MONTE DAS TABOCAS – O COMEÇO DA DERROTA DOS HOLANDESES NO BRASIL

Autor – Hermes Leôneo Menna Barreto Laranja Gonçalves*

Fonte – Revista BELLUM

Resumo: Este artigo versa sobre a Batalha do Monte das Tabocas, travada entre milícias portuguesas, compostas por elementos nascidos nos domínios portugueses e locais, e tropas regulares holandesas, da Companhia das Índias Ocidentais (WIC), em 3 de agosto de 1645, no interior de Pernambuco, no Brasil. O texto começa com um breve resumo da evolução do conflito, situado no Nordeste da então possessão portuguesa do Brasil, e destacando, inclusive, o caráter local, e peculiar, da resistência apresentada pelos portugueses, e nativos, aos agressores estrangeiros. Tais invasores, antigos parceiros comerciais dos portugueses, em face da absorção pela Espanha, seus inimigos, de Portugal, em 1580, decidiram pela ocupação das principais zonas produtoras de açúcar no Brasil, o que foi efetivado a partir de 1630. A seguir, já após a Restauração de Portugal, ocorrida 1640, a narrativa a a tratar das providências portuguesas, mesmo que de forma clandestina, haja vista a paz aparente entre Portugal e Holanda, para recuperar os territórios ocupados pelos holandeses. Dentre elas, está o apoio velado, em homens e armas, à sublevação, sobretudo de Pernambuco, contra os invasores estrangeiros. A partir daí o texto discorre sobre os eventos ocorridos logo após a eclosão da revolta ostensiva contra os holandeses, em meados de junho de 1645, culminando com a batalha, vencida de forma inesperada, pelos patriotas apoiados nas alturas do chamado Monte das Tabocas. Longe de despreparados militarmente, as milícias de Tabocas, adestradas pelo militar português Antônio Dias Cardoso, haviam se preparados por meses para apresentar valor militar suficiente para enfrentar as bem adestradas tropas holandesas. Finalizando, o artigo a então a tratar das consequências imediatas do combate nas Tabocas, destacando que foi o começo de uma longa série de vitórias das milícias locais, que, anos depois, já com apoio aberto da Coroa portuguesa, culminaram na rendição dos holandeses, na Campina do Taborda, então nos arredores do Recife, em Pernambuco.

De Formião, filósofo elegante, vereis como Anibal escarnecia, quando das artes bélicas, diante dele, com larga voz tratava e lia. A disciplina militar prestante não se aprende, Senhor, na fantasia, sonhando, imaginando ou estudando, senão vendo, tratando e pelejando (Os Lusíadas, Canto X, estrofe 153)

Conforme descrito na estrofe de Camões que abre este artigo, o ideal seria sempre buscar o conhecimento militar por meio da coleta oportuna de ensinamentos práticos no campo de batalha. Em tempo de paz, na (grata) impossibilidade de realizar essa tarefa com as duras experiências bélicas reais, entre outras possibilidades, os pesquisadores na área militar não devem esquecer-se de outro campo fecundo de ensinamentos doutrinários: a história militar.

Neste ponto, é sempre bom destacar que grandes chefes militares, como Napoleão Bonaparte, sempre instigavam seus principais oficiais a ler, e reler, os grandes clássicos militares em busca da exata noção dos princípios imutáveis da guerra.

Luís de Camões – Fonte – httpswww.cnc.pt450-anos-da-publicacao-de-os-lusiadas

Assim sendo, um dos conflitos militares de grande valor para o estudo da Arte da Guerra, em um ambiente operacional dentro do Brasil, vêm sendo as chamadas “Guerra Brasílicas”, ocorridas entre 1624 e 1654. Nesse longo conflito, dentre outras, as batalhas dos Guararapes (abril de 1648 e fevereiro de 1649) vêm sendo destacadas por historiadores militares, brasileiros e portugueses, por sua grande importância para a vitória da Restauração de Portugal (1640-1668), após a conturbada União Ibérica (1580-1640).

Contudo, tais vitórias não foram concretizadas nem rápida nem facilmente, tendo demandado uma longa preparação por parte dos patriotas portugueses empenhados, pelo menos, desde 1645, na libertação do Nordeste do Brasil do jugo holandês.

