OS VELHOS CAMINHOS DO RIO GRANDE DO NORTE

Luís da Câmara Cascudo – Publicado originalmente no livro HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE, Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1955. 1ª EDIÇÃO, Capítulo XIII, páginas 307 a 312.

A primeira estrada conhecida no Rio Grande do Norte e, durante séculos, a mais trilhada, foi pelo litoral, beirando quase o mar, rumo da Paraíba. Os colonizadores vieram pelo Atlântico, mas a parte da tropa que devia vir por via terrestre recuou na baía da Traição ante a peste de bexigas. Mascarenhas Homem, fundador do Forte dos Reis Magos, regressou por terra. Esse primeiro caminho teve, no correr da guerra contra os indígenas no final do século XVII, uma série de casas fortes, protegendo o trânsito que seria relativamente vultoso. Vinha-se pela baía da Traição ou Mamanguape, Tamatanduba, Cunhaú, Goianinha, Guaraíras (Arês), Mipibu, Potengi, Utinga, ou seguindo o vale do Cajupiranga, diretamente a Natal. A jornada para o interior ia até o vale do Ceará Mirim, limite do conhecimento geográfico, útil até mesmo depois da expulsão do holandês em 1654.

Fortaleza dos Reis Magos no período colonial

Quando o mestre de campo Luís Barbalho Bezerra realizou a famosa contramarcha de fevereiro-maio de 1640, calcou a estrada já histórica. O genealogista Pedro Taques diz ter sido o desembarque a 7 de fevereiro no porto de Aguaçu, topônimo desaparecido, junto ou nos arredores da atual cidade de Touros. Em nomeações reais encontro baixios de São Roque. O caso é que Barbalho Bezerra veio até o Potengi, quase vendo Natal ou vendo, onde se bateu, derrotou e aprisionou Joris Gartsman, capitão flamengo do Reis Magos, e o conduziu para a cidade do Salvador. De Cunhaú é que o mestre-de-campo escreveu ao conde de Nassau pedindo agem. Encontramos sua espada vencendo Alexandre Picard em Goiana. Era a trilha secular para ó sul, Natal, vale do Cajupiranga, vale do Capió, Cunhaú, rio Guaju para a Paraíba e daí para Pernambuco, por Mamanguape e Goiana como ainda nos nossos dias é a maior rodovia interestadual.

Riacho seco no Vale do Cafundó, zona rural da cidade pernambucana de Flores, Região do Pajeú. No ado essas eram as primeiras estradas da ocupação do interior do Nordeste. – Foto de Alex Gomes.

A repressão oficial à revolta da indiaria provocou o alargamento das fronteiras corográficas. Antônio de Albuquerque Câmara bate-se em 1688 nas cabeceiras do rio Açu e entre as serras do João do Vale e Santana do Matos. A revolta abrangia as ribeiras do Açu e Jaguaribe. A zona teve de ser batida e tresada pelas colunas militares. Nesse 1688 os paulistas vieram ajudar a corrigir a indiada e se encontraram, vindos da Paraíba, com Albuquerque Câmara que se batia no baixo Açu. Domingos Jorge Velho viera de seus currais do São Francisco, por terra e mergulhara pelo boqueirão de Parelhas, no chamado “Sertão de Acauã”, que enrolava serras e capoeirões desde os atuais Jardim do Seridó até Currais Novos. Toda essa região, Focinho dos Picos, Picuí, Caiçara e Bico da Arara, até roçar o rio Acauã, era terra do gentio da nação Canindé e Janduí (Cariri) que se alargava por Quacari, Quimbico, Quintururé, Umvibico, Amoré, Onaxi, Acinum, Quindê, Arari, Jucurutu até a misteriosa serra, do Araridu ou Papuiré até Ticoiji e Tipuí, julgadamente a serra do Coité no território paraibano. São topônimos ·cariris que orlam a peregrinação dos aldeamentos e ficaram como testemunhando a agem dos Janduí e Canindé antes do desaparecimento. Esse povo dos Canindé foi derrotado em 1690 por Afonso d’Albuquerque Maranhão, da casa de Cunhaú, neto de Jerônimo, 1.º capitão-mor do Rio Grande. O tuxaúa Canindé, soberano do sertão da Acauã, foi batizado e tomou o nome de João Fernandes Vieira. Dois anos depois o Senado da Câmara de Natal pedia a criação de arraiais, povoados com defensão militar nos quatro pontos extremos da região pacificada: Jaguaribe, Açu, Acauã e Curimataú. As estradas ligavam entre si esses lugares e se articulavam nas duas vias-tronco para o sul, o caminho do litoral, já mencionado, e a estrada por onde nasceria a estrada das boiadas. Em 1697 os indígenas Paiacu e Caratéu, da nação cearense dos Icó que viviam desde o Catolé do Rocha até as margens do rio Piranhas, na Paraíba, fixaram-se entre as ribeiras do Apodi e Jaguaribe, formando um liame de ativa comunicação pela chapada.

Ilustração de Jean Baptiste Debret

Por onde, durante as guerras contra o cariri, entraram os Terços Paulistas, as tropas de auxílio, vindas para conter os Janduí, Icó, Paiacu, Pega e Panati insubmissos?

Desceram da Paraíba, vindos por Soledade-Picuí ou Piranhas, depois Pombal, Brejo do Cruz e Catolé do Rocha, varando a fronteira depois da reentrância paraibana, ou vinham pela mesopotâmia do Panema-Açu? As tropas que voaram em socorro de Albuquerque Câmara tomaram o primeiro caminho e as do sertanista Domingos Jorge Velho creio que escolheram o segundo, ainda hoje piso batido e tradicional.

ada a guerra ficou a lembrança da terra pisada para baixo e para cima. Do Açu sobe-se pelo rio Paraú até o fim e apanha-se a estrada paraibana depois de Belém. Lembremo-nos que a Paraíba não tinha gado e sim açúcar. O Rio Grande do Norte possuía tanto gado que podia suprir a Paraíba, Itamaracá e Recife. Os currais paraibanos são posteriores ao domínio holandês na vigência do qual o Rio Grande exportava, de graça e a força, milhares de cabeças. Irineu Joffily (Notas sôbre a Paraíba, 124) diz que as “fazendas apareceram normalmente quando os exploradores galgaram o planalto da Borborema e os paulistas penetraram no Piancó. Depois de 1690 é que temos indícios das atividades bandeirantes dos Oliveira Lêdo no Piancó e Piranhas. Os núcleos iniciais foram o Boqueirão a leste e Piranhas a oeste até que Oliveira Lêdo reuniu e sistematizou o esquema do povoamento pela fixação das tribos disseminadas.

Estrada de rodagem do Seridó, início da década de 1920

Durante muitos anos os pontos povoados do sertão paraibano não tiveram intercomunicação. Piancó conhecia a ligação com a Bahia, e Boqueirão, nos Cariris Velhos, com Pernambuco. Entre nós, já no século XIX, sucedia o mesmo. Mossoró ia para o Aracati e Caicó para Campina Grande. O sertão escapou secularmente à capital que vegetava, humilde e minúscula, junto ao Potengi. As ligações orientavam-se para Pernambuco e Paraíba, para as grandes feiras de gado, Igaraçu, Goiana, També (Pedra de Fogo), Itabaiana e depois Campina Grande. Daí a rede de estradas e variantes que sempre aglutinaram esses lugares e os articulavam às regiões do Seridó e sertão de Piranhas, ribeira da Panema, enquanto a zona do Mossoró se escoava para o Ceará pelo chapadão do Apodi. Com o desenvolvimento do Aracati ou este a dirigir Mossoró e Mossoró ao seu sertão na linde do Oeste.

Do Mossoró, a velha estrada ia a São Sebastião (Governador Dix-Sept Rosado), como presentemente a estrada de ferro, Jurumenha, perto de Caraúbas, Atoleiros, Piranhas, Mombaça, Boa Esperança (Demétrio Lemos, atual Antônio Martins) nos batentes da serra do Martins, Carnaúba, Barriguda (Alexandria), Tabuleiro Formoso onde se bipartia. Um ramal ia para o Catolé do Rocha e outro à cidade de Sousa, tocando em Santa Rosa. Em Sousa entroncava-se com a estrada-das-boiadas que era uma reminiscência das estradas de penetração povoadora. Daí a importância de Sousa, Cajazeiras e Pombal na formação comercial de uma zona do Rio Grande do Norte. Para lá, como depois para o Caicó, envia-se o menino aos estudos do latim e o ador-de-gado, afoito e lendário.

Antiga estação ferroviária de Demétrio Lemos, atual Antônio Masrtins – Foto – Rostand Medeiros

Sousa centralizava muito e uma sua estrada vinha morrer na antiga rota dos conquistadores de Natal. Partia de Sousa e atravessava sucessivamente Catolé, Belém, Amazonas, São Miguel (já em nossa província), Serra de Santana por Flores (hoje Florânia). Santa Cruz, centro de irradiação do Seridó depois de ar a serra do Doutor nas vizinhanças de Currais Novos, daí para Nova Cruz por Campestre (São José do Campestre) onde se via o caminho que levava à Paraíba ou Pernambuco por Mamanguape. Quando se criou o correio, Mamanguape era o ponto de intersecção entre Paraíba e Rio Grande do Norte. Aí o estafeta recebia a correspondência para Pernambuco e distribuía a carga entre as duas coterminas. A posição de Mamanguape explica a predileção dos grandes latifundiários por suas terras. Os Albuquerques Maranhões, da casa de Cunhaú, possuíam vários sítios e engenhos em Mamanguape.

Vaqueiros potiguares – Foto – Rostand Medeiros

A estrada-das-boiadas na Paraíba era muito mais seguida pelos vaqueiros norte-rio-grandenses que qualquer outra nossa. Ia-se por ela para o Piauí e o Piauí, de fins do século XVIII em diante, muito valia à nossa vida de pastorícia. Irineu Joffily reconstruiu-a e posso completá-la.

Do oeste do Espinharas, ribeira de Santa Rosa, Milagres, tocando depois na lagoa do Batalhão (Taperoá), seguia-se o rio, descendo a Borborema até Piranharas e daí a Patos, Piranhas (Pombal), Sousa, São João do Rio do Peixe (Um ramal recebia a contribuição de Cajazeiras) ia-se ao Ceará pelos Cariris Novos, Icó, Tauá, atingindo-se Crateús, inesquecível pelo encontro de centenas de vaqueiros que demandavam o Piauí. Outros preferiam acompanhar a vaqueirama divertida e pousar ali mesmo, mas eram em parte menor. A maioria furava, do Tauá, diretamente para o Piauí. De Crateús comprava-se a gadaria em Santo Antônio do Surubim de Campo Maior, núcleo influenciador de cantigas sobre o ciclo do gado, Valença, Oeiras, que fora capital até 1852, Jatobá (São João do Piauí) e Picos, fornecedor dos primeiros cavalos pampas, ornamentais e vistosos, orgulho do patriarcado rural no Rio Grande do Norte. uns vaqueiros arrastavam a jornada até São Gonçalo de Amarante e outros a Jerumenha. As maiores feiras eram nas localidades citadas.

Foto – Rostand Medeiros

Os norte-rio-grandenses do oeste iam via Ceará. De Tauá para Crateús e daí seguiam galgando a Ibiapaba para Campo Maior, ·banhado pelo rio Surubim ou, dos cearenses Arneiros e Cococi, alcançavam Valença no Piauí ou em diagonal para Picos.

Essa toponímia ficou registrada na cantiga velha. Desaparecida quase a estrada das boiadas, rara a viagem do vaqueiro, a poesia tradicional guardou os nomes dos lugares de outrora. Essa toada, verdadeira canção de marcha dos vaqueiros, recorda o percurso (!) de Campo Grande (Augusto Severo) no Rio Grande do· Norte até o ·Piauí, envolvendo dois perfis femininos, cuidados amorosos do vaqueiro cantador.

Como Xiquinha não tem

Como Totonha não há;

Xiquinha de Campo Grande

Totonha do Lagamá !

Xiquinha vale dez fio (filhos)

Totonha vale dez vó. . . (avós)

Xiquinha do COCOCl

Totonha do Arneiró …

Xiquinha prá querer bem

Totonha prá carinhá;

Xiquinha é de Crateús

Totonha é lá do Tauá

Xiquinha vale uma vila,

Totonha vale ela só;

Xiquinha nasceu nos Pico (Picos)

Totonha em Campo Maió …

Um ramal da estrada das boiadas ficou popularíssimo na “cantoria”. É o do Piancó, Misericórdia, Milagres (Ceará), Missão Velha, Crato, nos Cariris Novos. Do Mossoró viajava-se outrora, como atualmente, pelo araxá do Apodi (Pedra de Abelha, atual Felipe Guerra). Outras estradas partindo de Mossoró, iam rio acima até as cabeceiras do Apodi, Portalegre, Pau dos. Ferros, São Miguel e Luís Gomes. Uma variante de Pau dos Ferros, velhíssimo rancho de comboieiros e tangedores de gado, chega a Alexandria, antiga Barriguda e seguia para Tabuleiro Formoso, pegando o caminho paraibano. De Pau dos Perros a vizinhança cearense animava as visitas por Pereiro. Do Patu ia-se para Catolé do Rocha. Do Açu caminhava-se para Campo Grande (Triunfo, Augusto Severo), Martins, no pé da serra, onde se continuava em um dos ramos para a estrada das boiadas pela Ribeira do Rio do Peixe.

Foto – Rostand Medeiros

O inverno era mais cedo. Dizia tão certo como chuva em janeiro. No Piauí as águas vinham em novembro. Iam vaqueiros de toda parte comprar bois de carro e de corte e novilhos para reprodução e engorda. Voltava-se em fins de dezembro ou começos de janeiro, tocando, para aproveitar as babugens verdes e ralas que as chuvas faziam nascer.

As datas quase infalíveis criavam ponto de reunião para que a jornada fosse menos enfadonha e monótona. Especialmente ficavam juntos no regresso para o auxílio mútuo nas travessias sem água ou agens difíceis nos rios e riachos, estouro de boiada e moléstias súbitas na gadaria. Essas estradas todas, como vimos, em pleno sertão, determinaram a necessidade das vendas, feiras rápidas de suprimento ligeiro e descanso ao longo da rota. Fizeram casas. As fazendas se aproximaram. Ergueram a capela. Foi vila e muitas são sedes municipais.

Para o sul do Rio Grande do Norte a viagem continuava margeando. As praias, caminho feito por Nosso Senhor. Assim voltou, agonizante, Pêro Coelho de Sousa, em 1605, ando Amargosa e Guamaré na costa de Macau.

Capela de Nossa Senhora das Candeias, no Engenho Cunhaú, município de Canguaretama, no litoral sul potiguar, onde aconteceu o Massacre de Cunhaú em 16 de julho de 1645 – Foto – https://joaobosco.wordpress.com/2007/09/22/onde-esta-a-verdade-sobre-o-masacre-de-cunhau/

Em 1810 Henry Koster fez sua excursão ao Ceará partindo do Recife, por Goiana, Espírito Santo, Mamanguape (Paraíba), Cunhaú (Rio Grande do Norte), Papari (Nísia Floresta), São José de Mipibu, Natal, Açu, Santa Luzia (Mossoró), praia do Tibau, Aracati (Ceará) e Fortaleza.

Quando o bispo de Pernambuco, Dom João da Purificação Marques Perdigão, visitou o Rio Grande do Norte em 1839, vinha do Ceará. Penetrou pelo Apodi, descansando em “Sabe Muito”, nos arredores da cidade de Caraúbas, dormindo no então povoado; almoçou em Coroas, perto da vila de Campo Grande (Augusto Severo), alcançando o Açu. Atravessou Santa Quitéria, depois Patachoca (Pataxó), vila dos Angicos e pelo seu Itinerário sabemos que o prelado veio por São Romão (Fernando Pedrosa), Santa Cruz, ambas estações da Estrada de Ferro Sampaio Correia, Riacho Fechado, Várzea dos Bois, Umari, Boa Água, Ladeira Grande, Taipu do Meio (sede municipal), Capela, no vale do Ceará-Mirim e Extremoz. É a travessia do poente ao nascente, oeste-leste. De Natal, Dom João partiu para a Paraíba repetindo quase o trajeto de Mascarenhas Homem no percurso de regresso em 1598. Natal, São Gonçalo, São José de Mipibu, Papari, Arez, Goianinha, Vila Flor, Tamanduba, Comatanduba (Paraíba), Mamanguape. É a descida norte-sul.

Pelos caminhos do sertão potiguar – Foto – Rostand Medeiros.

No interior as primitivas e grandes vias de povoamento e penetração foram as margens dos álveos dos rios Piranhas e Apodi-Mossoró. A oeste a chapada do Apodi com o rush cearense. A linha Natal-Macau estirão solitário de areias inúteis, com água rara, esteve despovoado, afora os breves oásis de coqueirais plantados na segunda metade do século XVIII em diante e que abrigaram povoações de pescadores, Genipabu (estrema do mapa de Marcgrav). Pitangui, Jacumã, Muriú, Maxaranguape, Caraúbas, Maracajaú, Touros, Olhos d’Agua, Santo Cristo, Reduto, Caiçara, Galinhos; Diogo Lopes, etc.

GUERRA EM NOME DE DEUS – A PRIMEIRA CRUZADA E O CERCO A JERUSALÉM

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

No século XI, a Europa foi profundamente penetrada pelo Cristianismo que desempenhava um papel central na vida das pessoas, influenciando as suas crenças, valores e cultura. O papado, particularmente sob o Papa Urbano II, consolidou a sua autoridade e procurou expandir a sua influência.

Já a Terra Santa, incluindo a cidade sagrada de Jerusalém, era um importante local de peregrinação para os cristãos. No entanto esses peregrinos enfrentaram muitos obstáculos e violência crescente por parte dos governadores muçulmanos da região. As histórias dos seus sofrimentos desencadearam um profundo sentimento de injustiça entre os cristãos na Europa.

De uma perspectiva cristã, as Cruzadas começaram em 1095, com um discurso apaixonado proferido pelo Papa Urbano II no Concílio de Clermont, apelando para o desenvolvimento de uma cruzada para salvar os cristãos do Oriente e libertar a Terra Santa das mãos dos muçulmanos. Este apelo teve um enorme impacto e mobilizou um grande número de crentes para apoiar a luta. Não demorou e senhores, cavaleiros e camponeses de toda a Europa começaram a responder ao apelo à cruzada.

E para aumentar o contingente de participantes, Urbano II ofereceu aos que seguissem na empreitada o perdão de todos os seus pecados. Uma promessa que, em uma época de ignorância e iniquidade, foi amplamente vista como uma oportunidade de salvação espiritual. Em meio a um enorme desconhecimento geral, a ideia de que o “fim do mundo” estava próximo também era um tema recorrente nessa época e alimentou o fervor religioso dos participantes. Os crentes também acreditavam que a libertação da Terra Santa poderia ser um prenúncio da segunda vinda de Cristo.

A Primeira Cruzada foi um empreendimento extraordinário, marcado por uma viagem perigosa por terras hostis e batalhas épicas. Com a sua complexa mistura de motivações religiosas, políticas e sociais, marcaria o início de uma série de eventos que mudariam para sempre a face do Oriente Médio e da Europa medieval.

Bárbaros e Vivendo em Chiqueiros

É claro que os muçulmanos nada sabiam sobre tal discurso. Também não havia uma palavra específica para definirem as “cruzadas”. Do ponto de vista deles, a agressão dos povos vindos do norte contra as terras muçulmanas começou muito antes, nomeadamente em 1061, quando um governante normando chamado Robert Guiscard começou a atacar a Sicília islâmica. O mais chocante para os islamitas foi que ele teve sucesso na sua empreitada, pois a ideia existente sobre os europeus era a pior possível.

Para os seguidores de Maomé o mundo que eles conheciam estava literalmente de “cabeça para baixo”. Em seus mapas o sul ficava no topo e o norte embaixo. Isto porque, segundo os maiores e mais respeitados cartógrafos muçulmanos, não havia nada de interessante mais ao norte. Ali ficavam os países dos cristãos, todos chamados de “francos” pelos islâmicos.

Esses países do norte eram conhecidos por serem úmidos e escuros, com uma cultura terrivelmente atrasada, onde todos, incluindo os reis, obedeciam a um senhor ditatorial chamado “il-baba”: o Papa. E para piorar a visão mulçumana, os viajantes que lá estiveram relataram que esses francos “só se lavavam duas vezes por ano”.

Então eles eram sujos e estúpidos, pensavam os mulçumanos, e não era de irar que os francos fossem propensos ao fanatismo religioso. Para o mundo islâmico a religião cristã parecia mais ridícula do que perigosa, sendo considerada intelectualmente pobre e onde dificilmente eles poderiam utilizar das escrituras cristãs quaisquer de suas regras para a vida quotidiana.

Os muçulmanos da Idade Média viviam, é claro, no melhor de todos os climas – onde as temperaturas eram moderadas e propício ao surgimento de uma civilização urbana e rica. Os francos, por outro lado, viviam lá no norte, numa área onde o sol pouco brilhava e o clima os condenou a permanecerem bárbaros e vivendo em chiqueiros.

Os francos pomposamente chamavam a concentração de algumas dezenas de milhares de pessoas de “cidades”, enquanto os muçulmanos viviam juntos há muito tempo em centros urbanos de centenas de milhares, com modernas infraestruturas e todos lavavam-se regularmente. Para os mulçumanos eles viviam no “Dar al-Islam”, ou seja, “o território islâmico”, o lar de uma civilização dinâmica, sustentada por uma população diversificada e uma economia robusta.

Em outras palavras, segundo Paul M. Cobb, historiador da Universidade da Pensilvânia especializado na história do mundo islâmico na Idade Média, “há mil anos no Cairo, Bagdá, ou em Córdoba, a visão da região onde viviam os francos era de uma área desagradável, cheia de lunáticos fedorentos e sobre a qual pouco se sabia”.

E esse desconhecimento faria com que os seguidores de Maomé pagassem um alto preço em sangue. Da pior maneira eles descobriram que esses francos, mesmo vivendo seu dia a dia com todos os defeitos possíveis e imagináveis, possuíam uma coragem desmedida, que os ajudavam a sobreviver em meio a uma natureza cruel e uma existência onde a belicosidade era algo permanente. Para tanto faziam uso de armas poderosas e bastante modernas para a época, além de táticas de combate desconhecidas no Islã.

A Conquista Sangrenta da Cidade Santa

Os cavaleiros e peregrinos cristãos partiram em 1096, onde as primeiras etapas da cruzada levaram-nos pela Europa Oriental. No caminho enfrentaram obstáculos como as montanhas dos Balcãs e rios caudalosos. Em Constantinopla foram recebidos pelo imperador bizantino Aleixo I Comneno.

Até chegar a Cidade Santa os cruzados realizaram numerosos cercos a fortalezas muçulmanas e participaram de batalhas ferozes. Um dos momentos mais famosos foi o Cerco de Antióquia, que começou em outubro de 1097, onde os Cruzados aram enorme sofrimento antes de finalmente tomarem essa cidade em junho do ano seguinte.

Demoraria mais um ano para finalmente, no início de junho de 1099, os cruzados chegarem ao seu destino final: Jerusalém. 

O problema foi que na chegada os suprimentos se tornaram escassos, o clima estava bem opressivo e os primeiros ataques falharam porque a cidade estava muito bem fortificada. Também se soube que um exército de socorro vindo do Egito estava a caminho. Para completar o quadro os defensores encheram de areia todos os poços de água que existiam em frente à cidade, mandaram cortar todas as árvores para dificultar o cerco e a água que os cruzados conseguiram de uma fonte distante era de má qualidade.

Liderados pelos ses Godfrey de Bouillon e Raymond de Toulouse, eles partiram para um esforço final. Os cruzados – cerca de 1.300 cavaleiros e 12.000 homens de infantaria, bem como numerosos peregrinos – perceberam que as muralhas da cidade não poderiam ser superadas sem máquinas de cerco. Mesmo assim os líderes do exército cruzado decidiram atacar a cidade em 13 de junho de 1099. Apesar da tenacidade dos francos e da captura temporária das fortificações do norte, o ataque falhou.

Depois de alguma busca, conseguiu-se madeira na distante Samaria, que foi trazida para construir torres de cerco, aríetes e catapultas. Depois de um cortejo ao redor da cidade para mostrar aos inimigos o seu poderio, o assalto dos cruzados foi organizado para ocorrer na noite de 14 de julho e assim ocorreu. A luta nas muralhas foi feroz e sangrenta e não demorou para uma torre superar os fossos exteriores. Ao meio-dia de 15 de julho, os cristãos tomaram um trecho da muralha norte e pouco depois a Cúpula da Rocha caiu.

A captura de Jerusalém foi um momento de triunfo para os Cruzados, mas também um momento de grande tristeza para os moradores da cidade. O medievalista britânico Steven Runciman escreveu que os francos, completamente alucinados depois de tanto sofrimento e privação, correram pelas ruas, casas e mesquitas como que possuídos por demônios. Ele se baseia em relatos de testemunhas oculares como este: “– Eles mataram todos os inimigos que puderam encontrar com o fio de suas espadas, independentemente de idade ou posição. E havia tantas pessoas mortas e tantas pilhas de cabeças decepadas espalhadas por toda parte, que por todos os caminhos ou agens só se encontravam cadáveres”.

Conquista de Jerusalém pelos Cruzados, por Émile Signol, no Palácio de Versalhes, Paris, França.

Cronistas cristãos e muçulmanos relatam que no massacre cruel da conquista de Jerusalém, além da população muçulmana e judaica que viviam na cidade, também foram vítimas os cristãos coptas e sírios. Segundo fontes muçulmanas, cerca de 70 mil muçulmanos, judeus e cristãos orientais foram mortos no banho de sangue. Os cronistas cruzados afirmaram que foram 10.000 vítimas. O historiador britânico Thomas S. Asbridge segue uma fonte judaica que fala de 3.000 mortes.

Os elevados números de testemunhos muçulmanos refletem, por um lado, o choque face ao sucesso inesperado da invasão estúpida e suja e por outro um alerta e incentivo para que no futuro eles não perdessem de vista a reconquista da cidade. A disputa sobre números, resume Asbridge, “– Não muda a matança sádica levada a cabo pelos Cruzados”.

Mesmo com as vestes, as mãos e as armas salpicadas de sangue, um serviço religioso de ação de graças foi organizado pelos vencedores na Igreja do Santo Sepulcro.

Depois que Raimund rejeitou a ideia de se tornar regente de Jerusalém, Gottfried assumiu o governo da Terra Santa como advocatus sancti sepulchri (“Protetor do Santo Sepulcro”) e regente do recém-estabelecido Reino de Jerusalém. Sob sua liderança, o exército do Califrado Fatímida foi derrotado na Batalha de Ascalão, em 12 de agosto de 1099. Isso encerrou a Primeira Cruzada.

Senhores de Jerusalém

Quando os autores islâmicos medievais pensavam em tais ataques observavam que os francos, mesmo sendo bárbaros e impuros, foram capazes de alcançar tais sucessos por conta da desunião interna dos próprios mulçumanos.

Na verdade, os residentes de “Dar al-Islam” não se davam muito bem. Na melhor das hipóteses, mulçumanos sunitas e xiitas viviam juntos numa espécie de guerra fria. Já os governantes Fatímidas no Egito e os seguidores do califa em Bagdá eram inimigos um do outro.

Para os estudiosos mulçumanos essa desunião fez com que os cruzados conseguissem conquistar quatro pequenos estados: o Reino de Jerusalém, o Condado de Edessa, os Principados de Antióquia e Trípoli. A unidade muçulmana chegou tarde demais!

Mas estados cruzados não eram cercados por muros e as relações entre os invasores vindos da Europa e os povos civilizados do Oriente não eram totalmente hostis. Houve fortes negociações nos mercados de Jerusalém e Acre. Os mercadores cristãos estavam interessados ​​nos seguintes produtos: pimenta, gengibre, açúcar do Vale do Rio Jordão, têxteis, marfim, ouro e porcelana. Os mercadores muçulmanos queriam em troca tecidos de lã, grãos, prata, madeira, ferro e escravos. Foi assim que o cheque (de sakh, carta de crédito) migrou para as línguas europeias. Da mesma forma a tarifa (de ta’arif, notificação). Já os muçulmanos aram a saber o que era um “sarjand” (um sargento) e quem era o “al-ray-dafrans” (que significa “le roi de ”).

Os francos permaneceram senhores de Jerusalém por 88 anos (1099-1187).

Uma Cidade, Muitos Conquistadores

Para o mercenário sírio Usama ibn Munqidh, os francos eram a prova viva de que os caminhos de Alá eram insondáveis – afinal, apesar da sua bestialidade, conseguiram alcançar vitórias brilhantes. Ele relatou que com o ar do tempo alguns europeus se aclimataram, ou seja, civilizaram-se, e procuraram a companhia dos muçulmanos. “São muito melhores do que aqueles que chegaram recentemente dos seus países, mas são uma exceção e não devem ser considerados representativos.”

Osama não conseguia encontrar muitas virtudes nos francos, além da coragem – que ele suspeitava provir de sua estupidez. Um dia alguns cruzados tentaram atacá-lo enquanto ele orava em direção a Meca. Esses idiotas nunca tinham visto nada assim! Felizmente, seus camaradas os impediram. Mas apesar do seu desdém fundamental, Osama encontrou alguns amigos entre os francos. Um deles, um Cavaleiro Templário, chegou a chamá-lo de “seu irmão” e se ofereceu para levar seu filho para a Europa “onde ele poderia aprender a razão e o cavalheirismo com os cavaleiros”, algo que, infelizmente, não aconteceu. Pois nos privou nos dias de hoje da leitura de um emocionante relatório de viagem e poderíamos saber que efeito teria a Europa medieval sobre um muçulmano instruído!

Mas voltando ao período das cruzadas – No final foi Nácer Saladim Iúçufe ibne Aiube, mais conhecido como Saladino, um chefe militar curdo muçulmano que se tornou sultão do Egito e da Síria, que liderou com eficácia a oposição islâmica aos cruzados europeus no Oriente Médio.

Paul M. Cobb chama Saladino de favorito de “historiadores, ditadores e outros criadores de mitos”. Isto é absolutamente verdade – para a retrospecção islâmica, Saladino aparece como o libertador do Oriente Médio.

A verdade é que quando ele entrou vitoriosamente em Jerusalém em 2 de outubro de 1187 – uma sexta-feira – e limpou a mesquita de Al-Aqsa e a Cúpula da Rocha dos símbolos cristãos, ele já havia travado uma guerra contra os inimigos islâmicos durante 33 meses (especialmente os Fatímidas no Egito, a quem ele destronou e substituiu pelo seu próprio clã). A luta contra os “francos impuros” foi na verdade apenas um pós-escrito, uma reflexão tardia.

Também é verdade que Saladino, como vencedor, era capaz de magnanimidades. Ele deixou a Igreja do Santo Sepulcro, que segundo a crença cristã era o local onde Jesus foi sepultado, de pé, embora houvesse vozes instando-o a destruir este eterno objeto de discórdia.

Se Saladino foi quem recapturou Jerusalém para o mundo islâmico em 1187, ela foi novamente perdida para os cristãos 42 anos depois, na Sexta Cruzada, no ano de 1229 e quem recebeu a cidade nas suas mãos foi Frederico II da Alemanha. Dez anos depois os cristãos perderam Jerusalém mais uma vez. Quem a conquistou foi an-Nasir Da’ud, o emir de Kerak (hoje uma cidade na Jordânia). Quatro anos depois, em 1243, a cidade sagrada voltou novamente ao poder dos cristãos, mas por um período muito breve. No ano seguinte o Império Khwarezmiano, grupo muçulmano sunita de origem mameluca turca, tomou novamente a cidade para os seguidores de Maomé.

Jerusalém então permaneceu islâmica por longos 673 anos, até o dia 11 de dezembro de 1917, quando o general britânico Edmund Henry Hynman Allenby, 1º Visconde Allenby, entrou a pé com suas tropas na Cidade Santa. Isso ocorreu após os britânicos vencerem os turcos otomanos na Campanha da Palestina, durante a Primeira Guerra Mundial.

30 anos depois, em 29 de novembro de 1947, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou um plano que dividia a Palestina em dois estados: um judeu e um árabe. Cada estado seria composto por três grandes secções, ligadas por encruzilhadas extraterritoriais, mais um enclave árabe em Jaffa. A Jerusalém expandida cairia sob controle internacional como um Corpus Separatum.

Mas após a Guerra Árabe-Israelense de 1948, Jerusalém foi dividida. A metade ocidental da Cidade Nova tornou-se parte do recém-formado estado de Israel, enquanto a metade oriental, juntamente com a Cidade Velha, foi ocupada por tropas da Jordânia.

Essa situação durou até a mítica Jerusalém ter sido totalmente capturada pelas Forças de Defesa de Israel em 7 de junho de 1967, durante a Guerra dos Seis Dias. Desde então já são 57 anos de domínio judeu em Jerusalém.

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O PAI DE ARIANO SUASSUNA – QUEM FOI JOÃO SUASSUNA, COMO SE DEU A SUA MORTE E COMO ESTE FATO INFLUENCIOU A VIDA E A OBRA DO SEU FILHO ARIANO

Rostand Medeiros – Escritor e pesquisador

Quando o escritor Ariano Suassuna faleceu em 23 de julho de 2014, muito de sua vida foi trazida ao conhecimento de milhares de brasileiros. Entre os muitos aspectos da biografia deste paraibano que marcou a história do Nordeste, um dos principais pontos abordados foi a importância da figura de seu pai, João Suassuna, em sua vida.

João Suassuna, pai de Ariano

Em inúmeros textos foi comentado, normalmente de maneira bem básica, que João Suassuna havia sido governador da Paraíba e que ele foi assassinado no ano de 1930, em meio às repercussões ocasionadas pela morte de João Pessoa e os acontecimentos políticos daquele período tumultuado da história do Brasil. Mas ao observamos com mais detalhes a figura do pai do grande escritor, que morreu quando Ariano tinha apenas três anos de idade, descobrimos uma história muito intensa, interessante e trágica!

Ariano Suassuna 1927 – 2014

O BACHAREL SERTANEJO

Há dez anos eu dei início a uma inacabada pesquisa por quatro estados nordestinos sobre a vida e morte do cangaceiro paraibano Chico Pereira. Esta motivação vinha do fato de ser imputado a este cangaceiro e seu bando, em fevereiro de 1927, o assalto a fazenda Rajada, em Acari, na região do Seridó Potiguar. Na época esta fazenda pertencia a Joaquim Paulino de Medeiros, meu bisavô e durante grande parte da minha juventude escutei inúmeras vezes os relatos deste episódio através de vários parentes queridos.

Fazenda Volta, zona rural de Catolé do Rocha, lugar onde viveram os primeiros membros da família Suassuna.

No desenrolar das pesquisas vi que a história de Francisco Pereira Dantas, o verdadeiro nome de Chico Pereira, possuía ligações com a trajetória política de João Suassuna. Até mesmo a sua morte, ocorrida em 1928 na zona rural de Currais Novos, em um rumoroso caso de violência estatal, que manchou a biografia do então governador potiguar Juvenal Lamartine de Farias, também possui ligações com o pai de Ariano.

Mas de maneira totalmente independente do fato de João Suassuna ser pai do autor de “Auto da Compadecida”, busquei conhecer mais sobre sua vida.

