor de França Navarro, então Interventor Federal da Paraíba, acompanhado de vários elementos do seu governo. Por volta das três horas o comércio e as repartições públicas fecharam suas portas e a massa de gente cresceu nas ruas. Finalmente, por volta das quatro horas os escoteiros na catedral viram surgir em direção ao norte os primeiros hidroaviões S.55A e logo os sinos começaram a badalar.
“Giovinezza” no Rio Potengi
Hidroavião italiano no Rio Potengi– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.
Às duas da tarde daquele 5 de janeiro inesquecível, a esquadrilha ou por Fernando de Noronha e pouco mais de duas horas depois, para delírio da multidão, as primeiras aeronaves sobrevoavam Natal. Balbo mencionou em seu livro “Stormi in volo sull’oceano” (pág. 206) que chegou à capital potiguar às quatro horas e trinta minutos da tarde e assim descreveu: “Neste momento todo o cansaço desaparece. Estamos em voo por cerca de 18 horas. Quando tocamos as águas de Natal, a cabeça fica um pouco confusa e nossos ouvidos estão zumbindo, mas nosso coração está leve e brincalhão”. Nas páginas seguintes o aviador deixou registrado que após desligarem os motores ouviram o badalar de vários sinos das igrejas de Natal e registrou: “São os bronzes de Natal, a própria cidade de sonho, com um nome curto e deslumbrante” (pág. 207).
Antes mesmo de colocarem os pés na terra, flutuando a bordo dos S.55A no Rio Potengi, Balbo e seus homens ouviram um outro som, esse mais familiar, que os deixaram maravilhados. Assim Balbo falou: “As alegres fanfarras de “Giovinezza” já tocam e saúdam nossa vitória”. A “Giovinezza” era o hino oficial do Partido Nacional Fascista Italiano e no cais da Tavares de Lira ela foi tocada pela Banda da Polícia Militar.
Desembarque de Ítalo Balbo em Natal. Fernando Pedroza é o segundo da direita para a esquerda– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.
Balbo e a maioria dos seus homens desembarcaram trajados à moda fascista – calças brancas, camisas negras, luvas e botas marrons. Os jornais apontaram que o ministro italiano foi apresentado com ar fatigado, olheiras, mas afável, sorridente e a todo momento externando agradecimentos. Em meio às autoridades brasileiras e italianas que receberam os aviadores, estava o industrial Fernando Gomes Pedroza, um apaixonado pela aviação.
A Esquadrilha Balbo no Rio Potengi– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.
O comandante afirmou em seu livro que desembarcou muito cansado e sem demora foi logo de carro para a Vila Cincinato, residência oficial do governador do Rio Grande do Norte. Uma verdadeira carreata, na época chamada de “corso de carros”, seguiu atrás do veículo do comandante italiano. Após chegar à residência, Balbo se trancou e foi descansar, mas lá fora uma multidão se formou na calçada para tentar ver o líder fascista italiano. Já os oficiais ocuparam a antiga sede da Escola Doméstica, na Praça Augusto Severo, que estava toda ornamentada, iluminada, com várias bandeiras italianas e brasileiras e sem alunas, pois estavam de férias. Os sargentos foram alojados num prédio recém-construído pela istração do porto. Esses últimos almoçaram no Hotel Avenida, na Tavares de Lira, pertencente ao “majô” Theodorico Bezerra.
Camisas Negras no Palácio Potengi
No outro dia, Ítalo Balbo foi até a sede do Telégrafo Nacional, na Av. Tavares de Lira, 88. Ali foi atendido por Augusto Gonçalves Marques, chefe da estação, onde Balbo lhe agradeceu o apoio nas comunicações durante o voo e depois ou a enviar telegramas. Consta que o primeiro foi para Alberto Santos Dumont, na França, com os seguintes dizeres: “Tocando na sua bela terra depois de um voo transatlântico, eivo-vos, pioneiro das empresas aeronáuticas, a minha calorosa saudação”. O segundo telegrama foi para Mussolini, onde transmitiu as últimas notícias e informou que os membros da esquadrilha “voltavam o seu pensamento devotado ao Duce”. Finalmente escreveu para o ditador Getúlio Vargas uma mensagem de agradecimento, mas sem tantos salamaleques.
O contratorpedeiro Lanzerotto Malocello– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.
Natal estava em verdadeiro êxtase. Para aonde Balbo e seus homens seguiram eram acompanhados por muita gente. Na agem dos aviadores o povo ecoava vários “Vivas” a Balbo, Mussolini e à Itália. O movimento das pessoas foi tão grande que até os soldados do 29º Batalhão de Caçadores do Exército fizeram a guarda e a contenção nos locais onde eles se hospedaram e circularam. Enfim, eram figuras de destaque em todos os jornais do mundo e com uma atração que hoje em dia, talvez, só se compare às astronautas. Uma noite os italianos participaram de um jantar de “50 talheres” na Escola Doméstica.
Atracado no Porto de Natal estava o contratorpedeiro Lanzerotto Malocello. Do seu porão foi discretamente retirado um grande e pesado engradado. Este foi levado para uma área próxima ao porto, onde trabalhadores locais construíram uma grande base de alvenaria com três metros de altura e um imenso círculo no centro.
No Palácio do Governo, os italianos foram recebidos pelo então interventor federal Irineu Joffily e o interventor da Paraíba, Antenor Navarro, que ergueram brindes de champanhe pelo sucesso da empreitada de Balbo e seus comandados. Nessa ocasião, Balbo, general Giuseppe Valle e o coronel Umberto Maddalena estavam vestidos com uniformes de gala, mas vários italianos envergavam as nefastas camisas negras fascistas.
Ítalo Balbo e seus comandados com os interventores Irineu Joffily e Antenor Navarro (de óculos)– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.
Na noite de 7 de janeiro, todos os aviadores foram para o salão nobre do Aeroclube de Natal, para um recital. Foram recebidos pelo casal Fernando e Branca Pedroza e se juntaram as autoridades, entre essas os interventores Joffily e Navarro. De início, Alberto Roseli, um rico comerciante de origem italiana que vivia em Natal há muitos anos, leu uma saudação a Balbo e aos aviadores. Após, um grupo de alunas do último ano da Escola Normal cantaram entusiasticamente a “Giovinezza”, para delírio e encanto dos militares italianos. Todos se colocaram de pé, cantando o hino com vigor e realizando a saudação fascista.
Depois, houve as apresentações musicais de alunos do Instituto de Música do Rio Grande do Norte, escola fundada pelo maestro Waldemar de Almeida. Entre os que se apresentaram estavam Dulce Cicco, Maria da Glória de Vasconcelos Sigaud, Odila Garcia, Anadyl Roseli, Eurídice Vilar Ribeiro Dantas, Dulce Wanderley, Ivone Barbalho. Waldemar de Almeida tocou ao piano a “Grande Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro”, uma composição do pianista e compositor norte-americano Louis Moreau Gottschalk. Para orgulho de Fernando e Branca Pedroza, o jovem Fernando Pedroza Filho também se apresentou, tocando ao piano as obras “Gavota” opus 123, da compositora e pianista sa Cécile Chaminade, e o Prelúdio nº 20, de Frédéric Chopin.
Balbo e seus comandados cantando a “Giovinezza”– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.
Outro que se apresentou foi um garoto de nove anos chamado Orianne Corrêa de Almeida, primo de Waldemar de Almeida, que tocou uma “Marcha Militar” de Franz Shubert. Tempos depois esse garoto seria conhecido apenas como Oriano de Almeida e se tornou um dos maiores pianistas da história da música brasileira. Segundo me informou o professor Claudio Galvão, autor do livro “O Céu Era O Limite: Uma Biografia De Oriano De Almeida” (2010), não dá para cravar que essa exibição no Aeroclube em 7 de janeiro de 1931 tenha sido a primeira de Orione, provavelmente ele já tinha feito outras em Natal, mas o garoto chamava atenção pela precocidade que, talvez, tenha visto Balbo e seus comandados.
A Coluna Romana
No dia 8 de janeiro de 1931, uma quinta-feira, foi seguramente o mais movimentado dos italianos em Natal. De manhã cedo ocorreu a missa campal presidida pelo Bispo Dom Marcolino Dantas, com saudação aos aviadores que chegaram a Natal, homenagem aos que morreram na travessia e também a memória do falecido aviador italiano Carlo Del Prete, que esteve em Natal em 1928 junto com o colega Arturo Ferrarin. Estavam presentes todos os tripulantes dos hidroaviões, os militares do Lanzerotto Malocello, autoridades potiguares e italianas, além de uma multidão de natalenses, principalmente os moradores da região da Ribeira e das Rocas. Durante a realização da missa, uma aeronave Breguet, da companhia de aviação sa Latécoère, fez evoluções sobre a audiência e a multidão. Então, novamente a “Giovinezza” foi excetuada na capital potiguar e dessa vez pela banda do 29º Batalhão de Caçadores. Realmente esse hino, que não era o hino oficial do então Reino da Itália, estava fazendo um sucesso danado por aqui.
A Coluna Capitolina em Natal– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.
Em seguida, Dom Marcolino benzeu uma Coluna Romana de estilo coríntio, feita de mármore cinza, com cinco metros e oitenta centímetros de altura, uma base de três metros quadrados e confeccionada há mais de dois mil anos. Ela foi originária do Templo de Júpiter, na Colina do Capitólio, ou Monte Capitolino, uma das sete elevações sobre as quais foi fundada a cidade de Roma. Essa era uma das quatro colunas romanas existentes no Novo Mundo e foi um presente do regime de Benito Mussolini à cidade do Natal. Inclusive, a razão oficial para Natal receber um presente tão interessante e importante tinha relação com a agem de Del Petre por aqui.
Após Ferrarin e Del Petre partirem de Natal em seu voo histórico de 1928, ocorreu um acidente aéreo no Rio de Janeiro e Carlo Del Petre faleceu, fato que gerou enorme repercussão mundial. No ano seguinte Arturo Ferrarin lançou um livro intitulado “Voli por Il Mondo”, onde conta detalhes do voo e descreveu de maneira muito positiva sobre como agiu o Governo do Brasil em relação a morte de Del Petre e como ele e seu amigo foram recebidos em Natal. A repercussão dessa obra então teria gerado no governo Mussolini, ao menos em parte, o desejo de realizar a doação da coluna romana para Natal. Evidentemente que razões estratégicas, ligadas à expansão da aviação comercial italiana no Brasil, também explicaram a doação desse importante monumento histórico.
Rota do voo da Esquadrilha Balbo – Fonte – Arquivo do autor..
Após a missa, Balbo e os militares italianos estiveram na Praça Augusto Severo, onde prestarem uma homenagem ao aviador potiguar, que morreu em seu balão “Pax”, na cidade de Paris em dia 12 de maio de 1902. Balbo solenemente colocou uma coroa de flores na base da estátua de bronze do antigo aviador, abraçou seu filho Sérgio Severo Maranhão e todos os italianos realizaram a saudação fascista.
A noite, novamente os italianos e a sociedade natalense estiveram no Aeroclube, onde os italianos foram apresentados a dança do Maxixe. Conhecido como “Tango Brasileiro”, o Maxixe era uma dança de salão onde um casal se apresentava com bastante sensualidade dos movimentos corporais, o que causou grande furor na arcaica sociedade brasileira. É bem verdade que no início de 1931 essa dança andava meio fora de moda nas grandes cidades brasileiras, mas naquela noite no Aeroclube ninguém se importou muito com isso. Bem, tudo indica que nessa noite, enquanto a maioria dos aviadores assistiam, ou se arriscavam, no Maxixe no Aeroclube, o comandante Ítalo Balbo e alguns poucos oficiais se dirigiram para a casa do rico industrial potiguar Fernando Pedroza.
Fonte – Arquivo do autor.
E o Banho na Praia de Areia Preta?
A mansão dos Pedroza se localizava onde atualmente existe o encontro das Avenidas Nilo Peçanha e Getúlio Vargas, bem próximo do Hospital Universitário Onofre Lopes. Então, para saber mais desse encontro e sobre os anfitriões, procurei o funcionário público Antônio Carlos Magalhães Alves, mais conhecido em Natal como Toninho Magalhães, filho de Elza Pedroza e neto de Fernado e Branca Pedroza. Toninho me narrou que seu avô Fernando Gomes Pedroza nasceu em 30 de março de 1886, no chamado Casarão dos Guarapes, na zona rural da cidade potiguar de Macaíba. A família Pedroza possuía muitos recursos, tendo Fernando ido estudar na Inglaterra e junto com ele seguiu o natalense Manoel Augusto Pereira de Vasconcelos. Um dia Fernando e Manoel viajaram para a Suíça, onde duas irmãs de Manoel estudavam em uma tradicional escola feminina daquele país. Nesse encontro, Fernando conheceu uma moça chamada Branca Fonseca Toledo Piza, natural de Sorocaba, São Paulo e amiga das irmãs de Manoel. Não demorou e o namoro começou entre Fernando e Branca, tendo logo resultado em casamento. Vieram viver em Natal e Fernando Pedroza cresceu na exportação de algodão, a principal fonte de riqueza do Rio Grande Norte durante décadas.
Poster do voo da Esquadrilha Balbo entre a Itália e o Brasil – Fonte – Wikipedia.
O casal frequentemente viajava para a Europa e acompanhou o desenvolvimento cada vez mais intenso da aviação nas primeiras décadas do século XX. Muito desse interesse vinha do fato de Fernando ser sobrinho de Augusto Severo. Não podemos esquecer que Fernando, Manoel Pereira de Vasconcelos e Juvenal Lamartine, então governador potiguar, foram alguns dos fundadores do Aeroclube de Natal. Em uma viagem a Inglaterra, Fernando adquiriu dois biplanos de treinamento Blackburn Bluebird para a escola de aviação do Aeroclube, que era tocada pelo oficial naval e hábil piloto Djalma Cordovil Petit. Com toda essa paixão pela aviação, não é surpresa e sua esposa tenham feito o convite a Ítalo Balbo e alguns oficiais para irem a sua casa..
Toninho Magalhães fala sobre a recepção pelos seus avós Branca e Fernando Pedroza – Foto – Rostand Medeiros
Certamente deve ter sido um encontro bem interessante e positivo. Tanto que no outro dia, 10 de janeiro, enquanto Balbo e seus oficiais aguardavam a chegada do último S.55A de Fernando de Noronha, ele e o coronel Umberto Maddalena foram aproveitar a praia de Areia Preta. Estavam acompanhados de Dona Branca Pedroza, seus filhos Fernando, Sylvio Piza Pedroza e a caçula Elza Piza Pedroza, e quem fez a foto foi Fernando Pedroza. Todos se mostram muito alegres e molhados, realizando aquilo que é muito normal e natural aos natalenses – Levar para as nossas belas e calientes praias, os visitantes que vem de perto e de longe. Ali já não estavam mais dois dos membros mais importantes do Partido Fascista Italiano e renomados aviadores do seu tempo. Eram apenas dois turistas italianos deslumbrados com nossas belezas naturais e recebendo atenções que tão bem sabemos ofertar a quem nos visita.
Ítalo Balbo em foto após o voo para o Brasil – Fonte – Arquivo do autor.
Já Ítalo Balbo, após completar com sucesso o voo para o Brasil, realizou entre julho e agosto de 1933 um voo com vinte e cinco hidroaviões S.55X, com destino final aos Estados Unidos, sendo essa uma empreitada de enorme repercussão internacional. Balbo levou adiante a construção de um culto político em torno da aviação, tendo alcançado enorme popularidade em todo o planeta, mas sendo considerado politicamente um forte rival de Mussolini. Então a situação de Balbo começou a declinar ante o Regime Fascista.
O final do voo da Esquadrilha Balbo foi no Rio de Janeiro– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.
Ajudou nessa situação os inimigos poderosos que fez por ser pró-judeu e, com o ar do tempo, cada vez mais antialemão. Eventualmente, ele se convenceria de que uma aliança com a Alemanha de Adolf Hitler traria ruína ao estado italiano, argumentando que a Itália deveria, em vez disso, ficar do lado de sua antiga aliada, a Grã-Bretanha. Diante dessas situações, o regime fascista impôs a Balbo que ele assumisse o cargo de governador da Líbia, no Norte da África, então colônia italiana. Ali ele se encontrava quando, em setembro de 1939, estourou a Segunda Guerra Mundial, com a entrada da Itália no conflito em 10 de junho de 1940.
Balbo participou da invasão do Egito por forças italianas, mas dezoito dias depois, ele estava morto, abatido por fogo amigo enquanto tentava pousar seu trimotor S.79 em Tobruk, Líbia.
A Força Aérea Britânica, a famosa RAF, ao saber da morte de Balbo lançou uma mensagem de condolências em homenagem a “um aviador galante que o destino colocou do lado errado”. Teóricos da conspiração culparam Mussolini pela morte de Balbo, embora nenhuma evidência real de um plano de assassinato tenha sido descoberta. Em um epitáfio irônico de uma vida extraordinária, certamente teria divertido Italo Balbo que, durante a Batalha da Grã-Bretanha, os pilotos da RAF rotineiramente usassem seu nome para descrever qualquer grande formação de bombardeiros alemães.
Em 1945, após o fim da Segunda Guerra Mundial e a deposição do ditador Getúlio Vargas, teve início o processo de redemocratização no Brasil, que, infelizmente levou a inúmeras disputas políticas e conflitos pelo país afora. Na região de Exu[1], sertão de Pernambuco, não foi diferente.
Em 24 de dezembro de 1946, na segunda página do jornal recifense Folha da Manhã surgiu a manchete abaixo, verdadeira profecia do que iria então ocorrer naquela cidade.
Nesse jornal existe a transcrição de um telegrama de Romão Filgueira Sampaio Filho (21/08/1887 – 10/04/1949)[2], conhecido como coronel Romão Filho, ou ainda Seu Romãozinho, sobre o clima político existente na cidade. O telegrama foi enviado ao então deputado federal Agamenon Magalhães, ex-governador de Pernambuco entre 1937 a 1945 e que seria novamente governador pernambucano entre os anos de 1951 e 1952.
“Prossegue, sem interrupção, as violências e ameaças desencadeadas no interior do Estado contra os elementos do Partido Social Democrático[3]. Ontem outros telegramas foram enviados ao deputado Agamenon Magalhães, nos quais os signatários, pertencentes ao partido majoritário ou dele simples simpatizantes, denunciam novas ameaças e agressões cometidas pelas autoridades policiais e prefeitos udenistas[4]. Foram os seguintes os despachos dirigidos ao deputado Agamenon Magalhães:
EM EXU – José Aires de Alencar Sete, indicado cargo de comissário de polícia, manteve durante a feira local atitude hostil, intimando eleitores, tendo agredido João Pereira de Carvalho e Expedita Sampaio, funcionários demitidos em ato arbitrário do prefeito. Levei ao conhecimento do caso ao juiz, pontuando lamentáveis incidentes. Provável e iminente hecatombe. Saudações. Romão Sampaio Filho.”
Notícia original dos trágicos acontecimentos do Domingo de Ramos de 1949 em Exu.
Dois anos e quatro meses após a publicação dessa notícia, mais precisamente as oito da manhã do dia 10 de abril de 1949, em plena Semana Santa e no Domingo de Ramos, o badalar dos sinos da missa do Padre Mariano de Souza Neto foi diminuído pelos disparos de armas de fogo, em um tiroteio que deixou mortos Romão Sampaio e Cincinato de Alencar Sete (23/11/1889 – 10/04/1949), conhecido como Seu Sete[5].
Esses homens eram os chefes das famílias Alencar e Sampaio, as duas principais da cidade de Exu e eram compadres. O primeiro foi morto por José Aires de Alencar, conhecido como Zito Alencar, então com 23 anos e filho de Cincinato Alencar. Comentou-se que Romão Sampaio engraxava os sapatos quando foi morto e outros dizem que caminhava quando discutiu com Zito e este lhe deu dois ou três tiros na cabeça.
Padre Mariano de Souza Neto, pároco de Exu durante a maior parte do período que ocorreram os conflitos.
Após essa morte e ainda naquele mesmo dia, Cincinato tombou ao receber vários tiros de rifle e revólver. Este foram disparados respectivamente por Aristides Sampaio Filgueira Xavier, filho do coronel Romão e suplente de deputado estadual pelo PR – Partido Republicano, e o então prefeito da cidade Otacílio Pereira de Carvalho, genro do coronel Romão e cunhado de Aristides. Ficaram feridos no tiroteio o prefeito Otacílio, na perna e sem gravidade, e Franscisco Aires de Alencar, esse último filho de Cincinato, que ficou paralítico e preso a uma cama pelo resto de sua existência[6]. Consta que também foi atingido com gravidade o cidadão de nome José de Miranda Parente[7].
Otacílio foi acusado de ter disparado seis tiros a queima roupa em Cincinato Alencar[8]. Mas as fontes divergem quando o assunto é quantos disparos mataram esse homem, com algumas apontando 11 tiros e outras que pulam para 23. O enterro dos dois líderes foi no mesmo dia, mas em horas diferentes para evitar mais mortes[9].
Francisco Aires de Alencar e sua cama oltada para a rua em Exu.
Para muitos as querelas políticas locais foram as principais causas do início das questões de sangue entre os Alencar e Sampaio em Exu no ano de 1949, mas existem outras versões.
Uma delas dá conta que na época havia sido recentemente instalada uma difusora de notícias em Exu, o serviço de autofalantes espalhados na cidade, as populares “bocas de ferro”. Ocorre que começou uma troca de mensagens divulgadas por esse serviço, todas de cunho político, entre adversários das duas famílias e o clima foi esquentando. As mensagens foram ficando mais ácidas e pesadas, deixando a “a de pressão” no limite, até descambar na tragédia do Domingo de Ramos de 1949.
Existe também a versão de um caso que envolveu uma pretensa traição matrimonial, junto com o uso da violência. Consta que Antoliano Aires Alencar comentou que uma parente sua, mulher casada, estava traindo o seu marido com Aristides Sampaio, o filho vingador do coronel Romão. Então, o que aparentemente era só um boato, um fuxico besta, acabou por gerar uma tremenda surra em Antoliano Alencar nas proximidades de sua propriedade. E houve mais – além de surrado, Antoliano foi amarrado e obrigado a engolir pedaços de páginas de jornais misturados com urina. Uma versão afirma que então Zito Alencar teria ficado possesso com a situação e tomou as dores do parente. Foi pessoalmente reclamar do caso com o coronel Romão Filho, que nada fez. E aí veio os crimes do dia 10 de abril de 1949.
Cemitério de Exu.
Seja lá quais forem as reais e corretas versões, a tristemente lembrada “Guerra do Exu” teve início naquele Domingo de Ramos de 1949. Ao longo dos anos muitas covas seriam abertas no Cemitério São Raimundo e muito choro seria derramado.
O Cenário das Lutas
A cidade de Exu começou a sua história nos primeiros anos do século XVIII, com os contatos entre os vaqueiros de uma fazenda vinculada à Casa da Torre, de possíveis proprietários baianos, com o povo indígena Ançu ou Açu, identificado com a nação Cariri e que viviam nas vizinhanças[10].
Exu e ao fundo o Serrote do Alto Grande.
Consta que os índios levaram esses vaqueiros até às suas tabas e estes informaram aos seus patrões que nas terras onde moravam os indígenas existiam fontes de água e terrenos de boa qualidade para o cultivo e criação. Anos depois chegaram alguns freis jesuítas, que ali permaneceram por certo período. Em 1734 foi constituída a Freguesia do Senhor Bom Jesus dos Aflitos, com um abrigo e uma capela, tendo com isso se desenvolvido o núcleo populacional local.
Em Exu circula a ideia que entre os primeiros colonos a penetrarem em terras que compõem atualmente esse município pernambucano estava o português Joaquim Pereira de Alencar, anteado do escritor e político cearense José de Alencar e avô do Barão do Exu[11]. Após o fim da Revolução Pernambucana, ou Revolução dos Padres (6 de março a 20 de maio de 1817), ocorreu em Recife a prisão da comerciante e revolucionária Bárbara de Alencar (1760 – 1832), exuense descendente dos primeiros colonos portugueses que se estabeleceram na região e considerada a primeira presa política do Brasil, marcou sua existência com muitas lutas. Em consequência sua Fazenda Caiçara foi confiscada e ela e outros membros da sua família só foram libertados da prisão em 1820[12].
Em março de 1846 o povoado de Exu era elevado à categoria de vila e em 7 de julho de 1885 a município.
Banho de Sangue
Mas voltando as questões ocorridas no século XX, com a morte dos antigos líderes políticos a família Alencar despontou nos pleitos municipais e seus membros assumiram o domínio político de Exu. A partir de 1950 elegeram todos os prefeitos e garantiram sempre a maioria dos nove vereadores da Câmara Municipal. Diziam que “não perdiam nem eleição de quermesse e pastoril”.
Em 1956 Juarez Aires de Alencar, filho de Cincinato e irmão de Zito Alencar, encontrou na cidade do Crato, Ceará, com o agora ex-prefeito Otacílio Pereira de Carvalho e aquilo lhe esquentou o sangue. Enfim, não era fácil encontrar com um dos assassinos do seu pai e tentou pegar sua arma. Mas naquele dia Otacílio não perdeu tempo com meditações e abriu fogo. Deu dois tiros secos e rápidos que mataram Juarez. Vale frisar que Otacílio aria por dois julgamentos e seria absolvido em ambos.
Notícia do resultado do julgamento de Otacílio Pereira de Carvalho.
Em 1957, em um final de tarde de um dia de feira, Francisco Vaqueiro, ajudante de Antoliano Alencar e tido pelas autoridades como pistoleiro, foi morto em Exu com quatro tiros e seus pretensos assassinos foram os irmãos Janilton e Javilmar Sampaio Peixoto e um primo de nome Delmar. Nessedia, como medida de precaução, ninguém saiu as ruas quando escureceu e o bilhar ficou vazio e sem conversas.