O longo conflito entre as Províncias Unidas dos Países Baixos (Holanda), representadas pela Companhia das Índias Ocidentais, e Portugal, em terras brasileiras, uma verdadeira “Guerra dos 30 anos no Brasil”, teve suas origens remotas quando os portugueses, após o desastre militar ocorrido em Alcácer-Quibir (1578), acabaram caindo sob o jugo espanhol. A Espanha, após a União Ibérica, e então sob a dinastia dos Habsburgos, tornou-se um verdadeiro império global, com inimigos diversos, dentre eles a República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos (1581-1795), entidade política hoje conhecida como Países Baixos, ou, mais simplesmente, a Holanda.

Filipe II de Espanha, Filipe I de Portugal em 1570 – Fonte -Philip_II_by_Alonso_Sánchez_Coello

Esta, em face da sua antiga inimizade com a Espanha, acabou por iniciar hostilidades com Portugal, agora submetida à Coroa de Espanha. Nessa lógica, em termos práticos, os portugueses, e seus vastos territórios ultramarinos, em especial o Brasil, ficaram proibidos de comerciar com os holandeses, antigos aliados e parceiros comerciais de longa data, o que lhes acarretou enormes prejuízos.

Dentre o vasto leque de parcerias comerciais frustradas pela união das coroas espanhola e portuguesa, destacou-se a da comercialização do açúcar de cana produzido por engenhos por todo o Brasil, com destaque para os da sua região Nordeste. Estes, por terem sido originalmente financiados pelo capital holandês, foram um exemplo do arranjo econômico mutuamente satisfatório que havia entre Portugal e Holanda – até 1594, ano em que os holandeses começam a cobiçar abertamente as riquezas do Brasil – em especial o açúcar e o pau-brasil (Simonsen, 2005).

Mapa ilustrado das antigas refeituras holandesas de Pernambuco e Itamaracá, durante a ocupação holandesa do Nordeste do Brasil (1630-1654). Ano de 1662. Fonte: Atlas of Mutual Heritage.

Não obstante, os holandeses, ao se verem privados dos lucros que tradicionalmente obtinham com sua antiga parceria açucareira, e às turras com os novos senhores de Portugal, planejaram uma série de ações hostis contra a zona açucareira do Brasil: inicialmente, sem sucesso, na Bahia e, com algum lapso, invadindo um setor, até então, menos defendido, a Capitania de Pernambuco (Daróz, 2010). Cabe mencionar que as ações hostis levadas a cabo, foram realizadas por um braço comercial das Províncias Unidas, chamado Companhia das Índias Ocidentais (WIC), criada na esteira de um empreendimento similar (a Companhia das Índias Orientais), que foi usado, com sucesso por comerciantes holandeses para incursões militares contra territórios hispano-portugueses no Oriente (Ilhas Molucas, Java e outras antigas possessões ibéricas).

É interessante também notar que, desde a primeira incursão holandesa (1624-1625), o ataque à praça-forte de Salvador, já haviam ocorrido menções a uma forte resistência aos invasores por meio de uso de táticas de fustigação (ataques inesperados, desgastantes e mortíferos) pelos habitantes locais (Varnhagen, 1872). Tal estado de coisas privou aos invasores a possibilidade de firmarem o domínio sobre a Zona do Recôncavo, ou seja, as áreas de produção de alimentos para a subsistência no entorno da então cidade-fortaleza e capital do Brasil seiscentista.

Enfraquecidos pela resistência montada pelos habitantes locais, as forças holandesas mantiveram posição enquanto puderam ser reabastecidos por via marítima, o que permaneceu inalterado, até que uma forte armada de naus portuguesas, espanholas e napolitanas, a comando de D. Fadrique de Toledo, proveniente da Europa, nos primeiros meses de 1625, iniciou um bloqueio total a Salvador, forçando os holandeses à rendição (Ibid.).

Bandeira da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais ou Companhia Neerlandesa das Índias Ocidentais (em neerlandês: West-Indische Compagnie ou WIC)- Fonte – Wikipédia.

Apesar dessa derrota inicial, os holandeses não desistiram, e, financiados com recursos obtidos por meio de incursões corsárias contra os transportes de prata espanhóis na região do Caribe, logo voltaram a atacar. Em 1630, mais experimentada, e em maior número, a WIC tentou nova incursão, desta feita na já referida Capitania de Pernambuco. Para tal ofensiva, organizaram uma força militar com 54 navios de guerra, e entre 6.200 e 7.200 militares, com os quais desembarcaram, sem muita resistência inicial, na praia do Pau Amarelo (situada a cerca de 16 quilômetros ao norte de Olinda). Rapidamente, ocuparam Olinda e, posteriormente, o porto do Recife, mais ao sul (Freire, 1675 e Jesus, 1679).