João Suassuna no início de sua carreira

Nascido João Urbano Pessoa de Vasconcelos Suassuna, veio ao mundo em Catolé do Rocha, Paraíba, no dia 16 de janeiro de 1886. Anos depois estudou na conceituada e tradicional Faculdade de Direito de Recife, onde se bacharelou em 1909. O início de sua carreira como advogado foi em Mossoró, no Rio Grande do Norte. Depois João Suassuna assumiu o posto de juiz nas cidades de Umbuzeiro e Campina Grande, ambas na Paraíba. Na sequência foi Procurador da Fazenda Nacional no seu estado natal.

Em 1 de dezembro de 1913, quando tinha 27 anos, casou com Rita de Cássia Vilar Suassuna, então com 17 anos, a quem chamava carinhosamente de Ritinha. Quando Castro Pinto esteve a frente do executivo paraibano (1912-1915), João Suassuna assumiu cargos de importância na máquina governamental.

Casa onde nasceu João Suassuna em Catolé do Rocha, que na época da foto era o Grupo Escolar Antônio Soares. Atualmente essa antiga casa não existe mais, foi demolida para a construção da nova sede da prefeitura dessa cidade paraibana.

Em 1917, após este período de governo, voltou a ser juiz, desta vez na cidade de Monteiro (PB). Foi nesta época que João Suassuna adquiriu uma propriedade chamada “Malhada da onça”, pra onde seguia ocasionalmente. A fazenda ficava em Desterro, local de nascimento de sua mulher, na época uma comunidade pertencente à cidade paraibana de Teixeira. Em 1919 deixou a magistratura e foi trabalhar no antigo Instituto Federal de Obras Contra as Secas – IFOCS e nesta época adquiriu a Fazenda Acauã, na época localizada na zona rural de cidade de Sousa[1].

Fazenda Acauã na atualidade – Fonte – http://artenapedrapolida.blogspot.com.br/

No começo da década de 1920, João Suassuna foi convidado pelo então governador Sólon de Lucena para assumir a Inspetoria do Tesouro do Estado, depois foi eleito deputado federal. Estava no exercício do mandato parlamentar no Rio de Janeiro, então Capital Federal, quando foi eleito “Presidente da Parahyba”, o que corresponde hoje ao cargo de governador.

O mandato de João Suassuna se caracterizou em grande parte por uma valorização das ações desenvolvidas pelos grandes latifundiários de terras do interior, possuidores de grandes riquezas baseadas no cultivo do algodão e na pecuária. Estes “coronéis” atuavam através de uma estrutura política arcaica, que se valia entre outras coisas do mandonismo, da utilização de grupo de jagunços armados, da conivência com grupos de cangaceiros e outras ações.

Foi nesta época, no palácio do governo da Paraíba, que servia de residência oficial do chefe do executivo daquele estado, mais precisamente no dia 16 de junho de 1927, que nasceu um dos nove filhos do casal João e Rita. Foi batizado como Ariano.

João Pessoa

João Suassuna entregou o cargo em 22 de outubro de 1928 a João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque e assumiu novamente uma das vagas de deputado federal pela Paraíba.

PROBLEMAS À VISTA!

João Pessoa discordava da forma como o grupo político que o elegera conduzia a política do seu estado e logo surgiram sérias divergências com os latifundiários. Um dos maiores embates estava na cobrança de taxas de exportação do algodão. Por esta época os coronéis exportavam o produto principalmente através do porto de Recife, provocando enormes perdas de divisas tributárias para a Paraíba. Procurando evitar esta sangria financeira e efetivamente cobrar os coronéis, João Pessoa implantou diversos postos de fiscalização nas fronteiras da Paraíba, irritando de tal forma estes caudilhos, que pejorativamente aram a chamar o governador de “João Cancela”.

Os embates políticos entre o governador e os coronéis foram crescendo. A maior liderança entre estes poderosos foi sem dúvida o coronel José Pereira Lima. Verdadeiro imperador da região oeste da Paraíba, na área da fronteira com Pernambuco, tendo como base, a cidade de Princesa e este discordava com veemência das ações de João Pessoa. Do embate entre estes dois homens, resultou um dos maiores conflitos armados do Brasil Republicano.

Foto de 1930 – Sentado vemos Marcolino Florentino Diniz (conhecido como Marcolino Pereira Diniz, um dos líderes de Princesa, que era sobrinho e cunhado do coronel José Pereira. Em pé, da esquerda para direita, temos Pedro Inácio (proprietário de terras em Pernambuco), João Pereira e Pacífico Lopes (proprietários rurais), Joaquim Inácio (grande proprietário de terras no município pernambucano de Triunfo) e Chôcho (proprietário rural na localidade de Irerê, município de Princesa). Agradeço a atenção e participação de Natércia Suassuna Dutra, sobrinha-neta de João Suassuna, que enviou as informações aqui colocadas.

A contenda teve início em 28 de fevereiro de 1930, quando ocorreu a invasão da cidade de Teixeira por parte da polícia paraibana, com o aprisionamento dos membros da conceituada família Dantas, ligada por profundos laços de parentescos e interesses ao coronel José Pereira. Apesar de governador João Pessoa não contar com o apoio do Palácio do Catete, onde o titular, Washington Luís não viabilizou uma efetiva ajuda às forças policiais paraibanas, o governador paraibano foi à luta.

Em meio aos conflitos da chamada “Guerra de Princesa”, no dia 26 de julho de 1930, um sábado, João Pessoa estava na Confeitaria Glória, em Recife, quando foi atingido por dois disparos desfechados pelo advogado paraibano João Duarte Dantas.

Da mesma família Dantas da região de Teixeira, consta que após realizar uma viagem João Dantas encontrou seu escritório na capital paraibana violado. Entre os objetos roubados estavam cartas e poemas eróticos, além de fotografias sensuais, trocados com a sua amante, a poetisa Anayde Beiriz. Estes materiais teriam sido roubados por membros da polícia paraibana, sob as ordens de João Pessoa, sendo publicados e colocados em locais públicos. Diante dessa exibição João Dantas foi à confeitaria vingar a sua privacidade violada[2].

João Duarte Dantas

Após o crime, João Pessoa se tornou um grande herói para o povo paraibano e seu assassinato foi o estopim da conhecida Revolução de 1930. Neste meio tempo cresceu descontroladamente o radicalismo na Paraíba e muito sangue correu[3].

A PARTIDA

Por ser João Suassuna casado com uma prima de João Dantas, ter sido eleito deputado federal com o apoio dos Dantas da cidade de Teixeira e do coronel José Pereira, o pai de Ariano ficou na mira dos familiares, amigos e correligionários do falecido João Pessoa.

No dia da morte do então governador paraibano na Confeitaria Gloria, João Suassuna se encontrava no Recife. Já sua família, inclusive o menino Ariano de três anos, estava na capital paraibana, em uma casa alugada ao Dr. Mariano Falcão, na Rua das Trincheiras. Diante do aumento da tensão na capital, Rita Suassuna e seus nove filhos vão se refugiar no 22º Batalhão de Caçadores, ou 22º BC, atual 15º Batalhão de Infantaria Motorizada. Em pouco tempo João Suassuna conseguiu apoio do rico empresário Frederico João Lundgren e consegue apoio do Exército para trazer sua família para uma casa mobiliada, pertencente a este empresário e localizada na cidade pernambucana de Paulista. Um dado interessante foi que a escolta da família Suassuna era comandada pelo tenente Agildo Barata[4].  

João Pessoa morto

O deputado João Suassuna recebeu a comunicação que havia sido denunciado como cúmplice no assassinato de João Pessoa e teria que ir ao Rio de Janeiro para se defender na Câmara dos Deputados. No Porto do Recife ele embarcou no paquete “Zelândia” e lá estava toda a sua família para as despedidas. Mesmo tendo naquela ocasião apenas três anos de idade, Ariano Vilar Suassuna sempre relatou ao longo de sua vida que jamais esqueceu a partida do seu pai para a Capital Federal, pois aquela foi a última ocasião que o viu com vida. 

João Suassuna chegou a Capital Federal no dia 22 de outubro de 1930, se apresentou a Câmara Federal. Lá soube que tramitava na comissão de constituição e justiça um pedido do deputado pernambucano João Paes de Carvalho Barros, para que fosse concedida uma licença para abrir uma investigação sobre a participação de Suassuna como cúmplice no assassinato de João Pessoa. Logo o pedido foi indeferido pelo presidente da casa, o deputado federal João Santos[5].

TEMPO DE REVOLTA

Não tarda e a convulsão política eclode. A conhecida Revolução de 1930 teve seu início em 03 de outubro de 1930, uma sexta feira, com movimentos sincronizados que foram levados a efeito no Rio Grande do Sul, Paraná, Minas Gerais e Paraíba.

João Suassuna (com papéis e na mão), tendo ao seu lado esquerdo Washington Luís no Porto de Cabedelo, Paraíba.

Mesmo diante desta situação, o deputado João Suassuna se coloca ao lado do presidente Washington Luís, junto com mais de uma centena de políticos. Todos se encontraram na tarde do dia 4 de outubro no Palácio da Guanabara, atual sede do Governo do Estado do Rio de Janeiro, onde morava o mandatário que em breve seria deposto[6].

Os dias seguiam com mais notícias preocupantes vindas da Paraíba e de Pernambuco. Na capital paraibana, na madrugada do dia 4 de outubro, poucas horas após o movimento ter-se iniciado, os revolucionários atacaram o 22º BC e ali morreu o general legalista Alberto Lavenère Wanderley, comandante da 7ª Região Militar. Já o 23º BC da cidade de Sousa, opôs resistência aos revolucionários. Logo em seguida sublevaram-se o 25º BC de Teresina, o 24º BC de São Luís e o 29º BC de Natal.

Revolucionários de 1930 – Fonte – tokdehistoria-br.informativoparaibano.com

Em Recife o movimento encontrou uma resistência maior por parte das forças legalistas, que haviam se colocado de prontidão ao surgirem notícias da revolução. A vitória dos revolucionários, contudo, foi garantida pelo apoio popular à insurreição, tendo ocorrido, inclusive, distribuição de armas aos populares. Já na manhã do dia 5 de outubro, o movimento havia triunfado em Pernambuco, antes mesmo que os reforços provenientes da Paraíba chegassem a Recife. No dia seguinte a posição dos revoltosos se consolidou quando o presidente do estado, Estácio Coimbra, abandonou o governo[7].

TIRO MORTAL

Enquanto as notícias das sublevações e lutas pelo Brasil afora preocupavam os cariocas e o governo Washington Luís seguia para seus últimos dias, João Suassuna se dividia entre saber notícias de sua família e a atividade parlamentar.

Nesta época o deputado paraibano morava no quarto 63, do Novo Hotel Belo Horizonte, localizado na Rua Riachuelo, 130, no bairro da Lapa.

Rua Riachuelo, em Botafogo, Rio de Janeiro – Fonte – http://www.rioqueou.com.br

Suassuna tinha o hábito de sempre descer ao “hall” principal para ler os jornais ainda pela manhã. Naquela quinta feira, 9 de outubro de 1930, ele estava nesta atividade quando apareceu uma visita. Era o farmacêutico paraibano Caio Gusmão, que há quatro meses residia no Rio. Eram cerca de oito e quarenta da manhã, quando o deputado decidiu seguir junto com seu visitante para o Palácio Tiradentes, sede da Câmara Federal. Estava vestido de paletó de casimira cinza e sapatos pretos.

Os dois caminharam um bom trecho pela Rua Riachuelo, quando Suassuna  olhou para o céu e comentou…

 – Parece que vai chover e vou buscar minha capa no hotel!

Deu meia volta, avançou alguns os, mas nesse momento foi atingido por um disparo de arma de fogo. Suassuna tentou sacar um revólver “Colt” que conduzia, mas caiu no chão já morto por apenas aquele único tiro. O fato ocorreu na altura do número 111, próximo a esquina com a Rua dos Inválidos[9].

Caio Gusmão nada pode fazer, o corpo ficou em decúbito dorsal, com o revólver do falecido ao lado e a sua mão manchada de sangue[10].

Logo encheu de gente. Rapidinho se espalhou a notícia sobre quem havia sofrido aquele atentado e o espanto dos transeuntes foi geral. Populares chamaram a “Assistência”, o SAMU da época, que logo chegou, mas nada puderam fazer em favor de João Suassuna.

Em pouco tempo o delegado do 12º Distrito Policial, o Dr. Eunápio Hardman Castello Branco, em companhia do comissário Antônio Pizarro de Morais, chegou ao local e depois vieram várias outras autoridades policiais. Das primeiras investigações descobriram que o assassino fugiu pela Rua Paula Matos, em direção ao Morro de Santa Tereza. Foi comentado aos policiais que o atirador possuía estatura mediana, vestia paletó branco, usava boné de casimira negra e calçava “tennis”[11].

Desde os primeiros momentos que os jornais cariocas apontavam que a razão do assassinato de João Suassuna era vingança pela morte de Joao Pessoa e mesmo com revoltas pipocando no país, os revolucionários de 1930 ainda não tinham conquistado a Capital Federal. Começou então a caçada ao assassino.

Inicialmente em uma vila, um policial encontrou um revólver de grosso calibre do tipo “buldogue” e uma pistola modelo “Liberty”. Além de toda a roupa utilizada pelo pistoleiro na hora do crime. Logo os investigadores perceberam pelas pistas deixadas que um cúmplice estava dando apoio ao matador.

Fosse pela importância de João Suassuna, ou por eficiência (ou uma soma destes dois fatores), o certo é que ás onze e meia da noite do dia 9 de outubro, policiais da 2ª Delegacia Auxiliar capturaram o assassino.

Este se chamava Miguel Alves de Souza e havia sido preso no grande sobrado que pertencia ao engenheiro Joaquim de Souza Leão, localizado na Rua São Clemente, 261, bairro de Botafogo, a poucos metros da tradicional Igreja e Colégio Santo Inácio. Assim foi preso Miguel Alves confessou o crime[12].

Este era paraibano de Alagoa Grande, tinha 30 anos, havia chegado ao Rio pelo vapor “Itapuy” no dia 18 de julho de 1929, trabalhava como tratador de cavalos de cavalos e depois se tornou empregado do engenheiro Joaquim de Souza Leão.

Em uma entrevista concedida ao jornalista Ricardo Farias, publicada no caderno especial do jornal paraibano “A União”, edição de 12 de fevereiro de 2013, página 3, Ariano Suassuna comentou que o assassino de seu pai foi preso na casa do concunhado de João Pessoa[13].

Provavelmente os algozes de João Suassuna tinham a ideia que a polícia carioca jamais concluiria que na casa de gente tão graúda, como a Dr. Joaquim de Souza Leão, encontrariam um elemento que havia matado covardemente um homem pelas costas.

TRAMA ASSASSINA

No dia 10 de outubro, enquanto as autoridades “apertavam” Miguel para ele dar conta do assassinato, no Senado Federal, para onde seguiu o corpo de João Suassuna, ocorreram várias homenagens.

O ex-governador potiguar, então senador, José Augusto Bezerra de Medeiros, proferiu um interessante discurso sobre a vida do falecido político paraibano. Houve uma missa de corpo presente, várias autoridades estiveram no velório e foram colocadas muitas coroas de flores. João Suassuna foi enterrado no túmulo número 611, no cemitério São João Batista, em Botafogo. Mas nem sua mulher e nenhum de seus nove filhos estiveram presentes!

Enquanto isso na delegacia, Miguel Alves de Souza confessou que recebeu o apoio de outro paraibano chamado Antônio Granjeiro. Este era carteiro dos Correios e Telégrafos no Rio, lhe forneceu as armas e apoiou na sua fuga. Granjeiro foi logo preso[14].

Os dois comparsas entregaram então Otacílio de Lucena Montenegro, um funcionário do Tribunal de Contas, como a pessoa que procurou Granjeiro, lhe deu o dinheiro para a compra das armas do crime e a ordem para procurar alguém disposto a apertar o gatilho.

E quem era Otacílio de Lucena Montenegro?

Na mesma entrevista concedida ao jornalista Ricardo Farias, do jornal paraibano “A União”, em fevereiro de 2013, Ariano Suassuna comentou que foi Otacílio quem intermediou junto a Granjeiro o assassinato de seu pai e que Otacílio era sobrinho do então coronel do Exército Aristarco Pessoa, irmão de João Pessoa[15].

Demorou mais alguns dias para prenderem Otacílio, mas ele foi finalmente detido na Tijuca. Para dirimir dúvidas, o investigador Silvio Terra fez uma acareação na 2ª Delegacia Auxiliar entre Otacílio, Granjeiro e Miguel Alves e para o policial ficou patente a participação de Otacílio. Mas este negou peremptoriamente quaqlquer envolvimento.

Para os policiais Antônio Granjeiro, homem pobre e com numerosa família (tinha onze filhos), era considerado “doentio e muito sugestionável” e as preleções de Otacílio, que entre outras coisas dizia “-Será que não existe um paraibano que seja capaz de vingar a morte de João Pessoa?” surtiram efeito desejado. Granjeiro foi atrás de Miguel e o crime ocorreu.

Entre outras acusações Granjeiro foi apontado como o homem que seguiu João Suassuna, conheceu sua rotina, comprou as duas armas usadas no crime e chegou a enviá-las para um armeiro quando foram detectadas defeitos nelas. Foi ele quem adquiriu a munição e no dia 7 de outubro, dois dias antes do crime, foi com Miguel Alves praticar tiro ao alvo nas margens da hoje superpovoada lagoa Rodrigo de Freitas, próximo ao Jóquei Clube do Rio.

Os três acusados, entre estes um carteiro e um tratador de animais, foram defendidos pelo ninguém menos que advogado Clóvis Dunshee de Abranches, considerado um dos maiores criminalistas do Brasil na época e famoso pelo rumoroso caso Sylvia Seraphin Thibau[16].

Mas nesta época nem foi tão necessário a participação de um jurista tão renomado para defender estes homens, pois logo os revolucionários chegaram ao Rio de Janeiro, depam o presidente e assumiram o poder. No vácuo institucional, em meio às alegrias da vitória, os três homens responsáveis pela morte de João Suassuna foram soltos[17].

EM BUSCA DE JUSTIÇA

Foi Rita Suassuna que não deixou a morte de seu marido cair no esquecimento.

Tempos depois ela enviou uma carta extremamente intensa e emocionada ao então Presidente Getúlio Vargas e este mandou reabrir o caso. Em pouco tempo a morte de João Suassuna voltou às páginas dos periódicos cariocas.

Antônio Granjeiro, esposa e filhos em 1933.

Foram decretadas as prisões de Antônio Granjeiro e Miguel Alves. O primeiro foi preso em casa, no Rio. O segundo foi capturado na Paraíba e recambiado de navio para a Capital Federal[18].

Já os autos do processo simplesmente haviam sumido. Para completar o quadro os jornais noticiaram que novos depoimentos alteraram a situação de Octacílio de Lucena Montenegro e ele sequer prestou mais algum depoimento[19].

O promotor Francisco Belizário Velloso Rabello se preparou para o julgamento acusando os réus de “assassinato premeditado e sem direito a defesa”. Apoiando a promotoria, a pedido de Rita Suassuna, estava o advogado e ex-senador paraibano José Gaudêncio[20].

Já o advogado Clóvis Dunshee de Abranches apresentou em favor dos réus a alegação que o crime por eles cometido “ocorreu em um período de intensa perturbação política devido à morte de João Pessoa” e isso gerou nos assassinos de João Suassuna “uma forte perturbação dos sentidos e da inteligência”[21].

O advogado Clovis Dunshee de Abranches.

Visando reforçar a defesa, o advogado Dunshee de Abranches conseguiu do “Centro Paraybano” no Rio de Janeiro, entidade de apoio aos paraibanos que viviam na Capital Federal, mas também servia de local de encontros políticos, uma carta em defesa dos réus. Produzida por Arthur Victor, presidente da instituição, a carta é uma longa peça acusatória contra João Suassuna, que mostra bem os processos da política radical daqueles tempos.

Entre outras coisas está descrito que Irineu José do Nascimento, padrasto de Miguel Alves, e um 1º sargento reformado da polícia paraibana, havia sido fuzilado “por ordem de João Suassuna”, deixando sua mãe e três irmãos no desamparo. Sua família foi obrigada a fugir para Pernambuco, onde sofreram “sérias perseguições” por parte de Estácio Coimbra, então governador daquele estado.

Já Antônio Granjeiro nasceu em 1888, chegou ao Rio em 1912, entrou nos Correios e Telégrafos e foi transferido para Diamantina (MG). Depois de retornar para o Rio começou a participar das atividades do “Centro Paraybano” e na época que iniciou os movimentos políticos contra o governo Washington Luís, o destemido Granjeiro era uma espécie de segurança e forte entusiasta pela causa liberal.

A carta do presidente do “Centro Paraybano” menciona um episódio envolvendo Granjeiro, na época que o corpo de João Pessoa chegou para ser enterrado ao Rio de Janeiro. Quando da agem do féretro por uma grande avenida, em meio à multidão, o carteiro gritou a pleno pulmões um “De joelhos!” e docilmente se ajoelhou diante do caixão do governador assassinado e seu gesto seguido por muitos presentes. Aparentemente isso o tornou uma figura de destaque do “Centro Paraybano”[22].

O julgamento começou ao meio dia de uma quarta feira, 18 de novembro de 1931, sob a presidência do juiz Nelson Hungria. O corpo de jurados era formado por sete homens e, apesar da atenção que aquele júri despertava entre os cariocas, tudo ocorreu de forma rápida e os dois réus foram absolvidos por 5 a 2 e a promotoria recorreu[23].

NOVO JULGAMENTO

Em 8 de janeiro de 1933 houve um novo julgamento, desta vez sendo presidido pelo juiz Antônio Eugênio Magarinos Torres, tendo como promotor Rufino de Loy e novamente a frente da defesa o competente Clóvis Dunshee de Abranches. Percebemos que, tal como o julgamento ocorrido em 1931, este segundo embate jurídico atraiu a atenção dos cariocas, sendo francamente noticiado na imprensa local.

O juiz Arthur Eugênio Magarinos Torres Filho. Nasceu em Campos (RJ) em 16 de janeiro de 1889 e faleceu em 8 de julho de 1960 – Fonte – http://autorescampistas.blogspot.com.br/

O promotor Rufino fez uma longa acusação. Já o advogado de defesa, com enorme desenvoltura, busca destruir todos os argumentos da promotoria. Mostrou com extrema eloquência a sofrida história de vida dos réus, apontando-os como “nordestinos pobres”. Trás para o tribunal o clima de revolta e instabilidade política de outubro de 1930, torna a ler a carta do “Centro Paraybano” e coloca os réus fora da classe dos “criminosos vulgares”. Cita vários juristas, psiquiatras e médicos para explicar como as emoções políticas tinha haver com o assassinato de João Suassuna. Ele relembrou a epopeia dos “18 do Forte”, fazendo uma relação deste caso para justificar o clima emocional dos réus diante da morte de João Pessoa[24].

Dunshee de Abranches fez até mesmo considerações para o crime de regicídio. Em determinada hora, como era praxe no tribunal no Rio, houve a parada para o “chá”[25].

Depois do retorno e finalização dos debates, os jurados se recolheram para decidir o futuro dos réus. Em 30 minutos trouxeram para o juiz Magarinos Torres o “Veredictum”, condenando Miguel Aves de Souza há seis anos e Antônio Granjeiro a quatro anos de detenção[26].

O julgamento teve outros desdobramentos. A família Pessoa, através do filho de João Pessoa, o jornalista Epitácio Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, abriu fogo com suas baterias jurídicas, processando o promotor Rufino de Loy. Entre outras coisas consideradas um acinte pela família e ditas pelo promotor na tribuna, estava que os réus “eram conhecidos da família Pessoa”. Não sei o resultado deste processo.

A TROCA

Evidentemente que para Rita Suassuna o resultado do julgamento foi decepcionante, uma verdadeira lástima. Mas o pior foi a viúva de João Suassuna saber que Antônio Granjeiro ou pouco mais de um ano na cadeia e ainda conseguiu que os seus “serviços” pela causa liberal fossem “plenamente recompensados” com a sua liberdade. Mesmo condenado no tribunal, este verdadeiro “alpinista político”, que queria ascensão com o sangue alheio, foi reincorporado aos Correios e Telégrafos em junho de 1934 e voltou a sua primitiva função de carteiro no Rio de Janeiro.

Já o assassino Miguel Alves de Souza se perdeu no “oco do mundo”!

Na época a família Pessoa foi muito eficaz em criar em torno da morte de João Pessoa, toda uma condição de perpetuação da memória desta família na Paraíba. Começa que a atual denominação da capital paraibana é “João Pessoa”, fato único entre as capitais estaduais brasileiras. Depois basta fazer uma pequena pesquisa no Google e se percebe o alto número de ruas e logradouros com nomes e sobrenomes ligados a família do governador morto na Confeitaria Glória.

Foto provavelmente da década de 1960, onde mostr Rita Suassuna e seus filhos, da esquerda para direita, Ariano, Saulo, João, Lucas e Marcos.

Já Rita Suassuna, depois de várias mudanças e provações, levou seus filhos para a cidade de Taperoá, no sertão paraibano. Ali, em uma região onde isso era a praxe, lutou para que seus cinco filhos homens jamais partissem para vingar a morte do pai. Entretanto a família de João Suassuna sempre perpetuou a sua memória e isso se incorporou no jovem Ariano, mesmo com tão pouca idade na ocasião da morte de seu pai.

Mesmo sem saber mensurar o quanto o peso da morte de João Suassuna contribuiu para moldar o Ariano Suassuna escritor, eu creio que de certa maneira ele realizou a sua “vingança” através dos seus escritos.

Se a família Pessoa buscou se perpetuar em nomes de ruas e logradouros na Paraíba, certamente Ariano se imortalizou na mente e nos corações de milhões de paraibanos, nordestinos e brasileiros com as suas obras. O autor deste trabalho acredita que por muitas décadas e séculos no futuro, o nome e as obras de Ariano Suassuna serão obrigatórios para o entendimento do Nordeste.

Contudo, eu tenho certeza que ele, Ariano Vilar Suassuna, trocaria tudo o que conseguiu com as letras para ter tido a oportunidade de ter visto seu pai conhecer seus filhos, ter acompanhado a sua vida e estar ao lado de João Suassuna no dia de sua morte. 

VEJA NO TOK DE HISTÓRIA OUTRAS HISTÓRIAS SOBRE A PARAÍBA DAS DÉCADAS DE 1920 E 1930 

A REPERCUSSÃO DOS ATAQUES DO CANGACEIRO SINHÔ PEREIRA A PARAÍBA E A INFORMAÇÃO SE LAMPIÃO ESTEVE EM TERRAS POTIGUARES EM 1922 – /2013/03/15/noticia-ruim-chega-ligeiro/

A HISTÓRIA DO TIROTEIO NO SÍTIO TATAÍRA E A INCRÍVEL RESISTÊNCIA DO CANGACEIRO MEIA-NOITE –/2013/08/14/a-historia-do-tiroteio-no-sitio-tataira-e-a-incrivel-resistencia-do-cangaceiro-meia-noite/

A BATALHA DO CASARÃO DOS PATOS – /2011/06/07/a-batalha-do-casarao-dos-patos/

BENTO QUIRINO, A VIOLÊNCIA NO SERTÃO DE OUTRORA E A BUSCA PELA HISTÓRIA

NOTAS  

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[1] Em 1945 o antigo IFOCS ou a se chamar Departamento Nacional de Obras Contras as Secas – DNOCS. A Fazenda Acauã é um importante patrimônio histórico rural paraibano. Com 300 anos de história, é a mais antiga fazenda de gado e algodão do Sertão da Paraíba. Está localizado a 409 quilômetros da capital, atualmente se localiza na zona rural da cidade de Aparecida. Ariano Suassuna morou no casarão, durante parte de sua infância, e se inspirou em Acauã para escrever suas obras. Ver http://sednemmendes.blogspot.com.br/2013/05/visitando-o-sitio-historico-da-fazenda.html

[2] Segundo material existente no site www.http//pb1.com.br , o vereador Fernando Milanez, sobrinho-neto de João Pessoa, afirmou que a versão de que o assassinato teria sido um crime ional é um “absurdo”, porque, segundo ele, João Pessoa nem conhecia João Duarte Dantas. Para a família de João Pessoa, o ex-presidente foi vítima de ambição e mentira, e a causa do assassinato teria sido política. Independente do motivo, João Dantas, junto ao seu cunhado, Augusto Caldas, que não havia participado do crime, foram presos na Casa de Detenção do Recife. Em 6 de outubro de 1930, nos primeiros dias da Revolução de 1930, os dois teriam sido assassinados. A versão oficial indicou suicídio. Ver – http://pb1.com.br/noticias_dentro.php?pt1=898

[3] No início de 1929 ainda estava em vigência a conhecida “política do café com leite”, em que políticos de Minas Gerais e de São Paulo se alternavam na presidência da república. O então Presidente Washington Luís, indicou o governador São Paulo, Júlio Prestes, como seu sucessor. Apenas três estados negaram o apoio a Prestes: Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba. Os três se uniram a políticos de oposição de diversos estados e formaram, em agosto de 1929, um grupo de oposição denominado Aliança Liberal. No dia 20 de setembro do mesmo ano foram anunciados os candidatos oposicionistas às eleições presidenciais. Getúlio Vargas seria candidato a Presidente do Brasil e João Pessoa seria o candidato a vice-presidente. Após perder as eleições, que foram realizadas em março de 1930, a Aliança Liberal alegou que a vitória de Prestes era decorrente de fraudes. Ver – http://pb1.com.br/noticias_dentro.php?pt1=898

[4] O empresário pernambucano Frederico João Lundgren (1879-1946) foi uma espécie de desbravador em seu tempo. Tratado como coronel, gerou 22 filhos, teve várias mulheres e se tornou uma espécie de lenda do comércio ao levar tecidos e outras mercadorias a dezenas de pequenas cidades do interior do país. Herdeiro de uma tecelagem, Lundgren teve, em 1908, a ideia de criar uma cadeia de varejo pela qual pudesse vender seus produtos. Era o começo das conhecidas Casas Pernambucanas. Ver – http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/0726/noticias/a-sobrevivente-m0053283 e /2014/05/12/oxente-hitler-arquivos-e-documentos-mostram-que-os-nazistas-estiveram-na-paraiba/

[5] Ver jornal “O Paiz”, Rio de Janeiro, edição de 4 de outubro de 1930, página 4.

[6] Ver jornal “O Paiz”, Rio de Janeiro, edição de 5 de outubro de 1930, na 1ª página. Apesar do Palácio do Catete ser a antiga residência dos Presidentes da República, quando tomou posse Washington Luís decidiu residir no Palácio da Guanabara.

[7] Ver – http://pt.wikipedia.org/wiki/Revolu%C3%A7%C3%A3o_de_1930

[9] Este local fica bem próximo a atual sede da renomada Editora Folha Dirigida.

[10] Os jornais listam que além de sua aliança, de 200 mil réis em dinheiro, um relógio e abotoaduras de ouro, João Suassuna levava a licença para portar sua arma e alguns papéis. Entre estes uma carta fechada para a esposa.

[11] Ver jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de 9 de outubro de 1930, 1ª página e o jornal “O Paiz”, Rio de Janeiro, edição de 10 de outubro de 1930, página 2. Desde os primeiros momentos as investigações ficaram a cargo do investigador Silvio Terra, figura lendária da polícia investigativa carioca, cujo nome atualmente batiza a Academia de Polícia Civil do Rio de Janeiro.

[12] Joaquim Souza Leão era um puro exemplo de um membro oriundo da mais alta elite agrária açucareira pernambucana. Era sobrinho de desembargador, de senador do Império, do Visconde de Campo Alegre e filho de Antônio de Souza Leão, rico fazendeiro pernambucano da região de Moreno e que havia recebido do Imperador Pedro II o título de Barão de Morenos. Um de seus filhos foi embaixador. Ver – http://morenoengenho.blogspot.com.br/

[13] Ver – http://issuu.com/auniao/docs/caderno_especial_parte_1

[14] Ver o jornal “O Paiz”, Rio de Janeiro, edição de 11 de outubro de 1930, página 2 e o jornal “Diário carioca”, Rio de Janeiro, edição de 7 de janeiro de 1933, 1ª página.

[15] Segundo Ariano Suassuna, na década de 1950, quando ele entrou na Faculdade de Direito de Recife, conheceu o filho do Joaquim Pessoa Cavalcante de Albuquerque, irmão de João Pessoa, que isentou o pai da morte de João Suassuna. Mas não o tio Aristarco Pessoa e nem a participação de Octacílio de Lucena Montenegro no crime. Ver – http://issuu.com/auniao/docs/caderno_especial_parte_1

[16] Sylvia Seraphin Thibau era uma jornalista, escritora e poetisa, era casada com o médico João Thibau Júnior e mãe de dois filhos. Sylvia foi acusada pelo jornal carioca “A Crítica” de ter traído o marido, mantendo um caso com o também médico Manuel Dias de Abreu, mais tarde inventor da abreugrafia. Irritada, ela foi à redação do jornal armada, para matar o editor, Mario Rodrigues, no dia 26 de novembro de 1929. Como Mário não estava no jornal, Sylvia acabou atirando no filho dele, o também jornalista Roberto. No local, assistindo ao crime, estava o irmão da vítima, Nelson Rodrigues, então com 17 anos. O processo criminal foi acompanhado por uma feroz campanha promovida pelo jornal, que chamava a ré de “literata do Mangue” e “cadela das pernas felpudas”. Seu julgamento foi o primeiro no Brasil a ser transmitido ao vivo pelo rádio. O advogado Clovis Dunshee de Abranches alegou que Sylvia havia se descontrolado por ter sido caluniada e conseguiu a sua absolvição. Ela suicidou-se em 1936, depois de abandonada por um tenente-aviador por quem havia se apaixonado. Ver http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%ADlvia_Serafim_Thibau

[17] Ver jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de 4 de novembro de 1930, página 9. Neste jornal temos uma longa declaração de Silvio Terra, se defendendo de acusações feitas por Octacílio de Lucena Montenegro através dos jornais. As acusações de Octávio apontam que este havia sido torturado pelos policiais para confessar sua participação na morte de Ariano Suassuna. Não encontrei a edição de jornal com a publicação de Octávio contra Silvio Terra. Mas encontrei a carta de defesa do investigador aos seus superiores e publicada nos jornais do Rio. Este investigador é muito claro, direto e contundente em suas afirmativas, além de negar veementemente o uso de tortura contra os detidos. O então coronel Bertoldo Klinger, líder revolucionário, elogiou o posicionamento do policial. Ver também “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de 11 de julho de 1931, página 3.

[18] Miguel Alves estava incluso no crime previsto no Artigo 294, parágrafo 1º, com agravantes do Artigo 39, parágrafos 2º, 7º, 8º e 13º. Já Granjeiro era acusado nos mesmos artigos, acrescentando o artigo 18, parágrafo 3º. Lembrar que estas acusações faziam parte Código Penal anterior ao que atualmente está em vigência. Ver jornal “Diário de Notícias”, Rio de Janeiro, edição de 7 de janeiro de 1933, 1ª página.

[19] Ver jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de 11 de julho de 1931, página 3. Os jornais da época não informam quem, quando e onde ocorreram estes depoimentos que livraram Octacílio de Lucena Montenegro deste processo. Nem comentam nada mais sobre o sumiço dos autos e sequer é mais comentado por qualquer razão o nome do Joaquim de Souza Leão como presumidamente envolvido no crime. Ver jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de 11 de julho de 1931, página 3.

[20] Ver jornal “A Esquerda”, Rio de Janeiro, edição de 21 de setembro de 1931, página 4.

[21] Ver jornal “Diário de Notícias”, Rio de Janeiro, edição de 19 de agosto de 1931, página 2.