Então houve um momento de calmaria, de paz provisória, onde segundo escreveu o repórter Ricardo Noblat “Esse período de tranquilidade em Exu foi farto de casamentos entre os membros dos dois grupos e também de alianças políticas”[13]. E quando veio a Revolução de março de 1964, o período da Ditadura Militar, em Exu só existia o partido do Governo Federal, a ARENA – Aliança Renovadora Nacional. E para acomodar os dois grupos foi criada por eles uma divisão local e surgiu a “ARENA 1” e a “ARENA 2”. Completamente desunidas na política local, mas unidas no plano federal.
Em 1965, apenas pelo ódio latente existente, Antônio Jaílson Sampaio Peixoto foi morto em Exu com onze tiros pelas costas. Os autores foram os irmãos José Audísio Aires Alencar e Canuto Aires Alencar. Antônio Jaílson tinha 19 anos. Essa morte trouxe para luta outras duas famílias – os Aires se ombrearam com os Sampaio e os Alencar com os Peixoto.
Consta que a partir desse último caso, em meio a toda essa sangria, as autoridades pernambucanas despertaram mais seriamente para o problema. O destacamento policial do Exu foi reforçado e foram nomeados delegados com a missão de restaurar a paz na cidade. Mas logo as mortes se sucederam.
Blitz policial perto de Exu.
Em 1966, Getúlio Coutinho morreria em Exu com tiros disparados por Adauto Alencar Filho. No ano seguinte Raimundo Canuto de Alencar morreu no centro de Exu, diante de um clube local, com cinco tiros disparados pelos primos Jamilton Peixoto Sampaio e Carloto Peixoto. Esse crime ocorreu no dia 13 de agosto de 1967 e a viúva de Raimundo, Gilvandete Canuto de Alencar, ficou com a responsabilidade de cuidar de nove filhos. Ainda em 1967, Jeová Colombo Coutinho, muito ligado a família Sampaio, trocou tiros com Raimundo Aires Alencar Ulisses, tendo ambos saídos feridos. Colombo com dois balaços e Raimundo com um.
Alguns anos depois, no dia 20 de fevereiro de 1972, um domingo, João Wagner Canuto Alencar (um dos filhos de Raimundo Canuto), de 23 anos, foi morto a tiros por Romeu Soares de Oliveira Sampaio, o Romeuzinho, um menino de 16 ou 17 anos. Em depoimento ao Jornal do Commercio, de Recife (edição de 15 de setembro de 1972, pág. 8), sua mãe Gilvandete Canuto de Alencar afirmou que Romeu teria tido o apoio de outros membros da família Sampaio. Comentou ainda que seu filho foi morto com tiros pelas costas quando concertava um Jipe, em frente ao posto de gasolina de Exu.
Não demorou e o troco chegou. Na tarde de 30 de abril de 1972, José Sampaio de Oliveira, pai de Romão Sampaio e tabelião de Exu, foi atacado por dois pistoleiros e levou cinco ou seis tiros, mas incrivelmente sobreviveu. Contaram outros 16 buracos de balas na parede de sua casa e os autores foram dois jovens. Um deles fugiu sem deixar rastro e o outro foi até preso, mas fugiu da cadeia. José Sampaio ficou com uma das balas na barriga e se mudou para a cidade pernambucana de Serrita, reduto dos Sampaio.
Enquanto isso o povo do Exu vivia rezando todos os dias para ver se Deus acabava com aquelas lutas. Quase ninguém ia ver filmes nos cinemas São Paulo e Alvorada e na feira, ponto de concentração da economia do município, o movimento diminuiu cerca de 40% e a arrecadação da prefeitura caiu 1/3 naquele 1972 pavoroso. Consta, segundo informou o coletor público Wilson Saraiva aos jornalistas, que a arrecadação do ICM (Imposto sobre Circulação de Mercadorias) caiu 35% em meio aos tiroteios.[14] A luta dividiu a tudo e a todos. Os Sampaio só frequentavam o Clube Recreativo 8 de Setembro e os Alencar o CEE – Clube Estudantil do Exu. A Praça da Bomba era o ponto de encontro dos Sampaio e a Praça Aprígio Pereira era o reduto dos Alencar[15]. E tem um detalhe – A intensa Exu tinha apenas 5.000 habitantes em 1972.
Quatro meses depois do atentado a José Sampaio, no dia 19 (algumas fontes dizem 20) de junho, foi a vez de Adauto Alencar ser morto. Este era solteiro, com 30 anos de idade e filho adotivo de Antoliano Alencar. Foi atingido quando seu irmão, o engenheiro agrônomo João Oldan de Alencar, parou a sua camionete C-10 e Adauto desceu para abrir uma porteira da fazenda do seu pai, a Romana (ou “Rumânia”). Recebeu apenas um tiro nas costas, disparado de um rifle Winchester 44 e seu irmão testemunhou tudo. Segundo Oldan, que não foi ferido e nem viu o atirador, depois que seu irmão recebeu o disparo ele ainda sacou do seu revólver e deu três tiros a esmo, caiu gritando de dor e faleceu. No local onde ficou o atirador de tocaia foi encontrado um verdadeiro esconderijo camuflado por ramos de árvores, onde havia restos de comida, uma cama improvisada e outros objetos, mostrando que o assassino ou alguns dias na posição para executar seu plano malévolo. Nunca foi mencionado em documentação ou na imprensa quem disparou contra ele, mas lembremos que Adauto foi acusado da morte de Getúlio Coutinho em 1966[16].
Situação da Justiça em Exu na época dos conflitos.
Em 17 de agosto de 1972, uma quinta-feira, o fazendeiro Jeová Colombo Coutinho, ligado aos Sampaio, saiu de casa cedo com o propósito de seguir até o Crato, porém, na altura da Fazenda Cachoeira, ele foi obrigado a parar seu veículo para retirar algumas pedras e troncos de madeiras colocados na estrada. Logo uma saraivada de tiros se abateu contra ele. Mesmo ferido o fazendeiro ainda sacou seu revólver e revidou à agressão, não conseguindo, no entanto, ferir ou identificar os atacantes. Atraídos pelos disparos, os empregados da fazenda Cachoeira correram até o local e encontraram Jeová Colombo Peixoto todo ensanguentado e de revólver em punho. Ele foi conduzido até Exu, onde membros da família Sampaio o removeram para o hospital do Crato. No local da emboscada descobriram cabaças com água, uma sandália japonesa meio cortado e restos de comida. Ninguém foi preso[17]. Existe a informação que Jeová levou 20 tiros e ficou paralítico[18].
Praça no centro da cidade.
O ódio tinha criado raízes. Por Isso, Janilton Sampaio Peixoto, irmão de Jamilton e Antônio Jaílson, funcionário público residindo no Recife e istrando o Mercado de Santo Amaro, tombou crivado com nove tiros de calibre 38 no dia 11 de setembro de 1972, uma segunda-feira, quando jantava com a família no restaurante “Palhoça do Melo”. Luiz Alberto e Antônio Aires de Alencar foram acusados de matar Janilton. Existe a informação que eles viviam em Santa Catarina e vieram de lá só para praticar esse assassinato. Deuzimar Ulisses Peixoto, a esposa de Janilton, foi ferida no braço e os dois filhos do casal, crianças de sete e dez anos de idade, presenciaram tudo.
Cruzes nas estradas de Exu.
No dia seguinte, ainda em Recife, defronte ao Edifício Cristina, no bairro do Espinheiro, José Arez Aires de Alencar foi ferido com três tiros efetuados por Vital Sampaio Peixoto e outros homens. O ambulante José João da Silva, que ava pelo local, foi ferido na ação.
Segundo informava o Diário de Pernambuco (edição de 14 de setembro de 1972), que em meio as lutas e como “medida acauteladora”, vários integrantes das famílias Alencar e Sampaio mandaram suas mulheres e filhos menores para outras cidades. E em Exu ficaram “apenas os rapazes que sabem atirar”. E o jornal completava afirmando “As mulheres e filhos dos Sampaio foram para o Crato, no Ceará, e as dos Alencar estão no Araripe”, outra cidade cearense. Mas houve outros problemas. Desde dezembro de 1971 não havia mais festas na cidade e cinco professoras pediram desligamento do MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização) de Exu, pois os alunos simplesmente sumiram das salas de aula.
Revista policiual em um veículo que entrava em Exu.
As Manobras em Exu e Bodocó
Foi quando alguém decidiu tomar uma iniciativa para acabar com aquela verdadeira “orgia de sangue”. O então coronel Ivo Barbosa, comandante do 71º Batalhão de Infantaria Motorizada (71º BIMtz), sediado na cidade pernambucana de Garanhuns, foi quem tomou essa iniciativa.
Nascido em 19 de maio de 1928, na cidade de Nazaré da Mata, na área da zona da mata norte de Pernambuco, Ivo Barbosa de Araujo foi declarado aspirante a oficial da Arma de Infantaria em 17 de dezembro de 1948, ao concluir o curso de oficial da Escola Militar de Resende, atual Academia Militar das Agulhas Negras, e a partir daí foi galgando os postos do oficialato no Exército Brasileiro.
Soube que a ideia desse encontro começou durante uma manobra militar realizada entre as cidades pernambucanas de Bodocó e Exu e contava com a participação dos membros do 71º BIMtz. Durante quase uma semana (de 18 ao dia 24 de setembro de 1972) circularam nessa área com seus jipes e caminhões REO 6×6, um total de 379 militares (19 oficiais e 360 praças). Houve na verdade a realização de uma “Operação Presença” do Exército Brasileiro nessa área, que desdobrou em uma ACISO (Ação Cívico Social do Exército) em Exu. O tenente-médico Cláudio Montenegro Gurgel do Amaral e o tenente-dentista Climério Leite fizeram mais de 200 atendimentos e foram realizadas mais de 300 visitas sanitárias nas residências. Até a banda de música do batalhão tocou frevos na praça principal da cidade. Quem também adorou a chegada dos militares foi o comércio exuense, pois eles adquiriram muita comida e outros produtos na cidade e em propriedades vizinhas. Os militares circularam pelas ruas em seus uniformes verde-oliva, capacetes M-1 na cabeça, portando reluzentes fuzis FAL, metralhadoras INA e as famosas pistolas Colt 45, o que deixou Exu na mais absoluta paz durante aqueles dias[19].
Soldado do exército em uma esquina de Exu em setembro de 1972.
O coronel Ivo Barbosa então procurou os líderes das duas famílias e propôs um encontro na sede do seu batalhão, com o objetivo de sentarem frente a frente, dialogarem juntos e encontrarem o caminho da paz. E as lideranças concordaram. Na verdade, aquela proposta acabou sendo praticamente uma ordem, pois os chefes dos Alencar e Sampaio não eram idiotas de se colocarem contra o pedido de um oficial do Exército Brasileiro. Algo que naquela época poderia, talvez, trazer consequências mais complicadas para eles e seus negócios[20].
Mas antes até de ocorrer o encontro nas dependências do 71º BIMtz, um outro ato de violência foi praticado. José Aires de Alencar, o Zito Alencar, que matou o coronel Romão Sampaio no Domingo de Ramos de 1949, sofreu um atentado no dia 2 de outubro de 1972.
Soldados do Exérrcito Brasileiro em Exu.
Depois que Zito Alencar matou o coronel Romão ele foi preso, mas fugiu pouco tempo depois (dizem que subornou a guarda). Foi então para São Paulo de avião, onde ali ou alguns anos e existe a informação que teria até se formado. Daí voltou para o Nordeste, onde decidiu viver no município paraibano de Sapé com o nome falso de Adail Pessoa e montou um negócio. Mas nesse dia, ao dirigir na estrada que dava o a essa cidade, cruzou com um veículo Opala vermelho quando, de maneira rápida e inesperada, vários tiros partiram desse carro em direção ao seu, sendo Zito Alencar atingido no pescoço e na mão esquerda. Logo ele pegou um revólver com a mão direita e mandou três balaços no veículo dos pistoleiros, que fugiram. Como estava a apenas a cinco quilômetros de Sapé ele chegou rápido, recebeu apoio e sobreviveu[21].
O Acordo do Quartel de Garanhuns
O coronel Ivo Barbosa, apesar de preocupado, não esmoreceu e preparou seu 71º Batalhão de Infantaria Motorizado para o evento. Mas antes disso enviou para as autoridades em Brasília um relatório sobre o caso e sugeriu que, independentemente da do tal acordo, que em pouco tempo fosse decretada a intervenção federal no município, de forma a torná-lo área de segurança, com um policiamento ostensivo e permanente, onde seria realizado frequentes operações de desarmamento na cidade, nos sítios e nas fazendas. Evidenciando que apenas com à adoção de medidas preventivas e permanentes aquela luta fraticida e sangrenta teria um fim. Mas em Brasília ninguém deu atenção ao seu relatório!
Naqueles tempos complicados não era difícil ver em Exu.
Então, no domingo, 15 de outubro de 1972, ocorreu o encontro dos líderes e integrantes das famílias Alencar e Sampaio. Vejo que só o fato do coronel Ivo Barbosa colocar em uma mesma sala os integrantes daquelas duas famílias desarmados e uns diante dos outros, já poderia ser considerado um enorme êxito.
O maior resultado do comandante do Batalhão da Infantaria de Garanhuns foi ter sido redigido um “PROTOCOLO DE PAZ” constante de dez cláusulas, a ser assinado pelos membros de ambas as famílias. Lendo o documento eu percebo que ele atinge as raias do incrível, que mostra de alguma forma como se desenrolou essa reunião. Olhem abaixo:
Termos do acordo fimado na sede do 71º Batalhão de Infantaria Motorizada de Garanhuns.
Anos depois ao conceder uma entrevista, o coronel comentou que viu o clima em Exu muito tenso, fruto das mortes de muitos pais de famílias e outras pessoas que ali foram executadas. Afirmou que naquela luta jovens perderam a vida estupidamente e que em sua opinião a briga alcançou proporções incontroláveis de violência e barbarismo. Ele afirmou também que conheceu, provavelmente na época das manobras militares, muitos integrantes das duas famílias, que para ele eram homens trabalhadores e sérios, a elite da cidade, mas que estavam envolvidos emocionalmente no conflito e com o coração cheio de ódio. Afirmou que se mostrou chocado com os acontecimentos e apelou aos chefes dos clãs Sampaio e Alencar no sentido que fizessem uma pausa, meditassem e pensassem no futuro dos seus filhos e abandonassem a luta.
Para o coronel as manobras políticas e as intrigas se encarregavam de desencadear o ódio, de dar corpo a violência, de transformar rapazes imberbes em matadores frios e calculistas, justificando seus atos em nome da vingança, sentimento responsável pelo ciclo interminável da luta fratricida — “Matei para vingar, para lavar meu sangue com sangue – Essa era sempre a desculpa e a justificativa para a sucessão de mortes. Em um ambiente onde não há possibilidade de um equilíbrio emocional, os atentados, os homicídios e emboscadas são cometidos como um ato de heroísmo, de bravura, estimulando o derramamento de sangue. Então, a fúria incontrolável e inconsciente dos mais jovens havia se tornado o elemento de continuidade da luta entre os Sampaio e os Alencar.
Muitos fatores contribuíram para esse conflito continuar. As duas famílias lutavam pelo domínio da política partidária em Exu, recorrendo a todos os expedientes para alcançarem seus objetivos. Não esqueçamos as intrigas, a presença dos pistoleiros, os boatos alarmantes e a ausência da Justiça contribuíram muito para o caos. Some também a ideia do “Machismo do sertanejo” e a crença na letalidade fatalista de que “o homem só morre no dia certo”[22].
Segundo foi publicado no jornal carioca O Globo, após o encerramento do encontro, vários membros das duas famílias seguiram para as cidades cearenses de Barbalho, Crato, Missão Velha e Milagres e as localidades pernambucanas de Salgueiro, Araripina, Serrita, Bodocó e, evidentemente, Exu. Eles tinham a missão de conseguir as s dos membros das duas famílias que viviam nesses locais. Até Zito Alencar, que se recuperava do recente atentado em uma cama de hospital na Paraíba, assinou[23].
Policiais em Exu.
Acho que o maior problema desse momento foi que, por conveniência ou medo de estragar o encontro e uma possível paz, não se deliberou em nenhum momento punições para os envolvidos nos muitos crimes praticados. Se o Exército, que era politicamente muito forte nesse tempo, não apontou nenhum aspecto de punibilidade nesse encontro para os mais celerados, acho que só serviu para ampliar a já elevada sensação de impunidade e a certeza que tudo era possível!
Os jornais da época mostram uma certa euforia, torcida mesmo, para que aquele conflito se findasse. Mas…
O Começo do Fim
Mas o compromisso foi quebrado exatamente as uma e meia da tarde de 17 de janeiro de 1973, apenas três meses após o encontro em Garanhuns, quando Raimundo Aires de Alencar Ulisses, então prefeito de Exu, foi assassinado com tiros de revólver na praça principal da cidade, próximo a prefeitura e da Igreja Matriz de Bom Jesus dos Aflitos. Nesse crime ficou ferido com um tiro no pé Antônio Lourenço de Oliveira e foram acusadas seis pessoas. Raimundo Alencar não completou o seu mandato, sendo assassinado quando faltava 30 dias para terminar seu mandato. Deixou quatro filhos e sua esposa Riseuda Parente Aires estava gravida de seis meses[24].
Ao longo dos anos seguintes mais e mais mortes aconteceram, algumas sendo realizadas no Maranhão e até no Rio de Janeiro. Houve novas tentativas de acordos patrocinados pela Igreja Católica, que foram quebrados. Até Luiz Gonzaga, o mais ilustre filho de Exu, tentou com o seu prestígio acabar com aquela sangria. Mas, apesar do respeito que as famílias tinham pelo seu sucesso, não houve maiores resultados.
Luiz Gonzaga tocando para seu pai Januário em Exu. Foto realizada meses antes do falecimento de Seu Januário.
A imprensa pernambucana e nacional divulgava com destaque, muitas vezes mórbido e até mesmo doentio, cada acontecimento sangrento ocorrido em Exu, ou envolvendo os membros das famílias em litígio, o que só gerou problemas para os moradores do lugar. Várias vezes os jornais apontaram Exu como “A Cidade Maldita”. No final da década de 1970, o município foi até cenário das gravações de um documentário chamado “Exu, Uma Tragédia Sertaneja”, dirigido pelo competente documentarista Eduardo Coutinho, que buscou retratar os conflitos locais entre as famílias Alencar e Sampaio, tendo sido exibido no programa “Globo Repórter” e causado muita repercussão. Em meio a tudo isso, várias famílias de Exu se dispersaram pelo Brasil, em uma verdadeira diáspora para terem apenas o direito de viver!
Marco Maciel decreta a intervenção em Exu em 1981.
O fim, ou o começo do fim, só começou de verdade em 9 de novembro de 1981, quando Marco Antônio de Oliveira Maciel, então governador de Pernambuco, assinou a ordem de intervenção estadual no município de Exu e contando com o apoio do Governo Federal. Junto com o então Secretário de Segurança Pública Sérgio Higino Dias dos Santos Filho, decidiram exonerar José Peixoto de Alencar, o prefeito eleito de Exu, e todos os vereadores.
A esquerda o Secretário de Segurança Pública Sérgio Higino Dias dos Santos Filho, junto do major Jorge Luís de Moura, interventor do município de Exu.
Designaram como interventor na cidade o major Jorge Luís de Moura, da Polícia Militar do Estado de Pernambuco. Ficou famosa a foto do major Moura andando pela cidade fardado, com uma valise em uma mão e na outra uma escopeta calibre 12.
O coronel Ivo Barbosa, que esperou nove anos para ver a intervenção do governo chegar ao Exu, o que talvez pudesse ter evitado muitas mortes, alcançou o posto de general de brigada e faleceu, salvo engano, em 2005.
Material do extinto Servição Nacional de Informações (SNI) sobre a intervenção em Exu.
Quem hoje visita Exu encontra um município com mais de 30.000 habitantes, com crescimento estável, uma cidade agradável do sertão nordestino, com um povo muito receptivo, que se orgulha de ser a terra do “Rei do Baião”. Eles gostam de mostrar aos visitantes o Parque Aza Branca, um museu dedicado à vida e à carreira de Luiz Gonzaga, além do Museu Bárbara de Alencar, na casa-grande da Fazenda Caiçara, e os interessantes locais na zona rural para a prática do ecoturismo. Em nenhum momento para um visitante que ali vai se sente o mínimo aspecto de tensão e medo. Mas, definitivamente, os moradores de Exu detestam relembrar esse período complicado da história do seu lugar. E eu não lhes tiro a razão.
Exu atualmente – Fonte – G1-PE.
Por isso, buscando compreender mais do que ali aconteceu em relação aos fatos históricos, foi que pesquisei e escrevi esse texto.
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NOTAS
[1] A denominação Exu, conforme os habitantes da terra, teria duas versões, uma decorrente de uma corrutela do nome da tribo que ali habitava e a outra é a denominação popular de um tipo de vespa que produz mel, cujo nome científico é Nectarina lecheguana, e chamada de “Inxu”, que ao ferroar causa muita dor.
[2] Importante comentar que o coronel Romão Filgueira Sampaio Filho era irmão do coronel Francisco Romão Sampaio, o famoso Chico Romão, o chefe da cidade pernambucana de Serrita e que morreu baleado em 1964. Ambos eram filhos do coronel Romão Pereira Filgueira Sampaio, importante figura política do final do século XIX no extremo oeste pernambucano e sul do Ceará, com o seu poder alcançando desde a cidade cearense de Jardim, até Salgueiro e Serrita, em Pernambuco.
[3] Partido Social Democrático (PSD) foi um partido político brasileiro identificado como de centro e fundado em 17 de julho de 1945 por antigos interventores do Estado Novo nas unidades federadas. Elegeu dois presidentes (Eurico Gaspar Dutra e Juscelino Kubitschek) e dois primeiros-ministros (Tancredo Neves e Brochado da Rocha). Também foi o partido de três presidentes da república que ascenderam ao cargo em função da linha sucessória (Carlos Luz, Nereu Ramos e Ranieri Mazzilli). Foi extinto na ditadura militar, pelo Ato Institucional Número Dois (AI-2), em 27 de outubro de 1965. Ver – https://pt.wikipedia.org/wiki/Partido_Social_Democr%C3%A1tico_(1945) .
[4] Udenista é referente a UDN, ou União Democrática Nacional, um partido político fundado em 1945, de orientação conservadora e frontalmente opositor às políticas e à figura de Getúlio Vargas. Existiu de 1945 a 1965. Ver – https://pt.wikipedia.org/wiki/Uni%C3%A3o_Democr%C3%A1tica_Nacional
[5] Cincinato de Alencar Sete (ou algumas vezes Sette) é como o nome desse Senhor aparece nos registros oficias de bastimos dos seus filhos e até no atestado de óbito de Zito Alencar. Entretanto, em documentos da polícia pernambucana e na imprensa em geral, o nome que surge é Cincinato Sete de Alencar. Preferi seguir os documentos existentes em cartórios. Alguns desses registros apontam que Cincinato tinha a patente de capitão da Guarda Nacional.
[6] A imprensa informou na época que seu nome era Francisco Sete de Alencar. Novamente sigo os documentos em cartório que afirmam seu nome era Franscisco Aires de Alencar. Não consegui descobrir qual foi a real participação de Francisco nesse tiroteio, mas descobri que ele depois de ferido foi se tratar no Crato, Ceará, e de lá veio de avião para o Recife. Consta que faleceu em 1979.
[7] Ver Diário de Pernambuco, edição de 12 de abril de 1949, terça-feira, pág. 3.
[8] Ver Diário da Noite, Recife-PE, edição de 4 de fevereiro de 1953, quinta-feira, pág. 3.
[9] Ver revista O Cruzeiro, Rio de Janeiro-RJ, edição de 30 de outubro de 1979, págs. 20 a 25.
[10] A Casa da Torre foi o embrião de um grande morgado que se iniciou na capitania da Bahia ainda no século XVI e que, por quase 300 anos, expandiu-se ao longo das gerações dos seus senhores por mais de 400 léguas na Região Nordeste do Brasil — um território que correspondia ao dobro da capitania do Piauí — à custa de guerras de extermínio contra os índios, com escravização destes para trabalharem nas plantações de cana-de-açúcar, nos engenhos e nas criações de animais. A expansão também foi motivada pela busca de metais preciosos, mas sem maiores sucessos. Constitui-se no centro de um expressivo poder militar no período colonial. De 1798 em diante, esteve envolvido nas lutas pela Independência do Brasil. Muitos dos seus membros foram agraciados com títulos de nobreza pelos monarcas Pedro I e seu filho Pedro II – Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Casa_da_Torre .
[11] Guálter Martiniano de Alencar Araripe, primeiro e único barão de Exu (Exu, 18 de junho de 1822 — Exu, 22 de julho de 1889), foi um político brasileiro, coronel da Guarda Nacional e eleito por diversas vezes deputado provincial por Pernambuco – Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Gu%C3%A1lter_Martiniano_de_Alencar_Araripe .
[13] Ver Revista Manchete, Rio de Janeiro-RJ, edição de 22 de julho de 1972, págs. 126 a 128.
[14] Ver Diário da Noite, Recife-PE, edição de 5 de julho de 1972, 1º Caderno, pág. 3.
[15] Ver revista O Cruzeiro, Rio de Janeiro-RJ, edição de 30 de outubro de 1979, págs. 20 a 25.
[16] Ver Diário de Pernambuco, edições de quarta e quinta-feira, 21 e 22 de junho de 1972, sempre nas primeiras páginas.
[17] Ver Diário de Pernambuco, edição de sexta-feira, 18 de agosto de 1972, pág. 12.
[18] Ver Revista Manchete, Rio de Janeiro-RJ, edição de 3 de fevereiro de 1973, págs. 123 a 126.
[19] Ver Diário de Pernambuco, edição de domingo, 14 de setembro de 1972, pág. 27.
[20] Ver Revista Manchete, Rio de Janeiro-RJ, edição de 3 de fevereiro de 1973, págs. 123 a 126.
[21] Ver Diário de Pernambuco, edição de domingo, 3 de outubro de 1972, pág. 1.