Mais importante, sem perda de tempo, e, sem dúvida, tentando evitar o ime surgido na ocupação de Salvador, as forças holandesas ampliaram a sua área de ocupação para o interior, buscando: dominar a região dos engenhos de açúcar (a chamada Zona da Mata) e garantir fontes de abastecimento alimentar para suas posições litorâneas.

Apesar do sucesso inicial avassalador, a resistência ibérica se fez notar por meio de diversas ações do mestre de campo general (tenente-general) de Pernambuco, Mathias de Albuquerque, com destaque para o incêndio dos depósitos de açúcar do Recife. Além disso, conseguiu manter vívida a reação local ao invasor, sobretudo por meio das chamadas “companhias de emboscada” ou “companhias de assalto” (Barroso, 2019, p. 16).

Olinda na época dos holandeses no Nordeste do Brasil – Fonte – John Ogilby’s atlas America Being the Latest, and Most Accurate Description of the New World, London, 1671, p. 504

Como visto acima, essas pequenas unidades de guerra irregular tiveram sua origem imediata na defesa popular apresentada anteriormente em Salvador, sendo novamente ativadas por Mathias de Albuquerque no famoso Arraial Velho do Bom Jesus – cujas fundações estão hoje situadas nos arredores do Recife – e que mantém em suspenso a vitória completa dos holandeses (Vianna, 1948).

Tais companhias de emboscadas, durante cerca de cinco anos, em que pese suas limitações de efetivos e de meios, conseguiram manter o invasor em constante sobressalto, impedindo seu livre trânsito pelas estradas, atacando patrulhas, destacamentos e comboios inimigos, impedindo assim a pacificação do território (Freire, 1675).

Esses grupamentos de milicianos locais e portugueses, reforçados por indígenas e negros escravos (libertos ou não), utilizaram ao máximo táticas de guerrilhas ancestrais do Velho Mundo, mescladas com táticas de uso corrente pelos indígenas brasileiros. Aliaram, ainda, um elevado conhecimento do terreno, e do clima tropical, para maximizar o efeito de suas ações de interdição e atrito contra o invasor.

Recife no tempo dos holandeses no Nordeste do Brasil – Fonte – Rerum in Brasilia et alibi gestarum by Caspar Barlaeus

Mesmo assim, sem apoio da metrópole, e sitiado por forças holandesas superiores, o Arraial Velho, cercado, rendeu-se em 1635, tendo Mathias de Albuquerque escapado com parte significativa dos habitantes originais de Pernambuco (cerca de 7.000 pessoas) para a Capitania Real da Bahia. No caminho, cercaram e ocuparam o forte de Porto Calvo, tendo então capturado, julgado e executado Domingos Fernandes Calabar, responsável pela traição que gerou a derrocada portuguesa naquele ano.

Deste momento em diante, até 1645, os holandeses conseguiram um arranjo político e militar que lhes permitiu obter vários anos de estabilidade na região (governo de Maurício de Nassau). Com isso, inclusive e gradualmente, ampliaram seu controle territorial sobre a região nordeste brasileira, culminando com uma nova incursão a Salvador (1638) e a breve ocupação do Maranhão (1641 a 1643).

No ano de 1645, contudo, já com o domínio holandês politicamente bastante desgastado, um grupo de patriotas nascidos dentro e fora do antigo Estado do Brasil, em plena Guerra de Restauração entre Portugal e Espanha (travada entre 1640 e 1668), decidiram reacender a luta contra os invasores holandeses no nordeste brasileiro. Essa luta, acesa desde 1624, pelo menos, haveria de se arrastar por quase mais uma década, tendo demonstrado o elevado valor militar dos combatentes portugueses, nascidos, ou não, em Portugal.

Antônio Dias Cardoso, Cavaleiro da Ordem de Cristo,foi um dos principais líderes contra os holandeses, em detalhe do quadro de Victor Meirelles – Fonte – Wikipédia.

Contudo, mesmo com a Restauração de Portugal, efetivada em 1640, o Reino liberto tentou aos poucos retomar a autonomia que perdera por 60 anos. Na realidade, de imediato, não teve condições políticas, nem, especialmente, financeiras, de lutar abertamente por suas territorialidades perdidas enquanto sob jugo espanhol.

Mesmo assim, de forma velada, as autoridades portuguesas em Salvador buscaram manter vivo o espírito de resistência pernambucano, o que fizeram por meio do envio clandestino de recursos, suprimentos e homens de armas, como, por exemplo, um destacado militar chamado Antônio Dias Cardoso.