[22] Ver jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de 11 de setembro de 1931, página 3. Por mais estranha que esta história de ficar de joelhos diante do caixão de João Pessoa possa parecer, naquela época, naquelas circunstâncias, isso aconteceu de verdade. Na capital paraibana o nível de fanatismo em 1930 era tal, que se alguém tocasse em um local público uma certa música criada para homenagear o morto ilustre, e alguém gritasse um sonoro “De joelhos!”, aí de quem não cumprisse a ordem. Ou era surrado, ou preso! Em outros estados também ocorreram muitas manifestações radicais. No Rio Grande do Norte, como consequência direta das mudanças das mudanças políticas da Revolução de 1930, a campanha estadual de 1934 foi uma das mais violentas da história política potiguar, com vários mortos em meio a inúmeras arbitrariedades.

[23] Ver jornal “Diário Carioca”, Rio de Janeiro, edição de 19 de novembro de 1931, página 3. É interessante comentar sobre o juiz Nelson Hungria Hoffbauer. Este nasceu em Além Paraíba, Minas Gerais, em 1891, iniciou sua vida pública como promotor de Rio Pomba, em seu estado natal. Nomeado juiz em 1924, foi magistrado por 46 anos, tendo sido nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal em 1951, do qual chegou à presidência e se aposentou em 1961. Hungria é tido como um dos luminares de nossa cultura jurídico-penal, onde deixou escrito 17 obras e 150 monografias. Foi considerado o líder intelectual da redação do Código Penal de 1940, além de ter participado da elaboração do Código de Processo Penal, da Lei de Contravenções Penais e ainda da Lei de Economia Popular. Seus Comentários ao Código Penal (8 volumes) influenciaram gerações de juristas brasileiros e constituíram referência obrigatória para a compreensão de nosso sistema jurídico penal. Ver –  http://www.memorial.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=114

[24] A Revolta dos 18 do Forte de Copacabana foi uma revolta tenentista ocorrida na cidade do Rio de Janeiro em 5 de julho de 1922. Foi a primeira revolta tenentista da República Velha. Teve a participação de 17 militares e um civil. Suas causas principais estão no descontentamento dos tenentes com o monopólio político do poder no Brasil por parte das oligarquias (principalmente ricos fazendeiros) de Minas Gerais e São Paulo. Embora o movimento tivesse sido planejado em várias unidades militares, somente o Forte de Copacabana e a Escola Militar se levantaram no dia 5 de julho de 1922. O forte foi bombardeado e a rendição dos rebeldes foi exigida.  O tenente Siqueira Campos e um grupo de militares rebeldes pegaram armas e marcharam pelas ruas em direção ao Palácio do Catete (sede do governo federal na época). Durante a marcha alguns militares desistiram, ficando apenas 17 que receberam o apoio na rua de um civil, totalizando 18. Os rebeldes foram cercados pela tropa do Governo Federal. Após forte tiroteio em frente ao posto 3 da praia de Copacabana, somente Siqueira Campos e Eduardo Gomes sobreviveram e foram presos. Os outros dezesseis integrantes do movimento foram mortos no combate.

[25] Regicídio é o assassinato de um rei, seu consorte, de um príncipe herdeiro ou de outras formas de regentes, como presidentes e primeiro ministros. Ver http://pt.wikipedia.org/wiki/Regic%C3%ADdio

[26] Ver o periódico “Diário de Notícias”, Rio de Janeiro, nas edições de 7 e 8 de janeiro de 1933, sempre nas 1ª páginas. Igualmente ver o jornal “Diário Carioca”, Rio de Janeiro, edição de 7 de janeiro de 1933, 1ª e 5º páginas.

A HISTÓRIA DE VILMAR GAIA – VINGADOR, OU PISTOLEIRO A PREÇO FIXO?

Rostand Medeiros – IHGRN

1970 foi um ano de seca muito forte, onde pouco sobrou para o homem do sertão nordestino conseguir sobreviver. Na época, o Governo Federal procurou minimizar os impactos sociais decorrentes dessa estiagem e atender as grandes levas de flagelados. Em anos anteriores haviam sido criados programas que consistiam na utilização de trabalhadores rurais em obras de pequeno e médio porte, as chamadas “Frentes de Emergência”. Normalmente executadas em grandes propriedades privadas de lideranças políticas, a criação desses subempregos fomentou entre os pequenos agricultores do sertão do Nordeste brasileiro uma forte dependência política e financeira. Mas para muitos, em certos momentos, foi a principal fonte de sobrevivência.

Uma dessas “emergências”, como o sertanejo denominavam os locais onde ocorriam as obras desse programa, ficava localizada a cerca de trinta quilômetros ao norte da sede do município pernambucano de Serra Talhada, na região do Pajeú (412 km de Recife e então com 65 mil habitantes).

No final de dezembro de 1970 ali foi realizada a obra de melhoramento da estrada carroçável que seguia até o povoado de Santa Rita, ando pela comunidade de São João dos Gaia e o sítio Serrote Branco.

A maioria dos trabalhadores rurais alistados naquele setor eram membros da família Magalhães, cujos os integrantes eram considerados um clã familiar tradicional, tidos como pessoas honestas, trabalhadoras, com muitos deles possuindo pequenas propriedades rurais, mas recursos financeiros limitados. Até hoje na região são conhecidos como a família Gaia, ou simplesmente os Gaia. Mesmo sem comprovação, é possível que essa denominação exista por eles possuírem um anteado oriundo do município de Vila Nova de Gaia, norte de Portugal.

Foto ilustrativa de uma Frente de Emergência no sertão nordestino.

O certo é que no dia 30 de dezembro de 1970, uma quarta-feira, esses trabalhadores estavam reunidos para receber de um funcionário da extinta SUDENE (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) o pagamento pela semana trabalhada na Frente de Emergência. Fazendo a segurança desse funcionário estavam dois soldados da Polícia Militar do Estado de Pernambuco (PMPE), que se chamavam Adalberto Clementino de Moura e Alberto Alves de Oliveira, este último conhecido como Alberto Cipriano. O pagamento ocorreu na comunidade de São João dos Gaia, em um local onde hoje existe um Grupo Escolar.

Segundo a reportagem de primeira página do Diário de Pernambuco (edição de 17/01/1971), na hora de entregar o miserável salário, o funcionário público da SUDENE buscou organizar uma fila e houve algum tipo de alteração entre ele e Edmundo Gaia, tido como chefe da família e da turma de trabalhadores, pois na sequência o pagador mandou que o soldado Adalberto revistasse Edmundo para ver se ele trazia alguma arma de fogo e em caso positivo, que fosse preso.

A Serra Talhada.

O material do jornal informa, sem trazer detalhes, que o soldado Adalberto não gostava de Edmundo e para impor autoridade empurrou o rapaz, que reagiu empurrando o militar de volta. O soldado então revidou com um violento murro na cara do trabalhador rural.

Aí a coisa desandou!

Cícero Batista Gaia tentou apartar a briga entre Edmundo e o soldado Adalberto, quando o outro soldado baleou Cícero. Na época uma das testemunhas do fato foi uma mulher conhecida como Maria Barraqueira, que tinha montado no local uma banquinha e vendia algumas peças de roupas. Ela contou que no momento do tiro atendia Antônio, irmão de Edmundo, que ao ouvir o disparo disse “Valha-me Nossa Senhora… Briga com meus irmãos! Corra Enoque (outro irmão)”. Maria Barraqueira contou ao repórter do Diário de Pernambuco que “A essa altura eu me vali das pernas e me fiz no mato, de onde ouvia, somente, a saraivada de balas pelo ar”.

Outra testemunha do conflito, um trabalhador rural local, narrou que “Nossa Senhora valeu os irmãos Gaia, pois aguentar uma chuva de balas daquelas, foi um verdadeiro milagre”. Ainda segundo essa testemunha os Gaia, ao verem Cícero baleado, “lutaram como leões”. Um deles partiu para cima do soldado Alberto Cipriano, conseguiu tomar seu revólver e matá-lo. O soldado Adalberto também tombou sem vida. Uma versão aponta que Cícero, Edmundo, Tozinho, Antônio e Enoque Gaia reagiram apenas com facões e punhais aos dois policiais armados de revólveres. O menor Luiz Ferreira da Silva testemunhou tudo e afirmou à imprensa que também havia sido agredido por um dos policiais, cujo nome não sabia. Comentou também que os Gaia reagiram às arbitrariedades “como um homem deve fazer” e que os soldados “estavam pagando para morrer”.

Após as mortes, os membros da família Gaia envolvidos no conflito desapareceram.

Covardia

Em março de 1975, quando o caso Vilmar Gaia estava no auge, o então capitão da PMPE Jorge Luiz de Moura, que nessa época era o Assistente Policial Militar Adjunto a Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco, produziu um interessante relatório de onze páginas sobre o caso. Uma cópia foi entregue ao extinto DOPS (Delegacia de Ordem Política Social) de Recife e se encontra no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, cujo conteúdo utilizei para produzir esse artigo.

Neste material o capitão Jorge afirmou que a morte daqueles dois policiais “gerou a inimizade entre alguns elementos da Polícia Militar, destacados nesta cidade (Serra Talhada), que ficaram solidários com as famílias dos soldados assassinados”. O problema dessa “inimizade” foi a forma como os policiais agiram contra os membros da família Gaia que não fugiram. Um grupo formado basicamente de velhos, mulheres e crianças.

Um funcionário municipal de Serra Talhada, cuja identidade não foi revelada, comentou aos jornalistas do Diário de Pernambuco (edição de 17/01/1971) que “as sevícias”, que os familiares dos assassinos dos soldados sofreram da polícia, a fim de descobrirem o paradeiro dos mesmos, foi um “procedimento reprovável sob todos os pontos de vista”.

Francisca Maria Alves, seus filhos. Membros da família Gaia, atacados por policiais.

Os repórteres recifenses estiveram no casebre de Antônio Paes de Lima, sogro de Edmundo, onde viram as portas arrombadas pelos policiais ao iniciar as diligências para capturar os criminosos e ouviram do dono da casa que os soldados chegaram por volta da meia noite do dia 31 de dezembro de 1970. Antônio começou o Ano Novo “recebendo murros, pontapés, pancadas nos peitos com a coronha de um fuzil e empurrões”. O mesmo aconteceu com seu filho Joaquim Paes, que foi arrastado pelos cabelos e jogado em cima de um caminhão. Já a Senhora Virginal Vieira Alves, esposa de Edmundo, tentou fugir com os seus filhos, mas foi obrigada a retornar para sua casa em meio a muitas ameaças dos soldados, que mantiveram fuzis apontados para ela e suas crianças.

Já as jovens Maria José Paes de Lima, Lucinda Francisca Alves e Maria Ginave Alves, tiveram as mãos e os pescoços amarrados e foram violentamente açoitadas com cordas para revelarem o paradeiro dos parentes.

Mas não ficou só nisso!

A mãe de Edmundo, a Senhora Manuela Maria Cordeiro de Magalhães, então com 72 anos de idade, foi arrastada pelo chão, teve fuzis apontados para sua cabeça e foi ameaçada com sabres no pescoço. Nem o motorista da viatura policial aguentou ver o sofrimento daquela mulher e clamou pela sua defesa. Ainda segundo a reportagem do Diário de Pernambuco a tentativa de proteção não adiantou, pois seus companheiros de farda jogaram Dona Manuela em cima de um banco de madeira e, em janeiro de 1971, ela se encontrava entre a vida e a morte.

Já Francisca Maria Alves, mãe de dez filhos e que estava grávida na época dessa tragédia, foi ameaçada de ser sangrada se não informasse o paradeiro do seu marido Antônio Gaia. A experiência de Dona Francisca foi verdadeiramente terrível, pois sofreu violências na frente dos filhos e nada falou sobre o esposo.

No outro dia, por pura necessidade, essa mulher foi buscar água em uma cacimba nas proximidades. Nesse meio tempo seus filhos, já massacrados de tanto terror acontecido na noite anterior, ao escutarem um carro circulando pelas imediações de sua casa, correram desesperados para o meio do mato. Pensavam que a polícia retornava para uma nova seção de violências.

Ocorre que as crianças se perderam na caatinga e só foram encontrados já à noite. O mais novo dos filhos de Dona Francisca se achava doente e acabou morrendo por falta de assistência.

A Morte do Velho Batista Gaia

Aparentemente as notícias das arbitrariedades policias contra idosos, mulheres e crianças da família Gaia obtiveram certo nível de repercussão em Recife. Mas isso não significou o fim das violências.

Segundo uma reportagem da Revista Manchete, assinada por Laércio Vasconcelos (Edição 1568, 08/05/1982, págs. 118 a 121), quem ou a ajudar os membros da família Gaia envolvidos no conflito da “Frente de Emergência” foi um tio chamado João Batista de Magalhães, mais conhecido como João Batista Gaia. Ocorre que esse cidadão, guarda aposentado da Coletoria Estadual, era amigo de José Cipriano, pai do falecido soldado Alberto Alves de Oliveira, o Alberto Cipriano. Segundo o jornalista Laércio Vasconcelos, nas décadas de 1920 e 30 eles haviam participado de volantes que haviam caçado Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, e seu bando de cangaceiros. Quando José Cipriano soube que seu velho amigo de correrias contra Lampião estava ajudando na defesa dos assassinos do seu filho, evidentemente que não gostou nem um pouco daquela situação.

Em 06 de julho de 1971, seis meses após os acontecimentos em São João dos Gaia, o velho Batista Gaia foi assassinado em Serra Talhada com cinco tiros, duas facadas e uma forte cacetada na cabeça. O fato se deu quando ele estava no quarto de uma prostituta, aparentemente denominada “Ina” e seu corpo foi então jogado ao lado da caixa d’agua da cidade, em um lugar conhecido como Alto do urubu, ou simplesmente Urubu.

O então delegado de Serra Talhada, o capitão João Virgílio Oliveira de Morais, instaurou um inquérito para saber quem matou João Batista Gaia. Este solicitou a Secretaria de Segurança Pública um Delegado Especial e quem assumiu a função foi o Bacharel Fernando José Pereira de Albuquerque. Essa autoridade afirmou, e consta do relatório do capitão Jorge (Pág. 02), que “dada as inimizades da vítima, neste município, as pessoas conhecedoras dos detalhes, se furtaram a prestar informações”.  

Ainda segundo esse relatório de 1975, logo surgiram três versões acerca da morte de Batista Gaia na cidade de Serra Talhada. A primeira dizia que os autores foram soldados da 17ª Companhia de Polícia Militar; a segunda que o autor foi José Cipriano; e a última versão era que o velho Batista Gaia desempenhara a função de guarda da Coletoria Estadual (atual Secretaria da Fazenda), onde conseguiu muitos inimigos e foi assassinado pelas suas ações como funcionário público. O relatório também informou que na época desse homicídio João Batista Gaia tinha 75 anos, mas era um homem que frequentava cabarés, bebia e arranjava confusões nesses ambientes.

Igreja de Nossa Senhora da Penha, em Serra Talhada.

Mesmo sem apontar autores, o inquérito foi então remetido à justiça. Durante a instrução criminal o promotor público de Serra Talhada, cujo nome não é informado, solicitou o arquivamento do processo, mas o pedido foi negado pelo juiz Ítalo José de Miranda Fonseca. Aí o processo foi encaminhado para o Procurador Geral, que acatou as alegações do juiz Ítalo Fonseca e mandou que o promotor público da cidade de Triunfo, distante 33 quilômetros de Serra Talhada, oferecesse denúncia.

O processo foi em seguida remetido para a Secretaria de Segurança Pública, para diligências complementares. Estas foram realizadas pelo Delegado de Homicídios da época, que concluiu pela participação do soldado da PMPE Natalício Nunes Nogueira. Ainda segundo o relatório do capitão Jorge em decorrência dessa conclusão, o soldado Natalício foi denunciado pelo promotor público (não é informado se foi o de Triunfo, ou de Serra Talhada) e enquadrado no crime de homicídio qualificado. Mas o soldado foi impronunciado pelo próprio promotor, alegando falta de provas.

O leitor deve levar em consideração que naqueles primeiros anos da década de 1970, a situação de violência na região de Serra Talhada alcançou um tal nível, que em 1975 existia naquela comarca 102 processos de homicídio, sendo que em dez constava o uso de tocaias para perpetrar os crimes e outros dez envolviam nada menos que quinze policiais (Revista Manchete, edição 1220, 06/09/1975, página 23). Já o relatório do capitão Jorge (Relatório, pág. 11), através de informações fornecidas pelo juiz Ítalo, nos três cartórios criminais de Serra Talhada havia 150 processos criminais em andamento, sendo 80 abertos entre abril de 1974 e março do ano seguinte. 

Foto antiga de Serra Talhada.

Ou seja, o caso da morte do velho Batista Gaia era mais um entre tantos.

Independentemente dessa questão, o certo é que os membros da família Gaia não viram ninguém ser preso, julgado e condenado pela morte de João Batista Gaia. Enquanto isso, alguns integrantes dessa família envolvidos no conflito da “Frente de Emergência” estavam detidos na Delegacia de Serra Talhada.

“Se Fosse Vivo Eu o Mataria Novamente”

Vilmar Alves Magalhães, o Vilmar Gaia, nasceu em 15 de maio de 1949 e era filho do velho Batista Gaia e de Dona Francisca Alves de Lima, que faleceu quando Vilmar tinha oito anos de idade. Esse rapaz era uma figura típica do meio rural da região do Pajeú. Nasceu na povoação de Santa Rita, estudou até o segundo ano primário, gostava de gado e jogar pião, trabalhou na roça e, na ausência de sua mãe, foi criado pela irmã mais velha, Maria de Lourdes. Esta enviuvou cedo e, sem filhos, deu todo carinho possível ao irmão mais novo. Não era uma criança de chorar por besteiras e cedo ganhava alguns trocados tangendo o gado de Seu Luís Inácio. Segundo a maioria das fontes, Vilmar Gaia se encontrava em São Paulo e após saber do assassinato do pai voltou para o Pajeú (Diário de Pernambuco, 22/08/1975).

Vilmar Gaia

Segundo o relatório do capitão Jorge Luiz de Moura, até a época do assassinato do seu pai, Vilmar Gaia não tivera problemas com a justiça. Inclusive o capitão Jorge descobriu que ele havia tentado ingressar na polícia em julho de 1970, no quartel do 5º Batalhão de Polícia Militar, quando este era sediado na cidade pernambucana de Salgueiro. Em uma reportagem assinada pelo jornalista Ricardo Noblat, na Revista Manchete (edição 1220, 06/09/1975, páginas 22 e 23), existe a informação que quando mataram seu pai, mesmo tendo ido para São Paulo, Vilmar estava inscrito em um novo exame de issão na polícia do seu estado.

Mas agora, de volta ao sertão pernambucano e cheio de ódio, ele iria mostrar que era melhor com uma arma na mão do que com um lápis!

Novamente na Revista Manchete, Vilmar deu uma declaração a Ricardo Noblat onde buscou resumir sua vingança – “O processo não andava, nunca andou direito. A gente ia, pedia ao delegado, capitão Virgílio, comandante da 17ª Companhia de Polícia Militar, e não adiantava, e não fazia nada. E o que era pior: ainda ava os domingos na casa de José Cipriano, o homem que mandou matar meu pai. Aí compreendi que a justiça tinha que ser feita pela gente mesmo”.  

Evidentemente que Vilmar desejava colocar os assassinos do seu pai na alça de mira de sua arma. Para ele seus alvos prioritários eram José Cipriano, seus familiares e os policiais que ajudaram na morte do velho Batista Gaia.

Em uma entrevista o tenente reformado da polícia pernambucana David Gomes Jurubeba, ex-integrante das “volantes” que combateram o cangaceiro Lampião e seu bando na década de 1930, comentou que Vilmar Gaia descobriu que os soldados Natalício Nunes Nogueira e Luís Gonzaga Mendes estavam envolvidos na morte do velho Batista Gaia. Estes possuíam laços de parentesco com a família Ferraz e este clã foi acusado por Vilmar de protegê-los (Diário de Pernambuco, edição de 17/11/1975). Uma outra versão aponta que Vilmar soube que a prostituta que estava com seu pai no dia de sua morte e se chamaria “Ina”, teria traído seu cliente por CR$ 500,00, pagos pelos assassinos. Ela então teria se arrependido do que fez e narrou tudo ao filho de Batista Gaia.

Policiamento em Serra Talhada.

Somente em 13 de janeiro de 1973, um ano e meio depois da morte de seu pai, foi que Vilmar Gaia conseguiu matar com um tiro na testa Arnaldo Alves de Oliveira, o Arnaldo Cipriano, em um bar na cidade de Salgueiro, quando a vítima jogava bilhar. Este era filho de José Cipriano e irmão do soldado Alberto, o mesmo que morreu no penúltimo dia de 1970.

Vilmar nunca negou a autoria desse crime. Quando foi preso em 1975 ele afirmou para o juiz de Salgueiro, o Dr. Enéas Bezerra de Barros, que “Se Arnaldo Cipriano fosse vivo eu o mataria novamente. Ele foi um dos assassinos de papai e eu o escolhi para mandá-lo para o inferno em primeiro lugar” (Diário de Pernambuco, edição de 14/11/1975).

Logo Vilmar focava em outros alvos e angariava novos inimigos e amigos.

Se havia militares que Vilmar Gaia desejava ver diante da mira do seu revólver, outros lhe protegiam com “o braço forte” e estendiam a “mão amiga”.

Seu parente Lindauro Gaia comentou em um documentário com direção de Eduardo Coutinho e intitulado “O Pistoleiro de Serra Talhada”, que após a morte de Arnaldo Cipriano, Vilmar ou a circular livremente ao lado de policiais. Comentou que seu parente “ficou dentro da cidade, com a polícia com a mão por cima dele e até bebendo”.

Mas logo essa aproximação traria problemas.

Mais Problemas

Sentindo-se protegido, Vilmar Gaia foi a uma festa na comunidade do Jardim, próximo a São João dos Gaia. Era uma noite de sábado, 22 de junho de 1974, bem no período de festas juninas e ele foi acompanhado de amigos policiais e algumas mulheres.

Vilmar começou a dançar com uma dessas damas, considerada “de vida fácil” pelo povo da região. Seja pela forma de vestir, ou de agir, a dança de Vilmar e da parceira começou a incomodar os presentes. Estes foram até Pedro Inácio dos Santos, suplente de Comissário de Polícia, pedir que ele tomasse providências. Sem outro jeito, Pedro foi até Vilmar e mandou que ele e seus amigos se comportassem, ou fossem embora do ambiente.

Com o que aconteceu depois, teria sido melhor ter deixado o casal dançar do jeito que bem entendessem.

Logo estourou uma discursão, que gerou um tiroteio pesado, onde foram disparados mais de 40 tiros. O resultado foi a morte de Pedro Inácio, ferimento em três homens e duas mulheres. Segundo o relatório do capitão Jorge (Relatório, págs. 03 e 04), embora não conste nos autos do processo aberto sobre esse episódio, Vilmar Gaia também saiu ferido e recebeu tratamento médico no Hospital Barão de Lucena, em Recife.

Ao ler esse relatório, acredito que para o capitão Jorge o mais incrível desse episódio ocorreu cerca de quinze dias depois, na delegacia de Serra Talhada.

Vilmar Gaia esteve neste local para prestar depoimento sobre o tiroteio em Jardim. Ele foi acompanhado de outras pessoas, alguns de sua família, todos armados até os dentes. Ocorre que na hora do depoimento chegou de Salgueiro um cabo, três soldados e um motorista, com ordens do tenente Almir Ferreira de Morais, delegado daquela cidade, para levar Vilmar até sua presença, onde ele deveria prestar depoimento sobre a morte de Arnaldo Cipriano.

Mas o delegado de Serra Talhada, um subtenente, negou ao cabo que Vilmar Gaia estivesse naquele momento em sua delegacia, o que era mentira. Um soldado de Salgueiro sabia quem era Vilmar, o reconheceu e informou ao cabo. Este por sua vez, vendo a atitude de seu superior e a presença de pessoas armadas em favor de Vilmar Gaia, decidiu recuar.

Vilmar Gaia na Delegacia de Serra Talhada.

O capitão Jorge descreveu em seu relatório oficial que a atitude do militar que respondia pela delegacia de Serra Talhada foi classificada como “omissão”, além de “pura falta no cumprimento do dever” e “covardia”.

Com esse tipo de ação por parte das autoridades policiais junto a Vilmar Gaia, o que reservava o futuro?

Mais Mortes

Três meses depois, em 13 de outubro de 1974, por volta das sete ou oito da manhã de um domingo, mesmo estando respondendo ao processo sobre a morte de Pedro Inácio dos Santos, que tinha o número 2.746 e corria no 2º Cartório da Comarca de Serra Talhada, Vilmar circulava livre e solto em um carro, na povoação de Santa Rita. Então ocorreu na estrada a colisão do seu veículo com o do primo Antônio Augusto Batista. Ao invés de procurarem resolver o problema na conversa, logo surgiu uma discursão e o clima esquentou. Existe uma versão que durante a troca de palavras ásperas, Antônio Augusto teria ido até o seu carro pegar uma arma e por isso o “Vingador do sertão” atirou nele, matando-o na hora.

Vilmar, certamente buscando um fiapo de justificativa, comentou em uma entrevista para o Diário de Pernambuco (14/11/1975) que seu primo Antônio Augusto lhe protegia após o início dos problemas com seus inimigos, mas depois, com medo, ou para o lado da família de José Cipriano. Muita gente em Serra Talhada afirma que isso era mentira.

E quase que Vilmar Gaia mata outro primo nesse mesmo dia!

José Augusto Batista, irmão da vítima, se dirigiu para o local e foi recebido a tiros por Vilmar Gaia. Só não morreu por que entrou no seu carro e fugiu.

José Augusto veio até o quartel da 17ª Companhia de Polícia Militar e pediu auxílio. Foi organizada uma patrulha composta de um cabo e seis soldados a fim de capturar Vilmar Gaia, que descaradamente ainda se encontrava em Santa Rita. Consta que o cabo levou uma submetralhadora calibre 45, completamente municiada.

O pistoleiro estava no interior de uma casa, quando por volta das nove ou dez horas da manhã (algumas fontes apontam que foi a tarde) a polícia chegou. Ao Diário de Pernambuco Vilmar Gaia afirmou (14/11/1975) que “ao invés de lhe darem voz de prisão, começaram a atirar e, para não morrer, me defendi”.

O soldado Natalício Nunes Nogueira, seu inimigo implicado na morte de seu pai, entrou pela porta traseira e Vilmar o matou a tiros. Após isso tratou de fugir. Já o cabo armado com a submetralhadora continuou com a mesma nas mãos e não disparou um único tiro.

Vaqueiros do sertão do Pajeú – Foto Rostand Medeiros

Com esses homicídios, os ânimos se acirraram em Serra Talhada e a situação de Vilmar Gaia começou a se complicar. Depois de matar um primo e tentar contra a vida de outro, houve um rompimento na família Gaia, com uma parte querendo a cabeça do pistoleiro e outra o protegendo.

Com a morte do soldado Natalício a polícia novamente voltou a circular na região da família Gaia, agora com violência redobrada. Houve invasão de casas, pessoas apanharam e outras foram presas. Zuleide Alves de Magalhães, irmã de Vilmar, ficou detida nas dependências da 17ª Companhia de Polícia Militar.

Lindauro Gaia comentou ao diretor Eduardo Coutinho em 1977 que, a partir da morte do soldado Natalício, a perseguição contra Vilmar Gaia só fez crescer e ele deixou de circular por São José dos Gaia e Santa Rita.

Luta entre Famílias

Enquanto a polícia perseguia os integrantes da família Gaia e corria atrás de Vilmar, as violências se sucediam.

Consta que ainda em 1974, Vilmar Gaia participou da morte de um homem chamado Luiz Desidério, ou Luiz de Izidério, na cidade de Irecê, Bahia. Esse cidadão, quase octogenário, havia praticado um assassinato em Serra Talhada no ano de 1926 e, mesmo ados tantos anos, seu filho, conhecido como Baiãozinho, desejava a vingança. Esse era amigo de Vilmar Gaia e ele teria supostamente participado desse crime por amizade. Para outros a motivação foi apenas dinheiro. Vilmar afirmou apenas testemunhou a morte. O certo é que Baiãozinho assumiu toda a culpa, foi a julgamento e acabou absolvido pelo júri.

Em meio aos conflitos, não demorou para que outros membros da família Gaia pagassem com a vida pelo parentesco com Vilmar.

Em janeiro de 1975 foi assassinado o motorista de taxi Francisco Gaia Filho, o conhecido Batinha. Uma noite ele estava estacionado com seu fusca na porta do Cabaré de Nivalda, quando seus assassinos chegaram e o mataram. Quem socorreu Batinha para o hospital foram as prostitutas, mas nada pôde ser feito. Na Revista Manchete (edição 1220, de 1975) existe a informação que no dia de sua morte Batinha foi revistado três vezes pela polícia antes de ser assassinado.

Policiamento em Serra Talhada.

Vilmar não demorou para responder essa morte e partiu para ação.

Mais ou menos às cinco da tarde do dia 19 de março de 1975, o soldado Luiz Gonzaga Mendes, outro implicado na morte do pai de Vilmar, ao voltar de um roçado pertencente ao seu pai na fazenda São José, Distrito de Tauapiranga, foi inesperadamente alvejado no coração com um tiro de um rifle calibre 44. Ele caiu ferido, mas faleceu no outro dia. Segundo a documentação existente, o soldado Gonzaga era casado com Neomar de Araújo Ferraz Mendes, filha do comerciante serra-talhadense Irineu Gregório Ferraz, que prestou depoimento juntos as autoridades pelo assassinato do genro. Irineu afirmou que Antônio de Souza Mendes, irmão de Gonzaga, testemunhou o crime e apontou como autores da emboscada Vilmar e um soldado reformado da PMPE, que tinha o apelido de “Brucutu”. Vale frisar que além de sogro do soldado Gonzaga, Irineu Ferraz era primo do soldado Natalício Nunes Nogueira.

Um dia depois da morte do soldado Gonzaga, o comerciante Álvaro Batista Gaia, irmão de Batinha e casado com uma irmã de Vilmar Gaia, foi brutalmente assassinado em sua casa de comércio chamada “Aliança de Ouro”. O comerciante tombou ao lado da caixa registradora, após receber disparos de revólveres e rifles, desfechados por cinco ou seis homens armados. Segundo o escritor e pesquisador Valdir Nogueira, essa loja ficava no Alto de Bom Jesus, em Serra Talhada.

Na época suspeitou-se que os assassinos seriam comandados por Irineu Ferraz, acompanhado de vaqueiros, ou de colegas do soldado Gonzaga. Mas não consegui maiores informações sobre esse processo, ou se alguém foi preso.

Vilmar sendo entrevistado após sua prisão.

Famoso e Sendo Reconhecido

As notícias desses crimes ecoaram por toda parte. Eram difundidas pelas emissoras de rádio e logo circulavam por todo Nordeste. Segundo o relatório do capitão Jorge, essas mortes causaram impacto na opinião pública de Pernambuco, sendo bastante divulgados pela imprensa da capital e do sul do país. Consta que até repórteres da Rede Globo e do jornal O Estado de São Paulo estiveram na região (Relatório, pág. 06).

Vilmar, a quem as mulheres chamavam de “galã”, teve seu ABC cantado nas feiras sertanejas pelos poetas e violeiros, ou exposta através de folhetos de cordel. Em Recife seu nome era comentado desde o Mercado de São José, nas esquinas da Rua do Imperador, ou da Avenida Guararapes. Já o poeta popular Olegário Fernandes, da cidade pernambucana de Caruaru, produziu o folheto de cordel intitulado “Vilmar Gaia, o cangaceiro de Serra Talhada” e assim escreveu:

“Agora peguei a pena

Com divina inspiração

Para escrever uma história

Sobre o cavalo negro

Da Caatinga e do sertão.

Vira-se em cavalo preto

Corre-se dentro da campina

Vira-se em pau, ou pedra

Para cumprir sua sina

Come lagarta e besouro

Como ave de rapina”.

Mas essa exposição nos cordéis e na mídia, mesmo a televisiva ainda sendo limitada no sertão nordestino na primeira metade da década de 1970, trouxe um lado bastante negativo para Vilmar Gaia, pois ele foi visto e seu rastro seguido em vários locais. Essas informações chegaram aos policiais e após investigações o capitão Jorge listou em seu relatório onde ele se escondia e recebia abrigo.

Inicialmente Vilmar se homiziava em áreas onde predominavam membros de sua família, como Santa Rita, São João dos Gaia e Serrote Branco. Mas com o rompimento ele se afastou dessas áreas e ou a frequentar uma propriedade rural a 15 quilômetros de Serra Talhada, na altura onde se inicia a estrada que dá o ao Distrito de Bernardo Vieira e ao Estado da Paraíba.

Conforme a perseguição crescia ele ou a frequentar mais as terras paraibanas. Tinha “coitos”, esconderijo no linguajar sertanejo, em uma fazenda no município de Princesa Isabel (de um político local), uma casa de uma mulher afastada do centro da cidade de Teixeira, em uma fazenda de um ex-deputado estadual próximo a cidade de Piancó e em um sítio em Itaporanga, onde receberia apoio de um ex-policial.

Em Pernambuco foi visto circulando com os pistoleiros conhecidos como “Nunes” e “Pitu”, sendo o primeiro o ex-policial José Nunes da Silva. Vilmar também recebia apoios nas cidades de Salgueiro, Floresta, Tacaratu (onde um rico do lugar lhe fornecia dinheiro quando necessitava). Andou também por Serrita, Calumbi (na fazenda de um político local) e em Recife (na casa de amigos no bairro do Cordeiro). Segundo o capitão Jorge havia notícias que Vilmar estivera circulando em Alagoas, na cidade baiana de Feira de Santana, na cidade cearense de Juazeiro do Norte e até mesmo em Caxias, no Maranhão (Relatório, pag. 09).

A existência desses apoios, esconderijos e o fato de Vilmar andar com matadores conhecidos, foi visto por muitos em Serra Talhada e região que de “Vingador do Sertão” Vilmar Gaia não tinha nada. Ele seria apenas mais um pistoleiro que vagava pelo Nordeste destruindo vidas humanas em troca de dinheiro e já teria matado, dependendo das fontes, de 27, 32 e chega a até 35 pessoas.

Vilmar Gaia sempre negou essa situação. Diante das câmeras afirmou que matou o soldado Natalício Nunes Nogueira, seu primo Antônio Augusto Batista e o Comissário de Polícia Pedro Inácio dos Santos. Além deles, conforme ele narrou ao juiz Enéas Bezerra de Barros e está registrado no Diário de Pernambuco, edição de 14/11/1975, matou Arnaldo Alves de Oliveira, o Arnaldo Cipriano, na cidade de Salgueiro.

A Lei se Impõem

Em meio a tantas mortes em sequência, o aparato jurídico e policial do Estado de Pernambuco começou a agir. E a ação se incrementou por ordem direta do então governador pernambucano José Francisco de Moura Cavalcanti, certamente pressionado pela opinião pública.

De Recife veio o capitão Jorge Luiz de Moura, com a missão de “Oficial Observador”. Após inspecionar o setor e tomar conhecimento pormenorizado dos fatos, transferiu de Serra Talhada para a cidade de Petrolina os policiais suspeitos de estarem envolvidos nos crimes anteriormente narrados e os que tinham processos abertos. De Petrolina vieram militares para manter a ordem em Serra Talhada e o policiamento ostensivo foi intensificado.

Vilmar Gaia após sua prisão.