[22] Ver Diário de Pernambuco, edição de domingo, 3 de setembro de 1978, pág. 15.
[23] Ver O Globo, Rio de Janeiro-RJ, edição de sexta-feira, 20 de outubro de 1972, pág. Anos depois, quando o encontro no quartel de Garanhuns era somente uma lembrança quase irônica, foi a vez de Zito Alencar ser eliminado. Após se recuperar do atentado em Sapé em 1972, Zito decidiu voltar ao Exu e se candidatou a prefeito em 1977, sendo eleito em 1º de fevereiro. Governou Exu por apenas 15 meses, quando em 12 de maio de 1978 foi assassinado com dois tiros na cabeça, sentado na cabine de uma camionete D-10, estacionada defronte a Farmácia São José. O acusado de matar Zito foi o pistoleiro Gérson Lins, o “Joínha”, que na época estava preso na cadeia pública de Juazeiro do Norte, Ceará, mas saiu sem problemas para executar o crime. Na época Gerson confessou à polícia e a imprensa que o mandante da morte de Zito foi Raimundo Peixoto e a “encomenda do serviço” foi de CR$ 30.000,00 (Trinta mil cruzeiros). Depois de suas declarações à imprensa, Gérson Lins afirmou que confessou mediante tortura realizada por policiais, mas essas acusações foram refutadas.
[24] Ver Diário de Pernambuco, edição de quinta-feira, 18 de janeiro de 1973, pág. 1.
Em um sábado, dia 19 de julho de 2008, junto com o amigo Solon Rodrigues Almeida Neto e sua esposa Raquel Bezerra Mosca, visitamos a região do sítio Vaca Brava de Baixo, zona rural do município de Acari, no Seridó Potiguar. Um lugar que fica a cerca de 12 quilômetros a sudoeste da cidade de São Vicente e a 30 a sudeste da sede do município de Florânia. O objetivo foi pesquisar sobre um pretenso ataque de cangaceiros ocorrido no ano de 1932.
A informação que ocasionou essa viagem surgiu ao folhearmos os antigos exemplares do jornal A República, o principal do Rio Grande do Norte na primeira metade do século XX. Foi na edição de quinta-feira, 25 de agosto de 1932, que soubemos os detalhes do caso, do qual comentaremos mais adiante.
Edição do jornal A República de quinta-feira, 25 de agosto de 1932, foi que soubemos mais detalhes do caso.
Na zona rural de Acari tivemos a oportunidade de encontrar pessoas que tinham um bom conhecimento sobre aquele triste acontecimento. Conversamos com o Senhor João Bezerra dos Santos, então com 90 anos de idade e muito lúcido, bem como com o casal Tomaz Maurício Silva e Dona Josefa Maria da Silva, que na época da entrevista tinham 79 e 64 anos de idade respectivamente. Já o Senhor João dos Santos, com quatorze anos na época dos eventos comentou que nunca esqueceu o medo que os ditos “cangaceiros” viessem a atacar a casa da sua família, que não era muito distante da casa invadida.
De maneira geral o que me contaram foi o seguinte….
Vida Difícil em 1932
Era madrugada de quinta para a sexta feira de mais uma noite quente e sem nenhuma perspectiva de chuvas no horizonte. Na propriedade Vaca Brava de Baixo o dono Antônio Theóphilo de Carvalho Pinto continuava trabalhando arduamente com a sua família para sobreviver a mais um desastre climático que castigava a sua propriedade e toda a região.
Ele já havia ultraado os 70 anos, tinha visto várias secas, algumas bem pesadas e difíceis, como as de 1877 a 1879, que presenciou quando bem jovem. Ou a de 1915, que também alterou toda a economia local. O problema era que naquela madrugada de 30 de junho para 1 de julho de 1932 a sua idade e o cansaço natural de enfrentar tantos contratempos naquele sertão cobravam o seu preço.
Mas Antônio Theóphilo tinha ao seu lado os filhos Antônio e Diavolácio, além das filhas Theresa, Maria, Ernestina, Justina e Josefa. Também contava muito com o apoio da sua mulher Umbelina Ernestina da Silveira Torres, com quem vivia unido nos sacramentos da Santa Igreja desde o século anterior e que teve o prazer de registrar oficialmente no ano de 1902 a sua união na “Lei dos Homens”, perante o Doutor Juvenal Lamartine de Faria, então juiz de Acari, tendo como testemunha seu amigo Cipriano Bezerra Galvão Santa Rosa, da Fazenda Fortaleza[1].
Para Antônio Theóphilo era uma tristeza que a tal da “Rivulução de 30” tenha mandado o Dr. Juvenal, que foi um governador tão bom para o Rio Grande do Norte pra tão longe, exilado na Europa.
Em 23 de maio de 1932 o chamado Batalhão Esportivo desfilava pelas ruas da capital paulista.
E naquele mesmo ano, além da seca que a tudo consumia, lá para os lados de São Paulo o povo daquela terra combatia as forças do governo do Dr. Getúlio Vargas. Diziam que eles queriam se separar do Brasil, mas o que se falava na região da Vaca Brava de Baixo era que até do Rio Grande do Norte foi tropa para combater os paulistas.
Realmente a vida não estava nada fácil naquele 1932 e o que Antônio Theóphilo não sabia era que naquela madrugada tudo iria ficar pior!
O Ataque dos Homens Maus
Seu João dos Santos, homem de uma memória privilegiada na época de nossa entrevista, lembrou que o grupo de bandoleiros chegou na região na “boca da noite”, ou seja, cerca de seis horas da tarde. Aí eles se “amoitaram”, ficaram escondidos para praticar o ataque quando fosse noite fechada.
Senhor João Bezerra dos Santos, então com 90 anos de idade e muito lúcido na época.
Os entrevistados também comentaram que circulou a informação que esses bandidos vieram para a região com uma lista de três casas para serem assaltadas. Foram na primeira, de um cidadão conhecido como “Chico Dondon” ainda na tarde de 30 de junho, mas perceberam que o local se encontrava com várias pessoas e desistiram por medo de alguma reação armada.
Aparentemente foi só na madrugada que a casa do Sítio Vaca Brava de Baixo foi invadida por quatro homens armados, que diziam ser “cangaceiros” e logo começaram a praticar terríveis violências. Gritavam que queriam os 60 contos de réis que o velho Antônio Theóphilo tinha apurado em um negócio recente de terras e que o homem que se apresentava como chefe do bando sabia em detalhes.[2]
Para as pessoas que entrevistei esses bandidos não eram conhecidos na região, mas me comentaram através dos relatos das vítimas e de outras pessoas que eles repetiram várias vezes serem “cangaceiros”. Mas nem os entrevistados e nem o material sobre o crime existente nas páginas de A República informaram se esses homens tinham os materiais típicos que caracterizavam os grupos de cangaceiros errantes.
Casas da região da propriedade Vaca Brava.
Independentemente dessa questão os nossos entrevistados comentaram que as violências foram extremas. Theóphilo, Dona Umbelina, as filhas, Antônio e Diavolácio sofreram bastante. Nessa ocasião dormia na casa um irmão de Dona Umbelina, de nome João Pereira, que também sofreu várias sevícias.
Gritos, empurrões, murros, estocadas com punhais e chutes eram dados em profusão. Logo o que se colocava como chefe do bando ou a ameaçar o fazendeiro Antônio Theóphilo mais fortemente com um punhal. O acossado idoso afirmava repetidamente, mesmo diante das maldades praticadas contra seus familiares, que já não tinha mais o dinheiro em casa.
Mas isso só enfurecia mais e mais o bandoleiro de punhal na mão, que não parava de espicaçar e sangrar o velho. Diante das negativas de Theóphilo, que teimosamente resistia ao interrogatório “a ponta de punhal”, a paciência do “cangaceiro” foi chegando ao fim e logo o homem sucumbiu ao martírio que sofria.
Aquela cena aterrorizou Diavolácio, que de alguma maneira se desvencilhou dos invasores e conseguiu pegar um rifle que existia na casa. Um objeto que os bandoleiros não sabiam da existência e parece que nem se deram o trabalho de procurar.
Conversando em 2008 sobre o assalto da Vaca Brava com o casal Tomaz Maurício Silva e Dona Josefa Maria da Silva, que na época da entrevista tinham 79 e 64 anos de idade
O que consta é que o jovem de arma na mão e carregado do mais puro ódio disparou contra o chefe do grupo, atingindo-o nas costelas, tendo o projétil varado seu corpo. Segundo Seu João me relatou em 2008, Diavolácio só não matou mais gente porque seu rifle de repetição, provavelmente um Winchester, “engasgou” no meio da balaceira.
Nessa hora de confusão outro atingido mortalmente foi João Pereira, o irmão de Dona Umbelina, que estava paralisado diante de toda aquela violência e acabou recebendo um tiro que lhe varou a cabeça. Consta que encontraram essa bala dentro da gaveta de uma cômoda.
Diavolácio correu então para uma parte anexa da casa, em uma espécie de depósito onde se guardava os frutos da produção agrícola e ali encontrou um facão. No meio da escuridão do ambiente gritou “– Posso até morrer, mas ainda mato outro”. Os bandidos compreenderam muito bem a ameaça daquele valente seridoense e debandaram. O ataque chegava ao fim!
Os entrevistados me narraram que após receber o balaço de Diávolácio o chefe do grupo seguiu se esvaindo em sangue e amparado por seus companheiros. Foi conduzido até um lajedo de pedras nas redondezas, onde foi ordenado que um dos bandidos ficasse guardando o cadáver enquanto os outros buscavam os animais para fugirem. Só que os bandidos começaram a demorar e o tal vigilante do morto deixou o corpo ali mesmo e tratou de desaparecer. No final das contas essa ação funcionou positivamente para ele, pois depois policiais vindos de Acari chegarem até o local, seguindo o rastro de sangue.
Os entrevistados recordaram também que após o assalto o valente Diavolácio pegou um búzio marinho e “buzou” para pedir ajuda aos vizinhos, que prontamente responderam. Essa antiga prática de alerta no sertão, hoje esquecida, acontecia porque certas espécies de búzios marinhos possuem a capacidade de produzir fortes sons, que serviam para comunicação a distância. Eles foram utilizados para esta prática em várias partes do mundo, por vários povos, através dos séculos. No sertão nordestino, de largas paragens, a utilização de búzios era uma forma de comunicação prática entre vaqueiros que tangiam gado no meio da caatinga. Vem daí o termo “buzar”, para tocar o instrumento.
Outra casa antiga da região da propriedade Vaca Brava.
Mas enfim, quem eram aqueles homens?
De onde vieram e para onde foram?
E eram mesmo cangaceiros?
E No Jornal…
Seu João recordou que no outro dia após o crime ele esteve na residência assaltada e viu os estragos. Também presenciou seus familiares irem para o enterro do dono da fazenda e do seu cunhado João Pereira.
Como disse anteriormente o Nordeste queimava com a seca e no sul do Brasil o povo de São Paulo sangrava em meio a Revolução Constitucionalista de 1932, o que gerava muitos problemas para as autoridades policiais potiguares, mas o caso da Vaca Brava de Baixo não poderia ficar sem algum tipo de resposta.
Nessa época o Chefe de Polícia do Rio Grande do Norte era João Café Filho, futuro Presidente da República e único potiguar a alcançar esse cargo. Ele então mandou a polícia proceder as investigações para capturar os assaltantes e assassinos e até designou um delegado especial para o caso. O escolhido foi o segundo tenente Agripino Antônio de Lima.
O Senhor Tomaz Maurício Silva.
E na edição do jornal A República de quinta-feira, 25 de agosto de 1932, foi que soubemos mais detalhes do caso[3]. O curioso é que as respostas partiram de uma menina de quatorze anos de idade.
Dias antes da publicação, em 11 de agosto, a jovem Iracema Muniz de Medeiros, acompanhada do seu pai Manuel Muniz de Medeiros, ambos moradores da cidade de Flores, atual Florânia, no Seridó Potiguar, entraram na Cadeia Pública da cidade para ela prestar um depoimento ao tenente Agripino. Esse militar estava acompanhado do sargento Augusto Emílio Dantas e quem atuou como escrivão foi o cidadão João Praxedes de Medeiros.
O texto existente no jornal A República informa que Iracema era filha de uma família muito humilde, analfabeta e trabalhava como empregada doméstica na casa de um dos mais ricos e influentes homens de Florânia.
Contou que cerca de dois meses antes viu a filha do seu patrão, uma mulher casada e com 33 anos, confeccionando uma “máscara de pano preto”. Curiosa com aquilo, a jovem empregada perguntou para que servia aquele negócio e a resposta foi – “amedrontar meninos”. Iracema não ficou nem um pouco satisfeita com o que ouviu.
Fita cassete da gravação da entrevista realizada em 2008.
No mesmo dia, segundo seu depoimento, chegou na casa do seu rico patrão um indivíduo bem conhecido na comunidade, tido como “uma pessoa de bem”, que junto ao genro e a filha do seu chefe se trancaram em um quarto da casa. Para a realidade comportamental e da moral vigente naquela época, aquela atitude era muito estranha e só atiçou a curiosidade da garota.
Ela contou no depoimento que foi observar, “brechar” como se diz no dito popular, o que acontecia no quarto por uma janela. Viu a filha do seu patrão experimentando a tal máscara preta em seu marido, sob o olhar do dito “cidadão de bem”. Não demorou e um filho do seu patrão, rapaz jovem e bem disposto, também se juntou a reunião que acontecia no quarto. Iracema então viu os homens buscando em baixo da cama alguns rifles e abrindo bornais de couro de onde extraíram farta munição.
O autor e seu João Santos.
A curiosa menina também relatou ao tenente Agripino que depois do encontro no quarto, já a noite, dois outros indivíduos chegaram em possantes cavalos à casa onde trabalhava. Não demorou para que o genro e o filho do seu chefe pegarem seus animais e partirem com os recém-chegados para local ignorado. O “cidadão de bem” que participou da reunião no quarto e trouxe a munição, presenciou a saída e ficou em Florânia.
No outro dia a menina viu o genro repartir com o dito “cidadão de bem” várias moedas de prata e dinheiro em cédulas. Logo ficou sabendo de um assalto praticado por supostos cangaceiros na propriedade denominada “Pau Lagoa”, que atualmente faz parte do território do município potiguar de Cruzeta.
Iracema narrou então que na tarde do dia 29 de junho viu o “cidadão de bem” trazer um bisaco com bastante carne, farinha e rapadura e que por volta das quatro da tarde desse dia os mesmos quatro homens que anteriormente partiram de Florânia a cavalo, saíram novamente da cidade. Afirmaram que se dirigiam para um lugar chamado “Bentos”, do qual não consegui nenhuma informação sobre a sua localização.
A menina afirmou que ainda na manhã do dia 1° de julho toda a Florânia soube da orgia de violência e sangue na propriedade Vaca Brava de Baixo, mas ela nada comentou sobre o retorno e o destino das pessoas ligadas ao seu patrão. Ainda delegacia Iracema reconheceu a máscara e afirmou que algumas pessoas reconheceram que entre os materiais roubados do sítio Pau Lagoa estavam as mantas utilizadas para transportar o corpo do chefe do bando para Florânia.
Com o casal Tomaz Maurício Silva e Dona Josefa Maria da Silva, sendo fotografado pelo amigo Solón Rodrigues Almeida Neto no dia 19 de julho de 2008.
Depois do crime circulou na região a informação, comentada por todos que entrevistei, que um irmão do bandido morto buscou demovê-lo de praticar outros atos criminosos, mas sem sucesso. Esse irmão era conhecido como “Lopinho” e morava em Florânia.
Para os entrevistados em 2008 e no depoimento de Iracema publicado em 25 de agosto de 1932, não existe nenhuma referência que o rico sogro do falecido chefe do bando soubesse da atitude transloucada do seu genro, ou da participação dos seus filhos e de outras pessoas de Florânia naquela doidice.
Para o Senhor João dos Santos e o casal Tomaz e Josefa, esse caso repercutiu muito na região e durante vários anos se falou sobre isso.
Para finalizar fui informado que o valente Diavolácio não foi preso pela morte do bandido. Ele continuou a viver na Vaca Brava de Baixo, casou com uma prima, mas um dia foi embora para o sul e os meus entrevistados nunca mais tiveram notícias dele. Já Dona Umbelina parece não ter mais desejado viver na casa onde mataram seu marido e terminou seus dias morando com uma filha em Cruzeta. Imaginei que a jovem Iracema Muniz de Medeiros tivesse sofrido alguma represália daquela família de marginais, mas ela estava viva em 1946.
Nas pesquisas que realizei nas velhas páginas do jornal A República, estranhamente não encontrei mais nenhuma nota, nenhuma notícia e aparentemente nada mais saiu sobre esse caso. Não sei sequer se alguém foi preso, processado ou condenado!
“Cangaço Oportunismo”’
Certamente que nas priscas eras outros casos como o da propriedade Vaca Brava de Baixo aconteceram pelo sertão afora. Mas confesso que não sei aonde, quando e como ocorreram. Mas não deixa de ser interessante o conhecimento desses casos, até mesmo para compreender como esse tipo de situação, que possui suas especificidades, continua a acontecer e a crescer.
Talvez no ado a proporção desses casos fosse muito menor, ou muito se abafava para evitar escândalos. Mas também é verdade que sempre escutei nas minhas andanças pelos sertões afirmações como “– Muita gente se aproveitou do cangaço para praticar atos de violência, assaltos, roubos e até assassinatos”. Mas o fato é que eu nunca tinha me debruçado com um caso tão específico e ainda mais no meu Rio Grande do Norte e no querido Seridó das minhas raízes.
Ao comentar esse caso com uma pessoa ligada a justiça em Natal, ouvi que provavelmente quem praticou esses crimes eram “pessoas sem maiores perspectivas, normalmente desqualificadas, muito pobres e sem preparo”. Para mim ou essa pessoa ou não ouviu meu relato, saiu comentando na base do chute mesmo e só faltou dizer que os meliantes eram “negros”.
Como podemos ler anteriormente os homens que praticaram o crime na propriedade Vaca Brava de Baixo eram membros da “fina flor” da sociedade do seu lugar e tidos como “Gente de bem”. Eram cidadãos aparentemente exemplares, mas que não tiveram nenhum problema de matar um velho fazendeiro por dinheiro e aterrorizar sua família. Se não fosse um rapaz valente e a existência de uma arma de fogo, a situação teria sido muito pior.
Já para quem tem um mínimo de conhecimento sobre a História do Cangaço no Nordeste, os homens que praticaram o crime na Fazenda Vaca Brava de Baixo certamente não eram cangaceiros, ou pertenciam a algum grupo errante de bandoleiros que estava circulando pela região do Seridó Potiguar em 1932. Talvez algum deles tivesse tido alguma experiência nessa área, mas é algo que creio ser muito difícil. Para mim eram apenas um grupelho mal organizado de “cangaceiros-oportunistas”, cujo chefe teve o que mereceu!
Sabemos através de estudos realizados que o fenômeno do cangaço possuía características peculiares e próprias sobre como os seus muitos membros agiam. Podemos compreender melhor essa questão na página 89 do interessante livro Guerreiros do Sol, de Frederico Pernambucano de Mello (Ed. A Girafa, São Paulo – SP, 2013), onde esse autor comentou sobre as formas básicas dos que praticaram o cangaceirismo no Nordeste do Brasil –
“São em número de três essas formas básicas: o cangaço-meio de vida; o cangaço de vingança e o cangaço-refúgio. A primeira forma caracteriza-se por um sentido nitidamente existencial na atuação dos que lhe deram vida. Foi a modalidade profissional do cangaço, que teve em Lampião e Antônio Silvino os seus representantes máximos. O segundo tipo encontra no finalismo da ação guerreira de seu representante, voltada toda ela para o objetivo da vingança, o traço definidor mais forte. Foi o cangaço nobre, das gestas fascinantes de um Sinhô Pereira, um Jesuíno Brilhante ou um Luís Padre. Na terceira forma, o cangaço figura como última instância de salvação para homens perseguidos. Representava nada mais que um refúgio, um esconderijo, espécie de asilo nômade das caatingas.”
Talvez fosse interessante o ilustre pesquisador e escritor Frederico Pernambucano de Mello incluir entre as ideias de formas básicas desse movimento a do “cangaceiro-oportunista”. Gente que aproveitava para agir prioritariamente durante o recrudescimento das secas, que geravam uma total desorganização socioeconômica do sertão e, nesse caso específico, talvez aproveitando a agitação social de fundo político, como o da Revolução Constitucionalista de 1932.
Através da sugestão de dois bons amigos que vivem no Seridó Potiguar, a quem confidenciei esse caso, resolvi aqui não apresentar os nomes das pessoas envolvidas como perpetradores desse crime. Poderia gerar uma tremenda chatice com a família daqueles bandidos, ainda cheia de “brilho e cobre” em Florânia. Mas o caso está todo aí, conforme foi publicado no jornal em 25 de agosto de 1932 e como me foi dito lá na Vaca Brava em 19 de julho de 2008 pelo Senhor João Bezerra dos Santos e o casal Tomaz Maurício Silva e Dona Josefa Maria da Silva, os quais nunca mais reencontrei e nem tive notícia alguma.
Só espero que aonde eles estiverem, estejam bem e em paz!
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[2] Aquele valor era uma verdadeira fortuna, mais ainda em uma região assolada por uma forte estiagem. Para se ter ideia do que esse volume financeiro representava naquele tempo temos na página 2 do jornal natalense A República, edição de sábado, 9 de julho de 1932, a publicação do “Balancete das despesas e recitas referente aos meses de janeiro a abril de 1932” e consta que nesse período as despesas com a Imprensa Oficial no Rio Grande do Norte, ou seja a circulação, pagamento de pessoal e manutenção do jornal A República, foi de 66.359$780, ou seja sessenta e seis contos, trezentos e cinquenta e nove mil e setecentos e oitenta réis.
[3] Quem folheia as páginas desse jornal, existente na Hemeroteca do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, ou no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Norte, vai perceber o detalhismo existente nesse depoimento e o extenso espaço dado pelo jornal.
Aparentemente Desembarcou no Brasil em 1855, no Último Carregamento de Escravos Vindo da África – Marcou Época em Natal Por Tocar Zambê e Ser “Feiticeiro” – Foi Batizado como Paulo José de Oliveira e Morreu em 1905
Nos primórdios do Brasil existiu por aqui uma curiosa sociedade, que foi resumida dessa maneira – “Formou-se na América tropical uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na técnica de exploração econômica, híbrida de índio – e mais tarde de negro – na composição”. Uma sociedade que marcou fortemente a formação do povo brasileiro e que foi tão brilhantemente descrita na obra “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre.[1]
Quem detinha o poder nessa sociedade era riquíssimo e vivia na opulência. Habitavam em belas casas grandes construídas de pedra, barro e cal. Eram cobertas de palha ou telhas, com varandas nas laterais, telhados inclinados para dar proteção contra chuvas tropicais e o calor do sol, sendo esses lugares ao mesmo tempo “fortaleza, banco, cemitério, hospedaria, escola, santa casa de misericórdia amparando os velhos e as viúvas, recolhendo órfãos”.[2]
Quadro do holandês Frans Post intitulado “Engenho de Pernambuco”.
Os homens e mulheres que criaram este primeiro grande boom do açúcar no mundo viveram muito bem. Muitas histórias são contadas sobre a opulência dos fazendeiros daquele Brasil antigo.
Suas mesas eram carregadas de prata e porcelana fina comprada de capitães de barcos a vela em seu caminho de volta do Oriente. Diziam que as portas de suas casas tinham “fechaduras de ouro”[3], que suas mulheres usavam enormes pedras preciosas em prendedores de cabelos, que músicos animaram os banquetes, que suas camas eram cobertas de tecido de damasco produzidos na Itália e um exército de serviçais negros estavam sempre pairando ao redor para satisfazer todos os seus desejos.
E esses lacaios satisfaziam de verdade essa gente em tudo e por tudo que desejassem. Pois se assim não fizessem iam para o chicote, para o açoite no tronco, presos a dolorosos grilhões e padecendo de uma morte sofrida e aterradora.
A fortuna aproveitada pelos donos dos engenhos de cana repousava sobre o açúcar e o açúcar sobre a escravidão africana. Onde seus “donos” massacraram esses cativos, usando e abusando do seu suor, do seu sangue e de suas vidas, na mais nefasta página da História do Brasil. Os africanos que vieram para essa parte do mundo eram tratados como meros animais de carga, bichos brutos e, situação pior, as mulheres serviam para todos os tipos de taras dos seus senhores.
E tudo indica que no ano de 1905 faleceu em Natal um homem que viveu todas as agruras desse flagelo, que aqui ficou conhecido como Paulo Africano e que, segundo Câmara Cascudo seria o “último africano legítimo”, o último cativo vindo da África a falecer na capital do Rio Grande do Norte.
Essa é a sua história!
Poucos Escravos
Em 1937 Luís da Câmara Cascudo já era considerado o intelectual maior da terra potiguar e o que ele escrevia, apesar do seu provincianismo militante, já repercutia no Rio de Janeiro, onde se concentrava o poder do país e os principais jornais e rádios da nação.
Família brasileira na época da colônia e império.
No dia 12 de junho daquele ano, o jornal carioca Diário de Notícias publicou o texto intitulado “O povo do Rio Grande do Norte” (pág. 28), de autoria de Cascudo, onde ele comenta sobre a formação do povo potiguar. Para o autor o escravo negro já estava no Rio Grande do Norte desde 9 de janeiro de 1600, onde trabalhavam em benfeitorias e vinham da Guiné. Comentou também que o número de escravos “nunca foi avultado, nem mesmo na sua relação da pequena população branca”. Tanto que em “1808 eram 1.127 pretos, para 1.956 brancos em Natal”. Para Cascudo o 13 de maio de 1888 “não encontrou senão uns trezentos e poucos”.
O texto informava que os escravos que viviam em terras potiguares eram procedentes do “Sudão, angolas, congos, banguelas (SIC), trazidos de Pernambuco que os importava”. Para Cascudo o Rio Grande do Norte era uma “terra de parcos capitaes, não teve negreiros e nem commercio. Era apenas um mercado, um pequeno mercado consumidor”.