Outra ação do capitão Jorge que é digna de nota, é que após a sua chegada ele buscou os líderes da comunidade de Serra Talhada e chamou todos para uma reunião. Estavam presentes o prefeito, o delegado, comerciantes, profissionais liberais e outros. Nela o militar expôs as ordens recebidas, a forma de atuação do seu trabalho e ouviu as reclamações das lideranças locais. Nesse diálogo o capitão Jorge sentiu “certa falta de confiança na ação policial local, oriunda de acontecimentos anteriores” (Relatório, pág. 10).   

Em seu comentado relatório o capitão Jorge apontou para seus superiores a necessidade de se trazer para Serra Talhada um Delegado Especial, que fosse “imparcial e experiente e com total apoio da SSP e do Comando da PMPE”. Em abril de 1975 foi nomeado o capitão José Ferreira dos Anjos, um oficial tido como valente, operacional e campeão de tiro da polícia pernambucana na época.

O capitão Ferreira veio para a região conflituosa e trouxe uma equipe de 38 policiais. Consta que esse oficial arrochou geral para cima da família Gaia, sendo dez dos seus membros presos e houve denúncias de arbitrariedades por parte desse oficial. Em uma nota publicada no jornal carioca A Luta Democrática (18/04/1975, pág. 02), o capitão Ferreira foi acusado de deixar todos os integrantes da família Gaia detidos em uma única cela, algemados e ando fome. A ideia era forçar os membros da família a “abrir o bico”, como se diz no jargão policial, e informar o paradeiro de Vilmar para prendê-lo.

Vilmar preso e recebendo a visita de parentes.

Meses depois o capitão Ferreira recebeu a informação que Vilmar Gaia estava em uma fazenda chamada Quiterno, ou Quitéria, na cidade cearense de Ipaumirim, a 215 km de Fortaleza e a 27 da fronteira com a Paraíba. Vilmar foi encontrado trabalhando como um empregado da fazenda, era conhecido por “Tonho”, foi preso com apenas um revólver e cinco balas. Aceitou se render ao capitão Ferreira e sua equipe sem maiores problemas, pois para o fugitivo o oficial militar o “tratou muito bem e o respeitou como homem” (Diário de Pernambuco, 22/08/1975).

Vilmar Gaia se tornou notícia em todo país e era centro de atenções na Delegacia de Serra Talhada, onde muitas fãs iam lhe levar comida e carinho. Mas ele gostava mesmo de receber uma moça jovem, de boa família sertaneja, funcionária de um tribunal federal, que a tempos mantinha um relacionamento íntimo com Vilmar e que tinha gerado uma bela menina.

Uma noite, menos de três meses após sua prisão, Vilmar soube que o capitão Ferreira seria exonerado de suas funções em Serra Talhada e sairia da cidade. Então, utilizando uma vitrola que lhe foi presenteada por uma prima colocou um disco e abriu o volume no máximo com músicas de Waldick Soriano e Raul Sampaio. O prisioneiro aproveitou o barulho, abriu um buraco de 50 cm na parede da prisão e fugiu.

Três dias depois foi novamente capturado. Estava na fazenda Altinho, do primo Lindauro Gaia e não tinha armas de fogo. Se entregou ao capitão Ferreira e sua escolta com 30 soldados e lhe afirmou que não queria fugir, mas temeu que com a saída desse militar em pouco tempo seria trucidado pelos inimigos. Ficou decidido que Vilmar Gaia seria levado para a cadeia de Caruaru, onde acreditavam que ele poderia cumprir sua pena com segurança.

Vilmar e sua filha.

Reviravolta

Quase dois anos depois, no dia 8 de março de 1977, um veículo do tipo Chevette, cor azul, estava estacionado com quatro homens a somente 100 metros da cadeia de Caruaru. A polícia desconfiou daquela gente e um grupo deles foi até o carro de arma em punho. Descobriram que os ocupantes daquele carro estavam com dois rifles calibre 44, quatro revólveres, muita munição e quatro placas frias. Eles vieram de Serra Talhada e tinham uma missão – Matar Vilmar Gaia (Diário de Pernambuco, 09/03/1977).

Poucos dias antes o “Vingador do sertão”, depois de um ano e sete meses preso pelos quatro homicídios que havia confessado, estava prestes a deixar o cárcere. O fato havia sido bastante divulgado e isso motivou a vinda daqueles quatro homens para tentar liquidar Vilmar.

O advogado Juarez Viera da Cunha, que representava Vilmar Gaia, entrou com um habeas corpus em favor do seu cliente, alegando excesso de prazo durante o sumário de culpa. Cinco desembargadores do Tribunal de Justiça de Pernambuco concederam o habeas corpus por unanimidade, mas se pronunciaram afirmando que aquilo era um “desprestígio para a justiça pernambucana, que se demonstrou incapaz de cumprir os prazos mais elementares para o desenrolar dos processos” (O Fluminense, Rio de Janeiro, 04/03/1977).  

Após a saída de Vilmar Gaia da cadeia de Caruaru eu não encontrei mais nada referente a essa figura e nem o que aconteceu com ele. Sob todos os aspetos ele sumiu. Talvez em sua mente aquele ano e sete meses de cadeia já estavam de bom tamanho, ou ele soube de algo que o fez sumir.

Bem, com Vilmar solto pelo mundo, para quem quisesse eliminá-lo era só encontrá-lo e liquidá-lo. Mas encontrar Vilmar Gaia não era algo tão simples assim. Homem criado e vivido no sofrido sertão nordestino, sem os confortos da capital, ele poderia se esconder desde o Oiapoque ao Chuí, em qualquer vilazinha, recanto distante, ou pequeno sítio. O que sei é que entre 1977 e 1982, afora memórias esparsas sobre os acontecimentos ocorridos na primeira metade da década de 1970, Vilmar Gaia some dos jornais.

Mas algo aconteceu que mudou completamente toda a situação e, no meu entendimento, favoreceu enormemente essa figura!

Necessidade de Mitos

Assassinato do procurador da república Pedro Jorge, em 1982.

No dia 3 de março de 1982, na Padaria Panjá, no Jardim Atlântico, na cidade de Olinda, foi assassinado com seis tiros, três dos quais à queima-roupa, o procurador federal Pedro Jorge de Melo e Silva.

Três meses antes essa autoridade ofereceu denúncia contra dois oficiais da Polícia Militar de Pernambuco, um deputado estadual e outras 21 pessoas envolvidas no desvio de recursos federais para financiamento agrícola do Banco do Brasil da cidade de Floresta, no rumoroso caso que ficou conhecido nacionalmente como o Escândalo da Mandioca.

Entre os anos de 1979 e 1981, mais de 300 empréstimos foram feitos na  agência do Banco do Brasil daquela cidade pernambucana, onde os criminosos fraudaram empréstimos do PROAGRO (Programa de Crédito Agrícola Federal), com cadastros falsos de pequenos agricultores da região, que simulavam plantio de várias culturas, principalmente mandioca. Além de não plantarem o que foi acertado, os controladores do esquema declaravam as safras como perdidas por causa da seca e ainda recebiam o dinheiro do seguro. O desvio alcançou mais de Cr$ 1,5 bilhão de cruzeiros (quase R$ 68 milhões de reais em valores atualizados), configurando um dos maiores casos de corrupção daquele período. A maracutaia foi denunciada por um agricultor, investigada pela Polícia Federal e o procurador Pedro Jorge recebeu o inquérito e, mesmo tendo sido ameaçado, denunciou vários envolvidos, entre eles o militar José Ferreira dos Anjos, o homem que prendeu Vilmar Gaia e que tinha a patente de major em 1982.

Foi Ferreira quem contratou Elias Nunes Nogueira, o atirador que acabou com a vida de Pedro Jorge na Padaria Panjé. Elias era irmão do soldado Natalício Nunes Nogueira e um dos quatro homens que estiveram em Caruaru para tentar exterminar Vilmar Gaia em um Chevette azul no dia 8 de março de 1977. (Diário de Pernambuco, 06/05/1982). Vale frisar que no Chevette estava um outro irmão de Natalício, de nome Pedro Afonso da Silva, que, apesar dos sobrenomes distintos, eram dois dos sete filhos de Afonso Nunes da Silva, o Afonso Terto, e de Vitalina Nogueira da Silva.

E onde estes acontecimentos favoreceram Vilmar?

Simples, a partir do Escândalo da Mandioca as atenções e preocupações de muita gente em Serra Talhada e região focaram nas investigações da Polícia Federal e os problemas ligados a esse escândalo de proporções nacionais. Como vários inimigos de Vilmar estavam no meio desse problema todo e, se muitos ainda tinham a intenção de matá-lo, ela se tornou algo secundária.

O povo do Nordeste – Se não são as secas, a ação nefasta dos políticos, é a violência que aflige o povo dessa região a séculos.

Não sei se Vilmar Gaia está vivo? Ou se ele morreu? Mas percebi que sua história marcou muitos na região do Pajeú, principalmente diante da repercussão nacional do caso.

Sobre toda essa situação eu acredito que a pessoa que melhor definiu esse caso foi o Padre Afonso de Carvalho Sobrinho, de Serra Talhada, que comentou com Ricardo Noblat, em uma entrevista para a Revista Manchete sobre o caso – “O machismo expresso no desejo de vingança pela morte de parentes, na sua aparente infalibilidade no manejo das armas, na capacidade de escapar à prisão, identificava-se plenamente com uma linha de pensamento popular necessitada de mitos e heróis profundamente enraizada, principalmente no sertão”.

Uma última nota – ados mais de 50 anos desde as primeiras mortes nesse conflito, me chamou atenção como alguns membros da família Gaia relembram esses episódios. Vários deles abraçaram a religião evangélica e alguns deles são até pastores que utilizam em seus processos de evangelização os problemas sofridos pelos mais velhos da família, as perseguições e como eles conseguiram, através da fé em Jesus Cristo, de alguma forma conviver com os traumas sofridos.

NO RASTRO DAS CAVERNAS DO CANGAÇO NO SERTÃO PERNAMBUCANO

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Gruta do Morcego, Fazenda Colônia – Foto de Solon R. A. Netto.

Sólon R. A. Netto

Pesquisas históricas indicavam que na região do Sertão do Pajeú, em Pernambuco, uma grande quantidade de abrigos e possíveis cavernas formadas por blocos graníticos seriam antigos refúgios de bandoleiros famosos, que durante anos vagaram pelo sertão e hoje fazem parte do mais autêntico folclore nordestino. Aqueles locais espeleológicos associados à vida desses homens eram certamente sítios de grande importância histórica, os quais nunca foram documentados.

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Casa de Pedra de Cafundó, no Sítio Covoado, Vale do Cafundó, Flores, Pernambuco – Foto de Rostand Medeiros.

Tempos atrás percorremos em pouco mais de três dias quase dois mil quilômetros! Uma jornada puxada, com poucas horas de sono, para descobrir os esconderijos de Antônio Silvino, a gruta onde Lampião abrigara-se ferido e outro local bem interessante.

Início

Saímos altas horas da noite de Natal e seguimos para a fronteira da Paraíba, na área que esta se delimita com o Seridó Potiguar. O nosso grupo era composto por mim, Alex Gomes e Rostand Medeiros e horas depois estávamos avançando pelas últimas cidades da Paraíba e cruzando a divisa com Pernambuco. Quando as estrelas da madrugada foram ofuscadas pela alvorada, já íamos firmes ao primeiro objetivo: a Fazenda Colônia.

Esta propriedade está historicamente muito associada à cidade pernambucana de Afogados da Ingazeira, mas atualmente se localiza na zona rural do município de Carnaíba, a cerca de quatro quilômetros da fronteira com a Paraíba. Neste local nasceu o famoso chefe cangaceiro Antônio Silvino.

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Fazenda Colônia – Foto de Rostand Medeiros.

A história deste guerreiro das caatingas se inicia quando seu pai, o fazendeiro Pedro Batista Rufino de Almeida, conhecido popularmente como “Batistão”, foi assassinado por Desidério José Ramos e alguns de seus parentes em 3 de janeiro de 1897.

Meses depois os assassinos de “Batistão” são absolvidos em um júri controlado por famílias poderosas que apoiavam os seus matadores. A família de Antônio Silvino não desiste e impetra uma apelação e os acusados são recambiados à Casa de Detenção, em Recife. Quando os assassinos do fazendeiro são novamente trazidos escoltados para a região para um novo júri, o policial que comandava o grupo facilitou a fuga de todos. Revoltado, o jovem Manoel Batista de Moraes, então com 23 anos, e um irmão buscam fazer justiça com as próprias mãos. Para conseguir sua desejada vingança eles se tornam cangaceiros e entram em um bando comandado por um parente conhecido como Silvino Aires.

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Antônio Silvino.

Apenas um ano depois, em 1898, o chefe Silvino Aires é preso e Manoel Batista assume o bando, ando a ser conhecido como Antônio Silvino. O nome Antônio é uma referência ao santo de sua devoção, o mesmo da capela da Fazenda Colônia, e Silvino é uma homenagem ao parente que o recebeu nas hostes cangaceiras.

Conforme nos aproximávamos da Fazenda Colônia víamos que a geografia local consistia em elevações com trezentos metros de altura em média. Ao chegarmos a entrada da propriedade topamos com três cruzes.

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Foto de Alex Gomes.

Paramos para algumas fotos e logo um vaqueiro se aproximou. Quando indagado sobre aquele antigo marco ficamos sabendo que aquelas eram apenas algumas marcas de memória das muitas “mortes encomendadas” que já se fizeram na região. Segundo o nosso informante aquelas eram cruzes de três pessoas que foram mortas a mando de um dono de engenho, que mandou seus sicários matá-los ingerindo melaço quente. Logo à frente, surgiu um descampado central, revelando uma igreja e um imponente casario. Foi lá que conhecemos os irmãos Antônio e Damião Braz.

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Conhecendo as histórias da Fazenda Colônia com os irmãos Braz – Foto de Solon R. A. Netto.

Após os contatos iniciais e de explicações do porque viemos de tão longe para a Colônia, para nossa surpresa, os irmãos Braz informaram que não existia apenas uma gruta para visitarmos, mas quatro cavidades que os mais velhos afirmaram terem sido utilizadas pelo bando de cangaceiros do chefe Antônio Silvino.

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Vista da antiga casa sede da propriedade – Foto de Solon R. A. Netto.

Não havia condições de conhecer todos os locais comentados e decidimos, então, visitar as grutas do Morcego e a da Pedra Rajada, as mais próximas. Ambas estão localizadas em um setor da Serra da Colônia conhecido pelos moradores como Serra da Lagoa, mas dentro das terras da Fazenda Colônia.

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Iniciando o caminho para o alto da serra – Foto de Rostand Medeiros.

ava do meio dia, quando nossos anfitriões se ofereceram para nos guiar até as cavernas que os cangaceiros de outrora haviam usado. De início, a trilha estava muito bem definida e seguíamos parando para irar a fazenda que se perdia bem distante. Por certo ponto, a mata fechou e a subida tornou-se bem íngreme. Em meio às histórias, a caminhada alternava momentos mais íngremes com outros suaves. Chamou a atenção avistar árvores como “barrigudas de espinho” (Chorisia crispifolora), atualmente raras nos sertões potiguares.

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Nas trilhas da serra – Foto de Alex Gomes.

Ao chegar a um ponto onde alguns grandes blocos graníticos, rolados pelas intempéries, uniram-se ao longo de milênios para formar uma cavidade natural, nosso guia Damião foi logo avisando: “Essa daí é a que o povo chama de Gruta do Morcego e tem que entrar se entortando”. Vimos, então, em meio a uma cerrada vegetação típica da região, a entrada da cavidade, na forma de uma estreita fenda diagonal na junção dos matacões. Para espanto maior do grupo descobrimos que aquilo era muito mais do que um simples abrigo de grandes blocos de granito!

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Entrada da Gruta do Morcego – Foto de Rostand Medeiros.

Internamente encontramos um lugar amplo e arejado, com uma saída lateral que, no ado, certamente serviu como rota de fuga para outros locais. Os Braz comentaram que, ao longo dos anos, vários caçadores encontraram objetos na gruta e em seu entorno, inclusive estojos de munição deflagrados. Mostraram-nos talheres e estribos, além de três moedas de bronze do período colonial, sendo que, em uma delas, lê-se claramente o ano de “1781”. Encontrar tais moedas não é tão raro no Nordeste, mas as circunstâncias de sua descoberta, naquele local, podem apontar para uma série de possibilidades como, até mesmo, à utilização mais antiga do abrigo como possível esconderijo de bandoleiros.

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Gruta do Morcego, Fazenda Colônia – Foto de Solon R. A. Netto.

Saímos satisfeitos com aquela interessante cavidade e seguimos os guias em direção ao alto da serra e a Gruta da Pedra Rajada.

Nas Terras Que Viram Surgir Antônio Silvino

Segundo Antônio Braz os mais velhos narraram que os cangaceiros de Silvino se abasteciam em um antigo poço no alto da serra e ele nós levou até esse local. Atualmente nesse ponto existe uma cacimba e nós experimentamos da água cristalina e saborosa. Segundo os Braz, até hoje esse poço é utilizado pela população local. A água era realmente refrescante! Alguns goles e meia dúzia de cajus maduros nos fizeram repor a energia da subida.

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Antigo poço no alto da serra que, segundo a tradição oral local, é muito antigo e teria sido utilizado pelos cangaceiros de Antônio Silvino – Foto de Rostand Medeiros.

De lá pudemos observar uma espécie de grande piscina natural criado no solo rochoso, o tradicional “tanque” no linguajar dos sertanejos. No dia de nossa visita o local estava seco, mas segundo Damião era bastante frequentado durante os períodos de chuvas. O local é conhecido na região como “Lajedo do Tanque” ou “da Lagoa”.

Mais adiante chegamos ao ponto culminante daquela elevação, onde foi possível divisar toda a região, até mesmo a cidade de Afogados da Ingazeira, a cerca de vinte quilômetros de distância. Ficamos diante de uma bela vista da fazenda, com a igreja, pequena, parecendo uma casinha de brinquedo. A visão é maravilhosa e estratégica, mostrando que bastaria a Antônio Silvino colocar um homem vigilante naquele ponto para saber de toda a movimentação nos arredores.

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Os irmãos Braz comentaram que, ao longo dos anos, vários caçadores encontraram objetos na Gruta do Morcego e em seu entorno, inclusive estojos de munição deflagrados. Mostraram-nos talheres e estribos, além de três moedas de bronze do período colonial, sendo que, em uma delas, lê-se claramente o ano de “1781” – Foto de Alex Gomes.

Voltamos para a trilha em direção a Gruta da Pedra Rajada, porém o caminho simplesmente desapareceu em meio uma vegetação muito fechada. O trajeto era nítido aos guias, mas a nós, tudo se resumia a um contínuo esquivar-se de galhos e espinhos. Uma mata muito cerrada, escondendo o sol, e logo nos pusemos numa descida que se traduziu num escorrego brecado somente pelo cipoal. Foi desse modo que chegamos à Pedra Rajada, o segundo ponto a ser visitado, um abrigo de difícil o numa das encostas da serra.

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Abrigo da Pedra Rajada – Foto de Solon R. A. Netto.

Diferentemente da Gruta do Morcego, a Pedra Rajada não é uma caverna, mas apenas um abrigo granítico formado por uma das faces de um imenso bloco que se encontra com a lateral de outro matacão rolado. É bem protegido e um pequeno grupo de homens poderia se acomodar naquele local com o intuito de buscar um esconderijo de difícil o. Mas se aquele local foi realmente utilizado pelos cangaceiros, pela exuberância da vegetação existente atualmente, é fácil deduzir que desde a época de Silvino poucos se atreveram-se a chegar ao local.

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Capela de Santo Antônio da Fazenda Colônia. O nome Antônio é uma referência ao santo da devoção de Manoel Batista de Moraes, e Silvino é uma homenagem ao parente que o recebeu nas hostes cangaceiras. Foto de Solon R. A. Netto.

O retorno até a sede da fazenda deu-se nos mesmos moldes: uma descida medonha que, em diversos momentos, simplesmente se convertia em rolamentos ou escorregos. Era soltar o corpo, proteger o equipamento e livrar-se dos espinhos da caatinga misturada com árvores de grande porte. Coisas de serra.

Ao fim do primeiro dia, seguimos para a Paraíba, sendo recebidos na cidade de Manaíra pelo Senhor Antônio Antas Dias, nosso grande amigo e grande conhecedor das histórias dos cangaceiros na região. Ele então se juntou ao nosso grupo.

Em Busca da Serra do Catolé

No segundo dia, pela madrugada, já estávamos cruzando a fronteira da Paraíba com Pernambuco pelo barro, rumo a Santa Cruz da Baixa Verde. A meta era o município de São José do Belmonte, um dos locais mais interessantes do sertão pernambucano.

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Em São José de Belmonte visitamos a antiga morada do comerciante Luiz Gonzaga Gomes Ferraz, que em 1922 foi atacada pelo bando de Lampião, em parceria com um parente do chefe cangaceiro Sinhô Pereira, Crispim Pereira de Araújo, o “Ioiô Maroto” – Foto de Rostand Medeiros.

Inicialmente nesta cidade visitamos uma casa histórica, localizada na praça central desta cidade. Era a antiga morada do comerciante Luiz Gonzaga Gomes Ferraz, que em 1922 foi atacada pelo bando de Lampião, em parceria com um parente do chefe cangaceiro Sinhô Pereira, Crispim Pereira de Araújo, o “Ioiô Maroto”.

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Lampião – Fonte – lounge.obviousmag.org

Consta que Gonzaga mandou um oficial de polícia do Ceará, o tenente Peregrino Montenegro, e a sua tropa surrar Ioiô Maroto. Feita a desonra, Maroto jurou vingança, solicitando ajuda ao primo cangaceiro. Por essa época, Sinhô Pereira estava deixando a região para viver em Goiás e pediu para Lampião, seu antigo comandado e agora o chefe do bando, realizar a feitura “do serviço”.

Como não poderia deixar de ser, o ataque à residência de Gonzaga foi implacável. A resistência ofertada pelo proprietário e por policiais da guarnição de São José de Belmonte arrastou-se longo tempo, mas o local foi invadido e o comerciante sumariamente executado em sua própria sala.

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Distrito de Boa Esperança, São José de Belmonte – Foto de Rostand Medeiros.

Após esta visita seguimos para a zona rural de São José do Belmonte, em direção a área onde as fronteiras dos estados de Pernambuco, Ceará e Paraíba se encontram, tendo como destino o Distrito de Boa Esperança. Soubemos que ali vivia o Senhor Francisco Maciel da Silva, testemunha daqueles tempos difíceis.

Vivendo em uma casa simples do lugarejo, idoso, mostrou-se um homem de baixa estatura, lento nos gestos e utilizando um par de óculos com grossas lentes. Apesar disso, a firmeza da voz, a lucidez e o forte aperto de mão, não deixaram transparecer os noventa e sete anos de idade que ele tinha na época de nossa visita.

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Francisco Maciel da Silva, ainda fumando um cigarro de palha com quase cem anos de idade, deu uma interessante entrevista sobre o tempo do cangaço na sua região e na Serra do Catolé – Foto de Rostand Medeiros

Ele nos contou algumas histórias da época que viu os cangaceiros na sua região, que durante anos viveu no alto da Serra do Catolé e que, na sua propriedade, existia uma gruta que fora utilizada como esconderijo de cangaceiros. A cavidade é conhecida como Casa de Pedra, uma grutinha formada por grandes blocos na encosta da serra.

Já sua filha, Maria do Carmo Rodrigues da Silva, de sessenta e seis anos, informou que, quando moravam no alto da serra, muitas vezes seus filhos traziam daquela cavidade cápsulas de balas de fuzis, havendo, em uma ocasião, achado uma espécie de chave de fendas, aparentemente utilizada na manutenção de rifles. Dona Maria recordou agens em que, noutro sítio da mesma serra, trabalhadores encontraram próximos a uma pequena gruta, dentre as rochas, “um mundo de rifles socados nas furnas”.

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Serra do Catolé – Foto de Alex Gomes.

Na época de nossa visita, devido à idade, o Senhor Maciel não pôde nos acompanhar, mas informou que um amigo por nome de Luiz Severino dos Santos, morador do Sítio Catolé, sabia muita coisa sobre os esconderijos.

Mais uma vez enfrentamos estradas quentes e poeirentas. Visto que o lugar era muito ermo e havia grande quantidade de casas abandonadas na beira do caminho, surgiu outra dificuldade: a de encontrar pessoas para prestar informações.

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Buscando informações em uma casa verdadeiramente “antenada” – Foto de Rostand Medeiros.

Seguimos mais de uma hora sem a noção exata de onde estávamos. No trajeto só casas abandonadas e portas fechadas. Pequenas agens vicinais seguiam para lugarejos ignorados e logo ficamos perdidos. As poucas pessoas avistadas se mostravam arredias, desconfiadas com quatro estranhos em um carro. Era um jeito arisco e esquisito, tão diferente da receptividade tradicional do sertão e que talvez se explicasse pelo isolamento do local e a proximidade de três fronteiras estaduais, por onde “a todo tipo de gente e bicho”, como nos disse um lavrador local, um dos poucos com quem conseguimos informações. Se hoje é assim, imaginemos, então, no tempo do cangaço.

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Os catolés da serra – Foto de Rostand Medeiros.

Apesar dos percalços, o horizonte fazia surgir a elevação imponente. Logo na subida, a Serra do Catolé mostrou-se mais extensa do alta, além de coberta por pequenas palmeiras conhecidas por coqueiro catolé (Syagus cromosa). Essa árvore, comum nos cerrados, é igualmente vista em praticamente toda a região Nordeste do Brasil, principalmente em locais com maior altitude.

Quando, enfim, chegamos ao cume da Serra do Catolé encontramos o Senhor José Marcos. Ele não somente nos ensinou o caminho, como também nos levou à propriedade de Luís Severino dos Santos.

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Bate papo com o Senhor Luís Severino dos Santos, no Sítio Catolé, neto do famoso chefe cangaceiro Luís Padre – Foto de Solon R. A. Netto.

Encontramos então um homem tranquilo, forte para sua idade, que nasceu e vive na serra. Desse local raramente se afasta, apenas para ir, ocasionalmente, até São José de Belmonte ou Serra Talhada. Para nossa surpresa, no começo do diálogo descobrimos que ele era neto de Luís Padre, um dos doutrinadores de Lampião, e que não havia apenas a Casa de Pedra para se conhecer, na verdade existem várias cavidades na Serra do Catolé, uma delas bem próximo de sua casa e que um dia abrigou um cangaceiro ferido.

Pedra de Dé Araújo

Segundo o Senhor Severino, a família de Luís Padre era dona do Sítio Catolé antes mesmo do início das “brigadas” contra os Carvalhos. Entre uma pausa e outra da luta, Luís Padre, Sinhô Pereira e o bando seguiam para aquele local, onde se refaziam para novos combates. Entre essas pausas, Luís Padre iniciou um relacionamento com a Ana Maria de Jesus. Desse encontro, nasceram duas filhas do célebre cangaceiro, Emília e Agostinha Pereira da Silva. A última foi a genitora do nosso informante, sendo ela quem narrou ao mesmo as peripécias e as andanças do seu pai no cangaço.

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Foto dos anteados do Senhor Severino. O calvo a direita da foto é Luís Padre, seu avô – Foto de Rostand Medeiros.

As características de isolamento e as dificuldades naturais de o a serra, proporcionaram aos cangaceiros um verdadeiro local de descanso e apoio. Mas por medo da polícia descobrir esses locais, o Senhor Severino relatou que sempre a estadia do grupo era rápida e contida. Todos os caminhos eram muito vigiados, ninguém entrava ou saía sem que Luís Padre e Sinhô Pereira soubessem. Ali, estavam a somente dezoito quilômetros do Ceará e a três da Paraíba, mostrando que daquele ponto as fronteiras poderiam ser facilmente ultraadas, dificultando a atuação das forças estatais.

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Religiosidade sertaneja no Sítio Catolé – Foto de Solon R. A. Netto.

Em relação às cavidades, o Senhor Severino comentou sobre a existência de várias na região e que, segundo os mais velhos, os cangaceiros refugiavam-se nestes locais quando havia notícias da proximidade da polícia, ou quando algum dos cangaceiros estava ferido.

Devido ao nosso curto tempo, pedimos para conhecer alguma mais representativa e o Senhor Severino nos guiou, primeiramente, até a Pedra de Dé Araújo.

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Entrada da Gruta de Dé Araújo – Foto de Rostand Medeiros

Ele nos guiou, então, a um local que sua mãe, Agostinha da Silva, contou-lhe ter conhecido ainda criança, quando foi levada pelo pai para ver um dos companheiros de luta, que se recuperava de um balaço recebido.

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Na gruta do cangaceiro baleado – Foto de Solon R. A. Netto.

Nessa época, Dona Agostinha falou ao Senhor Severino que o cangaceiro se chamava “Dé Araújo” e que fora ferido no combate das “Piranhas”, havendo sido trazido pelos companheiros para ali ser tratado. A medicina daqueles guerreiros utilizava-se de uma erva nativa cicatrizante facilmente encontrada na serra, conhecida como “cipó de baleado”, o qual era pilado e posto sobre a ferida.

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Vista a partir da gruta – Foto de Rostand Medeiros.

A cavidade de Pedra de Dé Araújo é formada por um matacão granítico rolado e internamente bem desplacado, que se apoiara formando um vão abrigado, com vistas ao vale. No centro havia uma área arenosa e plana, onde sua mãe lhe apontou como o “leito” do cangaceiro Dé Araújo, que, mais tarde, voltaria plenamente recuperado à luta. Porém, o Senhor Severino não soube informar se o lugar onde o cangaceiro fora atingido era a referida Fazenda Piranhas, atacada pelo bando dos Pereiras em junho de 1917.

Lampião Baleado

Na sequência o Senhor Luís Severino dos Santos nos acompanhou, também, até à famosa Casa de Pedra, a alguns minutos de carro de sua propriedade.

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No ponto mais alto da Serra do Catolé, da esquerda para direita, Rostand Medeiros, Antônio Antas e Luiz Severino dos Santos – Foto de Alex Gomes

Segundo o nosso guia foi um agricultor chamado Chico Barbosa, que possuía uma pequena propriedade na Serra do Catolé e morava próximo ao Senhor Severino que revelou o momento em que chegou à região: foi na agem do bando de Lampião pelo lugar, quando o chefe foi ferido no pé, uma dos momentos mais terríveis da vida desse líder cangaceiro.

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Salão da Gruta da Casa de Pedra, onde supostamente Lampião esteve durante alguns dias se recuperando de um ferimento – Foto de Rostand Medeiros

Chico Barbosa já faleceu, mas foi um grande amigo do Senhor Severino e lhe narrou ter sido durante algum tempo cangaceiro de Lampião. A razão da entrada no bando, de onde ele veio, ou “nome de guerra” que adotou, ou como saiu do cangaço, ele nunca declinou essas coisas ao amigo Severino e nem este lhe questionou. Ocasionalmente, quando queria, Chico Barbosa comentava ao vizinho suas andanças “nos tempos dos clavinotes”. Em um dos relatos narrou como o “Rei do Cangaço” veio parar naquela cavidade.

Os doutos estudiosos da vida de Virgulino Ferreira da Silva narram que em 23 de março de 1924, por volta das dez horas da manhã, uma volante comandada pelo major da polícia de Pernambuco, Theophanes Ferraz, teve um encontro com Lampião e outros cangaceiros nas proximidades da Lagoa do Vieira, distante cerca de cinco quilômetros da Serra do Catolé. Na luta, o cangaceiro foi seriamente atingido no pé e morta sua montaria, tombando o animal sobre sua perna. Apesar disso, o bandoleiro conseguiu fugir. Seu bando, então, seguiu para o alto de uma serra, onde o chefe iniciou sua recuperação. O boletim oficial feito pelo major Theophanes Ferraz, conta que, alguns dias após, às cinco e meia da tarde do dia 2 de abril, uma tropa do seu setor de ação atacou o acampamento dos cangaceiros e morreram dois perigosos bandidos, Lavadeira e Cícero Costa.

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Foto de Alex Gomes

Já Lampião, ao fugir, abriu o ferimento, iniciando-se uma séria hemorragia. O chefe se escondeu nas moitas, por pouco não sendo descoberto pela polícia. Durante três dias, padeceu ao relento, sem água ou alimentos, com a grave ferida aberta. Por sorte, um garoto o encontrou e chamou o pai, que começou a cuidar do cangaceiro.

Após se recuperar, Lampião mandou comunicar aos seus irmãos, cangaceiros como ele. Eles chegaram ao local com um bando calculado em cinquenta homens, dentre eles, Chico Barbosa. Nesse ínterim, a polícia sabendo do estado de saúde do cangaceiro, intensificou as buscas. Sem condições de seguir para algum local mais seguro, para um tratamento melhor, o grupo rumou em direção a Serra do Catolé. Chico Barbosa comentou que, assim, Lampião refugiou-se na gruta da Casa de Pedra.

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Foto de Alex Gomes

O que vimos a partir do ponto onde se encontra a gruta na Serra do Catolé foi era estonteante, sendo possível visualizar parte do Ceará e da Paraíba. Já a Casa de Pedra tratava-se da entrada da pequena e estreita gruta, um vão alargado no meio de dois blocos de granito, num dos cumes da serra.

Segundo o mesmo Chico Barbosa, Lampião foi transferido para outras cavidades na Serra do Catolé, como a Furna da Onça, localizada na Fazenda Ingá. Porém, foi na Casa de Pedra que ele ou mais tempo se recuperando. A razão era o isolamento do lugar e sua localização privilegiada.

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Da esquerda para direita – Alex Gomes, Solon Netto, Luiz Severino dos Santos, Antônio Antas e Rostand Medeiros.

Um mês após essa peregrinação, o chefe cangaceiro seguiu protegido por muitos homens, para a propriedade “Saco dos Caçulas”, em Princesa, na Paraíba, onde o fazendeiro Marcolino Diniz lhe deu todo o apoio. Lampião se recuperou desse grave ferimento e continuou combatendo por mais quatorze anos, até ser liquidado em julho de 1938, na Grota de Angicos, em Sergipe.

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Pedra do Reino – Foto de Rostand Medeiros.

Interessante apontar que a Casa de Pedra fica perto da famosa área histórica conhecida como Pedra do Reino, retratada no romance de Ariano Suassuna – O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta. A Pedra do Reino foi palco, em 1838, de um massacre iniciado por messiânicos que pregavam a volta do rei português Dom Sebastião, desaparecido numa antiga batalha. Para os fanáticos seguidores do sertão pernambucano, era preciso tingir os dois imensos monólitos, que lá estão dispostos, com sangue humano, para que um reino encantado se iniciasse na Terra. O desfecho dessa história foi macabro, quando, após o sacrifício de mais de cinquenta pessoas, boa parte crianças, o grupo foi dizimado pela força policial.

Porém, dali, era imprescindível, ainda, procurar pela Lagoa do Vieira, lugar onde Lampião se ferira ao confrontar a polícia de Pernambuco. Seria muito longe da caverna o local onde se deu o ferimento do cangaceiro?

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Região da Lagoa do Vieira – Foto de Rostand Medeiros.

Continuamos na estrada até que, quase pelo final da tarde, chegamos a uma pequena comunidade rural nas margens de um baixio quase seco. Muito provavelmente, o cenário modificou-se pouco da época dos combates aos dias atuais. Assim, estava lá a lagoa, apenas a alguns quilômetros da Casa de Pedra da Serra do Catolé.

Memórias do Ataque de Sabino a Triunfo

À noite, voltamos por Triunfo, uma cidade serrana construída a quase mil metros de altitude para no dia seguinte, conhecer o Museu do Cangaço. Este estabelecimento funciona em um prédio histórico, bem conservado, abrigando importante acervo sobre o cangaceirismo, além de objetos criados pela cultura regional.