O jornal carioca Diário de Notícias, 12 de junho de 1937.
Cascudo então comenta, através de informações transmitidas por Francisco Artemio Coelho, que faleceu em 1945, que “O último africano puro que morreu em Natal, Paulo Africano, morador da rua do Camboim, mestre de zambê e feiticeiro, fallecido a 24 de abril de 1905”. Tempos depois o Mestre Cascudo vai descobrir que essa data estava errada.
Coelho informou também que Paulo Africano “dizia ter desembarcado numa praia e levado para Sirinhaém”, atualmente um município autônomo próximo ao litoral de Pernambuco, ao sul de Recife.
E é nesse ponto de sua afirmação, que Câmara Cascudo nos aponta uma possível ligação do momento da chegada de Paulo Africano ao Brasil.
O Terrível Tráfico
A justificativa das potências marítimas europeias para trazer africanos negros à força para trabalhar como animais, foi motivada pela necessidade econômica, pois nos séculos XVI e XVII as suas possessões no Novo Mundo eram os locais mais importantes para a criação de divisas e riquezas.
Comércio de escravos no Cais do Valongo, porto do Rio de Janeiro.
No século XVI os africanos eram comprados na região subsaariana e enviados em barcos de propriedade de europeus, mas estes não estavam diretamente envolvidos na captura dos escravos, ou no comércio interafricano de cativos. Para os brancos europeus bastava suprir a crescente demanda de escravos para as plantações nas colônias no Novo Mundo.
Aqueles que capturavam os escravos eram em sua maioria africanos negros, que conseguiam as suas “peças” em conflitos étnicos e tribais, ou mesmo em guerras de maior escala. Não era incomum trocar cativos com outras tribos. Daí não houve maiores dificuldades em vendê-los para os brancos no litoral.
Por volta de 1550, os portugueses começaram a enviar vários povos africanos como os bantos de Angola, Moçambique e Congo; Yorubá, Ewe, Mandinga do Sudão e da África Ocidental. Ao longo dos próximos 300 anos, mais de quatro milhões de africanos seguiram de maneira forçada para o Brasil. Esse tipo de negócio foi considerado um dos mais lucrativos do reino português.
Como os cativos seguiam a bordo de barco negreiro.
As condições a bordo dos navios de transporte de escravos, ou navios negreiros, como ficaram conhecidas as naves que transportaram esse verdadeiro “gado humano”, eram terríveis. Acorrentados e deitados juntos, os escravos tiveram que dormir sobre suas próprias fezes durante toda a travessia, que podia demorar semanas. A mortalidade a bordo era muito alta, mas as perdas resultantes pareciam aos traficantes de escravos menores do que os custos que teriam acarretado condições de transporte menos desumanas.
70% dos escravos no Novo Mundo estavam empregados no cultivo de cana-de-açúcar e, ao longo do tempo, outros tiveram que trabalhar nas colheitas de café, algodão, tabaco e na atividade de mineração. Os produtos obtidos do trabalho servil eram então enviados para a Europa e os barcos retornavam com produtos processados das metrópoles, ou novas levas de escravos da África.
Representação do desembarque de escravos.
Naqueles primeiros anos da colonização portuguesa no Brasil, a região que mais lucrou com a plantação de cana-de-açúcar e a que foi a principal “anfitriã” de milhares e milhares de escravos africanos foi o que hoje é o nosso ensolarado Nordeste. E por aqui as duas capitanias, hoje estados, que mais receberam cativos foram a Bahia e Pernambuco.
Joseph Cliffe descreveu que quando os escravos chegavam ao Rio, ou à Bahia, se encontravam tão fracos que mal conseguiam andar e tinham de ser retirados dos barcos. Depois eles eram mantidos em barracões e ali alimentados, engordados e bem tratados antes da venda. Às vezes eles eram mantidos até seis meses nesses acampamentos antes de serem vendidos[4].
Pode parecer até uma redundância, ou ironia, mas também ocorreram nesses barcos vários massacres e crimes em massa contra os escravos, como o chamado “Massacre do barco Zong”. Em 1781 este transporte negreiro britânico teve dificuldades na navegação e acabou desviando do curso na região do Caribe. Como foram ficando sem mantimentos e água, a tripulação simplesmente jogou no mar cerca de 130 a 150 africanos. Inicialmente os fatos ocorridos no Zong não tiveram o mínimo eco no público britânico. Mas no médio prazo o caso começou a ser debatido e amplamente comentado, desenvolvendo um papel interessante na ascensão do abolicionismo naquele país. O caso do Zong então se tornou um símbolo da crueldade da escravidão. 59 anos depois da tragédia, William Turner, um dos percursores do modernismo na pintura, retratou o incidente em seu quadro The Slave Ship, que se tornou um símbolo da causa abolicionista.
Quadro de The Slave Ship, do inglês William Turner, um dos percursores do modernismo na pintura e se tornou um símbolo da causa abolicionista. Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/The_Slave_Ship.
Abolicionismo e Pressão Britânica
Os opositores do tráfico de escravos se reuniram na Inglaterra desde 1787, onde fundaram uma sociedade para abolir a escravidão e foram chamados de abolicionistas. O movimento foi politicamente apoiado por William Wilberforce, que repetidamente levou a abolição do tráfico de escravos à votação na Câmara dos Comuns. Wilberforce foi o pivô do que ficou conhecido como a “Seita Clapham”, um grupo de membros politicamente influentes da Igreja da Inglaterra, fundado pelo ex-capitão de navio negreiro e mais tarde ministro John Newton. Os chamados “Santos de Clapham” tornaram sua principal tarefa abolir todas as formas de escravidão e seu comércio.[5]
A Revolução sa de 1789 ajudou a difundir ideias sobre direitos humanos e liberdades civis. As Guerras Revolucionárias sas (1792–1797), as Guerras Napoleônicas (até 1815) e a ocupação de algumas áreas pelas tropas sas, difundiram essas ideias para partes da Europa e além.
Símbolo da British Anti-Slavery Society (1795)
Depois que os britânicos encerraram seu próprio comércio de escravos com o “Slave Trade Act” de 24 de fevereiro de 1807, eles tiveram de obrigar outros povos a fazerem o mesmo, caso contrário as colônias britânicas teriam uma desvantagem competitiva em comparação com as de outras nações. Por exemplo, sob pressão britânica no Congresso de Viena em 1814 e 15, a escravidão foi proibida no artigo 118 da Lei do Congresso. Os Estados Unidos proibiram o comércio ao mesmo tempo que a Grã-Bretanha, assim como a Dinamarca.[6] Outros países como a Suécia aboliram a escravidão logo em seguida, assim como os Países Baixos, que nessa época era a terceira maior potência colonial, atrás apenas da Grã-Bretanha e da França.
Para a França, derrotada pelos britânicos nas guerras napoleônicas, não apenas foi exigido a proibição do comércio de escravos, mas também o policiamento dessa proibição. A Marinha Real Britânica, a Royal Navy, ou a inspecionar e apreender todos os navios suspeitos que transportavam escravos, ou eram equipados para tais fins, até que em 1815 a França concordou formalmente em proibir o comércio de escravos. Mas vale frisar que, mesmo com essas ações de repressão, esse nefasto comércio só parou completamente na França em 1848.
A busca de escravos fugitivos foi um grande negócio para os rastejadores no período da escravatura no Brasil.
Portugal e Espanha, antigas aliadas em dívida com a Grã-Bretanha após as Guerras Napoleônicas, só gradualmente concordaram em acabar com o comércio de escravos e após grandes pagamentos. Em 1853, o governo britânico pagou a Portugal mais de 3 milhões de libras e à Espanha mais de 1 milhão de libras para acabar com esse nefasto comércio.
E no Brasil, como foi?
Encarando o Império Britânico
O Brasil, independente de Portugal em 1822, não concordou em parar o tráfico de escravos. Além de lucrativo, ao longo de décadas a escravidão criou um fator que ampliou essa “desobediência” brasileira aos britânicos – a dependência dos escravos para quase tudo que significava trabalho.
Em 1850 a maioria dos brasileiros que tinham posses possuíam cativos. Fossem eles grandes latifundiários no campo, ou pequenos comerciantes das cidades, funcionários públicos de alto ou baixo escalão, indo até artífices, o elemento negro predominava nos afazeres diários dessa gente. Igualmente seus ancestrais utilizaram escravos ao longo de trezentos anos. Então, não é nenhuma surpresa que esse pessoal observasse a instituição da escravidão como algo normal, como parte da ordem natural das coisas e sua dependência em relação aos cativos era enorme.
Gilberto Freyre mostra claramente em “Casa Grande e Senzala” um exemplo do que essa dependência criou no Brasil – “a vida do senhor de engenho tornou-se uma vida de rede. Rede parada, com o senhor descansando, dormindo, cochilando. Rede andando, com o senhor em viagem ou a eio debaixo de tapetes ou cortinas. Rede rangendo, com o senhor copulando dentro dela. Da rede não precisava afastar-se o escravocrata para dar suas ordens aos negros; mandar escrever suas cartas pelo caixeiro ou pelo capelão; jogar gamão com algum parente ou compadre. De rede viajavam quase todos – sem ânimo para montar a cavalo: deixando-se tirar de dentro de casa como geléia por uma colher. Depois do almoço, ou do jantar, era na rede que eles faziam longamente o quilo – palitando os dentes, fumando charuto, cuspindo no chão, arrotando alto, peidando, deixando-se abanar, agradar e catar piolho pelas molequinhas, coçando os pés ou a genitália; uns coçando-se por vícios; outros por doença venérea ou da pele”[7].
Escravos sendo surrados no Brasil, em pintura de Debret.
E quanto poderia ser lucrativo participar do tráfico de escravos?
Segundo o autor Hugh Thomas, entre outubro de 1846 e setembro 1848, o iate Andorinha, de oitenta toneladas, pertencente a Joaquim Pereira Marinho, fez uma série de oito viagens, trazendo quase 4.000 escravos e ganhando cerca de £40.000 (quarenta mil libras esterlinas), o que tornou seu proprietário milionário. Para se ter uma ideia do que naquele tempo poderia significar essa dinheirama, o Reino da Dinamarca vendeu aos britânicos cinco assentamentos territoriais, com seus postos de comércio e fortes, todos localizados na Costa do Ouro, atual região de Gana, África. Em 31 de dezembro de 1849, foi assinado um tratado entregando a área e suas benfeitorias por “apenas” £10.000 (dez mil libras esterlinas). A venda também incluiu os canhões dos fortes.[8]
Diante da “desobediência”, a Grã-Bretanha partiu então para um endurecimento diplomático contra o Brasil.
Fragata britânica.
Em 9 de agosto de 1845 foi criada a Lei Aberdeen, proposta pelo secretário de relações exteriores britânico Lord Aberdeen, que deu à Royal Navy autoridade para parar e revistar em alto mar qualquer navio brasileiro suspeito de ser um transportador negreiro e prender os traficantes de escravos. A Lei Aberdeen tambémestipulava que os comerciantes brasileiros presos poderiam ser julgados em tribunais britânicos. A lei foi projetada para suprimir o tráfico de escravos no Brasil, para tornar efetivas as leis brasileiras e a implementação do Tratado Britânico-Brasileiro de 1826, que tinha como objetivo acabar com o tráfico de escravos no Oceano Atlântico. O Império do Brasil havia assinado e ratificado esse acordo, mas não cumpriu.
Essa ação repressora provocou indignação entre os brasileiros, onde foi vista como uma violação do livre mercado, da liberdade de navegação, como uma afronta à soberania e integridade territorial do país, além de uma tentativa de impedir a ascensão do Brasil como potência mundial.
Escravos brasileiros chamavam muito a atenção dos estrangeiros que visitavam o país e era comum serem reproduzidos em pinturas.
Os membros do Parlamento no Rio de Janeiro debateram o assunto e praticamente todos foram contra a forma arrogante com que a Grã-Bretanha havia imposto suas leis ao Brasil e abominavam a ideia de ação britânica perto do nosso litoral. Até Joaquim Nabuco, que estava se tornando líder do movimento antiescravista brasileiro, descreveu o novo projeto de Lei Aberdeen como “um insulto à nossa dignidade como pessoas.” [9]
Independente dessas questões, a Royal Navy começou a interceptar traficantes de escravos brasileiros em alto mar e eles foram processados nos tribunais do almirantado britânico, principalmente na Ilha de Santa Helena, uma pequena massa de terra vulcânica no meio do Atlântico. Apesar da aplicação agressiva dessa lei, o volume do tráfico brasileiro de escravos aumentou no final da década de 1840 e as tensões continuaram crescendo constantemente.
Foto de uma corveta britânica, semelhante a HMS Cormorant, que trocou tiros de canhão com a Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres, em Paranaguá, Paraná, em 1850.
Um punhado de navios de guerra britânicos começou a entrar em águas territoriais brasileiras para atacar barcos negreiros, até mesmo em nossos portos. Em junho de 1850 a nave de guerra britânica HMS Cormorant, após apreender três embarcações brasileiras na Baía de Paranaguá, no Paraná, trocou tiros de canhão com os artilheiros da Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres e o barco inglês foi atingido. Houve um morto e dois feridos entre os estrangeiros e duas das naves apreendidas foram destruídas.[10]
Diante dessas tensões, o Brasil sabia que não podia se dar ao luxo de entrar em guerra aberta e total contra a Grã-Bretanha. Além disso, crescia o sentimento popular contra o tráfico de escravos no Brasil. Diante da situação, o governo imperial brasileiro decidiu então acabar com esse negócio.
Um projeto de lei sobre o tema foi aprovado na Câmara de Deputados, no Rio de Janeiro, em 17 de julho de 1850. Foi aceito pelo Senado e Dom Pedro II assinou. Consta que o rei deu a canetada com grande satisfação e em 4 de setembro o projeto se tornou lei.[11] Doravante, os navios negreiros brasileiros estavam sujeitos a apreensão, a importação de escravos para o Brasil foi declarada pirataria, todas as embarcações capturadas deveriam ser vendidas, e os rendimentos deveriam ser divididos entre os captores e informantes. Pela primeira vez essa nova legislação levou a uma verdadeira transformação.
E é nesse ponto da história que provavelmente Paulo Africano veio parar no Brasil.
O Navio Negreiro das Crianças
Apesar do aperto contra os traficantes de carne humana, eles continuaram a operar clandestinamente pelos lucros envolvidos. Entretanto, ninguém ficaria indiferente à possibilidade de prisão e, mais importante, aos cerca de 40 canhões que naquela época normalmente equipavam uma fragata britânica.
Escravos conduzindo Carro de Boi em Sirinhaém. Pernambuco, pintura de Frans Post, 1638.
O negócio então era utilizar de mil e um artifícios para enganar a Royal Navy ao chegar ao Brasil, sobre onde a sua carga seria desembarcada, fazendo uso inclusive de pequenos barcos que poderiam levar os escravos e entregá-los ao longo da costa brasileira.
Não sei com detalhes quantos transportes negreiros conseguiram ar pelas naves de guerra da Royal Navy e nem quantos foram apreendidos. Mas sei quando aconteceu o último desembarque de africanos cativos no Brasil, onde um dos que estavam a bordo poderia ser Paulo Africano.
Na noite de 11 de outubro de 1855, um homem desconhecido apareceu no Engenho Trapiche, região de Sirinhaém. Ele se apresentou como Augusto Cezar de Mesquita, informou que era o capitão de um pequeno barco a vela do tipo Palhabote e que havia chegado no dia anterior de Angola. Sua nave estava ancorada na ilha de Santo Aleixo, defronte a barra do rio Sirinhaém, a cerca de seis quilômetros de distância do engenho. Mesquita explicou que trazia uma carga de africanos, cerca de 200 a 250 seres humanos, sendo umas 30 mulheres e o resto jovens e crianças…
O Engenho Trapiche pertencia ao Coronel Gaspar Menezes de Vasconcellos Drummond, rico proprietário, figura muito poderosa na política pernambucana da época e que depois afirmou que até estava doente no momento do encontro com o tal Mesquita.
Consta que Drummond recusou a carga de cativos, mas alegou que não tinha gente armada para prender a tripulação. Enquanto esperava ajuda, a tripulação fugiu e dezenas de africanos foram levados pelos contratantes do barco, o coronel João Manoel de Barros Wanderley Lins e José Francisco de Accioli Lins, conhecido por “Cazumba”, proprietário de um engenho na região. O Coronel Drummond apreendeu os 165 africanos que ainda estavam na praia, onde o barco estava fundeado. Logo as autoridades começaram a chegar.
O caso gerou problemas para o Brasil junto aos britânicos, foi debatido no parlamento brasileiro, gerou polêmicas em Pernambuco e foi parar na justiça. Inclusive o próprio Coronel Drummond escreveu um opúsculo sobre o caso, denominado “Breve exposição acerca dos factos occorridos antes e depois da apprehensão dos africanos, effectuadas na barra de Serinhãem em Outubro de 1855”.
Palhabote dos pilotos da Barra do Tejo com Farol do Bugio, pintura de V. Armand, 1908 – Fonte – https://pt.wikipedia.org/
Sabemos que alguns dos participantes dessa situação em Sirinhaém foram julgados e condenados, inclusive os de sobrenome nobre. Mas estes apelaram à justiça pernambucana da época e, tal como acontece agora, rapidamente todos foram absolvidos pela nobreza togada. A alegação foi falta de provas. Outro detalhe – O Dr. Manoel de Barros Wanderley Lins, Suplente de Juiz municipal dos termos de Sirinhaém e Rio Formoso, era irmão do coronel João Manoel de Barros Wanderley Lins.[12]
No final das contas a confusão toda só começou porque Mesquita foi mal orientado, aportou no lugar errado e foi atrás de quem não devia. Se o capitão tivesse sido bem orientado, acertado o local do desembarque e encontrado os destinatários corretamente, jamais saberíamos sobre esse desembarque.
Aparentemente o tal barco do tipo Palhabote que chegou à praia perto do Engenho Trapiche era algo tão medíocre, que nem sei se tinha um nome, pois nada ficou registrado. Sabemos que esse tipo de embarcação era um veleiro de dois, ou no máximo três mastros, tinham dimensões que iam de 30 a 80 metros de comprimento e uns 8 a 10 metros de largura. Eram normalmente estreitos na parte traseira (popa) e largos na frente (proa), sendo muito rápidos e associados a uma grande manobrabilidade. Eram conhecidos entre os britânicos como “Pilot boat” (barco do piloto) e eram utilizados principalmente na navegação de cabotagem.
Entretanto, não podemos deixar de perceber uma terrível particularidade em relação a esse caso, que me incomodou de verdade ao ler esses relatos – o tal Mesquita e seus asseclas verdadeiramente “socaram” entre 200 a 250 pessoas naquela pequena embarcação. Por essa razão não é de se estranhar que ele trouxe da África basicamente jovens e crianças, pois assim cabiam mais “peças” para serem vendidas em Pernambuco.
Mas enfim, Paulo Africano estava a bordo desse Palhabote de Sirinhaém?
Escravo africano no Brasil na década de 1890.
Sem maiores dados fica difícil corroborar essa questão. Mas se é verdadeira a informação que ele transmitiu aos seus contemporâneos em relação a sua chegada ao Brasil, que foi depois retransmitida a Câmara Cascudo, então na data do seu falecimento fazia quase 50 anos que havia acontecido o desembarque em Sirinhaém.
Vamos apenas imaginar que muitos daqueles jovens e crianças que desembarcaram do Palhabote tivessem uma média de oito a dezessete anos de idade, então é inteiramente plausível que Paulo Africano estivesse a bordo e, mesmo com todas as agruras da escravidão, tenha falecido em Natal 60 anos depois.
O problema sobre isso é que, conforme o leitor poderá ler mais adiante, ele não tinha a menor ideia da data do seu nascimento.
A vida de Paulo Africano, ou Paulo José de Oliveira, em Natal
Nada sabemos sobre o andamento de sua vida até o fim da escravidão. Tampouco temos dados de como e porque ele veio parar na capital potiguar. Mas uma coisa é certa – a sua agem por aqui não ficou sem registros.
A informação mais antiga que encontrei sobre Paulo Africano também foi escrita por Luís da Câmara Cascudo. É um texto existente no extinto Diário de Natal, sobre a vida de um francês chamado Vitor Lafosse, que viveu na capital potiguar entre o final do século XIX e início do XX e morou na Rua Camboim, atual Rua Professor Fontes Galvão, a mesma que se inicia defronte ao portão principal do Colégio Marista, no bairro do Tirol.
Atual Rua Professor Fontes Galvão, antiga Rua Camboim – Fonte – Google Street View.
Foi através das informações de Francisco Artêmio Coelho, que Cascudo soube que o francês morava nessa rua em 1882 e que teria sido o primeiro habitante do logradouro. Mas o próprio Cascudo contesta a informação de Coelho e afirma que “Antes disso, porém, lá residia Paulo Africano”.[13] Cascudo não aponta a fonte dessa informação e nem uma data de quando Paulo ou a morar nesse setor de Natal.
Existem outras informações sobre Paulo Africano e elas são notícias relacionadas ao Coco de Zambê, a prática de rituais religiosos de matriz africana e a atenção que a polícia de Natal tinha com Paulo Africano e suas atividades.
Ele foi preso por um dos subdelegados da cidade em dezembro de 1897, por “ofensas à moral pública”. No mesmo dia foi posto em liberdade junto com um cidadão de nome Luiz Cândido de Mello, este detido por embriaguez. A notícia de sua prisão não explica o que foram essas ofensas, mas na foto abaixo é possível ler e compreender o que para a justiça potiguar daquela época significava essas “ofensas à moral pública”.[14]
Em abril de 1902 Paulo Africano volta a se encontrar com a polícia e a justiça. Ele foi preso pelo subdelegado da Cidade Alta por “embriaguez e distúrbios”, junto com outros sete homens. Tal como na prisão anterior, a nota do jornal nada explica sobre a detenção e todos foram soltos no dia seguinte à prisão.
No ano seguinte uma nova detenção, dessa vez com muito mais detalhes.
O jornal A República da época, órgão oficial do governo estadual, que neste período estava nas mãos de Alberto Frederico de Albuquerque Maranhão, informou que na área da Praça Pedro Velho, então muito maior e mais aberta do que conhecemos atualmente, aconteceu um “samba”. Na edição de 8 de julho de 1903 deste jornal, uma quarta feira, sabemos que o evento ocorreu em um “casebre em ruínas”, que era “uma ameaça à segurança e higiene públicas” e que o evento ocorreu “sábado, até a manhã do dia 3 de julho”, quando uma “súcia de vadios”, promoveram um “samba” com “gritos infernais”. Afirma a nota que o problema não era novo e o local era utilizado para “Práticas imorais”.
Uma coisa é certa, o termo “Samba” utilizado pelo jornal, não tinha nenhuma relação direta com o ritmo musical que tanto sucesso faz no carnaval do Rio de Janeiro. Nessa época esse termo era muito comum nas páginas deste periódico. Era como normalmente a elite natalense designava um lugar onde pessoas pobres e negras se divertiam na provinciana Natal do início do século XX. O tal “Samba” seria um baile de gente simples, equivalente a uma função, um pagode, um arrasta-pé, ou um forrobodó.
A próxima notícia, infelizmente, foi a morte de Paulo Africano. Entretanto a nota do seu falecimento é o texto mais completa sobre a vida desse antigo escravo e conta interessantes detalhes. Trago a transcrição na íntegra, conforme foi noticiado no jornal A República, edição de 15 de abril de 1905, página dois.
“PAULO AFRICANO – Todos os habitantes desta capital, mesmo os mais velhos, conhecem por lhes haver feito as delícias do tempo de infancia, em que a meninada costumava andar à solta, o célebre Zambê, ou Puita dos campos do Camboim, que, um pouco decadente mas sempre feroz, veiu atravessando as edades até a epoca actual, apezar das advertencias da policia e dos protestos da visinhança que não apreciava aquellas matraqueações.
Como quer que seja, o Zambê de Mestre Paulo era uma das notas curiosas desta capital, Não só pela gravidade com que rangia a puita e o ardor do sapateado, como pela figura interessante do Mestre Paulo, africano, cuja edade nem elle sabia. Tinha por profissão pescador, respeitado e cortez, porém valente como as próprias armas.
Mestre Paulo era um bom chefe de família e identificou-se tanto com seu Zambê, a ponto de fazer delle uma espécie de religião. Não compreendia a vida sem o Zambê. E de seu natural valente, nada subserviente, tinha posturas humilhantes, a sua voz subia toda sua gamma de supplica, quando o ameaçavam de impedir seu divertimento.
Ao tocar puita, e a sapatear no solo zambêou a vida – durante 60, 70, 80, 90 annos, um seculo quem sabe? – até que no dia 12 do corrente, sereno e calmo como um justo, ou desta à melhor vida, vencido e derrotado no seu unico e terrivel combate com a morte.”
Escravos brasileiros tocando tambores.
É muito interessante ler no mesmo jornal oficialista, que várias vezes noticiou Paulo Africano como um “perturbador da ordem pública”, uma interessante coluna à guisa de seu necrológico. Isso em um tempo onde nesse jornal era muito raro se escrever algo mais substancioso sobre um homem pobre e negro, que “Não compreendia a vida sem o Zambê”.
Luís da Câmara Cascudo em seu livro “Meleagro – Pesquisa do Catimbó e notas da magia branca no Brasil” (2ª Edição, Editora Agir, Rio de Janeiro, 1978, pág. 91 e 92), complementou esse texto informando que as danças promovidas por Paulo Africano quase sempre ocorriam no sábado, onde o Mestre “roncava a puíta a noite inteira”. A puíta é um instrumento musical de origem africana, feito de um tronco ou cilindro oco, tapado por uma pele num dos lados.
Marcas de açoites em escravo.