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Punhal de Corisco no Museu do Cangaço de Triunfo – Foto de Rostand Medeiros.

São peças antigas da história do Nordeste, fotografias de um tempo não tão distante, mas pouco abordado pelos livros de história geral. Vale anotar que, também em Triunfo, há pequenas grutas graníticas associadas ao cangaço, mas como o tempo da expedição era muito limitado, não fomos visitá-las.

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Rostand Medeiros e o Senhor Nelson Gonçalves Siqueira Campos, e,m Triunfo – Foto de Solon R. A. Netto.

Entretanto, nas cercanias do museu, pudemos conhecer e entrevistar o Senhor Nelson Gonçalves Siqueira Campos, que, apesar dos seus noventa e oito anos de vida e da fraca audição que ele tinha na época de nossa visita, com lucidez nos contou sua rica história, que foi toda gravada.

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Prédio onde funcionou a loja do pai de Seu Nélson – Foto de Rostand Medeiros.

Em maio de 1926, a loja de seu pai, Antônio Campos, foi atacada por um grupo de cangaceiros do bando de Lampião. A desavença teve origem numa dívida com Marcolino Diniz, fazendeiro e famoso coiteiro de cangaceiros. Diniz, então, acertou o crime com Sabino, bandido de maior confiança de Lampião, para que a loja fosse saqueada e o proprietário morto.

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Notícia do ataque do cangaceiro Sabino a Triunfo, fato presenciado pelo Senhor Nélson.

A guarnição policial de Triunfo era pequena e os cangaceiros adentraram destruindo tudo no estabelecimento. O Senhor Nelson, na época um adolescente, teve a ideia de atirar ao fogo uma caixa de fogos de artifício. Os cangaceiros, ao escutarem uma sequência de tiros e estampidos, acreditando tratar-se do reforço policial, bateram em retirada. Na verdade, o que se ou foi um grande engodo e o jovem foi aclamado como o herói que livrou a cidade dos bandidos.

O Vale do Cafundó de Flores 

No regresso para o Rio Grande do Norte paramos em Flores, a quarta cidade mais antiga de Pernambuco, onde buscávamos conhecer a Casa de Pedra de Cafundó, no Sítio Covoado, onde foi construído um casebre aproveitando-se de uma reentrância escarpada em um abrigo rochoso. Esse local nada tinha haver com histórias de cangaceiros, mas valeu a visita pelo interessante cenário.

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Casa de Pedra de Cafundó, no Sítio Covoado, Vale do Cafundó, Flores, Pernambuco.

Nosso guia, Luiz Gonzaga, conduziu o grupo ao Vale do Cafundó, onde a beleza natural da região nos encheu os olhos. Ficamos acima de um vale com dezenas de metros de profundidade, que se estendiam por uma vasta área, feições que lembraram Sete Cidades, no Piauí.

Certamente, no período das chuvas, muita água aria pela bacia e, ante os enormes paredões de arenito capazes de fazer a vista perder-se, foi impossível deixar de pensar que deveriam existir inúmeras cavernas naquela região.

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Junto a Seu Zequinha Marinheiro – Foto de Solon R. A. Netto.

Fomos então apresentados a Zequinha Marinheiro, filho do homem que construiu a morada no abrigo do Cafundó. Ele contou que, apesar de não morar mais naquela casa, ainda a utiliza para estocar alimentos e, ocasionalmente, ar a noite. Relatou que a casa foi construída por volta de 1940, havendo morado lá por toda infância.

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Vale do Cafundó, Flores, sertão pernambucano – Foto de Solon R. A. Netto

O abrigo rochoso tornou a casa mais protegida dos elementos naturais. Mesmo após edificar uma forte residência mais próxima da estrada, até hoje o Senhor Marinheiro se vale da Casa do Cafundó, vez que a utiliza como depósito para colheitas ou mesmo refugiar-se nas horas mais quentes do dia.

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Vale do Cafundó – Foto de Alex Gomes.

E na trilha para o Cafundó, confirmando nossas expectativas, encontramos nossa primeira caverninha exatamente no vale! Ensaiamos uma incursão sem equipamentos, mas havia muitas vespas, que nos impeliram a sair apressadamente.

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Caverna do Cafundó – Foto de Solon R. A. Netto

A Caverna do Cafundó – como é conhecida – aparenta somente possuir duas entradas e (provável) curto desenvolvimento. Na rápida observação, percebemos um forte desnível positivo a partir da entrada principal.

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Foto de Solon R. A. Netto.

Mais alguns os, ali perto, descortinou-se uma situação ímpar: construída na encosta de uma formação arenítica, vimos a fachada de uma casa perdida em meio a uma imensa parede de vale, dentro de um abrigo natural. Adentramos e, apesar do intenso calor nordestino, os cômodos apresentavam temperatura amena. Dentro, alguns utensílios da rude vida sertaneja e muitos grãos.

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Foto de Solon R. A. Netto.

Do lado de fora, cercados por cajueiros, ficamos sentados irando a paisagem do rio que dividia o vale: um vasto serpenteio de areia muito fina e branca rasgando a caatinga. Diferentemente dos outros locais vistos, a Casa de Pedra do Cafundó não estava ligada ao cangaço. Era apenas um capricho da natureza, que escavou a rocha, do qual o homem se valeu para construir, dentro, um lar, perdido num rincão isolado. Ali, após décadas de edificada, servia ao mesmo propósito: nos proteger do calor.

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Foto de Solon R. A. Netto.

Eis que o sentimento, comum a todos os que entram em cavernas, foi nos invadindo: a sensação de que estávamos protegidos, de que aquela cavidade natural denotaria sempre uma ideia de casa ao ser humano. Justamente isso a ligava às cavidades que havíamos visitado nos dias anteriores, àquelas utilizadas pelos cangaceiros.

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Foto de Alex Gomes.

O Cafundó abre-se com grande potencial espeleológico e turístico a todos os amantes da beleza natural e resume o que as cavernas pernambucanas têm de mais precioso: a singularidade.

Após noites mal dormidas e dias tão intensos, encerrava-se uma viagem com grande bagagem histórica, espeleológica, fotográfica e um serviço à nossa cultura nordestina e brasileira.

ENTRE PEDRAS E CAMINHOS – O SERTÃO NORDESTINO NA VISÃO DE SÉRGIO AZOL

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O pequeno resumo de uma ótima viagem.

Rostand Medeiros

Acho que foi em novembro de 2015 que a minha mãe, Creuza de França Medeiros, uma pessoa bastante interessada em artes e pinturas, me comentou sobre uma exposição que estava acontecendo em Natal, no velho e suntuoso Solar Bela Vista, no bairro da Ribeira.

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Ela me falou que um jovem pintor estava apresentando vários quadros sobre Lampião e o Cangaço, mas que estes eram criados de uma forma diferenciada, com uma apresentação bastante interessante e que certamente eu gostaria de ir lá ver.

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Bom, como eu frequentemente não sou de discordar da minha mãe e como estes temas nordestinos sempre me interessaram desde que me entendo por gente, eu não perdi tempo e fui lá visitar a exposição.

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Realmente para alguém muito pouco ligado aos pincéis, como é o meu caso, os quadros que encontrei no velho Solar eram bem diferentes do que eu já havia visto. Vi trabalhos de variadas dimensões, com muito colorido, pinceladas livres, que na minha visão possuíam algo de muito interessante, belo e poético.

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Logo fui apresentado ao artista plástico Sérgio Azol pelo jornalista Thiago Cavalcanti, que realizava a assessoria de imprensa do evento. Na conversa, para minha surpresa, descobri que Azol conhecia o nosso blog TOK DE HISTÓRIA, que era de Natal e que havíamos estudado em turmas deferentes no velho Salesiano da Ribeira, na época do ensino colegial.

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No contato soube que a família de Sérgio Azol possui profundas raízes sertanejas, que ele tem um forte sentimento de orgulho em relação a estas origens e a sua arte tem muito dessa ligação afetiva com a sua história familiar.

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Apesar disso ele me comentou que cedo deixou Natal, viveu em grandes cidades do sul do Brasil e nos Estados Unidos e pouco conhecia do sertão. Ele desejava ter um maior contato com a região, principalmente na área aonde o chefe cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, atuou mais fortemente junto com seus homens.

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Comentei-lhe que compartilhávamos origens parecidas e que tenho o mesmo sentimento de orgulho em relação ao fato de ser um nordestino. Daí o papo correu solto e logo estávamos planejando uma viagem que pudesse abranger, em um espaço determinado de tempo, o máximo de locais que lhe proporcionasse descortinar muito da intensa vida deste cangaceiro.

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Na estrada. Aqui realizando uma visita ao Museu do Artesanato de Bezerro e agradecendo o profissionalismo do pessoal.

Este planejamento ocorreu sem maiores alterações, pois, além de escritor e pesquisador de temas nordestinos, eu sou um Guia de Turismo credenciado pelo Ministério do Turismo, com mais de quinze anos de experiência e já possuo muitos quilômetros de estradas percorrendo o Nordeste.

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Neste sentido o objetivo ficou centrado principalmente na região do Pajeú Pernambucano, área de nascimento de Lampião. Depois seguiríamos para a cidade de Piranhas, no oeste do estado de Alagoas, as margens do Rio São Francisco e próximo da Grota do Angico, local da morte de Lampião e localizado no belo estado de Sergipe.

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Em Floresta estivemos juntos dos maravilhosos amigos (da esq. para dir.) Cristiano Luiz Feitosa Ferraz, Djanilson Pedro e Marcos Antonio de Sá, o conhecido como “Marcos De Carmelita”.

Logo contatei pessoas maravilhosas, grandes amigos, que se colocaram a disposição para ajudar no que fosse necessário. Entre estes estava Carmelo Mandu, da cidade paraibana de Princesa Isabel e André Vasconcelos, em Triunfo, Pernambuco. Já da bela cidade de Floresta, também em Pernambuco, os escritores e pesquisadores Marcos Antonio de Sá, conhecido como “Marcos De Carmelita”, e Cristiano Luiz Feitosa Ferraz, autores do livro “As cruzes do Cangaço – Os fatos e personagens de Floresta – PE”, recentemente lançado, se prontificaram a ajudar.

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Apesar deste contato extremamente positivo, por diversas razões o “OK” para iniciarmos esta viagem demorou um pouco mais do que planejamos. Mas finalmente a ordem de partida foi dada e caímos na estrada.

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Saí de Natal para me encontrar com Azol em uma segunda-feira de madrugada, seguindo para Recife, onde ele desembarcaria no Aeroporto dos Guararapes. Ocorre que cheguei na capital de todos os pernambucanos em um dia que esta cidade literalmente ficou debaixo d’água. Trechos que levaria 20 minutos para percorrer foram completados em uma hora e meia e era tanta água que cheguei a duvidar se conseguiria mesmo alcançar ao aeroporto. Graças a Deus deu tudo certo.

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Partimos com uma paisagem e um clima que mais lembravam a Serra Gaúcha, do que o agreste pernambucano. Mas foi legal para ambientar Azol e lhe contar aspectos da história da expansão da cultura canavieira e como se deu à ocupação do sertão pelos portugueses, a origem dos cangaceiros e vários outros temas.

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O papo ia rolando, a BR-232 se abrindo na nossa frente e isso tudo com o som do carro tocando o Mestre Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Trio Nordestino, Quinteto Armorial e o Quinteto da Paraíba, Zé Ramalho, Elomar, Fagner, Genival Lacerda, Alceu Valença, Antônio Nóbrega, Mestre Ambrosio e muito mais.

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Inspirado, logo Azol foi pedindo para que eu realizasse várias paradas para executar muitas fotos. Muitas delas estão aqui para os leitores do TOK DE HISTÓRIA.

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Pelos dias seguintes estivemos nas cidades de Bezerros, Belo Jardim, Arcoverde, Serra Talhada, São José de Belmonte, no local da mística Pedra do Reino, na região da cidade de Floresta, nas ruínas da casa onde nasceu Lampião, em Piranhas, navegamos pelo Rio São Francisco, caminhamos pela trilha que leva até a Grota do Angico. Depois retornamos por Garanhuns, Caruaru e Recife. Infelizmente, devido ao tempo curto que dispúnhamos e da necessidade de realizar muitas paradas, não foi possível visitar Princesa Isabel e Triunfo. Peço desculpas aos amigos Carmelo Mandu e André Vasconcelos.

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Mas percorremos muitas estradas de barro em plena caatinga braba. Paramos para conversar com sertanejos, com vaqueiros e outros mais. Conversamos com pessoas que sabem transmitir, com narrativas extremamente dignas, várias histórias sobre Lampião, sobre outros cangaceiros, sobre as volantes policiais, as sangrentas guerras de famílias no sertão, sobre as secas, as enchentes e outros temas. Foi possível apresentar o rico artesanato, a culinária e a história desta região extremamente singular e representativa desta parte do Brasil.

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Para mim (e acredito que igualmente para Sérgio) os momentos particularmente mais interessantes foram em Floresta.

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Conhecendo o gosto do cacto “Coroa de frade”.

Maravilhosamente apoiados pelos escritores e pesquisadores Marcos Antonio de Sá e Cristiano Luiz Feitosa Ferraz, percorremos inúmeros locais que foram palco de lutas entre valentes florestanos contra Lampião e seus cangaceiros.

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Marcos de Carmelita explicando a Sérgio Azol aspectos históricos da luta travada na Tapera dos Gilo em 1926.

Entre estes locais o mais significativo sem dúvida alguma foi à visita a propriedade da Tapera dos Gilo, local do maior massacre da história do Cangaço. Nesta propriedade conhecemos o nobre sertanejo Djanilson Pedro, o conhecido “Pané”, descendente dos membros da família Gilo.

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Cemitério onde descansam eternamente os membros da família Gilo massacrados por Lampião em 1926.

Em razão de um ardiloso e nefasto estratagema orquestrado por um inimigo, esta família foi atacada no dia 26 de agosto de 1926 pelo bando de Lampião e um grupo em torno de 120 cangaceiros. Neste dia sangrento mais de 10 pessoas foram mortas na propriedade e nas redondezas pelos bandoleiros das caatingas. Tivemos a oportunidade de ouvir a narrativa oral que é transmitida pela família de Djanilson sobre os episódios de 1926, sua opinião sobre aquele momento extremamente difícil para sua família, as consequências disso e foi possível visitar os locais de luta. Foi um dia muito positivo e produtivo, que só engrandeceu a nossa busca pelo conhecimento.

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Djailson relatando a tradição oral referente ao massacre da família Gilo.

Eu acredito que o mais importante em qualquer viagem não é o destino, mas o caminho e não existe coisa melhor na profissão de Guia de Turismo do que conhecer pessoas. Principalmente pessoas que amam aprender viajando e que gostam de transmitir aquilo que conhecem. E isso fica ainda melhor quando a estrada é percorrida junto de alguém que possui muita humildade, algo fundamental em um bom viajante.

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E por isso considero Sérgio Azol é um ótimo viajante…

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LINK PARA O PROGRAMA CAMINHOS DA REPORTAGEM E A ROTA DO CANGAÇO – TV BRASIL

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PROGRAMA ROTA DO CANGAÇO, CAMINHOS DA REPORTAGEM, TV BRASIL – AQUI CONVIDO A TODOS A ASSISTIREM UM INTERESSANTE TRABALHO QUE TIVE A HONRA DE PARTICIPAR. PERCORRI COM MARAVILHOSOS AMIGOS OS CAMINHOS DO SERTÃO NOS RASTROS DOS CANGACEIROS.

MAIS DE 50 MINUTOS DE CENAS INTERESSANTES, PARA AQUELES QUE DESEJAM CONHECER O ESTRANHO MUNDO DOS CANGACEIROS.

PARA ASSISTIR É SÓ CLICAR QUE VOCÊ VAI A PÁGINA DO PROGRAMA CAMINHOS DA REPORTAGEM, DAÍ É SÓ DESCER A BARRA DE ROLAGEM LATERAL, QUE VOCÊ VAI VER UM QUADRO COM UMA SETA. DAÍ É SÓ CLICAR E CURTIR O PROGRAMA…

http://tokdehistoria-br.informativoparaibano.com/caminhosdareportagem/episodio/a-rota-do-cangaco

RECENTEMENTE PUBLIQUEI  EM NOSSO BLOG DOIS MATERIAIS SOBRE ESTA VIAGEM COM O PESSOAL DA TV BRASIL A PERNAMBUCO.

https://tokdehistoria.wordpress.com/2013/08/29/junto-com-a-tv-brasil-nas-trilhas-de-lampiao-em-pernambuco-ii/

https://tokdehistoria.wordpress.com/2013/07/18/junto-com-a-tv-brasil-nos-caminhos-de-lampiao-em-pernambuco/

Toda a galera reunida no alto da serra
Toda a galera reunida no alto da serra

PARABÉNS A TODA EQUIPE DA TV BRASIL QUE ESTIVERAM CONOSCO NO SERTÃO PERNAMBUCANO, OS AMIGOS CARINA DOURADO, OSVALDO SANTOS E ALEXANDRE SOUZA. SÃO ELES PROFISSIONAIS COMPETENTES, PESSOAS SIMPLES, DE FINO TRATO, QUE EXPANDEM EXTREMA ALEGRIA E UM FORTE SENTIDO DE PARCERIA. FOI BOM ESTAR NA ESTRADA COM VOCÊS E O RESULTADO DE NOSSA UNIÃO FOI MUITO POSITIVO. EVIDENTEMENTE QUE ESTENDO MEUS MAIS SINCEROS AGRADECIMENTOS AOS AMIGOS ALEXANDRE MORAIS, GRANDE POETA DA BELA CIDADE DE AFOGADOS DA INGAZEIRA E AO NOBRE BATALHADOR ALVARO SEVERO, UMA PESSOA DE MUITA VISÃO. COM CERTEZA VAMOS NOS ENCONTRAR NESTE NOSSO SERTÃO. QUERO DEIXAR MEUS ESPECIAIS AGRADECIMENTOS AO MEU GRANDE AMIGO, PARCEIRÃO NA BUSCA DA HISTÓRIA, O NOBRE ANDRÉ VASCONCELOS, A QUEM SOU ETERNAMENTE GRATO PELO ENORME APOIO QUANDO ESTOU NO PAJEÚ QUERIDO.

FOI MARAVILHOSO!

UM FORTE ABRAÇO A TODOS!

JUNTO COM A TV BRASIL NAS TRILHAS DE LAMPIÃO EM PERNAMBUCO II

Contando a história da Fazenda Colônia, onde nasceu o cangaceiro Antônio Silvino
Contando a história da Fazenda Colônia, onde nasceu o cangaceiro Antônio Silvino

NO PRÓXIMO DIA 5 DE SETEMBRO, PELA TV BRASIL, ÁS 10 HORAS DA NOITE, VAI SER TRANSMITIDO UM PROGRAMA ESPECÍFICO SOBRE O TEMA CANGAÇO, AO QUAL TIVE O GRANDE HONRA E PRIVILÉGIO DE PARTICIPAR.

O PROGRAMA CAMINHOS DA REPORTAGEM É BEM INTERESSANTE, SÃO JORNALISTAS QUE VIAJAM PELO PAÍS E PELO MUNDO ATRÁS DE GRANDES HISTÓRIAS, TRAZENDO AO TELESPECTADOR UMA VISÃO DIFERENTE, INSTIGANTE E COMPLEXA DE CADA UM DOS ASSUNTOS ESCOLHIDOS. OS JORNALISTAS A QUEM TIVE A OPORTUNIDADE DE CONHECER E QUE TIVE OPORTUNIDADE DE ACOMPANHAR POR ESTES CAMINHOS DO CANGAÇO FORAM A CARINA DOURADO, OSVALDO SANTOS E ALEXANDRE SOUZA.

EM JULHO ÚLTIMO PUBLIQUEI EM NOSSO BLOG, UM PRIMEIRO MATERIAL SOBRE ESTA VIAGEM COM O PESSOAL DA TV BRASIL A PERNAMBUCO, ONDE OS AMIGOS DO NOSSO TOK DE HISTÓRIA (https://tokdehistoria.wordpress.com/2013/07/18/junto-com-a-tv-brasil-nos-caminhos-de-lampiao-em-pernambuco/)

AGORA TRAGO UMA SEGUNDA MOSTRA DE FOTOS DESTA AÇÃO MARAVILHOSA, COM FOTOS CEDIDAS PELOS AMIGOS OSVALDO SANTOS E ALEXANDRE SOUZA.

Este é o grande amigo Braz de Buíque, da Serra da Colônia. Uma grande figura. Neste dia ele estava seguindo montado para uma missa de vaqueiros na vizinha Paraíba, mas deu um ótimo depoimento.
Este é o grande amigo Braz de Buíque, da Serra da Colônia. Uma grande figura. Neste dia ele estava seguindo montado para uma missa de vaqueiros na vizinha Paraíba e deu um ótimo depoimento

Uma panorâmica da região da Fazenda Colônia. Um ótimo local para um filme de época.
Uma panorâmica da região da Fazenda Colônia. Um ótimo local para um filme de época. É só esconder o poste que está um visual original e bem característico das fazendas do ado do Nordeste.

Esta é a Casa Grande das Almas, propriedade que está situada na área rural de Triunfo (PE), na divisa dos estados de Pernambuco com a Paraíba. Sobre este local podemos comentar que é que parte da casa está em Pernambuco, do outro lado é a Paraíba. Dizem que Lampião, era amigo dos proprietários e gostava de jogar cartas neste local. Afirma-se que quando perseguido na região abrigava-se nas Almas, daí,quando a polícia de pernambuco chegava ali, o rei do cangaço ava para o lado paraibano da casa , onde a policia pernambucana não podia atuar, e quando era perseguido pelos paraibanos, fazia o contrário
Esta é a Casa Grande das Almas, propriedade que está situada na área rural de Triunfo (PE), na divisa dos estados de Pernambuco com a Paraíba. Sobre este local podemos comentar que é que parte da casa está em Pernambuco, do outro lado é a Paraíba. Dizem que Lampião, era amigo dos proprietários e gostava de jogar cartas neste local. Afirma-se que quando perseguido na região abrigava-se nas Almas, daí,quando a polícia de pernambuco chegava ali, o rei do cangaço ava para o lado paraibano da casa , onde a policia pernambucana não podia atuar, e quando era perseguido pelos paraibanos, fazia o contrário.

Osvaldo filmando as Almas
Osvaldo filmando as Almas

Na bela cidade serrana de Triunfo. O grande prédio antigo na foto é o cine teatro Guarany, cujo  é nosso amigo André Vasconcelos
Na bela cidade serrana de Triunfo. O grande prédio antigo na foto é o cine teatro Guarany, cujo é nosso amigo André Vasconcelos. Outra grande figura.

Aqui a Carina, Osvaldo estão juntos ao grupo de Xaxado de Triunfo e a nossa amiga Diana, grande batalhadora pela cultura de sua região.
Aqui a Carina, Osvaldo estão juntos ao grupo de Xaxado de Triunfo e a nossa amiga Diana, grande batalhadora pela cultura de sua região. Diana é uma grande incentivadora da participação dos jovens de sua cidade neste grupo de Xaxado, a dança dos cangaceiros.

Pelos caminhos do sertão, só não sei o que a Carina estava procurando.
Pelos caminhos do sertão, junto aos amigos André Vasconcelos e Carina Dourado. Só não sei o que a Carina estava procurando!

Na Fazenda Barreiros, de propriedade do amigo Alvaro Severo, na zona rural de Serra Talhada, próximo da Serra Grande, onde ocorreu um dos mais importantes e maior combate da história do cangaço
Na Fazenda Barreiros, de propriedade do amigo Alvaro Severo, na zona rural de Serra Talhada, próximo da Serra Grande, onde ocorreu um dos mais importantes e maior combate da história do cangaço

Pelos caminhos da Serra Grande, tendo a frente o Seu Luiz, sertanejo de grande coração, que conhece tudo da fauna e flora da caatinga.
Pelos caminhos da Serra Grande, tendo a frente o Seu Luiz, sertanejo de grande coração, que conhece tudo da fauna e flora da caatinga. Estando com ele o turista não a fome nesta região

Seu Luiz mostrando os segredos da flora do sertão, úteis a sobrevivência em uma região seca
Seu Luiz mostrando os segredos da flora do sertão, úteis a sobrevivência em uma região seca

Panorâmica da Serra Grande. Quase sete horas de caminhada, entre subidas e descidas.
Panorâmica da Serra Grande. Quase sete horas de caminhada, entre subidas e descidas.

Outro visual da serra
Outro visual da serra

Outra parada para conhecer a flora da caatinga
Outra parada para conhecer a flora da caatinga

Deu para aprender bastante
Deu para aprender bastante

No alto da serra, junto com nosso animal de estimação, o pequinês que a tudo escutava. Era um microfone na mão do Fred, outro grande companheiro de viagem.
No alto da serra, junto com nosso animal de estimação, o pequinês que a tudo escutava. Era um microfone na mão do Fred, outro grande companheiro de viagem.

O amigo Alvaro Severo, que desenvolve um maravilhoso projeto de aproveitamento ecoturístico na região, com intensa participação do pessoal do local, comentado sobre a grande luta no alto da serra
O amigo Alvaro Severo, que desenvolve um maravilhoso projeto de aproveitamento ecoturístico na região, com intensa participação do pessoal do local, comentado sobre a grande luta no alto da serra

Toda a galera reunida no alto da serra
Toda a galera reunida no alto da serra

Bem, depois da Serra Grande eu voltei para casa, mas a galera da TV Brasil seguiu viagem. Estiveram na cidade baiana de Paulo Afonso, onde nosso amigo João de Souza Lima, grande pesquisador do cangaço, autor de livros, apresentou a região aos jornalistas. João é uma grande figura, a quem tenho extremo respeito
Bem, depois da Serra Grande eu voltei para casa, mas a galera da TV Brasil seguiu viagem. Estiveram na cidade baiana de Paulo Afonso, onde nosso amigo João de Souza Lima, grande pesquisador do cangaço, autor de livros, apresentou a região aos jornalistas. João é uma grande figura, a quem tenho extremo respeito pela pessoa e seu trabalho. João mostra a cruz que marca o local da morte de Antônio Curvina. Para saber mais, assista o programa dia 5 de setembro, na TV Brasil, ás 10 da noite

Osvaldo em frente a casa de Maria Bonita, que foi fielmente restaurada e hoje é local de visitação
Osvaldo em frente a casa de Maria Bonita, que foi fielmente restaurada e hoje é local de visitação

Os amigos Osvaldo e Alexandre Souza entrevistando Seu Coquinho. Ele contou ótimas histórias sobre Lampião e seu bando Ele reside no povoado Brejo do Burgo, Bahia
Os amigos Osvaldo e Alexandre Souza entrevistando Seu Coquinho. Ele contou ótimas histórias sobre Lampião e seu bando Ele reside no povoado Brejo do Burgo, Bahia

Local próximo da casa onde Lampião costumava fazer seus bailes
Local próximo da casa onde Lampião costumava fazer seus bailes

No próximo dia 5 de setembro, ás 10 da noite, na TV Brasil, vamos ver o resultado deste trabalho. Um abração a todos
No próximo dia 5 de setembro, ás 10 da noite, na TV Brasil, vamos ver o resultado deste trabalho. Um abração a todos

JUNTO COM A TV BRASIL NAS TRILHAS DE LAMPIÃO EM PERNAMBUCO

Diante da centenária capela da Fazenda Colônia, onde nasceu o cangaceiro Antônio Silvino. Da esq. para a dir. Carina Dourado, André Vasconcelos, Osvaldo Alves, o autor deste blog e Alexandre Souza
Diante da centenária capela da Fazenda Colônia, onde nasceu o cangaceiro Antônio Silvino. Da esq. para a dir. Carina Dourado, André Vasconcelos, Osvaldo Alves, o autor deste blog e Alexandre Souza

Na última semana tive oportunidade de percorrer o nosso sertão nordestino para estar junto com o pessoal da TV BRASIL, de Brasília, fazendo parte do programa “CAMINHOS DA REPORTAGEM” sobre o Cangaço e Lampião.

A Equipe era composta pela repórter brasiliense Carina Dourado, o cinegrafista goiano Osvaldo Alves e o auxiliar técnico carioca Alexandre Souza e o motorista Fred Silva, este do Ceará. Todos pessoas maravilhosas, ótimos companheiros de jornada e unidos na busca da informação. Foi uma honra estar com eles.

As cangaceiras do grupo folclórico de xaxado de Triunfo
As cangaceiras do grupo folclórico de xaxado de Triunfo

No sertão pernambucano estivemos juntos em Triunfo, Afogados da Ingazeira e em uma fazenda em Carnaíba e outra em Serra Talhada. Todos locais incríveis, alguns sendo revisitados e outros sendo descobertos.

Mas especialmente em Serra Talhada ficamos hospedados na Fazenda Barreiros, onde amos ótimos momentos junto com o proprietário, o fotojornalista Álvaro Severo, uma grande figura que produz cultura no nosso sertão e com muitas ideias fantásticas.

Cangaço - História e cultura nordestina
Cangaço – História e cultura nordestina

Nesta propriedade seguimos para a Serra Grande, palco do maior combate da história do cangaço no Brasil, onde Lampião, segundo algumas fontes, contava com 85 homens no seu bando e venceu várias volantes que totalizavam 300 policiais. Foram 900 metros de altitude (Mais elevada que a Serra de Martins) que tivemos de encarar e assim compreender o que ocorreu neste local em novembro de 1926. A Fazenda Barreiros está localizada a 38 km de Serra Talhada, possui 1.200 hectares, dos quais 800 são área de preservação permanente. Na grutas da Serra Grande, esconderijo de cangaceiros armas e utensílios tem sido encontradas ao longo dos anos pelo pessoal da fazenda e agora pertencem a coleção privada do Álvaro Severo (Autorizado pelo Exército). Ali já acharam até uma máquina de costura que os cangaceiros utilizavam para consertar seus uniformes. O Álvaro trabalha duro para criar um museu e uma pousada rústica para que os visitantes compreendam o que é o sertão, sua gente e sua história.

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Foram 1.400 km de estrada, ida e volta do Pajeú, queimando trecho, comendo onde dava, andando em estrada esburacada, subindo serra, quebrando mato, deixando a família em Natal a pé e na casa de parentes. Mas descobrir estes locais, é igual a propaganda do Mastercard,…Não tem preço!

Início da minha viagem, ando por Santa Cruz-RN e a grande estátua da padroeira da cidade
Início da minha viagem, ando por Santa Cruz-RN e a grande estátua da padroeira da cidade

Em Soledade-PB, buscando o caminho
Em Soledade-PB, buscando o caminho

Fazendas centenárias do sertão
Fazendas centenárias do sertão

Em Taperoá-PB, a lembrança da obra do grande Ariano Suassuna
Em Taperoá-PB, a lembrança da obra do grande Mestre Ariano Suassuna

Finalmente em Triunfo-PE e seu maravilhoso e diferente friozinho sertanejo
Finalmente em Triunfo-PE e seu maravilhoso e diferente friozinho sertanejo

Juntos André e Carina transmitindo para os telespectadores as histórias da "Casa das Almas" de Triunfo. Dizem que a fronteira da Paraíba e de Pernambuco a no meio desta casa e que na época do cangaço Lampião podia ficar em um dos lados da fronteira dentro da casa que a polícia não o perturbava. Será?
Juntos André e Carina transmitindo para os telespectadores as histórias da “Casa das Almas” de Triunfo. Dizem que a fronteira da Paraíba e de Pernambuco a no meio desta casa e que na época do cangaço Lampião podia ficar em um dos lados da fronteira dentro da casa que a polícia não o perturbava. Será?

Filmado em Triunfo o grupo de xaxado organizado pela amiga e pesquisadora triunfense Diana Pontes
Filmado em Triunfo o grupo de xaxado organizado pela amiga e pesquisadora triunfense Diana Pontes

Em Afogados da Ingazeira, na praça principal, junto com o jovem poeta Alexandre Morais, que criou e declamou um maravilhoso poema sobre Antônio Silvino
Em Afogados da Ingazeira, na praça principal, junto com o jovem poeta Alexandre Morais, que criou  especialmente para o programa um maravilhoso poema sobre Antônio Silvino

A caminho da Fazenda Colônia, onde nasceu Antônio Silvino
A caminho da Fazenda Colônia, onde nasceu Antônio Silvino

Casa Grande da Fazenda Colônia, onde nasceu Manoel Baptista de Morais, futuro "Rifle de Ouro", cangaceiro Antônio Silvino
Casa Grande da Fazenda Colônia, onde nasceu Manoel Baptista de Morais, futuro “Rifle de Ouro”, cangaceiro Antônio Silvino

Reencontrando o amigo Braz de Buíque, grande vaqueiro, afamado na sua ribeira e homem simples por natureza
Reencontrando o amigo Braz de Buíque, grande vaqueiro, afamado na sua ribeira e homem simples por natureza

Centenária moenda de cana da Fazenda Colônia
Centenária moenda de cana da Fazenda Colônia

Procurando transmitir o que aprendi desde a primeira vez que aaqui vim, em 2008, com o amigo, pesquisador e escritor Sérgio Dantas, que escreveu o melhor livro biográfico sobre Antônio Silvino
Procurando transmitir o que aprendi.

A Fazenda Colônia é um local que parou no tempo e daria um ótimo local para filmagens de época
A Fazenda Colônia é um local que parou no tempo e daria um ótimo local para filmagens de época

A noite na Fazenda Barreiros, zona rural de Serra Talhada. A galera animada para a Serra Grande
A noite na Fazenda Barreiros, zona rural de Serra Talhada. A galera animada para a Serra Grande

O Alexandre, carioca da Tijuca, deleitando a todos com o puro chorinho em pleno sertão
O Alexandre, carioca da Tijuca, deleitando a todos com o puro chorinho em pleno sertão

Armas de fogo, munições e armas brancas encontradas em grutas que serviram de abrigo aos cangaceiros na Serra Grande
Armas de fogo, munições e armas brancas encontradas em grutas que serviram de abrigo aos cangaceiros na Serra Grande

Serra Grande, local do maior combate do cangaço
Serra Grande, local do maior combate do cangaço

Típico café sertanejo
Típico café sertanejo…..

Degustando um maravilhoso queijo, ao lado do amigo Álvaro Severo, proprietário da Fazenda Bezerros.
Degustando um maravilhoso queijo, ao lado do amigo Álvaro Severo, proprietário da Fazenda Bezerros.

André e os carros de bois típicos do Pajeú
André e os carros de bois típicos do Pajeú

Instruções para encarar a subida com o guia local
Instruções para encarar a subida com o guia local

Pelas mesmas trilhas dos cangaceiros
Pelas mesmas trilhas dos cangaceiros

A caminho
A caminho

No meio da mata
No meio da mata

Como se diz - "Rapadura é doce, mas não é mole não!"
Como se diz – “Rapadura é doce, mas não é mole não!”

Não foi fácil..
Não foi fácil..

..Mas no final tranquilos e realizados com o esforço.
..Mas no final tranquilos e realizados com o esforço.

Carina e seu achado...
Carina e seu achado…

O retorno...
O retorno…

No final junto com as crianças do Pajeú
No final junto com as crianças do Pajeú

Um grande agradecimento ao amigo André Vasconcelos pelo apoio e atenção no sertão do Pajeú. Já duas vezes que viajo com André e a nossa convivência e trabalho foram enormemente positivos. Eu fui contatado pelo pessoal da TV Brasil por conta do nosso blog TOK DE HISTÓRIA e os textos que aqui se encontra sobre o cangaço e eu fiz questão de contatar o André e colocá-lo na produção. Ele teve um ótimo espaço no programa apresentando a sua cidade (a famosa “Casa das Almas” e uma residência que nunca foi mostrada na imprensa e serviu para Lampião se recuperar do tiro no pé em 1924). Trabalhamos juntos e foi muito bom, ele é uma grande figura e, se Deus quiser, vamos repetir a dose em breve!

O grande André, extremo conhecedor do tema cangaço na região e um ótimo violeiro. Sem sua ajuda a gente não conseguiria
O grande André, extremo conhecedor do tema cangaço na região e um ótimo violeiro. Sem sua ajuda a gente não conseguiria

Foi em dezembro de 2010 que criei o TOK DE HISTÓRIA, com a ideia de ter um espaço na internet para escrever sobre coisas que gosto, sempre buscando democratizar a informação histórica. Nunca ganhei um centavo com este trabalho, mas o que ganhei em informações, conhecimento e principalmente amigos, já perdi as contas.

Rostand Medeiros

AS BATALHAS ENTRE CLEMENTINO QUELÉ E LAMPIÃO EM SANTA CRUZ DA BAIXA VERDE – PE

Lampião, o Rei do Cangaço
Lampião, o Rei do Cangaço

“HOJE SÓ SE SALVA QUEM AVÔA”

Autor – Rostand Medeiros

Em um dia de agosto de 2006, uma sexta feira, na cidade pernambucana de Santa Cruz da Baixa Verde, em Pernambuco, tivemos a oportunidade de conhecer um homem, nascido em 1912, que pela sua lucidez e saúde, foi como encontrar um verdadeiro tesouro da história oral do cangaço.

Clementino José Furtado, o Clementino Quelé.
Clementino José Furtado, o Clementino Quelé.

Seu nome era Antônio Ramos Moura, sua residência uma casa ampla no sitio Conceição e o assunto foi os dois ataques perpetrados por Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, e seus cangaceiros, contra a casa do seu antigo parceiro, Clementino José Furtado, o Clementino Quelé, que após estes embates se tornou um dos mais esforçados perseguidores do “Rei do Cangaço”.

Antônio Ramos Moura, então com doze anos, foi testemunha destes episódios e detalhou vários aspectos de sua vida na época e rememorou inúmeros fatos. 

A Santa Cruz 

O atual município de Santa Cruz da Baixa Verde está localizado na região do Sertão do Alto Pajeú, na fronteira com a Paraíba. Fica distante 455 quilômetros de Recife, possui um agradável clima serrano e a cidade se caracteriza por concentrar na atualidade a maior quantidade de engenhos de rapadura de Pernambuco. Já as origens do local são oriundas do antigo “sítio Brocotó” e a atual denominação tem origem na ação de um missionário nordestino que possui uma história extraordinária.

Nascido em 5 de agosto de 1806, na Vila de Sobral, Ceará, José Antônio Pereira Ibiapina teve uma origem confortável. Mas devido a participação do seu pai Francisco Miguel Pereira na insurgência conhecida como Confederação do Equador, este foi fuzilado em 1825, e o irmão Alexandre seguiu preso para a ilha de Fernando de Noronha, onde morreu pouco tempo depois. Ibiapina teve que assumir e manter financeiramente a família.

Imagem mais conhecida do Padre Ibiapina - Fonte - http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=852&Itemid=1
Imagem mais conhecida do Padre Ibiapina – Fonte – http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=852&Itemid=1

Algum tempo depois ingressou no Curso de Direito do Recife, concluindo em 1832. No ano seguinte exerce o cargo de professor substituto de Direito Natural na Faculdade de Olinda. Depois foi eleito Deputado Geral e nomeado, em dezembro, Juiz de Direito da Comarca de Campo Maior, no Ceará. Concluídos os trabalhos legislativos, em 1837, Ibiapina voltou para o Recife e resolve exercer a advocacia. No entanto, ele a a trabalhar efetivamente na profissão no estado da Paraíba. Em 1840 volta ao Recife e continua sua luta junto aos tribunais.

A partir de 1850 Ibiapina resolve abandonar seus trabalhos forenses e inicia um período dedicado à meditação e exercícios de piedade. Após três anos de meditação e reflexão, Ibiapina decide-se pelo sacerdócio. Nesse sentido, em 12 de julho de 1853, aos 47 anos de idade, ele se torna o Padre Ibiapina. Logo após sua ordenação, o Bispo Dom João da Purificação o nomeia Vigário Geral e Provedor do Bispado, além de professor de Eloquência do Seminário de Olinda.

Mas contrariando seus superiores, opta pela vida missionária. Padre Ibiapina começou então seu trabalho missionário pelo interior do Nordeste. Em diversas vilas construiu casas de caridade, destinadas a moças pobres. Em cada lugar ele pregava, orientava, promovia reconciliações, construía açudes, igrejas, cemitérios, cacimbas e cruzeiros. Um destes cruzeiros foi erguido no sítio Brocotó e ficou conhecido como Santa Cruz, sendo esta a denominação na época do cangaço.

Região serrana de Santa Cruz da Baixa Verde, Pernambuco.
Região serrana de Santa Cruz da Baixa Verde, Pernambuco.

Com o ar do tempo, pelo fato da pequena urbe está no alto da Serra da Baixa Verde, o lugar ou a denominar-se Santa Cruz da Baixa Verde e pertencia istrativamente à bela cidade serrana de Triunfo.

Careta 

O pai do nosso entrevistado chamava-se Miguel Moura, tinha uma pequena bodega, além de trabalhar como tropeiro, ou almocreve. Tinha uma tropa de animais e fazia a linha entre as cidades de Triunfo, Serra Talhada e Arcoverde, na época denominada Rio Branco, trazendo e levando cereais. Antônio Ramos comentou que seu pai viajava para vários locais, transportando rapaduras. Inclusive o Rio Grande do Norte foi um dos seus destinos, onde esteve em Mossoró para comprar sal e também em Caicó.

O autor e o memorioso Antônio Ramos Moura.
O autor e o memorioso Antônio Ramos Moura.

Para nosso entrevistado Clementino Quelé, era chefe de sua família, tinha como irmãos Pedro, Quintino, Antônio, José e Manuel (nezinho), todos considerados homens dispostos, valentes e que “gostavam da espingarda”. Antônio Ramos comenta que na sua infância tinha um enorme respeito por aquele homem. Pouco falou com ele, mas obteve muitas informações sobre Quelé através de seu sogro Joaquim de Fonte, sobrinho do chefe da família Furtado.

Clementino é descrito como um homem forte, de tez acentuadamente branca, que realmente ficava com a pele vermelha quando tinha raiva e esta teria sido a razão de Lampião apelidá-lo pejorativamente como “Tamanduá Vermelho”.

praça principal da atual Santa Cruz da Baixa Verde, com a estátua do Padre Ibiapina em destaque.
praça principal da atual Santa Cruz da Baixa Verde, com a estátua do Padre Ibiapina em destaque.

Já para o pesquisador Frederico Pernambucano de Mello (in “Guerreiros do Sol”, 2004, págs. 220 a 225), Quelé era natural da ribeira do Navio, onde seguiu jovem para Alagoas, afastando-se de Pernambuco por questões de disputa familiar. No retorno a sua família vem para Triunfo, no sítio Santa Luzia. O antigo membro de volante João Gomes de Lira (in “Lampião-Memórias de um soldado de volante”, 1990, págs. 123 e 124) comenta ser a Santa Luzia a morada do bravo pernambucano.

Fachada da igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em santa Cruz da Baixa Verde.
Fachada da igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em santa Cruz da Baixa Verde.

Para Antônio Ramos, na época das grandes “brigadas” de Quelé contra Lampião, ele morava no sítio Conceição.

Independente desta questão consta para nosso entrevistado que Quelé e seus irmãos eram analfabetos “-De tudo”. Do tipo que “-Não assinavam nem o A” e nem faziam “-Garrancho” do nome. Dizia Quelé ao tio de Antônio Ramos que ele era “careta”, outra denominação para seu analfabetismo. Pois quando olhava para qualquer texto escrito, franzia a testa, mostrava o rosto carregado, com uma careta, por não saber ler.

Mas se Quelé e seus irmãos não sabiam ler, sabiam atirar e muito bem. 

De Homem da Lei a Cangaceiro 

Para Mello (op. cit.), o bravo Quelé alcançou o posto de subdelegado do seu lugar e impunha a ordem, mas igualmente angariava inimigos. O autor informa que em uma diligência Quelé matou dois ladrões de cavalo, respondeu processo e foi destituído do cargo. Em seu lugar assumiu seu irmão Pedro José Furtado, ou Pedro Quelé.

Em 1922, para livrar o valente chefe da família Furtado do processo, o líder político Aprígio Higino D’Assunção solicita deste e de seus irmãos votos na próxima campanha eleitoral em Triunfo. Diante da recusa de Quelé em apoiá-lo, Aprígio ordena que uma força policial com um oficial e quatorze praças saíssem à caça do valente.

Na tranquilidade do alpendre de sua casa, o sertanejo Antônio Ramos contou que um dia, certo morador do lugar chamado Tomé Guerra, antigo amigo de Quelé, arranjou uma encrenca com o mesmo e entendeu de matá-lo. Tomé chamou outro morador do lugar, também “chegado na espingarda”, de nome Cícero Fonseca. Estes, juntos com um grupo de policiais, colocaram uma tocaia contra Clementino ás cinco da manhã, “-Para pegá-lo com as mãos”.

O "major" Aprígio Higino D’Assunção,  que por três ocasiões foi prefeito em Triunfo e dono de cartório.
O “major” Aprígio Higino D’Assunção,
que por três ocasiões foi prefeito em Triunfo e dono de cartório. Foto reproduzida a partir do livro “Triumpho, a corte do sertão”, de Duana Rodrigues Lopes, pág. 234.

Quelé ao perceber o ardil, pulou desviando dos tiros e respondeu ao fogo, atingindo certeiramente a cabeça de Cícero Fonseca, tendo o mesmo caído mortalmente ferido em um barreiro. Os outros membros da emboscada “botaram” em Quelé, que conseguiu fugir para sua casa. Clementino teria escapado através de um local onde havia um curral que pertencia a um cidadão conhecido como Sebastião Pedreiro e por uma área onde existia certa quantidade de cactos do tipo palma, utilizados como comida para o gado.

De paletó claro vemos  Aprígio Higino.  Para o pesquisador Frederico Pernambucano de Mello ele foi o pivô que levou Clementino Quelé  a entrar no cangaço.  Foto reproduzida a partir do livro “Triumpho, a corte do sertão”, de Diana Rodrigues Lopes, pág. 373.
Aprígio Higino e parentes. Para o pesquisador Frederico Pernambucano de Mello ele foi o pivô que levou Clementino Quelé a entrar no cangaço.
Foto reproduzida a partir do livro “Triumpho, a corte do sertão”, de Diana Rodrigues Lopes, pág. 373.

Mello (op. cit.) aponta que um “certo Tomé de Souza Guerra”, do sítio Santana e outros homens engrossaram a força policial que perseguia Quelé. Mas Cícero Fonseca era um companheiro de Quelé, onde os dois bebiam na bodega de Sebastião Pedreiro, quando a polícia cercou o lugar e deu voz de prisão. Na versão do respeitado pesquisador, que conseguiu suas informações através do relato de Miguel Feitosa, o antigo cangaceiro Medalha, o pobre Cícero ao colocar o pé para fora da bodega foi crivado de balas.

Vendo que a força policial e os paisanos não vinham para prendê-lo, mas para exterminá-lo, Quelé solicita aos gritos o apoio de amigos das proximidades, estes atenderam ao chamado e a balaceira foi grande. Diante da resistência inesperada a força policial e os paisanos batem em retirada. 

Independente de qual a versão correta, todos são unânimes em afirmar que a partir deste confronto os perseguidores am a “apertar” Quelé, sendo esta a verdadeira razão para ele e seus irmãos entrarem no cangaço junto a Lampião. 

A Briga de Quelé com o Cangaceiro Meia Noite 

O comerciante e almocreve Miguel Moura nutria uma boa relação com Clementino, a quem chamava de “primo”. Este comentou com seu filho que a razão de sua saída do bando de Lampião foi uma briga com o valente cangaceiro “Meia Noite”. 

Este era alagoano, do lugar Olho D’água, atual Olho D’água do Casado, próximo a cidade de Piranhas. Seu nome verdadeiro era Antônio Augusto Correia e pelo fato de possuir a pele negra, recebeu a famosa alcunha. Para o genitor de Antônio Ramos, o negro Meia Noite foi o mais valente de todos os homens que andaram com Lampião, do tipo de gente que “-Dava medo só de olhar”.Segundo Mello (op. cit.), a razão da briga entre Quelé e Meia Noite foram dois irmãos cangaceiros chamados José e Terto Barbosa. Este último havia assassinado no Ceará o irmão de um chefe cangaceiro, tendo se refugiado com seu mano na serra do Catolé, a cerca de 30 quilômetros da cidade pernambucana de Belmonte, próximo às fronteiras do Ceará e da Paraíba.

A região montanhosa de Santa Cruz da Baixa Verde, a partir da estrada que liga esta a cidade ao vizinho município de Manaíra,  já na Paraíba.
A região montanhosa de Santa Cruz da Baixa Verde, a partir da estrada que liga esta a cidade ao vizinho município de Manaíra, já na Paraíba.

Em uma ocasião que os cangaceiros de Lampião e Quelé se encontravam na fazenda Abóbora, pertencente ao tradicional coiteiro Marçal Diniz, chegou uma mensagem de José e Terto para seus tios Neco e Chico Barbosa, igualmente cangaceiros do bando de Lampião. O que os dois sobrinhos solicitavam aos tios era uma maneira de salvarem a pele.

Neco e Chico sabendo que o chefe cangaceiro cearense, conhecido como “Casa Velha”, cujo irmão foi morto por Terto, era amigo de Lampião, acharam por bem pedir a Clementino Quelé que recebesse os dois sobrinhos. O chefe dos Furtados,  junto com seus irmãos, se sobressaía cada vez mais no cangaço e não pôs obstáculo à entrada dos dois rapazes no seu grupo.

Quando Meia Noite soube da história se colocou totalmente contrário, pois foi amigo do homem morto por Terto Barbosa e disse que se ele viesse para o bando iria atirar nele. O resumo da ópera foi que após Quelé tomar conhecimento da alteração de Meia Noite, este se coloca ao lado de Terto. Quelé corajosamente disfere uma saraivada de impropérios contra Lampião, Meia-Noite e os outros cangaceiros. Segundo Mello (op. cit), Clementino teria dito textualmente “-Que juntassem tudo que ele brigava do mesmo jeito”.

O chefe dos Furtados percebeu que após este fato, ficar ao lado de Lampião e seu bando seria o mesmo que praticar um suicídio, pois o mais famoso cangaceiro do Brasil era conhecido pelo seu rancor.

A região de Santa Cruz da Baixa Verde, a partir da PE-365, que liga Triunfo a Serra Talhada.
A região de Santa Cruz da Baixa Verde, a partir da PE-365, que liga Triunfo a Serra Talhada.

Já nosso informante Antônio Ramos transmitiu uma versão diferenciada. Na ocasião destes episódios, o chefe dos Furtados estava junto com Lampião e seu bando em um esconderijo próximo a povoação de Patos, já na Paraíba, onde o problema ocorreu no momento em os tios de Terto trouxeram uma carta dos sobrinhos para Quelé e lhe contaram o problema. Quelé então teria solicitado que alguém lesse a dita mensagem em voz alta. Nisto o cangaceiro Meia Noite ouviu sobre o conteúdo da missiva e desconfiou que Quelé fosse colocar aqueles indivíduos como integrantes do bando.

Vista da Serra do Catolé, em Belmonte, Pernambuco.
Vista da Serra do Catolé, em Belmonte, Pernambuco.

Segundo o entrevistado, Meia Noite conhecia os “Barbosas”, contra quem já havia brigado, era inimigo dos mesmos, principalmente de Terto. O negro alagoano ficou cismado que Quelé, ao colocar aquela turma de valentes no bando, seria um meio para Terto, dos “Barbosas da Serra do Catolé”, dar fim a sua vida.

Quelé ao saber do fato negou. Disse a Meia Noite que “-Gostava de homem valente”, que os “Barbosas” eram pessoas que ele tinha “-Para onde botar”. Meia Noite comentou que sendo Terto seu inimigo, se por acaso ele trouxesse os “Barbosas” para perto do bando, “-Sabia que ia ser uma desgraça, que nóis briguemo e ficou para quando nóis se encontrar, a bala cortar”. Antônio Ramos narrou que Quelé ponderou, afirmando que “-Quando o homem é valente, que pede uma proteção, eu gosto de amparar”.

A discussão entre estes guerreiros foi gradativamente aumentando de tom, crescendo na ferocidade, até que os dois valentes partiram para a luta corporal. Lampião chamou seus homens rapidamente dizendo “-Acode, acode, se não estes homens se matam” e conseguiram apartar a briga. Para o entrevistado Lampião disse a Quelé “-Que deixasse o negro Meia Noite com ele, pois parecia que ele tinha saído do inferno” e pediu a Clementino e seus irmãos para irem para o sítio Conceição. 

Antônio Ramos relata que depois da discussão, Quelé aparentemente não se satisfez com o posicionamento de Lampião e reclamou. No entendimento do chefe dos Furtados, Lampião “-Teria dado mais valor a um negro do que a ele”. Sentindo-se rebaixado no seu racismo tardio, Quelé abandonou a vida do cangaço e ficou marcado por Virgulino.Outra informação ouvida por Antônio Ramos dá conta que no momento em que Clementino Quelé e seus parentes saíram da região dos Patos e do bando de Lampião, um dos seus parentes, filho de certa “Luzia Lalau” e um tal de Ricardo, pessoas de Santa Cruz, ficaram no bando de Lampião.

Os tiroteios de Lampião contra Quelé 

Seja através de uma, ou de outra versão, o certo é que tempos depois desta desavença no seio do bando, o chefe Lampião, apoiado pelo fazendeiro Marcolino Diniz, filho do coronel Marçal, vem para Santa Cruz com o objetivo de matar Clementino e seus irmãos. Este encontro ocorreu no dia 5 de janeiro de 1924, um sábado.

Segundo informações coletadas em Santa Cruz da Baixa Verde, esta casa reformada teria sido a fortaleza de Clementino Quelé. Entretanto este dado ficou inconclusiva devido a divergências em relações a outras informações que foram apuradas na região.
Segundo informações coletadas em Santa Cruz da Baixa Verde, esta casa reformada teria sido a fortaleza de Clementino Quelé. Entretanto este dado ficou inconclusivo devido a divergências em relações a outras informações que foram apuradas na região.

Antônio Ramos informa que era um “-Meninote de doze anos”, que a sua casa antiga era próxima a sua atual morada e seu pai possuía uma bodega pequena, mas bem surtida. 

Era ainda de madrugada, quase amanhecendo, quando o jovem Antônio Ramos acordou com o barulho de muitas vozes de homens no oitão da sua casa. Era um grupo numeroso de cangaceiros. O garoto notou que todos vinham alegres, animados, equipados, armados e com muita munição. Muitos deles estavam embalados por aguardente e segundo suas próprias palavras, os cangaceiros pareciam estar “-Com fogo saindo pelas orelhas”.Eles pediram tudo que seu pai tivesse de comida no estabelecimento, além de mais cachaça. Este prontamente ou a servir o bando, especialmente Lampião. Os homens armados não fizeram nada com seu pai ou sua família nesta ocasião.

Antônio assistiu Lampião comendo uma rapadura com queijo e comentando alegremente com a rapaziada sobre a futura luta. Ele se apresentava animado, doido para brigar. Neste momento pronunciou uma frase que Antônio Ramos jamais esqueceu.

“-Da família de Quelé, hoje só se salva quem avoa”.

O Rei do cangaço ainda afirmou que “

 Hoje eu vou beber o sangue de todo mundo”.

Nesta ocasião, durante o nosso encontro, o nonagenário entrevistado alterou-se, ficando visivelmente emocionado. Ele recordou que se tremeu todo, no momento que escutou estas frases do famoso bandoleiro. Comentou veementemente que viu Lampião falar exatamente da forma anteriormente descrita e narrou este fato agarrando fortemente o braço do autor, tal a emoção.

Outra imagem da casa onde pretensamente ocorreu a batalha.
Outra imagem da casa onde pretensamente ocorreu a batalha.

Ele descreveu Lampião como sendo moreno, alto, rosto comprido, cego de um olho, não usava óculos naquele dia e que mesmo assim enxergava bem. Pouco tempo depois o bando saiu da bodega. 

A desproporção da luta que se avizinhava era enorme, pois Quelé tinha junto com ele apenas outros cinco companheiros para lhe ajudar. Para Antônio Ramos os cangaceiros seriam em torno de “-Uns cinquenta homens”. Já Carvalho (op. cit.) afirma que seriam quarenta e cinco.O pesquisador Geraldo Ferraz de Sá Torres Filho (in “Pernambuco no tempo do Cangaço-Volume I”, 2002, págs. 328 a 330) reproduz o “Boletim Geral nº 05”, emitido pela polícia pernambucana no dia 7 de janeiro de 1924, onde consta que o número de cangaceiros era de sessenta homens. 

Mas para os familiares de Antônio Ramos, naquele momento o que importava era buscar de alguma maneira se proteger dentro de casa diante do que iria acontecer e em pouco tempo “-A bala comeu”. Ele e seus familiares ficaram escutando o tiroteio, mas não lembra a duração, só comentou que “-Demorou muito”.

Falou que “-Quando deu fé”, chegou a sua casa um rapaz da família de Quelé com cerca de 16 anos, dizendo que estava dentro de um partido de mandioca quando os cabras chegaram e comentou que “-A bala tava cortando tudo”. Narrou que o rapazinho tinha escutado os gritos dos cangaceiros prometerem: “-Derrubar a casa” e o pessoal da casa avisando aos gritos para os atacantes que 

“- Se derrubar e entrar um, nóis mata na faca”.

A testemunha da batalha de 5 de janeiro de 1924 afirmou que este rapaz avisou que iria a Triunfo buscar uma volante. Nesta cidade o delegado era o tenente Malta e havia uma volante comandada pelo sargento Higino José Belarmino.

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Edição do jornal recifense “A Notícia”, de 14 de janeiro de 1924, existente na hemeroteca do Arquivo Público do Estado de Pernambuco, informando erroneamente sobre a ação da polícia, durante o segundo ataque de Lampião contra Quelé.
Edição do jornal recifense “A Notícia”, de 14 de janeiro de 1924, existente na hemeroteca do Arquivo Público do Estado de Pernambuco, informando erroneamente sobre a ação da polícia, durante o segundo ataque de Lampião contra Quelé.

O jovem disse que seguiria através de um caminho alternativo, evitando a vereda que levava normalmente para esta cidade, pois com certeza os cangaceiros deviam ter “-Botado uma emboscada aculá na frente”. O jovem deixou a casa de Ramos, seguindo em direção a serra dos Nogueiras, saindo no lugar chamado Gameleira e de lá para Triunfo.

Entretanto, para nosso entrevistado, a polícia ficou “insonando”. No seu linguajar típico, onde Antônio Ramos utilizava expressões difíceis de serem ouvidas atualmente no sertão nordestino, ele quis dizer que os homens da lei ficaram enrolando e só foram chegar a Santa Cruz por volta das 11 horas da manhã.

Esta volante levou várias horas para percorrer os seis quilômetros entre as duas localidades. Provavelmente para os policiais, a ocorrência em Santa Cruz era um problema entre bandidos e quanto mais deles se matassem entre si, melhor. Mas diante da resistência feroz realizada por Clementino e seus companheiros, a polícia se deslocou para evitar a pecha de conivência e covardia.

Apesar da evidente falta de vontade dos policiais de irem a lutar, ficamos imaginando o conflito dentro da própria volante, entre aqueles que queriam ir e dos que não queriam, pois certamente nem todos eram covardes e honravam a farda que vestiam.

Enquanto isso a família de Quelé, literalmente “comia chumbo” e o tiroteio não dava mostras de diminuir. A casa sofria diante da quantidade de tiros, em mais de seis horas de batalha ininterruptas. Antônio Ramos e seus familiares, até por razões bastante óbvias, não viram nada da refrega, apenas escutaram assustados a troca de disparos.

Nosso entrevistado comentou que nesta época morava na sua casa um primo chamado Augusto e foi este quem primeiro ouviu um tiro de fuzil. Esta arma possuía um som característico e bem diferente dos rifles Winchester, de calibre 44, ainda bastante utilizados pelos cangaceiros e pelo pessoal de Quelé. O som lhe chamou a atenção e mostrava que a polícia estava chegando, vindo pelo caminho que seguia para a pequena Santa Cruz, que nessa época era um simples arruado “-Com no máximo quatro casas”.

Aparentemente a Força Policial começou a atirar com seus fuzis muito antes de chegar ao local do confronto, esperando que assim os cangaceiros debandassem. Mas segundo o nosso informante, foi nesse momento que o tiroteio ficou ainda mais forte, “-Com a fumaça cobrindo tudo” e as balas “-Zunindo por riba de casa”, o que deixou os membros da sua família extremamente assustados. Podemos deduzir através de suas informações que, de alguma maneira, a sua casa ficou entre o fogo cruzado.

O aposentado coronel Higino José Belarmino,  em foto de Josenildo Tenório, de 1973.  Reprodução feita a partir da página 50 do livro “Lampião, o cangaceiro e o outro”, de Fernando Portela e Claudio Bojunga, edição 1982.
O aposentado coronel Higino José Belarmino,
em foto de Josenildo Tenório, de 1973.
Reprodução feita a partir da página 50 do livro “Lampião, o cangaceiro e o outro”,
de Fernando Portela e Claudio Bojunga, edição 1982.

Segundo Ferraz (op. cit.), no “Boletim Geral nº 05” encontramos a informação que o tiroteio morreu o irmão Pedro Quelé e Alexandre Cruz, ficando ferido Deposiano Alves Feitosa. Antônio Ramos narra que seu pai considerava Pedro Quelé como um homem valente. Na região ficou conhecido o fato que quando acabou a sua munição, este pediu garantias para sair, mas ao colocar a cabeça para fora da janela, foi impiedosamente morto.

Depois de toda uma batalha tenaz onde não tivera êxito, Virgulino Ferreira da Silva não refreou sua vontade de acabar com o atrevido Clementino Quelé.Ferraz (op. cit.) mostra que no “Boletim Geral nº 07”, da polícia pernambucana, emitido no dia 9 de janeiro de 1924, reproduz um bilhete do tenente Malta informando “Acha-se grupo de Lampião proximidade de Santa Cruz”. O militar ainda comentou na missiva que contava com “89 praças” para defender Triunfo e região.

Mesmo com esta força nas proximidades, seis dias depois, no dia 11 de janeiro, uma sexta-feira, Lampião e seus homens voltaram para aplicar uma segunda dose de chumbo em Quelé e seus companheiros.

Santa Cruz da Baixa Verde em 1951, durante uma visita de Frei Damião.
Santa Cruz da Baixa Verde em 1951, durante uma visita de Frei Damião.

Antônio Ramos recordou muito bem que em relação a este combate, percebeu que o sol já vinha saindo quando o tiroteio teve início e novamente a história se repetiu. De um lado os cangaceiros sedentos de sangue e do outro um pequeno grupo de homens se defendendo como podiam.

Segundo Lira (op. cit.), Lampião despejava todo tipo de impropérios e palavrões conhecidos contra o destemido Quelé e seu pessoal. Mas os sitiados respondiam, cantavam e assim irritavam o chefe dos cangaceiros.

Mesmo com uma força policial numerosa em Triunfo, novamente os agentes de segurança do Estado levaram outras seis longas horas para chegarem a Santa Cruz, repetindo-se o que ocorreu no domingo anterior. De toda maneira Clementino só conseguiu se safar pela chegada do destacamento policial baseado em Triunfo.
Para Antônio Ramos, consta que Quelé tinha um parente de nome José, apelidado “José Caixa de Fósforo”, que parece ter estado nos dois tiroteios.

Apesar do antigo cangaceiro de Lampião sair vivo nestes combates, a família Furtado foi praticamente exterminada. Segundo Mello (op. cit.), tanto neste, como em combates futuros, morreram três irmãos, dois genros e um sobrinho. Além destes seis parentes, segundo o pesquisador, mais cinco amigos do valente Quelé pagaram com a vida e inúmeros outras pessoas ligadas a Clementino ficaram feridos.

Casa antiga da região de Santa Cruz da Baixa Verde.
Casa antiga da região de Santa Cruz da Baixa Verde.

Em relação aos confrontos de janeiro de 1924, Antônio Ramos contou que uma das casas que foi palco dos dramas ainda existia e que na época era considerado um sítio afastado da então vila. Tentamos localizar o local. Chegamos a fotografar uma residência antiga, mas reformada. Entretanto houve divergências com outros informantes, que comentaram ter sido as casas da família de Quelé derrubadas há muito tempo. 

Independente da residência correta onde aconteceram os tiroteios, fomos informados por pessoas da região, nascidas anos após os episódios, que seus parentes mais velhos narravam que quando estes seguiam para capinar nas proximidades das antigas vivendas, a coisa mais comum era encontrar capsulas deflagrada de rifles e fuzis. 

O Vingador do Sertão 

Depois dos tiroteios, Quelé ficou meio perdido pela região, sendo protegido por Higino Berlarmino. Para Antônio Ramos, foi o coronel José Pereira, o chefe político da vizinha cidade paraibana de Princesa, que deu o apoio decisivo para Quelé se tornar um implacável caçador de Lampião.

Sentado vemos Marcolino Diniz e seus comandados durante a Guerra de Princesa.
Sentado vemos Marcolino Diniz e seus comandados durante a Guerra de Princesa.

Após o grande assalto de cangaceiros ocorrido na cidade de Sousa, em 27 de julho de 1924, Pereira exigiu que seu parente Marcolino Diniz não desse mais apoio a Lampião e o expulsasse da região dos Patos. Por indicação de alguém que Antônio Ramos não recorda, foi sugerido ao “dono” de Princesa o nome de Quelé, para que este servisse no comando de uma volante em perseguição a Lampião. A solicitação foi feita ao então governador paraibano João Suassuna e Clementino Furtado a a ser conhecido como o Sargento Quelé. (Sobre um episódio envolvendo o Sargento Quelé na Guerra de Princesa ver – https://tokdehistoria.wordpress.com/2011/06/07/a-batalha-do-casarao-dos-patos/)

Sua volante, a famosa “Coluna Pente Fino”, ficou marcada na história do cangaço pela selvageria como combatia os cangaceiros e infligia o terror aos coiteiros. Muitos parentes fizeram parte do grupo. Se não faltam relatos de valentia do seu pessoal, infelizmente não faltam informações que inúmeros inocentes sofreram nas mãos dos homens de Quelé, além de inúmeros atos de pura rapinagem.

De toda maneira o “investimento” do governo da Paraíba em Quelé não foi em vão. Três anos e meio depois dos combates em Santa Cruz, no dia 14 de junho de 1927, ele e seus homens serão a primeira força policial a adentrar em Mossoró, após a fracassada tentativa de Lampião para conquistar a maior cidade do interior potiguar. Nesta ocasião consta que no currículo de combates de Quelé contra o Rei do cangaço, estavam listados vinte e um tiroteios.

Para Antônio Ramos, mesmo com toda coragem e capacidade para caçar cangaceiros, foi o analfabetismo de Quelé que deixou que ele permanecesse nas fileiras da polícia da Paraíba apenas com a graduação de sargento.

Provável túmulo do Sargento Clementino Quelé, na cidade da Prata, Paraíba.
Provável túmulo do Sargento Clementino Quelé, na cidade da Prata, Paraíba.

Quelé morreu já idoso na Paraíba, na cidade de Prata, próximo ao município de Monteiro. Segundo Antônio Ramos, ele sempre vinha visitar o sítio Conceição e a pequena Santa Cruz. (Ver – https://tokdehistoria.wordpress.com/2011/08/22/o-descanso-de-um-guerreiro-nordestino-no-riacho-da-prata/)

As histórias das lutas entre Clementino Quelé e Lampião se tornariam verdadeiras lendas no imaginário dos nordestinos. Aparentemente um destes que se encantou com as lutas de Quelé foi Luiz Gonzaga, o “Rei do Baião”. Em parceria com José Marcolino, o sanfoneiro de Exu compôs a música “No Piancó”, onde em um trecho diz;

“Lá viveu o Clementino / Que brigou com Lampião.”

Não posso garantir que o Clementino descrito na música do grande artista pernambucano, seja o mesmo homem que perseguiu implacavelmente Lampião.

Mas houve outro?

A morte do pai de Antônio Ramos

Um dia, em 1926, segundo o entrevistado, o terrível chefe bandoleiro Sabino, acompanhados dos cangaceiros Juriti, Ricardo e outros, vieram de um lugar próximo chamado Lagoa do Almeida, da família dos Marianos e seguiram para a casa do senhor Manuel da Cruz. Este era um fazendeiro, tendo sido comentado aos cangaceiros ser um homem que possuía muito dinheiro Como este não foi encontrado, os cangaceiros continuaram seguindo em direção a pequena povoação de Santa Cruz.

Sabino fotografado montado em 1927, na cidade cearense de Limoeiro do Norte,  logo após o fracassado ataque a Mossoró.
Sabino fotografado montado em 1927, na cidade cearense de Limoeiro do Norte,
logo após o fracassado ataque a Mossoró.

No caminho aram adiante da casa de Miguel Moura. Como um dos cangaceiros era afilhado de batismo da mãe do entrevistado, por força do parentesco, pediu a Sabino, Juriti e Ricardo, que fossem na casa do sítio Conceição, ver se “arranjavam alguma coisa” com sua madrinha, que ele ficaria de fora.

A chegarem ao pequeno comércio, Sabino e os outros entram e am a torturar Miguel Moura a ponta do punhal, para o mesmo dar conta do dinheiro que conseguia com o transporte nos burros. Na casa do pai do entrevistado se encontrava uma empregada da vizinha Isabel Correia, conhecida como Zabê e esta senhora foi a vivenda do entrevistado para moer milho. Os cangaceiros quiseram lhe arrebatar uma aliança, mas ela conseguiu tirar a joia do dedo e colocou-a na boca. Os cangaceiros exigiram o objeto de valor e a mesma recusou-se a entregar. Os bandidos am a ação, tentando forçar a mulher a entregar a aliança e começa uma luta. A empregada lutou tão bravamente que teria quebrado o nariz do seu atacante. O próprio Sabino mandou soltá-la, tendo dito que “-Esta é uma desgraça que nem o diabo pode”. A mulher foi embora correndo com a aliança.Na casa da vizinha Zabê, que possuía certa quantidade de ouro, eles chegaram e arrastaram o que puderam, mandando inclusive a mulher tirar os brincos ou “-Cortariam com o pedaço da orelha”. O marido da mesma, Manuel Correia, foi chegando a casa e os cangaceiros o renderam com pistolas, que colocaram no pescoço do mesmo.

Para o pai do entrevistado a sorte não foi tão boa. Disseram que ele era rico, mas Miguel Moura comentou que gastava muito na propriedade. Daí Sabino ordenou que em oito dias ele conseguisse um conto de réis, sob pena de morrer.

O pai do entrevistado sofria do coração e diante de toda a tensão provocada pelas ameaças, veio a ter um ataque cardíaco. Sem assistência médica, que era muito difícil na época, morreu nove dias depois da “visita” dos cangaceiros.

Depois destes fatos, o nosso entrevistado e a família foram para Triunfo, onde perderam a roça e tiveram muitos prejuízos. Seguiram depois ao Juazeiro, para uma entrevista com o Padre Cícero, que os aconselhou a não voltar logo para casa.