Nessas mesmas páginas, Cascudo também registrou sobre as danças promovidas por Paulo Africano – “Mas dançava quem queria dançar, ricos e pobres, gente do comércio, estudantes, soldados, empregados públicos, brancos, pretos e cinzentos. Ninguém esqueceu, quarenta anos depois, o zambê de Mestre Paulo”.[15]
Já no livro “O Ritual Umbandista”, de autoria de Renato Sérgio Santiago de Melo e publicado em 1973, encontramos uma interessante informação. Segundo o autor, através de informações conseguidas com a neta de Paulo Africano, Alzira de Oliveira, encontrada pelo pesquisador no início da década de 1970 e vivendo no Bairro de Lagoa Seca, seu avô tinha uma casa onde se dançava o mais puro Coco de Zambê. O seu nome cristão era Paulo José de Oliveira, sendo considerado “bem quisto” e “bom pai de família”. O livro afirma que Paulo Africano havia se identificado tanto com o Coco de Zambê, a ponto de fazer desta manifestação cultural “uma espécie de religião”.
Sérgio Santiago informa que seu próprio sogro, Lupicínio Ramos, morador do Bairro da Ribeira, fazia questão de ir com alguns amigos, sempre aos sábados, para assistir o Zambê que acontecia na casa de Mestre Paulo.
Apesar do Coco de Zambê apresentado na casa de Paulo Africano ser tido pela sociedade local como uma festa, para esse autor ele era na verdade uma manifestação do sincretismo afro-brasileiro, distorcida pela ação policial que existia. Para o autor de “O Ritual Umbandista”, o Coco de Zambê era uma dança africana de significação religiosa. Esta tese foi originalmente proposta pelo médico alagoano e antropólogo Arthur Ramos de Araújo Pereira.
NOTAS
[1] FREYRE, Gilberto Casa-Grande e Senzala. 48ª Edição, São Paulo: Global Editora, 2003. Pág. 55.
[2] FREYRE, Gilberto Casa-Grande e Senzala. 48ª Edição, São Paulo: Global Editora, 2003. Pág. 33.
[3] FREYRE, Gilberto Casa-Grande e Senzala. 48ª Edição, São Paulo: Global Editora, 2003. Pág. 315.
[4] Depoimento de Joseph Cliffe. In CONRAD, Robert. Children of God’s Fire: A Documentary History of Black Slavery in Brazil. Princeton, Princeton University Press, 1983, p. 34.
[5] Como é de conhecimento geral, na Grã-Bretanha existe a Câmara dos Comuns, como eles chamam a câmara baixa do parlamento, que, se não me engano, equivale no Brasil a nossa Câmara dos Deputados. Essa instituição parlamentar possui um site muito interessante, onde estão digitalizadas e transcritas milhares de páginas da atuação dos seus membros, dos debates e ação das comissões ali criadas, entre os anos de 1803 até 2005 (https://api.parliament.uk/historic-hansard/index.html). Esse material mostra através dos muitos debates sobre a questão da escravidão, do tráfico de escravos e da atuação da Royal Navy na repressão ao comércio humano entre a África e o Brasil, detalhes interessantíssimos sobre esse tema.
[6] Um naufrágio encontrado no início de 2019 no Rio Mobile, Alabama, Estados Unidos, mostrou que era a escuna Clotilda, que afundou em 1860. Naquela época, 110 mulheres, homens e crianças foram trazidos ilegalmente para Mobile em um veleiro desde Benin, na África Ocidental. Para encobrir o crime, o navio foi incendiado e, assim, afundado. A descoberta prova que o comércio de escravos continuou nos Estados Unidos após a proibição e fez surgir um extenso mercado negro de escravos que durou anos.
[7] FREYRE, Gilberto Casa-Grande e Senzala. 48ª Edição, São Paulo: Global Editora, 2003. Págs. 469 e 470.
[8] Ver THOMAS, Hugh The Slave trade:the story of the Atlantic slave trade, 1440-1870, pág. 796, Simon & Schuster Paperbacks, New York, USA, 1997. Sobre os assentamentos dinamarqueses na Costa do Ouro verhttps://da.wikipedia.org/wiki/Den_danske_Guldkyst
[9] Ver Ver THOMAS, Hugh The Slave trade:the story of the Atlantic slave trade, 1440-1870, pág. 790, Simon & Schuster Paperbacks, New York, USA, 1997.
[12] Sobre o desembarque de Sirinhaém ver CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de; CADENA, Paulo Henrique Fontes. A política como “arte de matar a vergonha”: o desembarque de Sirinhaém em 1855 e os últimos anos do tráfico para o Brasil. Topoi. Rio de Janeiro, v. 20, n. 42, p. 651-677, set/dez. 2019 Disponível no site:http://www.scielo.br/pdf/topoi/v20n42/2237-101X-topoi-20-42-651.pdf.
[13] Ver Diário do Natal, ed. 25/06/1962, segunda-feira, pág. 3.
[14] Ver Collecção de Leis Provinceais do Rio Grande do Norte – Anno de 1884, pág. 42.
[15] Câmara Cascudo comentou “quarenta anos depois”, porque a 1ª edição do livro Meleagro foi lançado em 1951.
Acho sempre muito engraçado quando encontro pessoas que dizem, muitas vezes alterando o tom da voz e com ar de extrema sapiência, que “no Brasil não existe racismo”.
Quem dera fosse assim!
O racismo no Brasil existe e possui na sua gênese um cinismo miserável, que espalha um veneno terrível, além de ser algo muito antigo, conforme podemos ver na foto que abre esse texto.
É uma foto publicada em uma revista “Fon Fon” de 1908, um dos mais respeitáveis informativos brasileiros do início do século XX.
Nela vemos uma mulher muito bem trajada, com um vestido típico da alta sociedade da sua época, com o colarinho fechado, bordados, chapéu com ramos e flores, além de luvas. Ela traz uma sobrinha clara para lhe proteger do sol.
Pelos desenhos existentes na pedraria da calçada ela está em um boulevard muito bem organizado. Ao fundo vemos mesas e cadeiras, com uma cobertura para proteger do sol, apontando que no local existe um café, ou um restaurante, certamente um interessante ponto de encontro. Na rua estão estacionadas carruagens, talvez do tipo cabriolet, ou caleche. Em suma, era um local “chic”, onde provavelmente se reunia a alta sociedade do Rio de Janeiro.
A foto não é muito nítida, mas percebemos que essa mulher não parece ser tão nova em sua idade e ela tem a mão uma criança, um menino, que veste uma roupa do tipo “calça curta”, com uma pequena gravatinha contendo detalhes geométricos interessantes, que se repetem no colarinho. Nos pés o menino parece calçar botinas. Em tudo são roupas caras, típicas de uma criança da alta sociedade dessa época.
Mas a mulher olha diretamente para a câmera. Um olhar firme, sem sorriso no rosto, um olhar de quem não gosta do que está acontecendo.
Conforme podemos ver acima, a foto foi publicada com a seguinte frase: “Mme. Cecília Carvalho e seu interessante filhinho”. O “Mme.” é diminutivo de mademoiselle e essa mulher, conforme pude ver nos jornais da época, era uma pessoa cujo nome era constantemente repetido como participante de inúmeros eventos sociais. Indicando ser uma mulher da alta sociedade carioca, da elite.
A publicação foto em si não teria nada demais e certamente seria motivo para deixar Mademoiselle Cecília Carvalho feliz. Mas a criança que aparece no “instantâneo” é negra.
Diante da expressão do rosto de Mademoiselle Cecília, acredito que a frase que acompanha a foto na “Fon Fon” é uma ironia ridícula, que reserva uma espécie de reprimenda, certamente pelo fato dela estar acompanhada de uma criança negra nesse tipo de ambiente.
Evidentemente que sem maiores dados fica difícil de compreender o que se esconde por trás da foto e da publicação da frase.
Não sei se essa criança era realmente filho de Mademoiselle Cecília. Acho que não. Talvez um filho de criação, ou de alguma empregada. Mas seja lá quem fosse a criança, aparentemente para aquela mulher não havia nenhum problema em sair na rua com ele. Não havia problema que ele fosse bem vestido, assim como ela. Mas parece que para o fotógrafo, e por extensão toda a sociedade da época, havia algo errado naquele conjunto. Tanto que valeu o click e a frase…
E assim vamos vivendo nesse país negro, repleto de ironias e hipocrisias em relação ao seu racismo antigo e ainda muito presente.
Em 5 de Julho de 2022 Será o Centenário de Um Dos Momentos Mais Dramáticos e Intensos da História do Brasil no Século XX, Quando Se Iniciou Uma Rebelião Contra a Situação Política Nacional, Que Colocou um Pequeno Grupo de Jovens Militares e Civis Idealistas Para Enfrentarem Abertamente o Governo Brasileiro na Praia de Copacabana. Inicialmente Eles Utilizaram a Mais Poderosa Fortaleza do Brasil na Época Para Mostrar Suas Insatisfações e Depois Lutaram Corajosamente nas Areis da Praia Contra Uma Tropa Bem Mais Numerosa. Nesse Trágico Episódio se Destacou a Figura do Tenente Siqueira Campos, Um Homem de Pensamento Firme e Família de Origens Nordestinas.
Ele foi um dos principais personagens do Tenentismo, movimento de contestação política marcado pela rebelião militar entre as décadas de 1920 e 1930. Antônio de Siqueira Campos nasceu em Rio Claro, São Paulo, em 18 de maio de 1898, vinha da parte menos abastada de uma poderosa família ruralista.
O bisavô que emigrou de Portugal para o Brasil e foi trabalhar como agricultor na cidade de Flores, na Região do Pajeú, no interior do estado de Pernambuco, onde se casou com uma moça da família Siqueira, grande proprietária de terras da região e forte poder político no Nordeste.
Antônio de Siqueira Campos.
Seu avô, Pedro Pessoa de Siqueira Campos, foi condecorado por Dom Pedro II durante a Guerra do Paraguai por atos de bravura e se tornou coronel honorário do Exército. Já seu pai, Raimundo Pessoa de Siqueira Campos nasceu em Pernambuco e casou com Luísa Freitas de Siqueira Campos. Tempos depois Raimundo e seus familiares aram a viver no interior estado de São Paulo, onde istrava uma das fazendas de um irmão chamado Manuel de Siqueira Campos, que além de rico proprietário de terras, foi presidente da Câmara da cidade de Rio Claro e em 1891 recebeu a nomeação de chefe de polícia de São Paulo, no governo de Américo Brasiliense de Almeida Melo.
A família do jovem Siqueira Campos se mudou para a capital paulista em 1904, onde o pai ocupou o cargo de almoxarife do Departamento de Águas e recebia “o excelente salário de setecentos mil-réis”. Na capital o jovem filho de Raimundo fez o curso primário no Grupo Escolar Sul da Sé de 1904 a 1907 e o secundário no Ginásio do Estado de São Paulo, formando-se em 1914 com “grande distinção”.
Anos depois da Revolta do Forte de Copacabana Siqueira Campos (esquerda), ao lado de Orlando Leite.
O São-carlense pretendia continuar os estudos, mas a situação da família mudou radicalmente. Sua mãe morreu vítima de um acidente e logo seu pai resolveu casar-se novamente. Siqueira Campos tinha na época 16 anos e sua madrasta era mais jovem do que ele. Na pressa de construir um novo lar, seu pai mergulhou a família em dificuldades financeiras e pessoais.
Siqueira Campos viu frustrados seus planos de cursar engenharia na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, então Distrito Federal. Ao mesmo tempo em que se deterioravam suas relações com o pai, os irmãos mais velhos, Raimundo e Ananias, saíram de casa. Pouco tempo depois Siqueira Campos seguiu o exemplo dos irmãos e mudou-se para o Rio. Sem maiores perspectivas ele escolheu a carreira militar e assim seguiu o exemplo de vários filhos de famílias pobres que desejavam prosseguir os estudos. Em dezembro de 1915 ele ingressou na Escola Prática do Exército e no ano seguinte iniciou o curso na Escola Militar do Realengo.
Militares do Exército Brasileiro no Forte de Copacabana.
Aos dezoito anos, é descrito nos registros militares como um jovem voluntarioso de “1,68 de altura, pouca barba, boca regular, cabelos castanhos, pele branca, nariz afilado, olhos esverdeados e rosto oval”.
Um Oficial em Formação
As preferências de Siqueira Campos entre as matérias do currículo, dividiram-se entre balística e a matemática, o que o levaria mais tarde à escolha da arma de artilharia. O ensino dentro da escola primava pelo “respeito à ordem constituída”. Embora fosse “quase proibido pensar”, a disciplina não impedia que Siqueira Campos e seus colegas discutissem exaustivamente os problemas brasileiros. Já nessa época ele usava frequentemente a expressão “Brasil Novo” para definir sua esperança de uma mudança no regime político e social que caracterizava a República Velha.
Dois amigos se destacaram do círculo de colegas de Siqueira Campos. O fechado e religioso Eduardo Gomes — conhecido como “frei Eduardo” —, e Estênio Caio de Albuquerque Lima. Esses alunos alugaram uma casa em Realengo a fim de estudarem de madrugada. A casa recebeu o nome de “Tugúrio da morte” e ou a abrigar inquilinos bastante estudiosos e esfomeados. Esta última característica foi a responsável pelo desaparecimento de várias galinhas das casas vizinhas.
Exército Brasileiro em movimentações.
Nessa turma privilegiada, de onde sairiam os líderes de acontecimentos que iriam mudar a face da República, Siqueira Campos era amigo de todos, mas irava especialmente Luís Carlos Prestes.
A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) dava assunto para várias discussões entre os cadetes: além das posições opostas sobre o pangermanismo e a Revolução Russa de 1917, o tema que inflamava os ânimos era o da entrada do Brasil na contenda. Maurício de Lacerda, então deputado federal, não se cansava de pedir a entrada do Brasil no conflito: apresentou um projeto que foi derrotado em terceira discussão da Câmara, e, durante sua pregação, chegou a procurar os alunos da Escola Militar do Realengo. Siqueira Campos, um dos mais entusiasmados por lutar no exterior, fez parte da guarda-de-honra na homenagem prestada ao poeta Olavo Bilac, outro defensor da participação no conflito, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
No Brasil, o período 1917-1920 foi marcado também por agitações sociais. Os operários da Fábrica Bangu entraram em greve reivindicando melhores salários e condições de trabalho. A polícia foi enviada pelo governo contra os grevistas e no choque alguns operários foram mortos. O governo recuou, retirou a polícia e em seu lugar enviou os cadetes da Escola Militar, que foram bem recebidos pelos trabalhadores. Entre os jovens militares que patrulharam a via férrea entre Bangu e o Realengo estava Siqueira Campos. Mais tarde, comentando esse incidente, ele disse que os cadetes que se julgavam politizados naquela época, não tinham a menor consciência dos problemas sociais.
Um único incidente marcou a vida escolar de Siqueira Campos: em 1918, ainda cadete, agrediu um delegado de polícia que o destratara a chicotadas, no meio da rua . No julgamento, seus bons antecedentes e sua aplicação nos estudos pesaram a seu favor, mas, mesmo assim, foi condenado a 15 dias de prisão no Forte de Santa Cruz por “desacato a autoridade civil”.
Siqueira Campos.
A turma de Siqueira Campos, da qual faziam parte, além dos já citados, Frederico Cristiano Buys, Ciro do Espírito Santo Cardoso, Paulo Kruger da Cunha Cruz, Honorato Pradel, José Bina Machado e Carlos da Costa Leite, entre outros, terminou o curso da Escola Militar em 1918. Nesse mesmo ano Siqueira Campos matriculou-se no Curso Especial de Artilharia, sendo declarado artilheiro em 30 de dezembro de 1919. Promovido a segundo-tenente em 2 de janeiro de 1920, foi classificado na 1ª Bateria de Costa, sediada no Forte de Copacabana, onde se apresentou no dia 19 do mesmo mês.
Nas Muralhas
Forte de Copacabana, década de 1960.
Inaugurado em setembro de 1914, o Forte de Copacabana fazia parte de um conjunto de seis fortalezas responsáveis pela defesa do Rio, e era comandado pelo capitão Euclides Hermes da Fonseca, filho do ex-presidente da República, marechal Hermes da Fonseca e sobrinho do marechal Deodoro da Fonseca..
Campos foi promovido a juiz do Conselho de Guerra Permanente do 1° Distrito de Artilharia da Costa. Depois, em janeiro de 1921, torna-se primeiro-tenente e é nomeado comandante interino da cúpula de canhões das guarnições de 190 milímetros, além de ajudante secretário da unidade e auxiliar do comando, estabelecendo uma relação direta com o capitão Euclides Hermes.
Até meados da década de 1920, os registros do Forte classificam a conduta de Siqueira Campos como exemplar, ressaltando seu zelo, inteligência e dedicação ao serviço e seu alto grau de ilustração militar. Apesar de ser considerado um oficial inflexível com a disciplina, ele gozava de grande prestígio no meio da tropa por seu senso de justiça e sua preocupação com as condições de vida dos soldados.
Em janeiro de 1922, durante as férias do comandante Euclides Hermes, respondeu interinamente pelo comando do Forte. Além do trabalho e do estudo, Siqueira Campos dedicava-se também ao esporte. Seus subordinados contam que, para relaxar o corpo após um dia de trabalho, costumava convidá-los a atravessar a nado do Forte de Copacabana à Ponta do Leme.
Seguindo o exemplo de Eduardo Gomes, o jovem Siqueira Campos conseguiu autorização para submeter-se aos exames da Escola de Aviação Militar em fevereiro de 1922. Entretanto, julgado incapaz no exame de vista, voltou ao Forte de Copacabana, reassumindo suas funções de ajudante-secretário e, no mês seguinte, o comando da cúpula de 190 milímetros.
Para se ter uma ideia do poderio do canhões do Forte de Copacabana, nessa foto da década de 1950 vemos vidraças quebradas pela força expansiva dos disparos dos canhões de 305 em edifícios localizados à beira mar.
Mas as circunstâncias políticas e sociais da conflituosa década de 1920 estabeleceram fortes mudanças que envolveram setores do Exército e transformaram a vida do jovem tenente.
Preparativos do Drama
Já nos primeiros anos do século XX decaía no Brasil os ideais de um sistema político controlado pelas elites estaduais que, pela violência e corrupção, dominavam as eleições, os partidos e os juízes. O próprio Governo recorria à fraude eleitoral, criando os mais ardilosos dispositivos para impedir a vitória de oposicionistas. As relações entre o Governo Federal e os estaduais, e entre estes e os municipais, tinham em sua base uma política de favores e privilégios, numa espécie de círculo fechado no qual inexistia a preocupação com os interesses nacionais.
A Primeira Guerra Mundial proporcionou a oportunidade de novos empreendimentos industriais, o que gerou o aumento da população urbana. Surgiram assim setores sociais – a classe média e o operariado – que reivindicavam representação política própria.
O operariado, alimentando-se dos ideais anarco-sindicalistas, ou a lutar por melhores condições de vida e trabalho, realizando sucessivas greves e, em 1922, organizando-se politicamente com a fundação do Partido Comunista Brasileiro. Outro fator que iria desestabilizar o controle político das elites foi o aparecimento de dissidências em outras regiões, contrárias ao predomínio político dos grupos dominantes de São Paulo e Minas Gerais.
Os eventos desencadeadores das rebeliões que seriam denominadas “Tenentista”, ou “Movimento tenentista”, ocorreram no período do governo do Presidente Epitácio Lindolfo da Silva Pessoa, que se iniciou em 28 de julho de 1919.
Esse período se caracterizou pela desarticulação do regime político oligárquico e pelas tensões criadas com os militares em decorrência da nomeação dos civis João Pandiá Calógeras e João Pedro da Veiga Miranda, respectivamente, para os ministérios da Guerra e da Marinha.
O desprestígio de Epitácio cresce com o desenrolar de sua istração, marcada por orgia financeira, empréstimos provenientes do exterior vinculados à política de valorização do café, por inflação, aumento do custo de vida, intensa repressão aos movimentos sociais e radical recusa em conceder melhorias salariais, inclusive para o soldo militar.
Desde 1921, Artur Bernardes, o governante do estado de Minas Gerais, era o candidato oficial à sucessão de Epitácio Pessoa na Presidência da República, o que, segundo a tradição, constituía uma garantia de vitória. No entanto, a candidatura concorrente de Nilo Peçanha, na legenda da Reação Republicana, granjeou também um apoio considerável.
Episódio das cartas falsas.
As desavenças entre as duas correntes políticas penetraram no seio do Exército através de uma série de incidentes, entre os quais se destacou a publicação, em outubro de 1921, pelo Correio da Manhã, das chamadas “Caso das Cartas Falsas”, atribuídas a Bernardes e cujo teor provocou escândalo nas forças armadas: nelas o marechal Hermes era chamado de “sargentão” e um banquete do Clube Militar era qualificado de “orgia”.
O Estopim Ligado
Apesar da oposição militar, das muitas acusações de corrupção eleitoral, Bernardes foi eleito em 1º de março de 1922, derrotando Nilo Peçanha e assumindo o cargo em 15 de novembro.
Arthur Bernardes
A essa altura, oficiais do Exército conspiravam abertamente e o Correio da Manhã os incitava à rebelião. Enquanto isso, Epitácio Pessoa fazia feroz perseguição aos militares contrários ao político mineiro, promovendo transferências em massa de oficiais que serviam no Rio de Janeiro para guarnições distantes e com isso formou um amplo movimento contra a posse de Bernardes.
Os incidentes com o governo federal tiveram prosseguimento pouco depois com a acusação a Epitácio Pessoa, que ele determinava a intervenção violenta de guarnições federais nas campanhas políticas nos estados, com o intuito de favorecer determinados candidatos, neutralizar as oposições políticas regionais, como ocorreu em Pernambuco.
Marechal Hermes da Fonseca.
No dia 29 de junho de 1922, o marechal Hermes da Fonseca telegrafou ao comandante da 7ª Região Militar, sediada em Recife, concitando-o a não compactuar com as ameaças do governo federal à autonomia do estado, advertindo-o para que o Exército não se tornasse “o algoz do povo pernambucano”.
Severamente repreendido pelo Presidente da República através do ministro da Guerra, João Pandiá Calógeras, o marechal Hermes enviou a Epitácio Pessoa, no dia 2 de julho, um ofício em que reafirmava o conteúdo de seu telegrama ao comandante da 7ª Região Militar, o qual havia sido aprovado pela direção do Clube Militar. Declarava, ainda, não poder “aceitar a injusta e ilegal pena” de repreensão severa que lhe havia sido imposta.
Considerando essa atitude do marechal Hermes uma reiteração da sua indisciplina, Epitácio Pessoa ordenou sua prisão. Ao mesmo tempo foi decretado o fechamento do Clube Militar por seis meses.
Desfile militar no Realengo.
Era iminente a ruptura entre oficiais legalistas e oficiais descontentes. Para os jovens oficiais, a prisão de Hermes agrediu de tal forma os brios militares, que a oposição ao governo dentro da ordem institucional vigente era incompatível com a sua concepção sobre o papel político arbitrário da organização militar. Tornava-se impossível a sujeição do Exército ao poder político civil estabelecido. A baixa oficialidade, composta em sua maioria de tenentes, identificou-se como legítima representante da instituição castrense, assumindo para si todos os riscos de uma atuação política autônoma.
Então, contra o regime corrupto e opressor, escolheram o caminho da revolta militar os integrantes da Escola Militar do Realengo, da Escola de Aviação do Exército, do Forte de Copacabana, membros da 9ª Companhia do 1° Regimento de Infantaria, além de guarnições do Mato Grosso.
Começa a Rebelião
Em 3 de julho, o comandante do Forte de Copacabana, o capitão Euclides Hermes da Fonseca enviou a seu pai uma mensagem na qual informava que a sua guarnição decidira revoltar-se em protesto contra a sua prisão e contra a atuação do Governo Federal. A ligação do pessoal do Forte com o marechal Hermes era discretamente feita através do tenente Eduardo Gomes.
Guarnição do Forte de Copacabana na época da revolta.
Mas devido à indecisão do marechal Hermes, seu filho Euclides resolveu, com o apoio dos tenentes Antônio de Siqueira Campos e Delso Mendes da Fonseca, protelar o levante para o dia 5.
Mas antes de estourar a revolta o Governo Federal e o Exército tinham determinado nível de ciência do que acontecia e da rebelião que se formava. Segundo relatou Siqueira Campos, na reportagem publicada pelo jornal carioca A Noite, em 3 de setembro de 1923, que na noite de 4 de julho de 1922 chegou à guarnição o general Bonifácio Gomes da Costa, comandante do 1º Distrito de Artilharia.
O segundo a direita é o general Bonifácio Gomes da Costa, comandante do 1º Distrito de Artilharia, após a sua libertação do Forte de Copacabana.
Este por sua vez havia recebido ordens do general Manuel Lopes Carneiro da Fontoura, comandante da 1ª Região Militar, para dirigir-se ao Forte de Copacabana, sondar as intenções dos revoltosos e ar o comando da unidade ao capitão José da Silva Barbosa, que o acompanhava.
Após chegarem ao Forte eles foram direto ao gabinete do capitão Euclides e transmitiram suas ordens. Houve um diálogo entre o general Bonifácio e o capitão extremamente carregado de emoção, pois o general era muito amigo da família de Euclides e não aceitou os argumentos do capitão para a rebelião. Bonifácio era tão próximo a Euclides, que na reunião o chamou de “Xiru”, um apelido de família. Nisso surge Siqueira Campos, que com autoridade e sem perda de tempo, deu a ordem de prisão ao general Bonifácio e ao capitão Barbosa, que foram mantidos encarcerados até o fim da revolta.
Sob estado de alerta, a tropa cavou trincheiras, estendeu redes de arame farpado, enquanto o tenente Newton Prado superintendeu os depósitos de armazenamento de alimentos com víveres suficientes para um mês e preparou a artilharia.
Em razão do seu valor tático e poderio bélico, o Forte de Copacabana se tornou o depositário das esperanças revolucionárias. A poderosa fortaleza recebeu adesões de oficiais e soldados lotados em outras guarnições, além de voluntários civis. Com essas adesões o total de revoltosos na primeira fase da insurreição chegou a 301. Um dos grupos que aderiu chegou ao Forte no bonde do Leme!