Este fato foi testemunhado pela irmã de Antônio Ramos, criança a época, que se encontrava brincando defronte a casa no momento da agem dos cangaceiros, tendo ela visto e escutado tudo.

Se para alguns, Sabino é apontado como “revolucionário”, para Antônio Ramos, ele é tão somente um arrogante bandido, cruel ladrão e frio assassino.

Me foi informado que esta antiga edificação amarela teria sido a casa comercial da família Campos em Triunfo, atacada por Sabino em 1926.
Me foi informado que esta antiga edificação amarela teria sido a casa comercial da família Campos em Triunfo, atacada por Sabino em 1926.

No dia 7 de julho de 1926, Sabino e seu grupo foram a Triunfo para assaltar a cidade. O bando fez muita bagunça, atacando a loja de tecidos de Antônio de Campos, o maior comerciante da cidade. Os cangaceiros levaram até um machado para furar o cofre, mas não conseguiram, ando a tocar fogo n estabelecimento. Segundo Ramos, na ocasião se encontravam na cidade dois soldados, de nome José Sabiá e José Piauí, que foram atacados pelo bando. O inusitado foi que Sabiá morreu com apenas um tiro e o Piauí, mesmo levando sete tiros, escapou com vida.

Início da extensa reportagem divulgada no jornal recifense “A Província”,  edição do dia 10 de julho de 1926, dando conta do ataque de Sabino a Triunfo.
Início da extensa reportagem divulgada no jornal recifense “A Província”,
edição do dia 10 de julho de 1926, dando conta do ataque de Sabino a Triunfo.

Para Lira (op. cit. pág.401) Sabino e seus homens entraram na cidade serrana quando se encontravam apenas quatro militares para protegê-la e corrobora a afirmação de Antônio Ramos quando escreve que “o soldado que foi morto tinha o apelido de Sabiá”.

A última vez que Antônio Ramos viu Lampião e seu bando

Depois que o nosso informante e sua família voltaram à antiga casa do sítio Conceição, eles procuraram seguir a vida. Mesmo diante da situação, o jovem Antônio Ramos não deixou de estudar. Em um dia de 1927, estava ele por volta das onze da manhã em uma escola nas proximidades de Triunfo, junto com um professor nascido na cidade de Floresta, quando chegou um grupo de cavalarianos armados e equipados. A princípio o mestre pensou que fossem policiais, mas o entrevistado comentou com segurança que “-Aquele ali é Lampião, eu conheço”. Segundo ele eram em torno de “-130 cangaceiros”, todos equipados, com chapéu de couro quebrado, cheio de medalhas, fuzis, cada um levando dois bornais e cartucheiras. Antônio Ramos ficou se perguntando como eles lutavam com tanto equipamento.

Antônio Ramos
Antônio Ramos

Entre os cangaceiros, nosso entrevistado conhecia um deles. Chamava-se Isaías Vieira, e era de um lugar conhecido como Xique-Xique. Havia sido ladrão de bodes, que após ser preso apanhou muito e havia entrado no cangaço por vingança.

Nesta ocasião todos os cangaceiros estavam a cavalo, pegando animais descansados e deixando os que estavam viajando. Comentou que apenas às seis da noite, uma volante da polícia de Alagoas ou na região seguindo o bando. Este grupo era comandado por um militar conhecido como “tenente Arlindo”. A ocasião desta visita foi próximo ao mesmo período em que ocorreu o ataque a Mossoró.

Cruz em Santa Cruz da Baixa Verde, que mostra um local onde alguém morreu de "morte matada".
Cruz em Santa Cruz da Baixa Verde, que mostra um local onde alguém morreu de “morte matada”.

A bibliografia mostra o quanto aparentemente nosso informante estava certo, mesmo com algumas pequenas alterações. O Pesquisador José Alves Sobrinho, da cidade de Serra Talhada, em Pernambuco (in “Lampião e Zé Saturnino-16 anos de luta”, 2006, pág. 112), comenta que na mesma época que Lampião seguia para Mossoró, ou na zona rural de Vila Bela, a antiga denominação do município de Serra Talhada, na fazenda Barreiras, de propriedade de Martins Venâncio Nogueira, conhecido como Martins da Barreira. Segundo o autor, o proprietário da fazenda Barreira conversou longamente com Lampião naquele dia e afirmou que junto ao chefe estavam “118 cangaceiros”. 

Segundo Lira (op. cit pág. 379.) comenta que em fins do mês abril de 1927, este grande grupo de cangaceiros estava sendo realmente sendo seguido por uma força volante comandada pelo militar Arlindo Rocha, que salvo engano seria da polícia pernambucana e possuía a patente de sargento. 

Antônio Ramos informou que nunca leu um livro sobre cangaço, que conta por que sabe e viu. Os fatos envolvendo Lampião e o cangaço era informação corrente na região. Tudo era narrado de boca em boca, nas feiras, nas ruas. Detalhes sobre a intriga dos Ferreiras com os Saturninos de Vila Bela, a história do chocalho, as brigadas e tudo mais que levou Lampião a entrar no cangaço, era muito repetido. Apenas em uma ocasião Antônio Ramos viu uma revista com a foto das cabeças cortadas em Piranhas, Alagoas, após o ataque que deu cabo de Lampião e acha que era ele mesmo.

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QUANDO LAMPIÃO SENTIU FRIO

Autor – Rostand Medeiros

Quem visita a bela cidade pernambucana de Triunfo se encanta com seu intenso frio que ocorre em algumas épocas do ano, a hospitalidade do seu povo, as belezas do lugar e muitas outras atrações.

O antigo Cine Teatro Guarany, exemplo do belo casario histórico de Triunfo – Foto – Rostand Medeiros

Certamente que o clima diferenciado, bem distinto do que estamos acostumados a encontrar pelo interior do Nordeste, é o que mais me marcou nas várias visitas que realizo na região, desde 1999.

Enfim, para quem mora em Natal, não é todo dia que dá para sentir temperaturas que variam de 10 a 19 graus.

Em Triunfo, Sertão do Pajeú, é possível realizar por preços bem razoáveis, ótimos eios em camionetes, conhecendo as belezas naturais e históricas que existem na região.

Encoberta pela névoa vemos a sombra da torre da Igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores, em Triunfo – Foto – Rostand Medeiros

A muito que desejava conhecer o Pico do Papagaio, ponto culminante da região e de todo estado de Pernambuco. Se na cidade o frio já era muito bom, a visita ao Pico do Papagaio foi uma experiência muito mais “gelada” e gratificante.

Belos Visuais e Muita História

O trajeto até o local é feito por estradas simples, mas bem conservadas.

Dá para ter até mesmo uma recordação em relação ao Seridó Potiguar, nas extensas e antigas cercas de pedras. Estas são muito parecidas as existentes nas zonas rurais de Caicó, Acari, Jardim e outras cidades seridoenses. A diferença proporcionada pelo clima é que enquanto no Seridó as cercas quase sempre se encontram desprovida de vegetação, em Triunfo estas pedras alinhadas, normalmente estão sempre cobertas por muito verde.

Cercas de pedra, tal como no Seridó Potiguar – Foto – Rostand Medeiros

Outra coisa interessante é a existência de plantações de café. Foi muito comum durante o trajeto ver grandes quantidades deste produto secando em pátios de cimento, diante das casas da região.

Em certo ponto fui tomado de completa surpresa, com a informação transmitida pelo nosso Guia de Turismo, o Sr. Antônio, que de um mirante apontou para os contrafortes da Serra do Pau Ferrado e da região do Saco dos Caçulas, antigos esconderijos de Lampião e seus homens. Além destes, o Sr. Antônio apontou o antigo “Casarão dos Patos”, que pertencia a Marcolino Diniz, filho do coronel Marçal, dois grandes coiteiros de Lampião na região e palco de sérios combates na época da Guerra de Princesa, ocorrida em 1930. Chamou-me atenção que, apesar da altitude, a distância relativa em quilômetros era um tanto curta, mostrando que não seria difícil o deslocamento entre aqueles locais e a região do Pico do Papagaio.

A distância se vê o contorno da Serra do Pau Ferrado, em território paraibano. Ao pé desta serra estão as propriedades Patos e Saco dos Caçulas, importantes coitos de Lampião – Foto – Rostand Medeiros

Seguimos com o Sr. Antônio na direção do ponto culminante do pico, na valente e vetusta D-20 azul, a diesel, cabine dupla.

Um Belo e Diferente Nordeste

A área onde se encontra o Pico do Papagaio é caracterizada a distância pela existência de várias antenas de comunicação e uma estátua de um tradicional Careta de Triunfo.

Caretas do carnaval de Triunfo – Foto Cristina barbosa-Fonte – httptokdehistoria-br.informativoparaibano.com.jpg

Os chamados Caretas são os principais personagens do Carnaval de Triunfo e uma marca registrada desta bela cidade. Eles ganham as ruas da cidade nesta época de festejos com fantasias compostas por belos e extremamente característicos traços desta manifestação cultural. Os Caretas se fantasiam com máscaras feitas de papel, grude e amido de mandioca, além de chapéu de palha quebrado na testa, tal como os cangaceiros. Trazem um relho, ou chicote, e uma tabuleta onde são escritas frases satíricas, como as existentes nos para-choques de caminhão.

Segundo alguns estudiosos, a origem da festividade não faz parte do período carnavalesco, mas do ciclo natalino e teria se iniciado por uma proibição. Durante uma apresentação, dois triunfenses que representavam os personagens “Mateus”, de um reisado que ocorria na cidade, se embriagaram e foram proibidos de participar da manifestação. Inconformados, eles vagaram fantasiados pelo município, fazendo barulho com um chocalho e inaugurando a brincadeira dos Caretas.

Em meio a névoa, com o relho na mão, vemos a estátua do Careta do Pico do Papagaio – Foto – Rostand Medeiros

Ao chegarmos ao cume do pico, encontramos uma pequena área de estacionamento. Existem algumas edificações já bem desgastadas pelas chuvas e umidade, mas a paisagem é estonteante. Estamos cercados de serras, muito verde, nuvens e, evidentemente muito frio. Segundo o nosso Guia de Turismo, o Sr. Antônio, o Pico do Papagaio é o segundo ponto culminante do Nordeste, com 1.260 metros. Perde apenas para uma elevação com 1.860 metros, na Chapada Diamantina, Bahia e fica acima do Pico do Jabre, localizado no município de Maturéia, na Paraíba, este último com 1.197 metros de altitude.

Independente de quem é maior no quesito altitude, no dia em que estive neste local o frio era de rachar os ossos. Ventava muito e certamente a temperatura estava entre 10 e 13 graus, segundo informação do nosso Guia. Mesmo protegido, para um cidadão que cresceu aproveitando as tépidas águas existentes na Praia de Búzios, ao sul de Natal, o frio já estava me incomodando.

Aspecto da região do Pico do Papagaio no dia da nossa visita – Foto – Rostand Medeiros

Memórias dos Cangaceiros no Alto da Serra

O Sr. Antônio então chamou para conhecer a pequena loja de artesanato do lugar. Confesso que fiquei surpreso, pois não vi nenhuma placa indicativa.

A lojinha está situada em uma casa bem simples, mas interiormente possui muito calor, além da riqueza e diversidade do artesanato local. Este local de apoio foi criado pela associação UNAM-Unidade Agrícola Microondas.

Loja de artesanato no alto do pico – Foto – Rostand Medeiros

Fomos recebidos por três senhoras, muito prestativas e atenciosas, que prontamente ofereceram um quente e gostoso café orgânico, das plantações dos sítios das proximidades.

Bem, como eu gosto de café e de conversar, além de estar em uma região onde o cangaço proliferou, não dava para deixar de perguntar se alguém tinha ouvido falar sobre a agem de cangaceiros por aquelas terras altas. Todas as três senhoras responderam que “sim”!

Delas, a que tinha mais informações foi Dona Terezinha, de 67 anos, nascida e criada naquele alto de serra, mais precisamente no Sítio Fortaleza. Ela comentou que Antônio José, seu pai, viu em algumas ocasiões a agem do “Rei do Cangaço” e seus “Cabras“ pela região, onde recebiam apoio de sua família.

“-Ele era mocinho, mas recordava muito a agem dos cangaceiros”. Comentou Dona Terezinha.

Ela afirma que  o esconderijo, ou coito, mais utilizado era no Sítio Espirito Santo. A área servia com local de agem, onde os cangaceiros sabiam que não teriam maiores problemas.

Segundo seu pai, os cangaceiros tratavam a todos com extrema cortesia. Normalmente pediam comida aos moradores da região e solicitavam descrição em relação à presença deles na área.

A Época da agem dos Cangaceiros

Para ela os cangaceiros aram pela região do Pico do Papagaio nas “eras de 20”, antes da “Questão de Princesa”.

O coronel José Pereira, com o chapéu na mão direita, durante a Guerra de Princesa

Seguramente Dona Terezinha estava apontando a agem de Lampião pela região nos primeiros anos da década de 1920, quando Lampião deixou de frequentar a área, devido a bem sucedida invasão a cidade paraibana de Sousa.

Este ataque foi realizado na madrugada de 27 de julho de 1924, pelos homens de Lampião (que estava ausente devido a um ferimento), na companhia do cangaceiro paraibano Chico Pereira, que tinha questões a serem resolvidas com a influente família Mariz.

O assalto a Sousa, a “Mossoró que deu certo”, teve uma enorme repercussão nos meios políticos da época. Onde ficou difícil para o coronel Marçal, seu filho Marcolino e o coronel José Pereira Lima, o líder político da cidade paraibana de Princesa, atual Princesa Isabel, manter o apoio a Lampião e seus homens.

Coronel José Pereira de Lima

O coronel José Pereira possuía laços de parentesco com Marçal Florentino e seu filho. Consta que ele apoiou a proteção que seus parentes forneciam a Lampião e seus homens, talvez por ter algum tipo de vantagem. Mas diante do que aconteceu em Sousa, José Pereira, que era deputado estadual na Paraíba, solicitou aos parentes que mandassem Lampião seguir para outras regiões.

Já a “Questão de Princesa”, foi a famosa guerra ocorrida no sertão paraibano, que teve início em fevereiro de 1930, onde grupos de jagunços, ex-cangaceiros, desertores da polícia paraibana, sob o comando do coronel José Pereira, se defrontaram contra forças legalistas do governador João Pessoa. Foi um acontecimento que marcou e transformou a vida nacional, considerado por muitos historiadores, o ponto inicial da Revolução de 1930.

João Pessoa, governador paraibano em 1930

A situação foi tão radical que José Pereira resolveu proclamar independência da sua cidade em relação ao Estado da Paraíba, sendo subordinado diretamente ao Governo Federal. O Território Livre de Princesa ganhou projeção nacional e internacional. Tinha suas  próprias leis, hino, bandeira, jornal, ministros e até exército.

O conflito se encerra após a morte de João Pessoa e a ocupação da região de Princesa em 11 de agosto de 1930, por tropas do exército brasileiro.

Fortes Ligações

Mas voltando a agem dos cangaceiros pela região do Pico do Papagaio, Dona Terezinha afirma que nunca houve combates entre os cangaceiros e policiais, pois a polícia não chegava até ali.

Indagado do porque desta situação, ela me comentou que era devido ao respeito e força política do coronel Marçal, parente de sua família.

Marcolino Diniz

Aí perguntei seu nome completo. Ela se chama Terezinha Florentino de Souza Barbosa, seu pai era Antônio José Florentino.

Belas paisagens da região – Foto – Rostand Medeiros

É provável que a informação de Dona Terezinha esteja correta e, a pedido do parente abastardo, os Florentinos que viviam no Pico do Papagaio forneciram apoio a Lampião e seus cangaceiros naqueles anos conturbados. Vale ressaltar que Lampião jamais molestou ninguém da região. Além do mais, a região do Pico do Papagaio está situada geograficamente entre a cidade Triunfo e a atual Princesa Isabel, mais próximo desta última.

Lampião “O Rei do Cangaço”

Dona Terezinha comentou que a relação era tão positiva, que um membro de sua família, conhecido como Roldão Florentino, um dia decidiu seguir Lampião e nunca mais deu notícia.

Influência

É fato mais que conhecido que Marçal e seu filho Marcolino forneciam proteção a Lampião em várias de suas propriedades. Desde a Fazenda Abóboras, próximo a Serra Talhada, como no Casarão dos Patos, mais próximo de Princesa.

Temperatura matutina em Triunfo – Foto – Rostand Medeiros

Mas além de cederem suas propriedades para os cangaceiros, Marçal e Marcolino parecem ter utilizado de sua influência para conseguir este apoio junto aos seus parentes na região do Pico do Papagaio. Certamente com o conhecimento do coronel José Pereira.

Para os Florentinos que viviam nas elevações não havia muito que fazer. Negar um pedido a alguém da família que era rico e influente, era uma descortesia. Mas seria verdadeiro sacrilégio, além de um risco a saúde, negar este pedido quando o beneficiário era o próprio Lampião.

No ponto mais alto do Pico do Papagaio – Foto – Rostand Medeiros

Certamente que havia o compromisso tácito de Lampião para não atacar as propriedades e os interesses de Marçal e Marcolino. Mas existe a dúvida se estes fazendeiros não repartiam com o maior bandido que pisou em solo brasileiro, os lucros das diversas ações de rapinagem que ele praticou com seus homens nos sertões pernambucano, alagoano, paraibano e cearense.

Aspecto de uma casa típica da região serrana de Triunfo – Foto – Rostand Medeiros

Existem informações que o coronel José Pereira guardava grandes somas de dinheiro do cangaceiro Lampião, tudo fruto de produto de roubo. Quando Lampião foi “convidado” a deixar esta região de fronteira entre Pernambuco e a Paraíba, José Pereira “esqueceu” de devolver a grana de Lampião e este jamais perdoou o poderoso fazendeiro e político.

Eu acredito que Triunfo é um dos poucos locais que se pesquisa sobre o cangaço com roupa contra o frio

Se isso é verdade, ou não, eu não sei e nem os protagonistas deixaram em algum cartório documentos sobre estes fatos registrados em três vias. Mas o que fica patente diante das informações prestadas por Dona Terezinha, é que a influência destes poderosos em favor de Lampião chegava até o ponto culminante da região.

A bela Triunfo – Foto – Rostand Medeiros

Ainda ligados a este assunto veja;

https://tokdehistoria.wordpress.com/2011/07/20/fazenda-abobora-%E2%80%93-um-importante-local-para-historia-do-nordeste/

https://tokdehistoria.wordpress.com/2011/06/07/a-batalha-do-casarao-dos-patos/  

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FAZENDA ABÓBORA – UM IMPORTANTE LOCAL PARA HISTÓRIA DO CANGAÇO E DO NORDESTE

Autor – Rostand Medeiros

Desde que comecei a ler temas relacionados ao ciclo do cangaço, a sua figura maior, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, e a história do Nordeste no início do século XX, um local em especial me chamava atenção pelas repetidas referências existentes em inúmeros livros. Comento sobre uma antiga propriedade denominada Abóbora, localizada na zona rural do município de Serra Talhada, próximo a fronteira com a Paraíba e não muito distante das cidades pernambucanas de Santa Cruz da Baixa Verde e Triunfo.

A cidade de Triunfo a Noite

Vamos conhecer um pouco de sua história e da visita que realizei a este local.

Uma Rica Propriedade

Quem segue pela sinuosa rodovia estadual PE-365, que liga as cidades de Serra Talhada a Triunfo, antes de subir em direção a povoação de Jatiúca e as sedes dos municípios de Santa Cruz da Baixa Verde e Triunfo, percebe que está em um vale cercado de altas serras, que dão uma beleza singular a região. Atrás de uma destas elevações se encontra a Fazenda Abóbora.

Até hoje esta fazenda chama atenção pelas suas dimensões. Segundo relatos na região, suas terras fazem parte das áreas territoriais de três municípios pernambucanos. Aparentemente no ado a área era muito maior. Ali eram criados grandes quantidades de cabeças de gado, havia vastas plantações de algodão, engenho de rapadura e se produziam muitas outras coisas que geravam recursos. No lugar existem dois riachos, denominados Abóbora e da Lage, que abastecem de forma positiva a gleba. [1]

Com tais dimensões, circulação de riquezas, no ado o lugar era ponto de parada de muitos que faziam negócios na região e transportavam mercadorias em lombo de animais, os antigos almocreves. No lugar estes transportadores do ado eram recebidos pelo “coroné” Marçal Florentino Diniz, que junto com irmão Manoel, dividiam o mando na propriedade.

Documento que aponta os proprietários da Fazenda Abóbora na década de 1920

Informações apontam que Virgulino Ferreira da Silva, quando ainda trabalhava como almocreve, realizou junto com seu pai e os irmãos vários transportes de mercadorias entre as regiões de Vila Bela (sua cidade natal, atual Serra Talhada) e Triunfo.[2]

Sentado vemos Marcolino Diniz e seus "cabras"

Certamente em alguma ocasião, o jovem almocreve teve a oportunidade de conhecer a fazenda do “coroné” Marçal e de seu irmão Manoel. Além destes o almocreve da família Ferreira conheceu o impetuoso filho do fazendeiro Marçal, Marcolino Pereira Diniz.[3]

Uma ótima Relação

Chefe de bando inteligente e perspicaz, Lampião buscava antes do confronto, o apoio e as parcerias com os antigos proprietários rurais e assim agiu junto aos donos da Fazenda Abóbora.

Lampião

Após assumir a chefia efetiva de seu bando, depois da partida do seu antigo chefe, o mítico cangaceiro Sinhô Pereira, Lampião frequentou em várias ocasiões as terras da Abóbora, onde o respeito do chefe e dos seus cangaceiros pelo lugar estava em primeiro lugar.

Rodrigues de Carvalho, autor do livro “Serrote Preto” (1974), informa nas páginas 252 a 254 que ocorreu uma intensa e positiva relação de amizade entre Lampião e a família Diniz principalmente com o “jovem e pretensioso doutor” Marcolino Diniz, que chegou há cursar durante algum tempo a Faculdade de Direito em Recife, mas não concluiu.[4]

Esta relação ambígua de amizade entre estes ricos membros da elite agrária da região e o facínora Lampião foi posta a prova em duas ocasiões.

Antiga Cadeia Pública de Triunfo, em breve um novo centro cultural

A primeira no dia 30 de dezembro de 1923, quando Marcolino Diniz é preso pelo assassinato do juiz de Direito Ulisses Wanderley em um clube de Triunfo. Marçal solicita apoio de Lampião para tirar Marcolino da cadeia, se necessário a força. Juntos vão acompanhados de um grupo que gira em torno de 80 a 100 cangaceiros armados. Não Houve reação dos carcereiros.

A segunda ocorreu no mês de março do ano seguinte. Após o episódio do ferimento do pé de Lampião na Lagoa Vieira e o posterior ataque policial na Serra das as, onde o ferimento de Lampião voltou a abrir e quase gangrenar, é a família Diniz que parte em socorro do cangaceiro. Marçal e Marcolino cederam apoio logístico para a sua proteção, transporte, medicamentos e plena recuperação com o acompanhamento dos médicos José Lúcio Cordeiro de Lima, de Triunfo e Severino Diniz, da cidade paraibana de Princesa. Sem este decisivo apoio, certamente seria o fim do “Rei do Cangaço”.[5]

Lagoa Vieira-Foto-Alex Gomes

Foi igualmente na propriedade Abóbora que Lampião conheceu Sabino Gomes de Gois, também conhecido como “Sabino das Abóboras”.[6]

Frederico Pernambucano de Mello, autor do livro “Guerreiros do Sol-Violência e banditismo no Nordeste do Brasil” (2004), nas páginas 243 a 246, informa que Sabino efetivamente nasceu na Fazenda Abóbora, sendo filho da união não oficial entre Marçal e uma cozinheira da propriedade. Consta que ele trabalhou primeiramente como tangedor de gado, o que certamente lhe valeu um bom conhecimento geográfico da região.

Sabino

Valente, Sabino foi designado comissário (uma espécie de representante da lei) na região da propriedade Abóbora, certamente com a anuência e apoio do pai. Organizava bailes e em um destes envolveu-se em um conflito, tendo de seguir para o município paraibano de Princesa. [7]

Depois, entre 1921 e 1922, acompanhou seu meio irmão Marcolino para Cajazeiras, no extremo oeste da Paraíba. Marcolino Diniz desfrutava nesta cidade de muito prestígio. Era presidente de clube social, dono de casa comercial, de jornal e tinha franca convivência com a elite local. Sabino por sua vez era guarda costas de Marcolino e andava ostensivamente armado. Nesta época Sabino ou a realizar nas horas vagas, com um pequeno grupo de homens, pilhagens nas propriedades da região.

Outra imagem de Lampião

O autor de “Guerreiros do Sol” informa que teria sido Sabino que coordenou a vinda do debilitado Lampião para ser tratado pelos médicos José Lúcio Cordeiro de Lima e Severino Diniz. A amizade entre o “Rei do Cangaço” e o filho bastardo de Maçal Diniz, nascida na Fazenda Abóbora, teria então se consolidado a ponto deste último se juntar a Lampião e seu bando, em uma posição de destaque, no famoso ataque de cinco dias ao Rio Grande do Norte, ocorrido em junho de 1927.

Outros Episódios do Ciclo do Cangaço na Fazenda Abóbora

Pelos muitos autores que se debruçaram sobre o tema cangaço e pelos relatos da região está mais que provado a franca convivência entre os membros da família Diniz e os cangaceiros no seu verdadeiro feudo na Abóbora.

Oficiais de forças volantes que perseguiram Lampião e outros cangaceiros ao longo da história

Mas no meio desta história, onde estava o aparato de segurança do estado?

Segundo informações colhidas pelo autor deste artigo, que esteve na região em várias ocasiões, a polícia frequentava a Fazenda Abóbora, mas o poder dos Diniz era tal, que os homens da lei tinham que avisar com antecedência que iriam lá.

Daí, no caso de cangaceiros estarem acoitados na grande gleba, estes eram informados por Marçal, Marcolino ou alguém de confiança, e seguiam tranquilamente para coitos nas Serras Comprida, da Pintada, ou da Bernarda, ou nas propriedades denominadas Xiquexique, Pau Branco, Areias do pelo Sinal e outras.

Essa verdadeira promiscuidade praticamente só vai ter um fim diante da extrema repercussão do ataque dos cangaceiros a cidade de Sousa, na Paraíba. Ocorrido na noite de 27 de julho de 1924, o fato logo ganha destaque nas páginas de vários jornais e assusta as autoridades nas capitais da Paraíba e de Pernambuco. Em pouco tempo os líderes sertanejos são instados a negarem a proteção dada aos bandos de cangaceiros. [8]

Theophanes Ferraz Torres

Tanto assim que três dias após o assalto a Sousa, ao meio dia, uma força volante sob o comando do major Theophanes Ferraz Torres, trava um combate contra um grupo de cangaceiros comandados por Sabino, que foge sem dar prosseguimento à luta. Certamente Sabino tentava chegar ao seu conhecido “lar” e teve esta desagradável surpresa. [9]

Ao longo do mês de agosto de 1924 vários combates serão travados na região. Tiroteios nos lugares Areias do Pelo Sinal, Serra do Pau Ferrado, Tataíra e outros vão marcar a história de luta contra os cangaceiros. Não havia propriedade que não pudesse ser adentrada e varejada pela polícia.

Mas não seria o fim da presença de cangaceiros no local.

"Diário de Pernambuco", 4 de agosto de 1926

Em uma pequena nota existente na página quatro do jornal “Diário de Pernambuco”, edição de quarta feira, 4 de agosto de 1926,  encontramos a informação que por volta das três horas da tarde do dia 30 de julho, na área da Fazenda Abóbora, foram mortos pela polícia pernambucana e paisanos, depois de demorado tiroteio, os cangaceiros Juriti e Vicente da Penha.

Juriti era erroneamente apontado pelo jornal como sendo o comandante de um ataque ocorrido no dia 7 daquele mesmo mês, a uma casa comercial em Triunfo. No caso o comandante da ação foi Sabino.

O “Coito” do Coronel José Pereira

Com o declínio da ação de cangaceiros na região de Triunfo, discretamente a Fazenda Abóbora deixa de ser local de combates, mas não deixaria de servir como um ótimo esconderijo.

O Coronel José Pereira

Em 1930, eclodiu um grave conflito armado na vizinha Paraíba, mais precisamente no município de Princesa.

Entre as origens deste sério problema, estavam as divergências entre o governador eleito da Paraíba em 1927, João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, e os coronéis monopolizadores da economia e política do interior do estado.

João Pessoa

João Pessoa discordava da forma como este grupo político, que o elegera, conduzia a política paraibana. Entre estes poderosos era valorizado o grande latifúndio de terras do interior, possuidores de grandes riquezas baseadas no cultivo de algodão e na pecuária.

Casarão de onde José Pereira comandava suas forças no conflito de Princesa

Estes fazendeiros, como vimos no exemplo de Marçal Diniz, atuavam através de uma estrutura política arcaica, que se valia entre outras coisas do mandonismo, da utilização de grupos de jagunços armados, da conivência com cangaceiros e outras ações as quais o novo governo não concordava.

Um dos pontos mais fortes da discórdia era cobrança de taxas de exportação do algodão. Os ditos coronéis paraibanos exportavam a produção desta malvácia pelo porto do Recife, causando perdas tributárias para o estado da Paraíba. O governador estabelece diversos postos de fiscalização nas fronteiras do Estado. Por esse motivo os coronéis do interior aram a apelidar João Pessoa de “João Cancela”.

José Pereira (em destaque) e seu estado maior durante a chamada Guerra de Princesa

O fazendeiro e líder político José Pereira Lima, mais conhecido como “Coronel Zé Pereira”, da cidade de Princesa, era o mais poderoso entre todas as lideranças do latifúndio na sua região. Para muitos ele é descrito como verdadeiro imperador do oeste da Paraíba, na área da fronteira com o estado de Pernambuco. Zé Pereira contava com o apoio dos governadores de Pernambuco e do Rio Grande do Norte, respectivamente Estácio de Albuquerque Coimbra e Juvenal Lamartine de Faria.

Diante do ime com o governador João Pessoa, Pereira declarou Princesa “Território Livre”, separando-o do estado da Paraíba, tornando-o absolutamente autônomo.

Combatentes durante o conflito-Fonte - http://rotamogiana.blogspot.com

A reação do governo estadual foi pesada e uma verdadeira guerra começou. Princesa se tornou uma fortaleza inexpugnável, resistindo palmo a palmo ao assédio das milícias leais ao governador João Pessoa. O exército particular do Coronel José Pereira era estimado em mais de 1.800 combatentes, onde diversos lutadores eram egressos das hostes do cangaço e muitos eram desertores da própria polícia paraibana.

Combatentes da Guerra de Princesa-Fonte - http://rotamogiana.blogspot.com

A força do governador João Pessoa possuia cerca de 890 homens, organizados em colunas volantes. Essas colunas eram chefiadas pelo coronel comandante da Polícia Militar da Paraíba, Elísio Sobreira, pelo Delegado Geral do Estado, o Dr. Severino Procópio e José Américo de Almeida (Secretário de Interior e Justiça).

Marçal Florentino Diniz e Marcolino, ligados por parentesco com José Pereira, se juntam a luta na região. Houve muitos episódios sangrentos na conhecida Guerra ou Sedição de Princesa.

João Pessoa assassinado. Estopim da Revolução de 30

Após a morte do governador João Pessoa, ocorrida em Recife, houve a consequente eclosão da Revolução de 30 e o conflito em Princesa acabou. Durante os quatro meses e vinte e oito dias que durou sua resistência, Princesa não foi conquistada pela polícia paraibana. Após a eclosão da Revolução, as tropas do Exército Brasileiro, de forma tranquila, ocuparam a cidade.

Para muitos pesquisadores José Pereira Lima organizou de tal maneira a defesa dos seus domínios, que provocou baixas estrondosas à força pública paraibana.

Diante da derrota, José Pereira e muitos dos que lutaram com ele fugiram da região. A família Diniz se retraiu diante do novo sistema governamental imposto e a fortuna de Marçal e Marcolino ficou seriamente comprometida.

O tempo dos caudilhos do sertão estava chegando ao fim, pelo menos naquele formato utilizado por Marçal Diniz e José Pereira.

José Pereira deixa Princesa no dia 5 de outubro de 1930 e fica escondido em propriedades de pessoas amigas, em diversas localidades existentes em outros estados. Segundo o Sr. Antônio Antas, depois de percorrer vários locais, segundo lhe informou o próprio Marcolino Diniz, José Pereira ou muito tempo escondido na Fazenda Abóbora, até que em 1934 o novo regime lhe concedeu anistia e ele decidiu permanecer em território pernambucano.

Antônio Antas, conviveu quando jovem com Marcolino Diniz, seu parente. Este é um grande amigo que tenho na região e memória viva da história local

Mas segundo o Sr. Antônio Antas, a situação na Fazenda Abóbora não foi fácil. Um ano depois da anistia, por ordens de Agamenon Magalhães, então Interventor Federal em Pernambuco, a polícia estadual cerca a Fazenda Abóbora. José Pereira escapa, volta a Princesa e recebe garantias dos líderes estaduais paraibanos.

Visitando a Fazenda Abóbora

Em recente ocasião estive na cidade de Triunfo, onde mantive contato com Lucivaldo Ferreira e André Vasconcelos. Há tempos que mantemos parcerias entre o nosso blog “Tok de História” e o ótimo blog que eles comandam, chamado “Boom! Triunfo”.

A principal igreja católica de Triunfo e a névoa da época de inverno na serra

Tive oportunidade de travar contato com ambos, onde pude entregar-lhes meu último livro “João Rufino-Um Visionário de Fé” e conversar muito sobre cangaço. Os dois são verdadeiramente apaixonados por Triunfo, sua história, sua cultura e lutam para que isso seja divulgado entre os mais jovens.

Lucivaldo é professor de artes da Escola Nova Geração Triunfense, atua como produtor cultural independente. Ele concilia o trabalho de Regente da Filarmônica Isaias Lima, com o de cantor, compositor, arranjador, vocalista da Banda Templários e participante da Orquestra Maestro Madureira.

O autor deste artigo e André Vasconcelos

Já André é bacharel em hotelaria, já foi secretário de cultura de sua cidade, é funcionário do SESC-Serviço Social do Comércio, trabalhando no belo hotel que esta entidade mantem na cidade serrana e é um grande pesquisador do tema cangaço. Acredito que tudo que diz respeito ao cangaço em Triunfo e região, se ele não souber, chega perto.

Com extrema boa vontade, ambos se colocaram a disposição para apresentar as características e fatos históricos de Triunfo, de uma forma tranquila e aberta.

Nas nossas andanças me chamou a atenção como às pessoas na região são extremamente tranquilas e comunicativas, sempre buscando ajudar. Percebi que na busca de informações, é difícil alguém que não tenha algum fato em sua história familiar, relacionado a episódios relativos ao cangaço.

Na busca da Fazenda Abóbora, com a Serra Grande ao fundo. Mais de 900 metros de altitude.

Em um dos dias em que lá estive, busquei alugar uma moto 125 e fui com André desbravar os difíceis, longos e enlameados caminhos até a Fazenda Abóbora. Devido às chuvas, o trajeto foi bem complicado e quase caímos em algumas ocasiões. Mas o legal foi que André não perdeu a animação.

Durante o trajeto foi bonito ver a distância a famosa Serra Talhada. Neste caso não era a cidade, mas a elevação com mais de 800 metros de altitude que nomeia o lugar.