No Forte da Ponta da Vigia, no morro do Leme, o primeiro-tenente Fernando Bruce conseguiu a adesão do segundo-tenente intendente Rubens de Azevedo Guimarães, do aspirante Romulo Fabrizzi e de outros militares, totalizando mais 54 revoltosos ao contingente do Forte de Copacabana, que chegaram na praça de guerra rebelada com armas e munições. Inclusive eles comunicaram a extremada decisão ao comandante da guarnição do Leme, o capitão Maximiliano Fernandes da Silva, que tentou até convencê-los do contrário, mas de nada adiantou.
Só que para percorrerem o caminho até Copacabana, os militares do Leme tomaram de assalto um bonde da empresa Light, baixaram as cortinas do veículo, desligaram as luzes e o aspirante Fabrizzi colocou uma pistola na cabeça do motorneiro, obrigando-o a fazer o trajeto.
Forte de Copacabana em 1922.
Teve ainda o caso do capitão Libânio da Cunha Mattos, do 3º Regimento de Infantaria, que saiu do quartel da Praia Vermelha com uma companhia formada de oficiais e praças e foi até o Forte de Copacabana para dialogar com seu colega Euclides Hermes e “lhe chamar a razão”.
A conversa foi tranquila, clara e sincera, como deve ser entre dois amigos, mas o capitão Euclides não se dobrou aos argumentos de Cunha Mattos. Então, na hora de ir embora do Forte, o capitão do 3º Regimento deu de cara com o segundo-tenente Mário Tamarindo Carpenter, seu comandado, que aderira a revolta. Outros dizem que na hora de partir, o tenente Carpenter, que teria vindo junto com o grupo que saiu da Praia Vermelha, bateu continência para Cunha Mattos, deu meia volta e aderiu a revolta.
Na madrugada de 5 de julho não havia nada mais o que esperar e os revoltosos entraram em ação!
Siqueira Campos e seus comandados dispararam as 01:20 da manhã contra a Ilha de Cotunduba (dois disparos), contra o Forte da Ponta do Vigia e o 3º Regimento de Infantaria, que recebeu disparos como protesto por ter esta unidade recebido o marechal Hermes preso. Também visaram o Ministério da Guerra.
A sombra que surge nessa foto de baixa qualidade é o resultado dos disparos dos canhões do Forte de Copacabana.
Consta que o capitão Euclides desejava acertar nesse último local a sala do ministro Pandiá Calógeras, onde foi assinado o ato de prisão do seu pai, mas errou o tiro e acertou o prédio da Litgh, a companhia de energia elétrica e bondes da cidade, matando três pessoas. O ministro então ligou para o Forte, protestando asperamente contra o disparo. Foi aí que Euclides percebeu que errou o alvo. Calibrou o canhão para um novo tiro e mandou bala. Dessa vez acertou o prédio na ala esquerda e depois mais dois disparos tiveram o mesmo destino. Infelizmente nesses ataques três militares do Exército faleceram e dois ficaram feridos.
Com outros disparos, outras residências e áreas comerciais foram atingidas, como um prédio na Rua São Pedro e outro na Rua Marechal Floriano. A população desesperada refugiava-se nos morros, serras e nos subúrbios. O abastecimento de água e luz do Forte foi cortado, menos a telefonia.
Notícia da revolta nos Estados Unidos, onde o jornalista Charles Lucas sofre forte censura, mas conseguiu enviar as notícias dos episódios no Rio.
Chegou-se a falar em armistício, mas Epitácio Pessoa só aceitava a rendição dos rebeldes, sob pena de serem atacados por todas as forças governamentais de terra, mar e ar. Logo, mais de 4.000 homens das forças regulares cercavam a região do Forte de Copacabana.
Do lado de fora, na cidade, multiplicaram-se os boatos sobre os presídios estarem superlotados de rebeldes, seus apoiadores e familiares. Falavam que os mortos pelos bombardeios chegavam aos milhares, que ocorriam enterros em massa e os corpos eram jogados em vala comum. Mas, apesar da destruição de alguns prédios e da morte de alguns militares e populares, o que havia de verdade era que os pontos estratégicos da cidade permaneceram nas mãos das forças governistas.
Região do Forte de Copacabana cercado por tropas legalistas.
Nesse mesmo dia 5 de julho, após o início da rebelião, tropas legalistas e os efetivos da Polícia Militar rapidamente subjugaram os cadetes da Escola Militar e da Escola de Aviação. No Campo dos Afonsos os sargentos do general Carneiro da Fontoura tiveram vital importância, onde ficaram encarregados de controlar os oficiais nos corpos de tropa e de sabotar os aviões, impedindo-os de levantar voo.
Apesar dessa pequena vitória, só restou ao governo dominar os revoltosos entrincheirados no Forte de Copacabana.
Canhões Disparam na Baía da Guanabara
Às quatro horas da madrugada do dia 6, o capitão Euclides Hermes reúne todos os oficiais que participavam da defesa do Forte e expõe claramente a situação vivida e informa que o Forte de Copacabana era a única unidade que se mantinha rebelada e estava completamente isolado. Poderia resistir por mais tempo, em virtude do seu imenso poder de fogo, mas as chances de vitória eram inteiramente nulas!
Forte de Dom Pedro II de Imbuí, bairro de Jurujuba, Niterói, que não aderiu a revolta de 5 de julho.
Ciente da gravidade da situação, o capitão Euclides facultou a cada um a livre opção pela resistência ou retirada. O próprio Siqueira Campos incitou os que eram arrimos de família a abandonarem o local e exigiu que a permissão à desistência fosse estendida aos soldados.
O Forte, que abrigava 301 revoltosos, fica com apenas 29: cinco oficiais — o comandante Euclides, Siqueira Campos, Eduardo Gomes, Mário Carpenter e Newton Prado —, dois sargentos, um cabo, dezesseis praças e cinco voluntários civis. Os demais deixaram as armas e se retiraram.
Essa foto, da década de 1950, mostra as proporções dos canhões de 350 milímetros do Forte de Copacabana.
Foi quando o governo deu o próximo o.
Por volta da 07:35 da manhã de 6 de julho os encouraçados São Paulo e Minas Gerais, cruzaram a barra,escoltados pelo destroier Paraná, onde se encontrava o almirante Max Fernando de Frontin, Chefe do Estado Maior da Armada e comandante daquela operação naval. Os poderosos encouraçados eram imponentes máquinas de destruição, com seis canhões de 305 milímetros em cada navio, enquanto os canhões mais poderosos do Forte de Copacabana eram apenas dois, do mesmo calibre das naves de guerra, mas que poderiam atingir alvos a 23 quilômetros de distância, 1.500 metros a mais que os disparados pelos canhões do São Paulo e Minas Gerais.
No instante que os navios transpam a barra, os revolucionários abriram fogo, mas não contra os navios. Mostrando toda sua competência e capacidade de combate, realizaram mais de dez disparos com os canhões de 190 milímetros contra postos-chave da cidade, como a Ilha das Cobras, o Palácio do Catete, o Corpo de Bombeiros e o Arsenal da Marinha. No Batalhão Naval dos Fuzileiros Navais morreram três militares atingidos por estilhaços.
Salva dos poderosos canhões do Minas Gerais, navio irmão do São Paulo.
Na sequência o Forte de Copacabana foi atacado a uma distância de 6.000 metros pelo fogo dos canhões do São Paulo, o único dos navios a disparar, cujos estampidos ressoaram de forma poderosa por toda a Baía da Guanabara.
O tempo estava firme e o mar calmo e efetivamente os canhões do navio dispararam vinte vezes. O impacto das granadas navais chegou até mesmo a estremecer o solo quando duas delas, as únicas, atingiram a muralha do Forte. O resto dos disparos caíram no mar.
Aquilo foi uma demonstração pífia da capacidade de combate de uma nave de guerra que possuía muito mais canhões do que a fortaleza rebelada, que estava a uma distância relativamente curta para a efetiva utilização desse tipo de armamento, além de ser um dia claro e de mar calmo.
Canhões de 305 milímetros disparando no Forte de Copacabana na década de 1950. Essa cena não ocorreu em 1922.
Alguns autores apontam que os artilheiros do Forte preparavam a reação com os dois canhões de 305 milímetros, quando um enguiço no motor a diesel do sistema hidráulico que movimentava a cúpula das armas impediu a ação. Os revoltosos alegaram que o enguiço foi resultado de sabotagem. Então, manobrando no braço os canhões de 190 milímetros, a guarnição respondeu ao fogo do navio de guerra. O São Paulo teria sido atingido na torre de comando, tendo a esquadra recuado para uma distância segura e não voltado a entrar em ação.
Sobre a questão dos disparos do encouraçado São Paulo e do Forte de Copacabana, é bom os leitores observarem a nota que segue abaixo, publicada na edição dominical do jornal carioca Correio da Manhã, 5 de julho de 1959. É um trecho da entrevista concedida pelo então general da reserva Euclides Hermes da Fonseca, no seu apartamento da Rua Toneleros, ao jornalista (e futuro deputado federal) Márcio Moreira Alves.
Os historiadores navais nunca corroboraram essas informações de impacto e afirmaram que os navios manobraram não em busca de uma distância segura, mas apenas para se “recolocarem no cenário”. E mais – Os historiadores navais comentaram que do Forte subiu uma bandeira com a letra “P”, indicativo de parada dos disparos de artilharia e que no mastro principal da unidade sublevada subiu uma bandeira branca, mostrando que os disparos navais foram a causa da “rendição do Forte”.
E essa ideia perdurou (ou perdura) no meio naval. Mas apenas no meio naval.
Para a maioria dos que se debruçaram sobre o tema, o que aconteceu foi que apesar dos desfalques no lado dos revolucionários, do barulho dos ineficientes disparos do São Paulo e do ime existente, tudo apontava que o combate podia prolongar-se. O ministro Pandiá Calógeras, sensível às 72 toneladas de granadas de artilharia que abarrotavam os paióis da fortaleza e a possível perda dos meios navais mais poderosos existentes no Brasil, propôs uma conversação de paz, aceita pelos insurretos. E foi aí que a bandeira branca subiu no mastro!
Newton Prado no Forte de Copacabana, atrás de uma barricada, aguardando seu destino. Foto Brício de Abreu.
O major Egídio Moreira de Castro Silva e o tenente-aviador Pacheco Chaves são então enviados pelo governo para conversar. Mas no momento em que o tenente Newton Prado cruza o portão para recebê-los, um hidroavião da Marinha (alguns afirmam que foram dois) sobrevoo o Forte e lançou bombas que, tal como a maior parte dos disparos feitos pelos seus colegas no encouraçado Minas Gerais, só acertaram a água.
Se os aviadores navais erraram feio no seu bombardeio, acabaram foi com a tal “missão de paz”, que degenerou em conflito verbal e físico entre os embaixadores. O major Egídio e o tenente Pacheco tentaram prender o tenente Newton Prado, que resistiu, mas acabou sendo jogado para o lado de fora da muralha, se ferindo, enquanto os dois oficiais, que em nada lembravam homens honrados, fugiram em desabalada carreira.
Tropas legalistas aguardando desfecho dos revoltosos do Forte de Copacabana.
Indignado, o capitão Euclides Hermes toma o telefone e protesta. Calógeras desculpa-se por medo de levar um novo bombardeio. Argumenta que foi um engano: a Marinha não foi devidamente informada sobre a trégua. Lembrando as relações cordiais que mantinham até o início do levante, propõe um encontro pessoal entre ambos. A oferta é aceita pelos revolucionários.
Os oficiais no Forte reuniram-se e decidiram enviar ao ministro da Guerra, através do capitão Euclides, os termos da rendição. O tenente Siqueira Campos, comandante moral da rebelião, redige as cláusulas da desistência. Por elas, os oficiais rebeldes terão a vida respeitada e receberão baixa do Exército, para se exilar em seguida. O capitão Euclides Hermes pegou um automóvel de praça no Posto Seis, de placa 1.231, para tentar entregar o documento de desistência às autoridades.
O cidadão marcado com uma cruz é Euclides Hermes da Fonseca, quando ficou preso na Ilha Grande, Rio de Janeiro.
Segundo os jornais ele ou primeiro na residência de seu pai, em Botafogo, no número 60 da Rua Guanabara, atual Pinheiro Machado. De lá telefonou para Calógeras, que pede para aguardá-lo. Mas quem compareceu foi o capitão Marcolino Fagundes, acompanhado de um sargento e de um cabo, todos do 3º Regimento de Infantaria. Euclides foi preso por ordem do presidente e levado para o Palácio do Catete.
Esse militar ficaria na cadeia até o fim do governo seguinte, o de Artur Bernardes.
A Marcha dos Valentes
No palácio, visivelmente embaraçado diante do capitão Euclides, Calógeras explica que: por decisão posterior do Presidente da República era forçado a prendê-lo, devendo também o Forte se render incondicionalmente.
Ao meio dia e meia Euclides, por telefone, comunica a Siqueira Campos o resultado da missão de paz: Estou preso, Siqueira. Eles traíram a palavra de honra dada… Eles querem que os oficiais se rendam, que deixem o forte, marchando desarmados, um a um, até se entregarem às tropas legais. Consta que também houve a ameaça de fuzilarem o capitão Euclides se os rebelados não se rendessem.
Foto atual da área de entrada do Forte de Copacabana.
Reinava então uma paz temporária, pois o dispositivo legal recebera ordens de aguardar a rendição.
Sabendo da traição, os militares no Forte decidem pensar de novo sobre o desfecho do conflito. Na sala de comando reúnem-se os quatro últimos oficiais que se mantinham rebelados. Todos eram tenentes. Nenhum tinha mais de 25 anos. Dois eram membros da guarnição original do Forte de Copacabana: Siqueira Campos e Newton Prado. Outros dois haviam se juntado a ela no momento da sublevação: Mário Carpenter e Eduardo Gomes.
Siqueira Campos faz uma proposta extremada: explodir o paiol de pólvora, morrendo a guarnição em seus postos. A sugestão não foi aceita. Propôs então uma outra: os navios estavam fora do alcance dos canhões de 190 milímetros, mas o Forte podia continuar bombardeando objetivos militares na cidade. Eduardo Gomes alegou que esta solução oferecia o risco de atingir ainda mais a população civil.
Foto de jornal que mostra parte dos soldados do 3º Regimento de Infantaria que enfrentaram os rebeldes do Forte de Copacabana.
Eles sabiam que as tropas federais estavam estacionadas na Praça Serzedelo Correia, a um quilômetro e meio do forte, e superavam o efetivo rebelde na proporção de 142 para 1. Estes números mostravam que o Governo Federal pretendia liquidar a fatura com uma lição exemplar e definitiva aos militares que não acatassem suas ordens. Em troca de suas vidas, à guarnição da fortaleza rebelada não bastaria render-se. A humilhação era o preço a ser pago por haverem levado a luta até aquele ponto.
Certamente diante dessa situação foi que o tenente Eduardo Gomes sugeriu que ele e seus companheiros abandonassem o Forte, saíssem armados e seguissem em direção ao Palácio do Catete, enfrentando às tropas do governo em um combate corpo a corpo, em plena rua, de peito aberto, na frente do povo. Valentemente eles concordaram com a sugestão!
Os momentos seguintes são de grande e intensa emoção. Siqueira mandou trazer a bandeira brasileira, mandou cortá-la em 29 pedaços irregulares e distribuiu um pedaço a cada soldado e oficial. Todos se municiaram, até mesmo com granadas, e guardaram o 29º pedaço do pavilhão nacional para entregar ao capitão Euclides.
Na década de 1950 um oficial do Forte de Copacabana mostra o pedaço da bandeira brasileira utilizado por Siqueira Campos, preservada nessa unidade militar e, segundo foi comentado na época da foto, manchada de sangue.
Era uma e meia da tarde quando os revoltosos saltaram uma barricada que eles criaram na entrada da fortaleza.
Sob o comando de Siqueira Campos, seguiram pela Avenida Atlântica, que margeia a Praia de Copacabana, em direção ao Leme, encontrando alguns populares que tentaram desencorajá-los daquela loucura. Falavam aos moradores sobre seus motivos e lenços brancos eram acenados das janelas. Seguiram assim até a chamada “London House”, que tempos depois seria o Hotel Londres, onde pararam e beberam água em uma casa de família. As mulheres que os atenderam estavam visivelmente emocionadas. Já haviam percorrido mais de um quilômetro.
Ao reiniciar a marcha, Siqueira verifica que alguns rebelados haviam desistido. Mas isso já não tinha importância. Eles continuam numa tensa caminhada rumo às tropas legalistas. Siqueira puxou gritos de vivas ao Exército, ao marechal Hermes e aos defensores do Forte.
Nas imediações da praia, as tropas legalistas tomam posição.
Eduardo Gomes era o oficial que estava mais bem trajado e ainda conservava a sua gravata. Já Mário Carpenter seguiu na avenida com cabelos desgrenhados e com parte da sua túnica aberta. Newton Prado, mais corpulento, não trazia uma das polainas, perdida na briga com o major Egídio Moreira de Castro e o tenente-aviador Pacheco Chaves. Já os sargentos e soldados seguem mais bem equipados e garbosamente vestidos que os oficiais. Todos estão de armas na mão e vários fuzis estão com suas baionetas. Alguns fumam.
Antes de atingirem a Rua Barroso, hoje Siqueira Campos, o civil Otávio Correia, um jovem engenheiro gaúcho de 36 anos se integra ao grupo. Ele era conhecido de Siqueira Campos, a quem havia sido apresentado na casa da escritora Rosalina Coelho Lisboa. Otávio vem bem vestido com seu paletó claro, bem talhado para seu corpo alto e magro, além de trazer um chapéu de massa. O engenheiro então recebeu o pedaço da bandeira destinado ao capitão Euclides e o fuzil Ma de Newton Prado, que ficou na mão com uma pistola ou um revólver.
Rebelados seguem pela Avenida Atlântica.
O fotógrafo Zenóbio Couto, da importante revista O Malho, imortalizou os instantes finais da marcha com uma chapa fotográfica antológica. Um documento de extrema importância para a história iconográfica brasileira. Por ironia não aparece na imagem a figura de Siqueira Campos – ele tinha recuado momentaneamente até a retaguarda para convencer alguns soldados a não abandonarem a empreitada. Então, numa das esquinas da Avenida Atlântica, a marcha encontrou as tropas governistas.
Enquanto os rebeldes caminhavam na avenida a beira mar, o tenente legalista João de Segadas Viana, comandante de um dos três pelotões da 6ª Companhia do 3º Regimento de Infantaria, havia recebido ordens de preparar-se para deter a marcha dos revolucionários, enquanto se providenciavam mais reforços. Seu comandante, o capitão Pedro Crisol Fernandes Brasil, dispôs então um pelotão na Rua Barroso, comandado pelo tenente Segadas; outro na rua seguinte, Hilário de Gouveia, chefiado pelo tenente Miquelina; e o terceiro manteve na praça, sob comando do tenente João Francisco Sawen.
Algum tempo depois, o tenente Segadas recebeu ordem de descer pela rua Barroso, em direção à praia, para observar a progressão dos revoltosos. Tendo atrás de si, a uns 30 metros, seu pelotão. Logo que chegou na esquina deparou-se com os rebelados.
Ao verem o tenente legalista, três soldados do Forte tentaram dominá-lo. Ele sacou a sua arma, mas o tenente revolucionário Mário Carpenter, seu colega no 3º Regimento, ordenou aos praças que se detivessem. Enquanto isso, os cerca de 40 membros do pelotão de Segadas apontavam suas armas contra os revoltosos e vice-versa.
Segadas tentou dissuadi-los do combate e por sua vez Siqueira e Carpenter exortavam o legalista a acompanhá-los na rebeldia. Segundo reportagem do periódico carioca O Jornal, Segadas Viana chegou até Siqueira Campos e teria dito “O que é isso companheiro?”. Siqueira Campos reagiu arrancando os botões de sua túnica e proclamando que não mais pertencia ao Exército.
Esgotados os argumentos, o destacamento revolucionário retomou a marcha, mas surge o capitão Brasil vindo da Rua Hilário de Gouveia, que vendo a situação acaba dando a ordem de “fogo” ao pelotão do tenente Segadas. Consta que apenas um soldado obedeceu e disparou. O tiro matou pelas costas o soldado Pedro Ferreira de Melo. O tenente Siqueira Campos virou-se e devolveu o tiro e o combate começou.
Na área do Palácio do Catete, tropas legalistas tomam posição.
Morte nas Areias de Copacabana
Depois de sustentarem o tiroteio por alguns minutos em pé, em plena avenida, os revolucionários pulam para a areia e se abrigam por trás do paredão da calçada. Só levantavam a cabeça dessa proteção para abrir fogo. Embora a desproporção entre as forças fosse esmagadora, o paredão representava excepcional proteção aos rebeldes. E a motivação com que pelejavam dava às suas ações a objetividade que faltava às forças governistas.
Em meio a muitos tiros, alguns jornais da época afirmam que os homens que deixaram as muralhas do Forte de Copacabana “lutavam feito loucos na areia da praia”, de “maneira superior aos seus inimigos” e que suas ações “perturbaram as forças legalistas”, impressionadas diante de tamanha coragem insana e suicida. Os pelotões do tenente Segadas e Miquelina sofrem imediatamente várias baixas, inclusive seis mortes.
As forças legalistas acorrem em massa à praça Serzedelo Correia, em socorro aos pelotões do 3º Regimento de Infantaria. Até mesmo a tropa de guarda do Palácio do Catete foi deslocada para essa finalidade.
Tropas legalistas se aproximam da Praia de Copacabana para combater os revoltosos.
O voluntário rebelde Joaquim Maria Pereira Júnior, que sobreviveu ao combate, relatou: “O tiroteio foi renhido, mas atirávamos com calma e precisamente… As forças do governo avançavam lentamente”.
Considerando a dificuldade de sufocar os revoltosos, foi cogitada a carga de baionetas. Os oficiais, no entanto, recusaram-se a empregá-la contra aqueles que, mesmo na condição de inimigos, lutavam tão corajosamente. Que se rendessem ou fossem mortos a tiros, nunca estripados.
A luta prosseguiu, até que a munição dos rebeldes se esgotou. Eduardo Gomes foi ferido na coxa esquerda e foi o primeiro revolucionário atingido pela fuzilaria. Depois caíram o sargento José Pinto de Oliveira, com uma bala na fronte, estavam feridos os praças Hildebrando da Silva Nunes e Manoel Antônio dos Reis – corneteiro, cujos toques de clarim vibravam duros golpes no moral das tropas governistas. Mário Carpenter, de apenas 23 anos de idade, recebeu um disparo no abdômen e mergulhara na inconsciência. Já o engenheiro Correia perdeu a vida com um balaço no peito. Siqueira Campos – com um ferimento na mão esquerda – e o tenente Newton Prado – baleado no abdome e na perna – ainda guardavam a última bala em suas armas. Aos demais combatentes já não restava nenhuma.
Tropas legalistas se posicionam na área da Avenida Atlântica.
O tenente Siqueira Campos ordena, então, aos praças e voluntários civis, que cada qual tome um rumo, mas não se deixem prender e não se deixassem ser feridos pelos legalistas. Por incrível que possa parecer, dois conseguem cumprir essas ordens com êxito.
O soldado 108, Manoel Ananias dos Santos, respirou fundo, saltou para cima do paredão e desviando-se das balas atravessou a avenida em busca de abrigo. “Os legalistas deram uma rajada contra mim, mas não acertaram”, contou ele 42 anos mais tarde ao jornalista Glauco Carneiro, da revista O Cruzeiro. “Consegui alcançar e pular o muro de uma casa… Havia no jardim uma corda estendida com vários calções de banho.” Disfarçado de banhista, ele conseguiu atravessar o túnel, por volta das 16:30, chegando em seguida à residência de um sargento, na Rua Mena Barreto, em Botafogo. Já o voluntário Joaquim Maria Pereira Júnior escapou pelo mar: “Esgotada a minha munição, ordenou o tenente Siqueira Campos que eu me retirasse… Atirei o meu fuzil ao mar e logo adiante nadei até um lugar abrigado, onde alguns operários humanitários me vestiram à paisana”.
Preso ao tentar romper o cerco João Anastácio Falcão de Mello, ex-soldado e que em 1922 era funcionário civil da Intendência de Guerra, fez um significativo relato do acontecimento: “Quando não tinha mais munição fui avançando, com um bruto ferimento na perna, mas com um punhal na mão. Me pegaram logo adiante e um oficial legalista me chamou de bandido. Aquilo moeu-me a alma. Lutara de peito descoberto contra gente armada em número muito superior e aquele homem a chamar-me de bandido!”. Consta que Falcão já havia trabalhado para a família do capitão Euclides Hermes da Fonseca, que o protegia e o ajudava e que teria ido ao Forte de Copacabana saber notícias do capitão a pedido de sua esposa, Leonila Ovalle da Fonseca. Nisso acabou aderindo ao movimento rebelde, foi preso e depois de algum tempo libertado.
Logo após o final do combate, nessa foto vemos no chão o corpo do engenheiro Otávio Correia e de costas, sendo apoiado pelos inimigos, o tenente Newron Prado, que depois morreria em decorrência dos ferimentos no Hospital Central do Exército.
Ao final do combate na Praia de Copacabana, como os revolucionários não respondiam mais aos disparos, o capitão Brasil e o tenente Segadas Viana suspenderam o fogo e iniciaram um avanço lento e cuidadoso em sua direção. Já tinham caminhado cerca de vinte metros quando, repentinamente, um contingente de 100 homens do 3º Batalhão de Infantaria da Policia Militar, sob o comando do coronel Tertuliano Potiguara, sai da Rua Barroso, em veículos de transporte apelidados de viuvinhas. Em alta velocidade, chegam ao local onde se encontram Siqueira Campos e seus companheiros. “Calar baioneta! Avançar!” Foi a ordem de Potiguara.
Debaixo de uma gritaria infernal os atacantes se precipitam contra uma fortaleza sem muralhas guarnecida por mortos e feridos. Mas a surpresa ainda os espera.
A última bala do tenente Newton Prado é certeira, derrubando para sempre o atacante mais afoito. Siqueira aguarda até o último instante para disparar a sua, atingindo na boca o sargento Lindolfo Garcia Godinho, que lhe enterrara a baioneta no fígado.
O Governo Federal em 1922 triunfou sobre os rebelados. Oito anos depois essa ordem vigente seria derrotada pelo Golpe de 1930.
Levantem os vivos! Os vivos levantem! – uivam os comandados de Potiguara, tomados de histérico frenesi. Não há quem os possa atender.
O combate teria durado de uma hora a uma hora e meia. Outras fontes afirmam que a refrega foi bem mais rápida, de apenas “onze minutos”. Independente do tempo, o certo foi que os rebeldes não abriram mão de lutar!
Junto ao corpo inerte do tenente Mário Carpenter jaz o seu quinhão da bandeira do Forte. Nele está escrito: “Forte Copacabana – 6 de julho de 1922 – Aos queridos pais ofereço um pedaço da nossa bandeira em defesa da qual resolvi dar o que podia… Minha vida”.
Outras Lutas de Siqueira Campos
Marcada pelo voluntarismo, essa fase inicial do tenentismo não existia uma definição ideológica claramente expressa pelo movimento, não carrega um projeto para a sociedade brasileira e nem se identifica como porta-voz de grupos sociais que não sejam o próprio Exército.
Epitácio Pessoa, numa tentativa de apaziguamento dos ânimos, visitou os feridos no Hospital Central do Exército e a iniciativa foi amplamente divulgada pela imprensa. Siqueira Campos reagiu com altivez e frieza à tentativa de diálogo do Presidente da República.
O líder revoltoso só receberia alta em dezembro de 1922, sendo então preso. Eduardo Gomes também sobreviveria.
Em 14 de agosto, Campos prestou depoimento no inquérito presidido pelo general Augusto Tasso Fragoso. No início de setembro, foi transferido para o 3º Regimento de Artilharia Montada, no interior do país, onde ficou até o início de outubro, quando lhe foram concedidos mais 60 dias para tratamento de saúde no Hospital Central do Exército. Ao ter alta foi recolhido preso à Escola de Comando e Estado-Maior, na Tijuca.
Apesar da expectativa contrária do recém iniciado governo Artur Bernardes, a Justiça Federal concedeu habeas corpus aos rebeldes sobreviventes em janeiro de 1923.
Siqueira Campos saiu da prisão com habeas-corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Logo solicitou baixa do Exército em 7 de janeiro de 1923, mas, ao ver seu pedido recusado, resolveu exilar-se no Uruguai. Não demorou e foi denunciado pelo promotor criminal da República.
Siqueira Campos (direita), ao lado do tenente revolucionário Juarez do Nascimento fernandes Távora, de jaguaribe, Ceará. Foto feita provavelmente na Argentina.
Associado com seu colega da primeira fase da insurreição do forte de Copacabana, o ex-aspirante Manuel Augusto de Araújo Góis, fundou uma firma de representações “Araújo, Campos & Cia.”, dedicada à importação e venda de produtos primários brasileiros. Depois, nos primeiros meses de 1924, abriu em Buenos Aires a casa comercial “Araújo, Siqueira & Cia. Importación-Exportación”, numa tentativa de vender café.
Siqueira Campos voltou clandestinamente ao Brasil em 1924 e em 5 de julho desse ano, exatamente dois anos após a Revolta de Copacabana, rebeldes liderados pelo general aposentado Isidoro Dias Lopes lançaram outra revolta. Inspirada na luta de Copacabana de 1922, e novamente com o objetivo de derrubar a Primeira República. Embora essa revolta tenha conseguido tomar São Paulo temporariamente, no final de julho, eles estavam enfrentando a perspectiva muito real o governo exterminá-los completamente após um cerco.
Como resultado, sob a cobertura da escuridão, 3.000 rebeldes escaparam da capital paulista nos dias 27 e 28 de julho, escapando até mesmo das forças do governo sitiantes.
Na sequência, os rebeldes, agora liderados por Luís Carlos Prestes, formaram efetivamente uma força de guerrilha que seguiu combatendo no interior do país. O grupo, conhecido como Coluna Prestes, manteve-se em constante movimento, sofrendo perdas, mas evitando o extermínio total pelas mãos do governo. Quando eles escaparam para a Bolívia em 1927, haviam percorrido mais de 25.000 quilômetros no interior do Brasil. Siqueira Campos juntou-se à Coluna, tornando-se líder de um dos quatro destacamentos que tentavam escapar da captura e marchavam pelo interior do país.
Siqueira Capos no exílio.
Enquanto a Coluna Prestes se dirigia à Bolívia, Siqueira Campos acabou primeiro em Buenos Aires, onde continuou os esforços para organizar os brasileiros que se opunham à Primeira República e estavam exilados no Uruguai e na Argentina.
Em 1929, à medida que o descontentamento com o governo brasileiro crescia e os rebeldes militares e dissidentes políticos formavam a Aliança Liberal, Siqueira Campos foi escolhido para liderar um levante em São Paulo. No entanto, antes que a revolta pudesse acontecer, a trama se tornou conhecida e o rebelde mais uma vez fugiu para o exílio. No entanto, os dias da Primeira República estavam contados.
Telegrama para a escritora Rosalina Coelho Lisboa, informando sobre a morte de Siqueira Campos. Foi enviado por Luís Carlos Prestes no exílio.
Finalmente, em outubro de 1930, o governo Artur Bernardes caiu, sendo substituído pelo movimento revolucionário que levou Getúlio Vargas ao poder.
Apesar de todos os seus esforços para acabar com a Primeira República, Siqueira Campos não veria os frutos de seus esforços. Ele morreu quando o avião em que viajava do Uruguai para o Brasil caiu no Rio da Prata em 10 de maio. Após vários dias de buscas, seu corpo foi encontrado e enterrado no Rio. Ele ganhou uma série de homenagens póstumas.
Chegada do caixão de Siqueira Campos no Rio.
Embora Antônio de Siqueira Campos não tenha vivido para ver o fim da Primeira República, sua liderança e sacrifício na Revolta do Forte de Copacabana e suas ações subsequentes, desempenharam um papel importante para minar ainda mais a legitimidade do regime.
Existe uma falsa ideia que na época dos nossos avós e bisavós a única droga que existia era o álcool, com preferência no Brasil para a cachaça.
Isso é um engano!’
Quem desejava utilizar cocaína em Natal e em outras cidades brasileiras na metade da década de 1920, nem precisava comprar essa droga em algum lugar sombrio (algo que hoje é conhecido como “boca”), ou negociar com gente perigosa e inescrupulosa (os atuais traficantes). Para “abrir as portas da percepção”, como foi dito metaforicamente pelo escritor inglês Aldous Huxley, a situação nessa época era muito mais tranquila.
Bastava ir a alguma farmácia na Rua Dr. Barata, no bairro da Ribeira, ou na Avenida Rio Branco, na Cidade Alta, pois a cocaína era vendida basicamente em estado líquido e em pequenos frascos. E a cocaína nessa condição e nessa época chegou até mesmo ao sertão potiguar, mais precisamente em Caicó, conforme podemos ver nas propagandas abaixo.
Não sei como começou esse consumo de maneira mais forte, mas imagino até a cena – Um dia, certamente em outras freguesias (até porque Natal jamais foi moderninha a esse ponto), alguém foi medicado com algum preparado de cocaína. Aí o doente achou legal o efeito daquele remédio e, certamente impaciente antes da próxima colherada, a figura entornou o frasco goela abaixo e ficou muito doido. Pronto, começou a desgraça!
Como notícia do que não presta corre mais rápido que as boas novas, provavelmente toda rapaziada descolada e moderninha da época partiu célere para uma “bad trip” líquida e transparente nas boticas e farmácias pelo mundo afora. E a cocaína ou a ser consumida como alucinógeno desde a segunda metade do século XIX, ando pela “Belle Èpoque” e chegando a louquíssima década de 1920. Alguns de seus consumidores desse período vinham sempre com seus vistosos bigodes, elegantes ternos, camisas de colarinho duro, gravatinhas borboleta, bengalas de madeira nobre, chapéus cocos, ou de palhinha e lenços coloridos nas lapelas.
Não tenho detalhes quando e como a galera de Natal começou a consumir cocaína, mas uma pequena nota jornalística aponta que em Maceió, capital das Alagoas, o desmantelo rolava principalmente nas “pensões”[1]. Aí vale uma explicação – Nos jornais antigos esse termo muitas vezes não designava apenas um local de repouso temporário, como uma pousada, mas era também utilizado para descrever locais conhecidos como prostibulo, meretrício, cabaré e por aí vai!!!
Conforme podemos ver na foto que abre esse texto, a polícia em Natal não reprimia a venda. Mas os homens da lei não podiam realizar seu trabalho porque a cocaína era um produto liberado, utilizado em toda parte, receitada por médicos e farmacêuticos para vários males, além de ser fabricada por respeitadíssimas indústrias farmacêuticas. Até Sigmund Freud usou!
O Decreto Nº 14.969, de 3 de setembro de 1921, assinado pelo Presidente da República Epitácio Lindolfo da Silva Pessoa não criava maiores restrições para a venda, mas regulamentava a entrada no país das substancias tóxicas, onde as penalidades impostas aos contraventores eram apenas multas e nada de cadeia. Para os consumidores essa Lei criou no Rio de Janeiro o “Sanatorio para toxicômanos – um estabelecimento para ministrar tratamento medico e correccional, pelo trabalho, aos intoxicados pelo alcool ou substancias inebriantes ou entorpecentes”.
Mas como esse produto se tornou um grande problema na década de 1920 em Natal e em outras partes do Brasil?
Uma Droga Antiga
Na atualidade, basicamente conhecemos a cocaína como um estimulante, sendo atualmente considerada uma droga ilegal. É extraída a partir das folhas da planta da coca, vegetal da família Erythroxylaceae, cujo nome científico é Erythroxylum coca. Possui porte arbustivo, pode ficar frondosa e suas flores são amarelo-alvacentas.
Cientistas acreditam que a cerca de 4.000 ou 5.000 anos que a coca vem sendo utilizada como um remédio e estimulante no que hoje é a Colômbia, Peru e Bolívia. a partir do século XVI viajantes europeus descreveram a prática dos povos sul americanos de mascar uma mistura de tabaco e folhas de coca. Esse consumo tradicional da coca pelos povos andinos possui certas características que o distinguem nitidamente do consumo da cocaína. Ao introduzir a folha de coca oralmente, suas propriedades psicoativas são absorvidas lentamente através do sistema digestivo, sem causar efeitos nocivos.
Visitantes ilustres que já estiveram na Bolívia, incluindo o Papa João Paulo II e a princesa Anne da Inglaterra beberam chá de coca (mate de coca), pois é a maneira tradicional na região andina para evitar a doença da altitude (hipóxia). Investigações imparciais e científicas demonstraram que o uso regular da folha de coca não é prejudicial.
No início do século XIX pesquisadores europeus começaram a fazer experiências para descobrir os segredos da planta mágica, mas foi o cientista alemão Albert Niemann, da Universidade de Gottingen, que em 1859 isolou com sucesso o alcaloide da planta de coca responsável por seu efeito estimulante.
Início do Uso Comercial
Em 1860, Ângelo Mariani introduziu o Vin Mariani, um vinho tinto com a nova droga na sua composição. Mariani acumulou uma fortuna a partir desta bebida, com a venda sendo divulgada por pessoas notáveis, como a atriz sa Sarah Bernhardt, a rainha Vitória da Inglaterra, o inventor americano Thomas Edison e até o Papa Leão XIII.
Não demorou para empresas farmacêuticas americanas começassem a explorar a folha de coca e em pouco tempo os Estados Unidos se tornaram o maior importador e principal mercado legal de cocaína no planeta.
Por volta de 1880 a cocaína na terra do Tio Sam era receitada livremente pelos médicos em doenças como a exaustão, depressão e estava disponível em muitos medicamentos patenteados. Como a cocaína era amplamente disponível neste país, não é difícil de entender porque o xarope da primitiva Coca-Cola continha aproximadamente 4,5 mg/180 ml de cocaína até os primeiros anos do século XX.
John S. Pemberton
A História desta famosa bebida tem início indireto em 1879, quando a cocaína foi usada até mesmo para tratar o vício da morfina. Após o fim da Guerra Civil Americana, um veterano chamado John S. Pemberton começou a usar morfina para diminuir a dor dos seus ferimentos e ele rapidamente tornou-se viciado. Ele leu em uma revista médica que a cocaína poderia ajudar a curar o “morfinismo” e ou a produzir seu próprio tônico à base de vinho que continha cocaína. Quando o Estado da Geórgia impôs a proibição do consumo de álcool, ele começou a misturar cocaína com extrato de noz de cola e água de soda. Depois comercializou o produto e este se tornou um sucesso instantâneo. Pemberton vendeu sua fórmula a outro farmacêutico, que fundou a Coca-Cola Company em 1892.
Uso Médico
A cocaína foi introduzida como um anestésico em 1884 pelo Dr. Karl Koller. Este era um estagiário de oftalmologia no Hospital Geral de Viena e em um experimento público, ele aplicou no seu próprio olho uma solução de cocaína e depois, para espanto da plateia, o picou com alfinetes sem problemas.
Karl Koller – Fonte – Wikipédia.com
O Dr. Koller escreveu sobre as propriedades anestésicas da cocaína e pouco tempo depois esse medicamento foi manchete em todo o mundo e os médicos começaram a prescrevê-la em larga escala. A fabricação do medicamento envolvia um processamento onde entrava na composição um determinado número de outras substâncias químicas, formando um pó branco vulgarmente conhecido como cloridrato de cocaína. Como fármaco os efeitos da dosagem podiam variar significativamente. A cocaína foi considerada primeiramente um estimulante seguro e um ótimo tônico para os nervos.
Freud publicou em 1884 o tratado “Über Coca”, sobre a droga – Fonte – afkra.blogspot.com
Consta que nessa época Sigmund Freud, o pai da psicanalise, usou cocaína em seus pacientes e através da auto experimentação escreveu um tratado sobre o tema. Freud era conhecido por levar cocaína para suas idas ao teatro, locais de danças, esportes e eios. Ele se tornou um viciado contumaz até que finalmente parou de usar cocaína em 1886. Apesar do uso da cocaína, Freud acabou por morrer de uma overdose intencional de morfina em 1939, atormentado pelas dores de um câncer.
Não demorou muito para os usuários e os médicos começassem a perceber que as propriedades da cocaína causavam dependência e logo vários regulamentos limitantes ao uso foram introduzidos. Um dos primeiros, o Food and Drug Act americano (Lei Federal sobre Alimentos e Drogas), de 1906, ainda não instituía a proibição, mas regulamentava a produção e venda, inaugurando a intervenção governamental no tema.
No Nosso Brasil Tropical
Eu não sei quando a cocaína chegou ao Brasil, mas sei que ela já estava no país nos trinta anos finais do século XIX.
Cocaína vendida como bebida em Juiz de Fora – MG, na década de 1880.
Encontramos em antigos jornais da década de 1880, ainda no período do Império, a propaganda de um armazém de secos e molhados da cidade mineira de Juiz de Fora, Minas Gerais, onde na sua parte destinada a bebidas, vemos que ali aparentemente se vendia uma bebida à base de cocaína. Seria uma percursora da famosa Coca-Cola, ou do Vin Mariani?
Além da importação como bebida, a cocaína evidentemente também aportou no Brasil como um medicamento.
Em 1890, na Rua dos Ourives, atual Rua Miguel Couto, no Centro do Rio de Janeiro, que na época era a Capital Federal, havia a “Pharmacia Central do Brazil”, que vendia medicamentos manipulados. Conforme a foto que segue, a mistureba de produtos medicamentosos parece mais uma receita de algum caldeirão de bruxa.
Pastilhas de cocaína vendidas no Rio em 1890
Entre os ditos medicamentos encontramos as “Pastilhas de Clorato de Potássio e Cocaína”, que serviam para as moléstias bucais e da laringe.
Interessante esta ideia de pastilhas com cocaína e clorato de potássio, pois até onde eu sei esta última substância foi um ingrediente utilizado nas antigas espoletas de armas de fogo, chamado então de clorato de potassa e quando misturado com outros materiais, pode gerar explosivos de forte potência.
A chegada cocaína ao Brasil não ficou restrita apenas a região centro sul do país. A droga extraída da folha de coca também chegou ao caloroso Nordeste.
Venda de cocaína em Recife em 1900.
Em um jornal pernambucano de 1900 temos na Rua Barão da Vitória, número 51, atual Rua Nova, no tradicional bairro de Santo Antônio, no centro de Recife, a antiga botica do Sr. Idelfonso de Azevedo, que vendia cocaína misturada com salsa, caroba, elixir de antipirina e esmaltina. Podendo o cliente escolher esta mistura liquida ou em pó.
Bem, mesmo sem ser farmacêutico, realizando uma rápida pesquisa, descobri algo interessante sobre este medicamento. O sumo de salsa (em dosagem dupla, como diz o anúncio) é rico em vitaminas B e C e a sua celulose ajuda o movimento intestinal. Já a planta caroba (também conhecido como caroba-do-mato, marupá, simauba-falsa, caraúca, carabussú, caruba, curoba, marupauba e parapará) é o que podemos chamar de um santo remédio, pois suas propriedades medicinais são adstringente, aperiente, cicatrizante, depurativo, diurético, emético, laxante, sudorífera, tônico. As indicações da caroba são para as afecções da pele, artritismo, blenorragia, cancro, catarro crônico da bexiga e uretra, coriza, dispepsia, dor (reumática, muscular), estômago, febre, gases, inflamação (próstata, rins, garganta), picada de insetos, mau hálito, sífilis, úlcera estomacal e até no combate as vermes.
Bem, junto a misturada de salsa e caroba vinha o elixir de Antipirina, que é uma substância medicamentosa usada como antitérmico e um sedativo utilizado para identificar o efeito de outras drogas. No meio desta mistura o Sr. Idelfonso de Azevedo acrescentava esmaltina, que é um mineral de cor cinza claro, uma combinação de cobalto e arsênico, utilizado na fabricação de esmaltes azuis. No final de tudo isso vinha a cocaína.
As duas próximas propagandas são respectivamente de 1900 e 1901. Originalmente publicadas em jornais baianos, estão bem explicativas na composição e servem para se conhecer o uso medicinal da cocaína no Brasil. O interessante nestas duas propagandas é que estes remédios à base de cocaína vinham da França.
Arrancar Dente Com Cocaína Era Normal
O leitor pode perceber que a cocaína chegou ao grande país tropical e simplesmente não havia restrições a sua importação, manipulação e venda. Era tudo liberado. Daí para começar o consumo no sentido alucinógeno foi um o. Correto? Aparentemente não!
No início do século XX vemos as notícias antigas se referindo basicamente a cocaína como um produto ligado a área médica. Praticamente não se encontra uma utilização ilícita do seu uso. Se havia era algo privado, talvez a determinados ambientes (cabarés, prostíbulos, lupanares, etc.), sem aparentemente afetar o dia a dia da sociedade, sem atrapalhar a vida das comunidades, principalmente nas maiores áreas urbanizadas do país.
Logo um outro tipo de profissional brasileiro ou a utilizar a cocaína; os dentistas. Voltando um pouco no tempo, sabemos que em 1884 a cocaína foi inicialmente utilizada em cirurgias oftalmológicas pelo Dr. Karl Koller Consta que neste mesmo ano um médico chamado R. J. Hall solicitou ao seu dentista que utilizasse cocaína como um anestésico para tratá-lo e aparentemente funcionou.
Na virada do século, por volta de 1903, a cocaína foi misturada com epinefrina, de modo a melhorar a sua eficácia clínica e ser utilizada para amortecer as gengivas. Mas devido a várias mortes ligadas à combinação de cocaína e epinefrina, este foi descartado por volta de 1924. No entanto, a cocaína continuou a ser utilizada e considerada uma droga útil para anestesia tópica na região do ouvidos, nariz e garganta.
Interessante lista de preços de atendimento odontológico no início do séc. XX, A cocaína era anestésico.
Na imagem que apresentamos acima temos uma propaganda do dentista Paulo (ou Paul) Kieffer, que coincidentemente atendia na mesma área onde estava estabelecida a Pharmacia Central do Brazil, na Rua dos Ourives, atual Rua Miguel Couto, no Centro do Rio de Janeiro. O Dr. Kieffer aplicava anestesia local com cocaína, ou “nevarnina” (talvez um subproduto), ao preço de 2$000 réis.
Morrer Com Cocaína Era Moda…
Mas observando os jornais antigos das décadas de 1900 e 1910, é claramente perceptível que nesse período começou a existir o consumo de cocaína, tanto para aqueles que desejavam criar seus próprios “paraísos artificiais”, mas principalmente para se matar!
Nos periódicos brasileiros do limiar do século XX, o que não faltam são inúmeras notícias de homens e mulheres, que utilizavam a cocaína pura, ou misturada com todo tipo de material, para simplesmente darem fim as suas vidas. E a imprensa da época era de uma sutileza de fazer dó e piedade. Nas páginas antigas lemos que estes desesperados eram os “decaídos”, os “desgraçados”, os “transloucados” (isso quando eram pobres), que buscavam no suicídio o fim a uma vida sem perspectivas. Este tipo de notícia era um “ótimo” incentivo para quem estava em depressão.
Nos jornais das décadas de 1900 e 1910 percebemos que a quantidade de suicídios chegou a um ponto tal, que virou uma espécie de “moda” se matar com cocaína.
As mulheres eram o grupo majoritário que recorriam a cocaína para dar cabo de suas vidas. Não podemos esquecer o quanto era terrível a situação das mulheres nesta época. Criadas para serem exemplares donas de casa, servir aos maridos, trabalharem pesado pelos filhos e pela casa, em uma sociedade onde trabalhar fora, ou ser separada, era uma distância mínima para serem consideradas vulgares, ou algo pior. A perda da virgindade sem que houvesse a consumação do casamento, ou um filho indesejado, era um verdadeiro suplício, principalmente para as mulheres mais pobres. Para muitas o suicídio era a solução dos seus problemas.
Em relação à maneira de morrer com cocaína, chama atenção o fato dos jornais comentarem que os suicidas faleciam ingerindo quantidades que poucas vezes ultraam cinco gramas da droga. Não tenho base de conhecimento para saber se na atualidade esta quantidade de cocaína é capaz de matar uma pessoa, mas no ado era normal misturar a cocaína com outros produtos, até mesmo benzina, um líquido obtido na destilação fracionada do petróleo e utilizado, entre outras aplicações, como solvente.
Pelo que pude compreender não havia a figura clássica do traficante. O comércio era exercido pelos funcionários das farmácias, ou por algum um farmacêutico, certamente com a anuência e o beneplácito do proprietário.
Tudo leva a crer que de um pseudo modismo para se alcançar a morte, aos ambientes privados, logo o consumo de cocaína no Rio de Janeiro ou a ser algo que ou a chamar atenção do dia a dia da sociedade carioca.
Venda e Consumo da Cocaína no Rio de Janeiro
Em 4 de janeiro de 1913, jornalistas do periódico carioca A Noite, em um interessante trabalho investigativo, apresentaram os processos do consumo de cocaína na primeira metade da década de 1910 na cidade do Rio de Janeiro. Foram noticiados que vários jornalistas compraram em meia hora 37 gramas de cocaína sem maiores problemas, sem nenhum estabelecimento farmacêutico exigir uma receita médica.
Consta na reportagem o preço dos frascos variou de 1$000 a 2$500 réis (um mil a dois mil e quinhentos réis). Para efeitos de comparação, no mesmo exemplar de A Noite encontramos o anúncio da Cervejaria Tolle, instalada na Rua Riachuelo, 92, onde cada garrafa da cerveja neozelandesa “Bismarck Brown” custava $300 réis (trezentos réis).
Ou seja, pelo preço médio de um frasco com uma grama de cocaína, podia se comprar de três garrafas de cerveja importadas da Nova Zelândia. Talvez isso explique porque era tão fácil morrer com cocaína.
Típica farmácia, ou drogaria, nos Estados Unidos em 1905. No Brasil elas não eram muito diferentes – Fonte – Wikipédia.org
Para os jornalistas, só “uns 20 %” do pessoal das farmácias trabalhavam corretamente. O resto vendia cocaína aos cariocas sem problemas. As notícias apontaram que junto aos profissionais dos estabelecimentos farmacêuticos trabalhavam os “rápidos”, ou seja, as figuras que entregavam rapidamente a cocaína, daí o nome!
A reportagem escancarou geral. Deu nome das farmácias que venderam as drogas e quem não vendeu. Foram publicados os endereços dos estabelecimentos, as quantidades vendidas em cada local e, num verdadeiro escândalo, até uma criança na Rua do Estácio comprou cocaína sem nenhum problema a pedido dos jornalistas. Um atendente afirmou que vendia de setenta a cem gramas da droga por dia.
As matérias de “A Noite” foram bem denunciativas, mas parece que não obteve maiores resultados.
Ampliação e Declínio do Uso da Cocaína
Nesta história toda descobri que a repressão não era tanto pelo lado policial, mas praticada pelo pessoal da Saúde Pública. Eram os funcionários desta repartição que fiscalizavam os estabelecimentos farmacêuticos e a atuação dos funcionários destes locais.
A polícia participava quando havia denúncias de venda e consequente morte de alguém, mas era difícil provar a participação deste pessoal nesse tráfico. Quem comprava cocaína para se matar e por um erro na aplicação sobrevivesse, tinha pouco interesse em denunciar seus fornecedores diante da vergonha do seu ato. Normalmente estes suicidas, conforme já foi dito aqui, eram das classes mais humildes da sociedade carioca e ninguém os escutava. Se morressem eram enterrados e ficava por isso mesmo!