A Serra Talhada

A sede da Fazenda Abóbora fica praticamente escondida pelos contrafortes da chamada Serra Grande e seus mais de 900 metros de altitude. Já a agem dos Riachos Abóbora e da Lage foi uma verdadeira aventura, pois ambos estavam com água corrente e, devido a ser final da tarde, não dava para ver a profundidade. Mas o negócio era encarar e seguir em frente. Graças a Deus deu certo.

Percebe-se com clareza no trajeto o quanto a região ainda é isolada. Existem serras cercando todos os quadrantes da propriedade, o que de certa maneira deixa a área bastante intocada. Tudo é muito bonito em termos naturais e paisagísticos.

Aspecto da região

Em meio a tantas situações interessantes, em um ponto mais alto, avistamos a casa grande da fazenda Abóbora. À primeira vista, à distância, confesso que fiquei até um pouco decepcionado. Achei que era “história demais, para casa de menos”. Mas não era bem assim.

Sede da Fazenda Abóbora

Devido à distância e as condições da estrada, chegamos praticamente à noite. Era estranho tentar imprimir velocidade na 125, em meio a uma estrada terrível, desconhecida, cheia de curvas, altos e baixos e o medo de não conseguir as fotos devido a falta de iluminação natural. Ainda bem que André foi um ageiro bem tranquilo na moto. Mas deu certo.

Na casa os proprietários não se encontravam, mas os moradores foram extremamente solícitos em nos receber e abriram as portas do local.

Oratório de São Sebastião

O interessante é que a residência está mantida praticamente na sua forma original. Com exceção do pequeno pátio, do murinho, portal e escadarias localizados na parte frontal, eles afirmaram que o resto da casa é todo original e a intenção dos donos é mantê-la como está. Ao redor existem antigas casas de moradores, a grande maioria desocupadas, mostrando que a quantidade de trabalhadores que havia no local já foi bem maior.

A antiga e preservada cozinha

Fizemos muitas fotos, mas por questão de respeito aos proprietários, apresentamos apenas o interessante oratório com a figura de São Benedito e a original cozinha com seu fogão a lenha.

Os caseiros do local informaram que vivem há anos no lugar e tiveram oportunidade de ouvir através dos moradores mais velhos, a maioria já falecidos, inúmeras histórias sobre a agem de Lampião pela casa . Eles nós garantiram que era a primeira vez que conheciam pessoas que vinha à casa da Fazenda Abóbora em razão do tema cangaço.

A nossa visita foi rápida, mas valeu e muito.

Mas uma vez agradeço ao André Vasconcelos pelo apoio.

[1] Relatos transmitidos em entrevista gravada junto ao Sr. Antônio Antas, da cidade paraibana de Manaíra, em dezembro de 2008. O Sr. Antônio, parente de Marcolino Diniz, conviveu com o filho de Maçal quando este estava idoso e vivendo na Comunidade de Patos do Irerê. Vale ressaltar que é relativamente pequena a distancia da sede da Fazenda Abóbora para a cidade de Manaíra.

[2] Relato transmitido ao autor em entrevista gravada junto ao Sr. Antônio Ramos Moura, em agosto de 2006, em Santa Cruz da Baixa Verde.

[3] Para Frederico Pernambucano de Mello, autor do livro “Guerreiros do Sol-Violência e banditismo no Nordeste do Brasil” (2004), na página 244, afirma que Maçal Diniz conheceu Lampião e seus irmãos quando os mesmo já eram membros do bando de Sinhô Pereira, cangaceiro que igualmente recebeu proteção e apoio deste fazendeiro em 1919.

[4] Entrevista gravada com Antônio Antas, dezembro 2008.

[5] Sobre o combate de Lampião na Lagoa Vieira ver – tokdehistoria.wordpress.com/2011/02/10/quando-lampiao-quase-foi-aniquilado

[6] Segundo Frederico Pernambucano de Mello, Sabino também era conhecido como Sabino Gomes de Melo, Sabino Barbosa de Melo, ou ainda com os denominativos Gore, Gório ou Goa. Ver “Guerreiros do Sol-Violência e banditismo no Nordeste do Brasil” (2004), pág. 243.

[7] Rodrigues de Carvalho (pág. 164) afirma que Sabino nasceu na Paraíba, no lugar denominado Pedra do Fumo, então município de Misericórdia, atual Itaporanga. Pela lei estadual nº 3152, de 30 e março de 1964, o antigo distrito de Pedra de Fumo foi desmembrado do município de Itaporanga e elevado à categoria de município com a denominação de Pedra Branca. Está localizado a cerca de 20 quilômetros de Itaporanga. Pelo que escutamos durante nossas visitas a região, acreditamos que a versão do autor de “Guerreiros do Sol” é mais correta.

[8] Sobre o ataque a Sousa ver o livro “Vingança, Não”, de Francisco Pereira Nóbrega.

[9] Sobre este combate ver “Pernambuco no tempo do Cangaço – Theophanes Ferraz Torres, um bravo militar (2 volumes)”, de Geraldo Ferraz de Sá Torres Filho, págs. 379 e 380.

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AS GRUTAS DA SERRA DO CATOLÉ

ESCONDERIJO DOS GRANDES CANGACEIROS

Rostand Medeiros – Escritor e sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Os fatos relacionados ao fenômeno do cangaceirismo possuem em suas variadas narrativas, locais que são referências pelos acontecimentos ali ocorridos. Pontos que se tornaram conhecidos por batalhas, ataques a cidades, assaltos e outros episódios, quase sempre associados ao sangue derramado, a valentia apresentada ou a derrota sofrida.

Serras na fronteira entre a Paraíba e Pernambuco.Foto Sólon R. A. Netto.

Na área onde as fronteiras entre os Estados de Pernambuco, da Paraíba e do Ceará se encontram, existem no lado pernambucano um destes locais. Trata-se de uma elevação natural, com altitudes que chegam a mais de 1.000 metros e conhecida como Serra do Catolé. Este ponto geográfico, localizado ao norte da cidade pernambucana de São José de Belmonte, se tornou conhecido dentro do chamado “Ciclo do Cangaço”, por ser apontado por consagrados autores, como o local onde existiam grutas que serviam de esconderijos a cangaceiros famosos, como os de Sinhô Pereira e Luís Padre, além do “aluno” do primeiro, Virgulino Ferreira da Silva, o famoso Lampião.

Junto com os amigos Sólon Rodrigues Almeida Netto e Alex Gomes partimos da cidade paraibana de Manaíra, na fronteira com Pernambuco, seguimos acompanhados do amigo Antônio Antas, que estava nos ajudando na função de guia na região. Conhecedor das histórias dos cangaceiros e dos inúmeros confrontos na região do Pajeú pernambucano, além de privilegiada fonte de informações, Seu Antonio é um homem da conversa franca, aberta e prazerosa.

Nosso guia na região e verdadeira enciclopédia do cangaço, Sr. Antônio Antas. Foto-Sólon R. A. Netto.

A Saga dos Pereiras

Ele nos conta como se deu a luta dos Pereiras, hoje um verdadeiro mito na região.

Sinhô Pereira ou Sebastião Pereira e Silva nasceu em 1896, na antiga Vila Bela, atual Serra Talhada, na região do Pajeú, Pernambuco. Era sobrinho-neto de um rico fazendeiro, que possuía o titulo nobiliárquico de Barão do Pajeú.

Desde os tempos que os primeiros brancos chegaram ao Pajeú, estes viveram principalmente da criação de gado. Como a pecuária requer uma larga extensão de terras, em meio a uma região de gente valente, com a quase total ausência do Estado, não era rara a ocorrência de conflitos sanguinolentos entre famílias, que chegaram a durar décadas.

Em 1848, quase cinquenta anos antes do nascimento de Sinhô Pereira, sua família entra em desavenças políticas com a família Carvalho. Em 1907, com o endurecimento deste conflito, foi assassinado o então líder dos Pereiras, Manoel Pereira da Silva Jacobina, conhecido como Padre Pereira, que era assim conhecido por ter estudado em um seminário em Olinda, Pernambuco. Terra de bravos e com a quase total ausência do Estado, Pouco tempo depois, em resposta, um dos chefes dos Carvalhos é morto.

Três irmãos de Sinhô Pereira assumem por parte da família o combate contra os Carvalhos. Em 1916, um destes irmãos, conhecido como Né Dadu é morto no conflito e Sinhô Pereira assume seu papel no conflito fratricida.

Sinhô Pereira e Luís Padre (em pé).

O falecido Padre Pereira tinha como filho Luiz Pereira Jacobina, conhecido como Luiz Padre e primo de Sinhô Pereira. Logo os primos estarão à frente de um grupo de cangaceiros, que não vão se caracterizar pela rapinagem franca e aberta contra alvos aleatórios, mas pela missão proeminente de destruir a tudo e a todos que pertenciam, ou eram ligados aos Carvalhos. Os primos utilizavam o vilarejo de São Francisco, na época crescendo em número de habitantes, como sua principal base de apoio.

A forma de combate dos Pereiras é a guerrilha sertaneja. Para eles não existe outra opção, pois além de poderosos e bem armados, as ligações políticas dos Carvalhos com o poder constituído de Pernambuco, colocava ao lado destes a força policial.

Os fatos envolvendo estas lutas se perpetuaram na região; em uma manhã de junho de 1917, à frente de sete homens, Sinhô Pereira e Luís Padre atacaram a fazenda Piranhas, em Serra Talhada. Apesar de perderem um dos seus companheiros e terem outros feridos, o saque foi alto e a destruição intensa.

Em outro caso, o grupo dos Pereiras chegou um dia antes do casamento de um aliado dos Carvalhos, que evidentemente não ocorreu mais, onde a lua de meu do noivo foi de rifle na mão e perseguindo os Pereiras no meio da caatinga.

A perseguição das autoridades aos Pereiras era intensa, as vezes absurda. Em abril de 1919, após um combate contra o bando onde morrerem nove soldados. Os policiais pernambucanos, comandados pelo Coronel João Nunes, como forma de quebrar a resistência dos primos cangaceiros, simplesmente decidiram saquear e queimar totalmente o vilarejo de São Francisco. E assim foi feito!

Em meio a estes conflitos, os Pereiras utilizaram o apoio de fazendeiros da região para terem proteção e aproveitarem os vários esconderijos oferecidos, ou “coitos”.

Segundo o livro do jornalista cearense Nertan Macedo, intitulado “Sinhô Pereira-O comandante de Lampião” (pág. 87, Ed. Artenova, 1975), afirma que Luís Padre possuía terras na Serra do Catolé, onde o bando se escondia. Teriam eles utilizado cavernas?

Para nós que estávamos na região pesquisando, a suspeita era pertinente, pois outras publicações clássicas sobre o cangaço narram que grutas da Serra do Catolé foram utilizadas como esconderijos por Lampião e seu bando (Optato Gueiros, in “Lampeão-Memórias de um oficial de Forças Volante”, 4ª Ed., Editora Livraria Progresso, 1956, págs. 83 a 92 e Francisco Bezerra Maciel in “Lampião, seu tempo e seu reinado-Livro II-A Guerra de Guerrilhas-Fase de Vendetas”, 2ª Ed., Editora Vozes, 1987, págs. 115 a 129). Como sabemos que muito do aprendizado de Lampião e seus irmãos no cangaço foi ado por Sinhô Pereira, era bem possível que este tenha ensinado ao “Rei dos Cangaceiros”, os principais locais de esconderijo na serra?

Para tirar a dúvida, bastava ir lá.

Até o encontro com o Senhor Antonio Antas, estas eram a únicas informações que possuíamos sobre a agem do bando dos cangaceiros pela serra. Nosso informante confirmou tudo que fora escrito nos velhos livros e acrescentou outras informações, nos animando para continuar a jornada.

Indicações

Seguimos pela bela cidade serrana de Triunfo, em direção a Serra Talhada, depois pela BR-232, até o entroncamento em direção a São José de Belmonte, percorrendo mais de 50 quilômetros de boas estradas de asfalto.

A partir de São José de Belmonte o caminho para a Serra do Catolé segue por 25 quilômetros de estradas de barro, até o distrito do Carmo. Neste aglomerado urbano, soubemos da existência do Senhor Francisco Maciel da Silva que poderia nos dar boas informações.

Carmo, em São José de Belmonte, Pernambuco. Foto-Alex Gomes.

Vivendo em uma casa simples do lugarejo, idoso, mas lúcido, o Senhor Maciel é um homem de pequena estatura, lento nos gestos e que utiliza um par de óculos com grossas lentes para poder enxergar. Apesar disto, a firmeza da sua voz, a lucidez e o forte aperto de mão, não deixam transparecer que ele possui 97 anos de idade. E comentou que durante anos viveu no alto da Serra do Catolé e que na sua propriedade existe uma gruta que foi utilizada como esconderijos de cangaceiros.

Já sua filha Maria do Carmo Rodrigues da Silva, de 66 anos, informou que quando ainda moravam no alto da serra, muitas vezes seus filhos traziam desta cavidade, cascas de balas de fuzis detonadas ou ainda intactas e em uma ocasião, um deles achou uma espécie de chave de fendas, aparentemente utilizada para manutenção rifles. Dona Maria nos informa que estes fatos não se restringiram apenas a pequenos objetos. Em anos ados, ela não recorda quando, em outro sítio existente na região da serra, em uma ocasião em que trabalhadores capinavam próximos a uma pequena gruta, foram encontrados dentro desta, segundo suas palavras; “um mundo de rifles socados nas furnas”.

Devido à idade, o Senhor Maciel não pode nos acompanhar, mas informou que um amigo por nome de Luiz Severino dos Santos, morador do Sítio Catolé, saberia muita coisa sobre estes esconderijos.

Os Caminhos para A Serra do Catolé

Seguimos então para a serra por uma estrada de péssima qualidade.

No trajeto percebemos a pequena quantidade de habitações existentes ao longo do caminho, onde a maioria delas se encontra com as portas fechadas, sendo difícil acharmos pessoas quem possa nos dar alguma informação. Vimos pequenas estradas vicinais, seguindo para pontos ignorados, onde mesmo com a ajuda do GPS, acabamos nos perdendo em algumas ocasiões.

Ao buscarmos informações com as poucas pessoas que encontramos, estes se mostraram arredios, desconfiados com quatro homens em um jipe EcoSport. Este comportamento estranho, bastante diferente do que estamos acostumados a encontrar nas nossas andanças pelo sertão nordestino, se explica pelo isolamento do local e a proximidade de três fronteiras estaduais, por onde “a todo tipo de gente e bicho” como nos disse um lavrador local. Se hoje é assim, imaginemos então no tempo do cangaço.

Apesar dos percalços, cada vez mais a serra surgia imponente.

Subindo a Serra do Catolé. A árvore que da nome a serra são as palmeiras a direita do carro. Foto-Alex Gomes.

A Serra do Catolé possui características interessantes; além de elevada, extensa, é coberta com uma imensa quantidade de palmeiras conhecidas como coqueiro catolé (Syagus cromosa). Esta árvore, característica dos cerrados, é igualmente vista em praticamente toda a região Nordeste do Brasil, principalmente em locais com maior altitude, chega a ter em media 7 metros de altura e fornece uma amêndoa que se produz um fino óleo que é utilizado na culinária nordestina. Da sua polpa, principalmente no Ceará, se produz uma bebida chamada aluá e antigamente o sertanejo encontrava nesta caridosa árvore um palmito de gosto amargo, utilizado para temperar carne.

Entre esta verdadeira floresta de coqueiros catolé, vemos uma grande concentração de enormes blocos de granito, sendo esta outra característica desta interessante serra. Foi devido à ação da erosão, ao longo de milênios, que estes blocos rolaram ao longo dos declives da serra, e, ao se juntarem a outros blocos, formaram as cavidades naturais que os valentes cangaceiros do bando de Sinhô Pereira utilizaram em meio as suas lutas.

O “Coito” dos Pereiras e a Gruta da Pedra de Dé Araújo

Em meio a tantas pessoas com o semblante desconfiado, foi uma benção encontrar o riso aberto do Senhor Luiz Severino dos Santos. Homem tranqüilo, forte para seus 66 anos, comenta que nasceu na serra e de lá, no máximo só saiu até Serra Talhada. Para nossa surpresa, no começo do nosso diálogo, ao ser perguntado sobre estes esconderijos, ele confirma a existência das grutas e comenta que elas foram esconderijos usados pelo bando do seu avô, o próprio Luis Padre.

Surpresos diante desta declaração, amos a conversar e buscar novas informações.

Conhecendo a história. Foto-Alex Gomes.

Segundo o Senhor Severino, a família de Luís Padre era proprietária do Sítio Catolé antes mesmo do inicio das “brigadas” contra os Carvalhos. Entre uma pausa e outra da luta, Luis Padre, Sinhô Pereira e o bando seguiam para a Serra do Catolé, onde se refaziam para novos combates. Aparentemente, entre estas pausas, Luís Padre iniciou um relacionamento com a sertaneja Ana Maria de Jesus. Logo deste encontro nasceram duas filhas do célebre cangaceiro, Emília e Agostinha Pereira da Silva, a última foi a genitora do nosso informante, sendo ela quem narrou as peripécias e as andanças do seu pai no cangaço.

As características de isolamento e as dificuldades naturais de o a serra, proporcionaram aos cangaceiros um verdadeiro local de descanso e apoio, mas por medo da polícia descobrir estes locais, o Senhor Severino informou que a permanência do grupo era sempre rápida e controlada. Todos os os eram vigiados, ninguém entrava ou saia da serra sem que Luis Padre e Sinhô Pereira soubessem. Percebemos a importância estratégica da serra e do Sítio Catolé, pois estamos a somente 18 quilômetros da fronteira cearense e a 3 da Paraíba, mostrando que a partir deste local estas fronteiras poderiam ser ultraadas e outros locais de apoios e de combate poderiam ser alcançados.

Em relação às cavidades, Seu Severino comenta que existem várias na região, que o grupo se escondia nelas quando havia notícias das proximidades da polícia, ou quando algum dos cangaceiros estava ferido.

No abrigo de “Dé Araújo”. Foto-Alex Gomes.

Devido ao nosso tempo curto, pedimos para conhecer a mais representativa em sua opinião. Ele escolhe para uma que sua mãe lhe contou ter ido a este local, ainda criança, levada pelo pai cangaceiro, para ver um dos seus companheiros de luta que se recuperava de um balaço recebido. Ela lhe contou que o cangaceiro se chamava “Dé Araújo”, que havia sido ferido no combate das “Piranhas”, sendo trazido nas costas dos companheiros, onde foi tratado com raízes e produtos naturais. Na medicina destes cangaceiros, eles utilizavam um cipó facilmente encontrado na serra, que chamavam “cipó de baleado”, onde o mesmo era pilado, colocado sobre a ferida da bala, que cicatrizava o ferimento.

A cavidade ou a ser conhecida na região como “Gruta da Pedra de Dé Araújo”, sendo formada por um matacão granítico rolado e internamente, no centro da cavidade existe uma área arenosa, plana, onde sua mãe lhe dizia ser o “leito” do cangaceiro “Dé Araújo”, que se recuperou plenamente e voltou a luta. O Senhor Severino não soube informar se este lugar “Piranhas”, fora a mesma fazenda Piranhas, atacada pelo bando dos Pereiras em junho de 1917.

Religiosidade do sertanejo. Foto-Sólon R. A. Netto.

Em 1919, com o endurecimento da luta, onde a vitória total era impossível, mas a honra da família estava mantida, o conflito entra em um ime. Neste momento surge a figura do famoso Padre Cícero, da cidade de Juazeiro, Ceará. O sacerdote pede aos Pereiras que deixem a região, que sigam para “o Goiás em busca de paz”. Eles acatam o pedido do religioso e decidem partir separadamente, levando cada um deles, um número reduzido de homens, os de maior confiança. Luís Padre consegue chegar a Goiás, mas Sinhô Pereira entra em combate no Piauí e, sem conseguir ir adiante, retorna para o violento Pajeú.

Tempos depois, em 1920, um pequeno grupo de seis cangaceiros, comandado pelo caçula dos três irmãos Ferreira, de nome Virgulino, entra no bando de Sinhô Pereira. Eles buscam vingança contra um vizinho de propriedade e de um tenente da polícia alagoana que havia matado seu pai. Durante dois anos Virgulino Ferreira da Silva, seria tornaria braço direito de Sinhô Pereira e aprenderia muito com o chefe, inclusive os esconderijos da Serra do Catolé. Em agosto de 1922, atendendo a outro pedido do Padre Cícero e acometido de problemas reumáticos, Sinhô Pereira deixa o Nordeste em direção a Goiás, onde reencontra o primo e juntos vão participar de outras lutas.

A Gruta que salvou Lampião

Chico Barbosa, já falecido, foi um agricultor que possuía uma pequena propriedade na Serra do Catolé. Morava próximo ao Senhor Severino, de quem era grande amigo e lhe contou ter sido durante algum tempo, cangaceiro do bando de Lampião.

Lampião, o “Rei do Cangaço”.

A razão da entrada do bando, de onde ele veio, o “nome de guerra” que adotou no bando e como Chico Barbosa deixou o cangaço, ele nunca declinou ao amigo e nem o Senhor Severino perguntou.

Ocasionalmente, quando queria, Chico Barbosa comentava ao vizinho suas andanças “nos tempos dos clavinotes”. Em um destes relatos comentou que chegou à Serra do Catolé através da agem do bando pelo lugar, quando Lampião foi ferido no pé.

O caso se deu assim; no dia 23 de março de 1924, por volta das dez da manhã, uma volante comandada pelo major da polícia de Pernambuco, Thoephanes Ferraz, teve um encontro com Lampião e dois cangaceiros em uma área próxima a Lagoa do Vieira, distante apenas cinco quilômetros da Serra do Catolé. Na luta, o chefe cangaceiro foi seriamente atingido no pé e sua montaria foi morta, caindo sobre a perna de Lampião. Apesar disto, o bandoleiro consegue fugir. Seu bando então segue para o alto de uma serra, onde o chefe a por uma recuperação. Sobre este caso ver https://tokdehistoria.wordpress.com/2011/02/10/quando-lampiao-quase-foi-aniquilado/

Alguns dias depois, segundo o boletim oficial emitido pelo mesmo major Theophanes Ferraz, às cinco e meia da tarde do dia 2 de abril, uma tropa do seu setor de ação, ataca o acampamento dos cangaceiros e morrem dois perigosos bandidos, Lavadeira e Cícero Costa. Já Lampião, ao empreender fuga, abre o ferimento e tem início uma séria hemorragia.

O chefe se esconde nas moitas, por pouco não é descoberto pela polícia. Durante três dias Lampião padece no meio da caatinga sem água ou alimentos, com uma grave ferida aberta. Por sorte um garoto o encontra, este chama seu pai, que começa a tratar do cangaceiro. Após se recuperar, Lampião manda comunicar a seus irmãos, que chegam ao local com um bando calculado em cinqüenta cangaceiros, entre eles supostamente estaria Chico Barbosa. Neste ínterim, a polícia sabia do grave ferimento de Lampião e as buscas na região eram intensas. Sem condições de seguir para algum local aberto para um tratamento melhor, o grupo seguiu para a Serra do Catolé.

Gruta que salvou Lampião. Foto Alex Gomes.

Chico Barbosa comentou que primeiramente Lampião veio para a gruta da “Casa de Pedra da Boa Esperança”.

O Senhor Severino, com extrema boa vontade nos levou a esta cavidade natural. Seguimos de carro em torno de dois quilômetros, até um ponto onde subimos uma parte da serra a pé, seguindo no meio de uma plantação de milho. O que vemos a partir do ponto onde se localiza a gruta é estonteante, é possível visualizar parte do Ceará e da Paraíba.

Chico Barbosa comentou ter Lampião sido transferido para outras cavidades na Serra do Catolé, como a Furna da Onça, localizada na fazenda Ingá. Mas foi na Casa de Pedra da Boa Esperança que ele ou mais tempo se recuperando. A razão era o isolamento do lugar e sua localização privilegiada.

Um mês após esta peregrinação por cavidades, o chefe cangaceiro será protegido por ricos latifundiários da fronteira entre Pernambuco e Paraíba, aonde vai se recuperar plenamente combatendo por mais quatorze anos, até ser liquidado em julho de 1938, na Grota de Angico, em Sergipe. Durante a continuidade da sua luta, onde vão morrer todos os seus irmãos que aderiram ao cangaço, ele vai incorporar ao bando mulheres, como a sua Maria Bonita e vai participar de inúmeros combates. Apenas ocasionalmente, na região próxima a zona do rio São Francisco, e de forma ocasional, o “Rei do Cangaço” voltara a utilizar cavidades naturais como abrigo.

Conclusão

Ainda criança, Agostinha Pereira viu seu pai Luís Padre, fugir para terras distantes e dele então não teve mais notícias.

Nos anos 50, chega a Serra Talhada um jovem bem instruído, simpático, de fala tranquila e vindo do sul do país. Ele busca entrar em contato com parentes de Luiz Pereira Jacobina, o temido Luiz Padre.

Foto de Luís Padre (a direita), entregue pelo seu filho. Foto- Solón R. A. Netto.

Era o goiano Hagaús Pereira, ativo membro da sociedade da cidade goiana de Dianópolis, filho de Luiz Padre, que a seu pedido buscava entrar em contato com a família deixada na Serra do Catolé. O Senhor Severino nos conta que uma parte da sua família seguiu para Goiás. Ele foi convidado, mas na última hora as belezas da serra falaram mais alto e ele está por lá até hoje.

Luiz Padre faleceu em 1965. Do avô que não conheceu ficou uma foto.

Para os privilegiados moradores deste local, a utilização da Serra do Catolé pelos cangaceiros no ado é um momento da história que cada dia mais se perde diante da concorrência desleal da televisão, provocando o desinteresse dos jovens em ouvir dos mais velhos os “causos” do ado.

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QUANDO LAMPIÃO QUASE FOI ANIQUILADO

O COMBATE NA LAGOA DO VIEIRA

Rostand Medeiros – Escritor e sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Nos primeiros meses do ano de 1924, o chefe cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o temido Lampião, mantinha junto com seu bando uma intensa atividade de pilhagens, assaltos e ataque aos seus inimigos na região fronteiriça entre os estados de Pernambuco e da Paraíba. Neste setor não eram incomuns as notícias dos cangaceiros nas cidades de Princesa (PB), Triunfo e São José de Belmonte (PE). São deste período dois grandes ataques do bando de Lampião contra o ex-companheiro de cangaço, Clementino Furtado, ou o famoso “Clementino Quelé”.

Lampião

Segundo o livro “Pernambuco no tempo do cangaço, Volume I”, de Geraldo Ferraz de Sá Torres Filho (Recife,2002), em sua página 328, informa que segundo o Boletim Geral nº 05, da Polícia Militar de Pernambuco, as primeiras horas da manhã de seis de janeiro e 1924, dia dedicado aos Santos Reis, o chefe cangaceiro atacou um sítio próximo a vila de Santa Cruz, atual cidade de Santa Cruz da Baixa Verde, a apenas seis quilômetros de Triunfo, acompanhado de um grupo de cangaceiros calculado em sessenta homens.

Durante seis horas de nutrido tiroteio, Clementino Quelé ou juntamente com outros membros de sua família, uma terrível provação. Mesmo tão próximo a cidade de Triunfo, somente as onze daquela manhã foi que o sargento Higino Belarmino, ordenou o deslocamento de sua tropa para salvar os sitiantes. Diante do fogo dos policiais, Lampião ordenou a retirada. Na casa ficaram três mortos, sendo um deles irmão de Quelé, e um ferido.

Não satisfeito pelo fato de ter conseguido matar o ex-companheiro de bando, o chefe Lampião retorna cinco dias depois a casa de Quelé, com igual número de cangaceiros, e reinicia o ataque. Aparentemente desta vez a tropa veio em socorro dos sitiantes mais rapidamente. Entretanto, como na ocorrência anterior novamente Quelé perdeu outros parentes e amigos.

Diante da situação, Clementino Quelé o homem que ou is ataques de Lampião, cruzou a fronteira e seguiu para a cidade de Princesa, onde através da influência do “dono” do lugar, o coronel José Pereira, sentou praça na polícia paraibana. Ele recebeu a patente de sargento e tratou logo de montar uma força volante para caçar seu maior inimigo e o seu bando.

Diante da repercussão destes combates, as forças policiais dos dois estados aumentam a pressão contra os cangaceiros. Pelos próximos dois meses circulam notícias da presença do bando na proximidade da vila de Nazaré e informações de um assalto ao sítio São Domingos. (Ferraz, op. cit. Págs. 331 e 332).

Theophanes Ferraz Torres, o notório oficial da polícia pernambucana

Entre os oficiais da polícia pernambucana que desejavam capturar, ou abater, Lampião estava o major Theophanes Torres Ferraz. Aos 30 anos de idade, este militar era considerado uma verdadeira lenda no seio da corporação em que atuava. Ferraz havia se notabilizado pela prisão do famoso cangaceiro Antônio Silvino, em novembro de 1914, após o tiroteio ocorrido no sítio Lagoa da Laje, na zona rural do atual município pernambucano de Vertentes. Há algum tempo ele estava baseado na cidade de Vila Bela, atual Serra Talhada, atuando no desbaratamento de grupos cangaceiros.

Considerado atuante, enérgico e determinado, o nome do major Ferraz é visto costumeiramente nas páginas dos antigos jornais conservados na hemeroteca do Arquivo Público do Estado de Pernambuco. Estes periódicos estampavam principalmente seus telegramas destinados a Eurico Souza Leão, então Chefe de Polícia de Pernambuco, cargo atualmente equivalente ao de Secretário de Segurança. Nestes relatos o major Ferraz dava conta da atuação da força policial no interior.

Em março de 1924, a frente de uma tropa de vinte e cinco policiais, o major Ferraz seguiu de Vila Bela para várias localidades da região do Pajeú pernambucano. Consta que uma das missões do major Ferraz era arregimentar o maior número de homens para formar uma grande volante destinada a combater os cangaceiros que assolavam a região.

Um dos locais para onde a tropa seguiu foi a Serra do Catolé, distante cerca de 30 quilômetros de São José de Belmonte. Este elevado maciço granítico, que possui altitudes que ultraam os mil metros, está fincada na região onde as fronteiras dos estados de Pernambuco, Ceará e Paraíba se encontram, tendo seu nome originado a partir da existência de uma grande quantidade de pequenas palmeiras conhecidas como coqueiro catolé. A força policial chegou à região da serra no dia 23 de março.

Na capa do jornal recifense “A Notícia”, de 26 de março de 1924,com a narrativa do combate da Lagoa do Vieira feito pelo major Ferraz.

Segundo João Gomes de Lira, ex-oficial da Polícia Militar de Pernambuco, antigo perseguidor de Lampião na década de 1930 e autor do livro “Memórias de um soldado de Volante” (Recife,1990), informa na página 129 que ao arem pela  serra, os policiais souberam que três cangaceiros montados em alimárias haviam seguido em direção a região da fronteira da Paraíba. Provavelmente o major Ferraz recebeu a informação que entre os membros daquele pequeno grupo de bandidos estava Lampião e partiu para a perseguição.

Antônio Amaury Correa de Araújo e Vera Ferreira, autores do livro “De Virgulino a Lampião” (São Paulo,1999), na página 96, informam que o chefe cangaceiro seguia com os companheiros que tinham a alcunha de Moitinha e Juriti. Para estes autores os celerados seguiram para a região da Lagoa do Vieira, na intenção de receberem uma encomenda feita a um coiteiro da região.

Durante a nossa visita a região (dezembro de 2008) a área apontada como sendo a Lagoa Vieira estava praticamente seca-Foto Alex Gomes

Por volta das dez horas da manhã os policiais vinham cautelosos ante a aproximação dos cangaceiros. Segundo Lira (op. cit. Pág. 129), o major Ferraz determinou que habitantes da região que buscassem o rastro dos fora das lei. Nesta movimentação os policiais ouviram a aproximação de alimárias, viram os três homens montados e o tiroteio começou.

Logo o animal que transportava o chefe cangaceiro caiu varado de balas e um destes disparos igualmente atingiu o calcanhar direito de Virgulino. O cavaleiro caiu ao solo, onde na seqüência a sua montaria tombou sobre seu pé ferido e Lampião ficou momentaneamente preso. Se não fosse a ação destemida de Moitinha e Juriti, provavelmente aquele seria o dia derradeiro do “Rei do Cangaço”.

Próximo a Lagoa Vieira se encontra a famosa Pedra do Reino, palco de trágicos acontecimentos em 1838

Teria sido o próprio major Ferraz quem atingiu o chefe cangaceiro. De alguma forma Lampião se livra do peso do animal morto e mesmo ferido consegue reagir a altura da situação. Logo, segundo a nota publicada no jornal “A Noticia” ele e seus companheiros fogem em direção a uma serra, que o oficial pernambucano declara ser a “Serra da Catinga”, existente nas proximidades.

Foto-Alex Gomes

Segundo as pessoas que atualmente habitam a isolada região da Lagoa do Vieira, o local deste combate é demarcado pela existência de uma árvore do tipo “pau-ferro”, em uma parte mais baixa do terreno, próximo as margens desta lagoa. Em relação aos detalhes deste acontecimento, os atuais moradores não transmitiram muitas informações, mas foram categóricos em apontar o local do combate, através de relatos ados pelos mais velhos.

O abundante rastro de sangue mostra o caminho para onde a tropa deve seguir. Ainda segundo a nota publicada no jornal recifense, a cerca de uma légua de distância, ou seja, seis quilômetros, na altura de um lugar chamado “Barro”, outros cangaceiros vieram em socorro do chefe e montaram o ponto de disparos. Logo a tropa é violentamente atacada em uma emboscada.

Neste ponto a tropa do major Theophanes Ferraz se encontra em desvantagem, o tiroteio cresce e logo claros são abertos no lado dos militares. Em pouco tempo três policiais são feridos, sendo dois com gravidade.

As estradas da região próxima a Lagoa do Vieira são péssimas, mantendo a região ainda bastante isolada.

Em sua nota na imprensa pernambucana, o major Ferraz informa que diante da situação dos dois feridos, os praças Manoel Amaro de Souza, que havia sido atingido no olho direito e de Manoel Gomes de Sá, baleado no braço esquerdo e na coxa direita, ele decidiu se retirar do combate para buscar um local apropriado para aplicar os primeiros tratamentos, além de conseguir a remoção dos mesmos para Belmonte e Vila Bela. Ainda segundo o oficial, os homens atingidos gravemente foram transportados nas costas dos seus companheiros de farda até uma propriedade denominada Montevidéu. O soldado João Demetrio de Souza, o terceiro ferido, este sem gravidade, consegue seguir por seus próprios meios.

Nas imediações desta árvore, neste mesmo antigo caminho de barro, segundo os moradores da região, foi o local onde se deu este combate do dia 23 de março de 1924.

Da parte dos cangaceiros, o ferimento no pé de Lampião preocupa. O cangaceiro paraibano Cícero Costa de Lacerda propõem conduzir o chefe para o alto a Serra das as, que ficava nas proximidades.

Vendo seu ferimento melhorar Lampião Imaginava que, juntamente com seus cangaceiros, todos estavam bem protegidos no alto da grande serra, mas logo ele teria um encontro com um dos seus mais terríveis inimigos, Clementino Quelé.

Na altitude de mil metros da Serra do Catolé, a esquerda o Ceará e a direita a Paraíba. A partir da esquerda para a direita a equipe participante, Alex Gomes, Solón Almeida Netto (Fotógrafos), os nossos guias na região Luiz Severino dos Santos (Morador do Sítio Catolé, no alto da serra e neto do cangaceiro Luís Padre, primo do mítico chefe cangaceiro Sinhô Pereira), Antônio Antas (Grande amigo e verdadeira biblioteca ambulante sobre o cangaço na região, de Manaíra-PB) e o autor deste artigo.