Provavelmente como um resultado paralelo da investigação jornalística de A Noite contra o consumo de cocaína, foram publicadas algumas cartas denunciando o uso de cocaína em locais públicos. No dia 12 de abril de 1913 esse jornal trouxe na sua segunda página o relato enviado por um leitor, que apontava a condição degradante das mulheres viciadas em cocaína, que se prostituíam pela droga nas praças do centro do Rio de Janeiro, como elas eram aliciadas e como se encontravam em franca decadência física e moral.
Uma carta denúncia de 1913, incomodamente atual.
Concluía o leitor pedindo aos jornalistas que realizassem um trabalho investigativo.
O relato desta denúncia é bastante similar ao que ocorre atualmente com as jovens que se prostituem para consumir cocaína e o seu nefasto “filhote”, o crack.
Percebemos através da leitura dos jornais antigos que entre as décadas de 1910 e 1920 ou a existir uma maior preocupação, um maior debate, até mesmo uma maior repressão a compra e venda de cocaína no Brasil.
No início da década de 1920 o consumo de cocaína começou a diminuir no Brasil. Mas não foi por campanhas governamentais, ou pelo endurecimento da repressão e combate ao consumo da droga. A farra diminuiu porque simplesmente o produto foi escasseando no mercado externo.
Para os pesquisadores do tema os fatores deste declínio estavam no surgimento de leis restritivas e punitivas que baniram a cocaína e a heroína do mercado livre em vários países, principalmente nos Estados Unidos. Maior controle da importação e exportação desta droga, perseguição aos médicos que prescreviam tais substâncias indiscriminadamente, além do surgimento na Europa de medidas socioeducativas e de saúde pública, visando à prevenção e ao tratamento desses pacientes. O próprio advento da depressão econômica, com a quebra da Bolsa de Nova York em 1929, deixou o mundo com menos dinheiro para gastos supérfluos. E por fim, o surgimento das anfetaminas em 1932, como um novo e potente estimulante de longa duração, ajudou em certo ostracismo da cocaína.
Mas aparentemente estas situações não significaram o fim total da vinda e do consumo da cocaína no Brasil antes da Segunda Guerra Mundial. Tanto assim que o popular cantor Francisco Alves intitulou a sua música para o carnaval de 1937 como “Cocaína”.
Não Baixem a Guarda, esta Epidemia Está Aí e Não vai Acabar tão Cedo e Nem Existe Vacina
Sabemos que foi na convenção internacional realizada pela Organização das Nações Unidas em 1961, que estabeleceram regras que pautariam as políticas sobre drogas em vários países entre o final do século XX e os dias atuais. O critério principal foi proibir drogas que não tinha uso médico e essas substâncias aram a ter um maior controle e repressão. Na sequência os Estados Unidos assumiram a dianteira da cruzada antidrogas, fortalecendo o combate ao tráfico, com operações internacionais de alcance cada vez maior e impondo aos demais países na Europa e nas Américas Latina e do Sul convenções que dariam origem à chamada “guerra às drogas”, que foi declarada pelo presidente americano Richard Nixon em 1972.
Combate a fabricação de cocaína na Colômbia.
Nesse meio tempo a cocaína voltou à cena como estimulante em um mercado de trabalho cada vez mais frenético. A economia do tráfico, então, assumiu um novo circuito. Tradicionais regiões de plantação de coca na Bolívia e Peru aumentaram sua produção para o mercado ilícito; a pasta produzida era reada a principalmente a vendedores colombianos, que era encaminhada aos centros consumidores nos Estados Unidos e Europa. Países como o Brasil serviam apenas de entreposto logístico da droga e eram centros de consumo de menor importância. Mas com o crescimento econômico do país, deixou de ser apenas um corredor para o tráfico internacional de drogas, mas como um grande mercado consumidor.
Os jovens com poucas oportunidades de educação e trabalho dignos foram atraídos pelo poder e dinheiro dos traficantes de cocaína, crack e armas. Muitos foram (e ainda são) assassinados em guerras de gangues que se seguiram e que conhecemos bem dos jornais.
Amigos e amigas queiram vocês ou não, as drogas como a cocaína, crack, heroína, anfetaminas, maconha, lança perfume, álcool e outras desgraças estão nas ruas, nas portas das escolas, nas casas de espetáculo, na porta da sua casa, nos locais de trabalho e por aí vai. Não conheço outra maneira de livrar nossos filhos deste problema do que sendo seus maiores amigos, confidentes, tendo tempo para estar ao lado deles.
E não custa nada conhecer o que são estas drogas através de leituras e de outras formas de informação, assim é possível debater melhor sobre os malefícios que estes produtos geram.
Não baixem a guarda, esta epidemia está nas ruas tanto quanto o COVID-19. Mas para o COVID já existem vacinas e para as drogas não e seu consumo não vai acabar tão cedo!
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NOTA
[1] Não era apenas a cocaína que preocupava as autoridades, mas a morfina também estava na alça de mira. Descoberta pelo farmacêutico alemão Friedrich Wilhelm Adam Sertürner em 1817, a morfina é um analgésico processado quimicamente a partir do látex seco obtido das cápsulas das sementes de uma planta chamada papoula (Lachryma papaveris), sendo e desse látex conhecido como ópio.
Contrato de professores em 1923 apresentava rigidez em compromissos – Reprodução Facebook – CLIQUE NA FOTO PARA VER O DOCUMENTO COMPLETO…
Publicado no Facebook, documento extraído de artigo acadêmico impressiona pelo rigor. Fumar ou beber causava demissão
Por Raphael Kapa
Não fumar, não beber, não sair de casa de noite e não se casar. Esses eram alguns dos termos exigidos em um contrato para ser professora em São Paulo em 1923. O documento que está sendo compartilhado no Facebook é um anexo de um artigo da historiadora Jane Soares de Almeida. No seu trabalho, a pesquisadora fala sobre a transformação da profissão de professores e da inserção das mulheres no cargo e suas restrições.
“A parcela feminina da população reclamava maior nível de instrução e a Escola Normal se tornou bastante procurada pelas jovens paulistas oriundas não apenas da classe média, mas também das famílias mais abastadas do estado por oferecer a oportunidade de prosseguimento de estudos. Para a issão na escola era exigida a verificação da idade, da saúde, da inteligência e personalidade, fato que demonstra a elitização do curso no período, nos rastros de uma política educacional bastante autoritária. Para as moças era ainda necessário apresentar autorização do pai ou do marido no ato da matrícula”, escreveu Jane.
O contrato mostra uma rigidez caso algumas de suas regras fossem descumpridas. A primeira delas é clara: “Não se casar. Este contrato ficará automaticamente anulado e sem efeito se a professora se casa”.
O segundo e o terceiro pontos já não deixam brechas para que o primeiro ocorra. Era proibido:
“2. Não andar na companhia de homens. 3. Ficar em sua casa entre às 8h da noite e às 6h da manhã, a não ser que seja para atender a uma função escolar”.
Viagens também não eram permitidas sem autorização e eios pelas sorveterias da cidade eram proibidos. Consumo de cigarro, uísque, vinho ou cerveja configurava como quebra de contrato imediato. A autora, em seu artigo, mostra que estas noções em plena República demonstra uma contradição.
Imagem Meramente ilustrativa de uma escola brasileira nos anos 20 do século ado – Fonte – ieccmemorias.wordpress.com
“Apesar das expectativas alvissareiras da ordem e do progresso do século XX, a higiene, a moralidade e religiosidade, a pureza, os ideais de preservação da raça, da sobrevivência social, estamparam no sexo feminino seu emblema de manutenção da sociedade tradicional e as mulheres continuaram sendo submetidas a padrões comportamentais que serviram para impor barreiras à sua liberdade, autonomia e principalmente sobre a sexualidade”, escreveu Jane.
Nota de Rostand Medeiros, do Blog Tok de História –
Eu tive uma tia avó chamada Martha Maria de Medeiros, que foi professora a partir de 1924, no sertão do Seridó Potiguar, mais precisamente em Acari e Carnaúba.
Talvez inconformada com a sua condição, ela se posicionou contra o que preconizava a sociedade de deu tempo. Tornou-se em 1927 a primeira mulher a receber de um juiz o título eleitoral e em 1935 politicamente seguiu o Interventor Mario Câmara e deixou de lado as orientações políticas vindas da família Lamartine, então muito forte na política potiguar. Pagou um preço altíssimo em perseguições sociais e políticas. Quando ela faleceu em 1980 eu tinha 14 anos, mas tive oportunidade de ouvir muito sobre a nossa família e o que ela sofreu apenas pelo fato de ser mulher e pensar!
Mas não esqueço do seu orgulho e altivez, ao recordar que não aceitou que lhe dissessem o rumo que devia seguir.
OS INUSITADOS ACONTECIMENTOS DA CONFRATERNIZAÇÃO NATALINA ENTRE INIMIGOS DURANTE A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL
O milagre do Natal de 1914
Tudo teve início quando foram assassinados em Sarajevo, na Sérvia, o herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro, o arquiduque Francisco Ferdinando e sua esposa Sofia. A ação foi realizada por um estudante, mas toda trama fora criada por um membro do governo sérvio. Em 28 de julho, a Áustria-Hungria declarou guerra à Sérvia. Grã-Bretanha, França e Rússia se aliaram aos sérvios; a Alemanha, aos austro-húngaros. Tinha início a Primeira Guerra Mundial, conhecida então como Grande Guerra.
Na sequência o mundo viu um ataque alemão inicial através da Bélgica em direção a França. Este avanço foi repelido no início de setembro de 1914, nos arredores de Paris pelas tropas sas e britânicas, na chamada Primeira Batalha do Marne. Os aliados empurraram as forças alemãs para trás cerca de 50 km. Os germânicos seguem para o vale do Aisne, onde prepararam suas posições defensivas.
Um infográfico publicado na primeira página do jornal recifense Diário de Pernambuco, explicando sobre a nova guerra na Europa
As forças aliadas não foram capazes de avançar contra a linha alemã e a luta rapidamente degenerou em um ime. Nenhum dos lados estava disposto a ceder terreno e ambos começaram a desenvolver sistemas fortificados de trincheiras. Isso significou o fim da guerra móvel no oeste.
Em novembro daquele ano existia desde o litoral do Mar do Norte, até a fronteira suíça, todo um grande complexo de trincheiras, ocupado em ambos os lados por milhares de soldados em posições defensivas.
O uso de trincheiras caracterizou a Primeira Guerra Mundial
A utilização de trincheiras não era nenhuma novidade em guerras. A novidade era a extensão, a dimensão destes sistemas de defesa, a quantidade de homens que as utilizavam e o uso massivo da artilharia e do fogo de metralhadoras.
Logo se percebeu que os soldados não tinham muito para onde ir. Cara a cara, a poucos metros um dos outros, agachados em suas trincheiras, os homens esperavam o momento oportuno para ir de granada de mão, matando aqueles do outro lado. Outras pessoas como eles. A compaixão tinha desaparecido da terra e deu lugar a uma hostilidade implacável.
Quando não era o combate a rotina era apenas ficar nas suas trincheiras esperando e observando as ações do inimigo, mas com cuidado, pois um franco atirador a espreita poderia matar qualquer um. De vez quando cada lado tentava um ataque, que normalmente era infrutífero e ainda ocasionava muitas mortes, principalmente aos atacantes.
Trincheira britânica em pleno momento do combate
Os homens estavam enfiados dentro de tuneis e buracos lamacentos, tiritando de frio, fedendo, com piolhos espalhados pelo corpo todo. O mau cheiro imperando devido às latrinas descobertas e os corpos em decomposição atraindo milhares de ratazanas. Eles comiam pessimamente e a higiene era sofrível. Afora tudo isso ainda havia a tensão de repente levar um tiro, ou uma granada de um canhão cair dentro de sua trincheira.
O entusiasmo inicial e o orgulho dos soldados de ambos os lados há muito havia se esvaído. Em dezembro o moral das tropas já despencara e logo o último mês de 1914 se aproximava do seu fim.
O Carisma da Época do Natal
Para a maioria dos soldados ingleses, ses, belgas e alemães envolvidos no conflito e vindos das camadas sociais mais simples de suas nações, as razões deles estarem combatendo eram um tanto quanto distantes e difusas.
A espera em uma trincheira sa
Muitos desejavam estar em suas casas, junto as suas famílias, aproveitando o Natal.
Consta que em praticamente toda a chamada Frente Ocidental, dos dois lados das trincheiras, próximo ao Natal chegaram para os soldados saudosos e tristes as tão esperadas cartas vindas de seus lares.
Em vários locais da Frente Ocidental, depois de dias de chuva e frio, a manhã de 24 de dezembro surgiu com um belo céu azul e o sol brilhante. Na véspera daquele Natal as trincheiras estavam mais animadas.
Então chegou a noite de 24 de dezembro. A artilharia ficou em silêncio e logo a coisa toda começou devagar, espontaneamente, em vários locais e discretamente.
O Milagre
Várias testemunhas concordam que, na maioria dos casos, foram os alemães que começaram por colocar velas em suas trincheiras e em árvores de Natal, em seguida iniciaram canções de Natal (Stille Nacht, Heilige Nacht), criando um efeito mágico no espaço aberto entre as duas trincheiras inimigas, a chamado de terra de ninguém.
Consta que em um dos locais, um cantor alemão declamou de forma magistral canções natalinas, sendo entusiasticamente aplaudido e seguido em sua canção por soldados de ambos os lados. Animados, muitos os soldados ses subiram nos parapeitos de suas trincheiras aplaudindo. Logo pediram para o alemão bisar a música.
Essas músicas lembravam aos soldados de ambos os lados que este período tinha um forte sentido simbólico, onde todos preferiam estar em casa. Logo percebiam que eles não eram tão diferentes.
Soldados alemães do 134 Regimento da Saxônia e os soldados britânicos do Real Warwickshire Regiment se reúnem na terra de ninguém em 26 de dezembro de 1914
Os inimigos continuaram gritando saudações de Natal. Em seguida houve excursões discretas pela terra de ninguém. Após as saudações iniciais pequenos presentes foram trocados, tais como alimentos, tabaco, álcool, botões, chapéuse até guirlandas.
Milagrosamente durante o início das confraternizações, poucos soldados foram mortos por forças opostas. Os soldados britânicos e alemães descobriam ter mais em comum entre si que com seus superiores – instalados confortavelmente bem longe da frente de batalha. Já ses e belgas eram menos afeitos a tomar parte no clima festivo. Seus países haviam sido invadidos (no caso da Bélgica, 90 por cento de seu território estava ocupado), para eles era mais difícil apertar a mão do inimigo.
Não há dúvida de que para estas confraternizações ocorrerem no Natal de 1914, as canções devem ter desempenhado um papel importante, como uma espécie de gatilho gerador do contato. Não devemos esquecer que o canto é um elemento essencial no processo de fusão de grupo. Todos eram homens que sofriam e estavam longe de suas famílias. A partir desse momento, a confraternização se tornou possível.
Enterros
A trégua permitiu também o recolhimento de corpos de soldados mortos, o que certamente deve ter melhorado e muito a respiração de todos. Serviços conjuntos de sepultamentos foram realizados.
Encontro para o enterramento nas trincheiras
No ótimo site http://militanciaviva.blogspot.com.br encontramos uma interessante narrativa relativa àqueles encontros tão inusitados. Na noite do dia 24, em Fleurbaix, na França, uma visão deixou os britânicos intrigados: iluminadas por velas, pequenas árvores de Natal enfeitavam as trincheiras inimigas. A surpresa aumentou quando um tenente alemão gritou em inglês perfeito: “Senhores, minha vida está em suas mãos. Estou caminhando na direção de vocês. Algum oficial poderia me encontrar no meio do caminho?” Silêncio. Seria uma armadilha? Ele prosseguiu: “Estou sozinho e desarmado. Trinta de seus homens estão mortos perto das nossas trincheiras. Gostaria de providenciar o enterro”. Dezenas de armas estavam apontadas para ele. Mas, antes que disparassem um sargento inglês, contrariando ordens, foi ao seu encontro. Após minutos de conversa, combinaram de se reunir no dia seguinte, às 9 horas da manhã.
No dia seguinte, 25 de dezembro, ao longo de toda a frente ocidental, soldados armados apenas com pás escalaram suas trincheiras e encontraram os inimigos no meio da terra de ninguém. Era hora de enterrar os companheiros, mostrar respeito por eles – ainda que a morte ali fosse um acontecimento banal.
O capelão escocês J. Esslemont Adams organizou um funeral coletivo para mais de 100 vítimas. Os corpos foram divididos por nacionalidade, mas a separação acabou aí: na hora de cavar, todos se ajudaram. O capelão abriu a cerimônia recitando o salmo 23. “O senhor é meu pastor, nada me faltará”, disse. Depois, um soldado alemão, ex-seminarista, repetiu tudo em seu idioma. No fim, acompanhado pelos soldados dos dois países, Adams rezou o pai-nosso. Outros enterros semelhantes foram realizados naquele dia, mas o de Fleurbaix foi o maior de todos.
Relatos de Dias Fantásticos
Mesmo com as restrições para o uso de câmeras nas trincheiras, logo alguém estava fotografando e estas fotos que sobreviveram até nossos dias são um documento pungente daqueles dias incríveis.
Soldados britânicos da Northumberland Hussars , 7 ª Divisão e alemães reunidos em terra de ninguém durante a trégua não oficial
Ao redor da cidade belga de Ypres, no início da manhã de 25 de dezembro, os britânicos ouviram cânticos de Natal vindo das posições inimigas e também das trincheiras sas e, em seguida, descobriram que árvores de Natal haviam sido colocadas ao longo das trincheiras alemãs. Lentamente, colunas de soldados alemães surgiram a partir de suas trincheiras e avançaram desarmados e chamando os ingleses para vir e confraternizar.
O Capitão inglês Bruce Bairnsfather, que na vida civil era humorista e cartunista de sucesso, que servia noReal Warwickshire Regiment, comentou que trocou suvenires com um capitão alemão e viu um dos seus comandados, barbeiro na vida civil, cortando o cabelo de um alemão, que docilmente se ajoelhou enquanto seu inimigo ava uma afiada tesoura a centímetros de sua jugular.
O incrível do fato é que a trégua informal propagou-se para outras áreas. Em muitos setores a tranquilidade só durou essa noite, mas em algumas áreas durou até o ano novo, e outras chegaram inclusive até o mês de fevereiro.
No dia 29 de dezembro de 1914, o jornal natalense A Republica publicou uma pequena nota sobre o fato
Alguns soldados relataram os acontecimentos em diários. Edward Hulse, um tenente inglês dos Scots Guards, com 25 anos de idade, escreveu no diário de guerra do seu batalhão: “Nós iniciamos conversações com os alemães, que estavam ansiosos para conseguir um armistício durante o Natal. Um batedor chamado F. Murker foi ao encontro de uma patrulha alemã e recebeu uma garrafa de uísque e alguns cigarros e uma mensagem foi enviada por ele, dizendo que se nós não atirássemos neles, eles não atirariam em nós”. Consequentemente, as armas daquele setor ficaram silenciosas àquela noite. Em diversas partes do front os soldados trocaram cartas para serem entregues a familiares e amigos que viviam em cidades e vilarejos que estavam em conflito.
Sem pensar em se matarem, dava até tempo para uma pelada.
Há muitas histórias de partidas de futebol entre as forças inimigas. Há cartas que confirmam que em Wulvergem, na Bélgica o jogo foi só pelo prazer da brincadeira, ninguém prestou atenção no resultado. Mas houve também partidas “sérias”, com direito a juiz e a troca de campo depois do intervalo. Numa delas, que se tornou lendária, os alemães derrotaram os britânicos por 3 a 2, a partida foi encerrada depois que a bola – esta de verdade, feita de couro – furou ao cair no arame farpado.
Outra nota trazendo detalhes do acontecimento publicado no Brasil, então um país neutro
Nas áreas onde a confraternização não progrediu tanto, temos o relato de Alfred Anderson, um marceneiro escocês, que faleceu em 2005, com 109 anos, sendo considerado a última testemunha da Trégua do Natal de 1914. Eis o seu relato na manhã do dia 25 de dezembro;
“Lembro-me do silêncio, o som estranho de silêncio. Só os guardas estavam de plantão. Fomos todos para fora e fiquei escutando. E, claro, pensando nas pessoas em casa. Tudo o que eu tinha ouvido durante dois meses nas trincheiras era o assobio das bombas, zunido das balas, metralhadoras e vozes distantes dos alemães. Mas havia um silêncio enorme naquela manhã. Nós gritamos Feliz Natal, embora ninguém se sentisse alegre. O silêncio terminou no início da tarde e a matança começou de novo. Foi uma curta paz em uma guerra terrível.”
O episódio mais famoso destas confraternizações foi provavelmente os encontros ocorridos na área das trincheiras existentes na planície de Courcy, ao oeste da cidade sa de Reims, com as tropas do Regimento de Infantaria 74 (francês) e do 7º de Caçadores (alemão).
Reações Oficiais e as Notícias da Trégua Chegam em Casa
Em Wijtschate, na Bélgica, uma pessoa em particular também ficou muito irritada com toda esta situação. Lutando ao lado dos alemães, o jovem cabo austríaco Adolf Hitler queixava-se do fato de seus companheiros cantarem com os britânicos, em vez de atirarem neles.
Uma trincheira alemã
Ele não era o único. Dos quartéis-generais, os senhores da guerra mandaram ordens contra qualquer tipo de confraternização. Quem desrespeitasse se arriscava a ir à corte marcial. A ameaça fez os soldados voltarem para as trincheiras. Durante os dias seguintes, muitos ainda se recusavam a matar os adversários. Para manter as aparências, continuavam atirando, mas sempre longe do alvo. Na noite do dia 31, em La Boutillerie, na França, o fuzileiro britânico W.A. Quinton e mais dois homens transportavam sua metralhadora para um novo local, quando de repente ouviram disparos da trincheira alemã. Os três se jogaram no chão, até perceberem que os tiros eram para o alto: os alemães comemoravam a virada do ano.
As reações à trégua de Natal vieram de várias fontes. Os Governos aliados e o alto-comando militar reagiram com indignação (principalmente entre os ses). O Comandante-em-chefe britânico, Sir John French, possivelmente tinha previsto a suspensão das hostilidades no Natal quando emitiu uma ordem antecipada alertando suas forças para um provável aumento da atividade alemã durante o Natal: ele, portanto, instruiu seus homens para redobrar o estado de alerta durante esta época.
Quase imediatamente à trégua, as mensagens enviadas chegaram para os familiares e amigos daqueles servindo no front através do método usual: cartas para casa. Estas cartas foram rapidamente utilizadas por jornais locais e nacionais, incluindo alguns na Alemanha.
No Daily Mirror
Apesar da censura e posterior destruição de muitas das fotos tiradas durante o evento, algumas chegaram até Londres e foi estampado na primeira página de muitos jornais, incluindo o Daily Mirror, intitulado “Um grupo histórico: os soldados britânicos e alemães fotografados juntos” em 08 de janeiro de 1915.
Nas cartas para casa, os soldados na linha de frente foram praticamente unânimes em expressar seu espanto com os eventos do Natal de 1914.
O que chama atenção nas fotos destes encontros é a ausência do armamento e a descontração
Um jornal alemão reproduziu o sentimento de um cabo que enviou uma carta a sua família em Colônia: “Aquele foi um dia de paz na guerra; é uma pena que não tenha sido a paz definitiva”.
Já um jornal britânico transmitiu como o cabo John Ferguson viu a tréguas no seu setor: “Nós apertamos as mãos, desejando Feliz Natal e logo estávamos conversando como se nos conhecêssemos há vários anos. Nós estávamos em frente às suas cercas de arame e rodeados de alemães – “Fritz” e eu no centro, conversando e ele, ocasionalmente traduzindo para seus amigos o que eu estava dizendo. Nós permanecemos dentro do círculo como oradores de rua. Logo, a maioria da nossa companhia, ouvindo que eu e alguns outros havíamos ido, nos seguiu… Que visão – pequenos grupos de alemães e ingleses se estendendo por quase toda a extensão de nossa frente! Tarde da noite nós podíamos ouvir risadas e ver fósforos acesos, um alemão acendendo um cigarro para um escocês e vice-versa, trocando cigarros e souvenires. Quando eles não podiam falar a língua, eles tentavam se fazer entender através de gestos e todos pareciam se entender muito bem. Nós estávamos rindo e conversando com homens que só umas poucas horas antes estávamos tentando matar!”
Conclusão
Nos anos subsequentes os oficiais ordenaram bombardeios de artilharia na véspera da festividade para assegurar-se de que não houvesse mais tanto congraçamento no meio dos combates. Mesmo assim ainda aconteceram encontros amigáveis entre soldados, mas em uma escala muito menor que em 1914.
Nos anos seguintes a duração da Primeira Guerra Mundial, que só se encerrou em 1918, os comandantes aumentavam a ação da artilharia sempre próximo do Natal para evitar as confraternizações
Este fato incrível, inclusive pouco comentado em livros e jornais norte-americanos, é incrível em muitos aspectos, principalmente quando analisamos a própria estrutura básica da existência do sistema militar.
Uma guerra não é uma brincadeira. Ali não existem mocinhos e bandidos como no cinema. Ali se estar para matar e morrer.
Foram mais de 16 milhões de mortes e 20 milhões de feridos durante a Primeira Guerra Mundial
Uma das funções básicas das forças militares é ser capaz de usar a violência organizada contra os adversários, onde a chave para o seu desempenho positivo se baseia na obediência inquestionável as ordens emanadas dos oficiais, mesmo que muitos destes sejam completamente incompetentes.
Por causa da morte de outros seres humanos, as tarefas militares não são facilmente realizadas por muitas pessoas. Para preparar o elemento vindo do meio civil, estes são submetidos a um forte treinamento intensivo, doutrinação profunda e isolamento em um ambiente militar, tornando-o duro e preparado para matar.
Recente cerimônia para comemorar o Milagre do Natal de 1914, que no próximo ano completa seu centenário
Quando imaginamos toda a estrutura deste sistema no início do século XX, em meio a uma guerra ampla e tecnologicamente mortal, percebemos que a ocorrência daqueles episódios em 1914, foi um verdadeiro milagre.