Segundo assentamentos existentes, o mestre de campo Antônio Dias Cardoso, Cavaleiro da Ordem de Cristo, teria nascido no Porto, por volta da virada do século XVII, filho de pais com origem fora da nobreza, tendo vindo jovem para o Brasil para tentar a sorte nas lides castrenses (Bento, 2013). Por relato de cartas-patentes de 1648 e 1656, existentes no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (situado em Lisboa), temos que esse renomado militar português teria servido no Brasil, de forma contínua e sempre de armas na mão desde 1624.

Carta-patente de promoção a mestre de campo concedida por El Rei de Portugal em 4 de maio de 1656. Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

Ao longo desse longo período, foi sendo sucessivamente promovido a alferes, ajudante, capitão, sargento mor e, finalmente, mestre de campo, sempre por meritórios serviços na guerra contra os holandeses. Nesse documento, há referências a seus destacados serviços, provavelmente, sob o comando de Matias de Albuquerque, “em varios asaltos, emboscadas e recontros que se lhe ofereçerão junto da villa de Olimda nas fortificações do Reçife e outras estançias adonde proçedeo com vallor conhecido” (sic) (Lisboa, 1648), e depois, sob João Fernandes Vieira e Francisco Barreto, quando “procedendo nellas (pelejas e batalhas) cô valor conhecido signalandosse nas mais das ditas ocasioens recebendo nellas feridas de que sua vida correo grande perigo e na aclamação da liberdade daquelas Capitanias […] que demais trabalhou” (Lisboa, 1656).

Por essa destacada folha de serviços, ainda servindo no Brasil, em dezembro de 1644, ou começo de 1645, foi designado pelo Governador do Brasil, então sediado em Salvador, para se infiltrar na Capitania de Pernambuco, “acompanhado por 60 homens escolhidos”, a fim de prover apoio militar, ainda que de forma velada, aos patriotas que então começavam a querer se insurgir contra o domínio holandês (Netscher, 1942, p. 223).

A partir dessa histórica infiltração, Antônio Dias Cardoso e seus homens começaram a instruir, nas matas que cercavam alguns engenhos na Zona da Mata pernambucana, o que pode ser considerado como o núcleo militar dos patriotas em armas para a libertação de Pernambuco e das demais capitanias subjugadas pelo invasor estrangeiro. Em paralelo, em meados de 1645, a paz relativa nas áreas ocupadas pelos holandeses, rapidamente caminhou para o conflito militar aberto.

João Fernandes Vieira – Fonte – Wikipédia.

O ponto inicial dessa conflagração começou justamente quando as forças patriotas, comandadas por João Fernandes Vieira (natural da ilha da Madeira) e pelo já referido sargento mor Antônio Dias Cardoso, conseguiram atrair um considerável contingente holandês para um combate nos termos desejados pelas forças locais. Tal atração se deu justamente pela constatação dos holandeses acerca da presença de uma força insurgente significativa, nos arredores do Recife, o que levou a uma ofensiva militar.

Em 3 de agosto de 1645, uma força holandesa com cerca de 1.500 holandeses e indígenas tapuias, comandados pelo coronel Hendrik van Haus, avançou sobre posições dos chamados “rebeldes” na região hoje conhecida por Monte das Tabocas, sendo surpreendidos pelo terreno (que desconheciam) e pelo número, ímpeto e audácia das milícias patriotas que realizaram seguidas emboscadas desmoralizantes sobre suas tropas (Jesus, 1679).

Esquema gráfico mostrando movimentos militares holandeses e as posições portuguesas anteriores ao confronto de 3 de agosto de 1645. Fonte: Google Earth, com esquemas esboçados pelo autor.

Segundo o historiador brasileiro, coronel Claudio Rosty, em Tabocas, dos cerca de 1.200 patriotas em presença, somente cerca de 200 teriam armamento de fogo, estando os demais “armados” de forma improvisada (flechas, piques com pontas tostadas, terçados e mesmo pedras) (Rosty, 2002). Por outro lado, aparentemente, os cerca de 700 holandeses, e mais outros tantos indígenas aliados, estavam muito mais bem armados e equipados, do que os patriotas, muito embora Nestscher alegue que essa tropa era a última unidade móvel, fora das fortificações, e carecesse de pagamentos e o mínimo suprimento bélico (inclusive munições) (Netscher, 1942).

Conforme o frei Rafael de Jesus, na época da batalha o Monte das Tabocas, situado a cerca de 40 quilômetros do centro do Recife, tinha uma configuração vegetal que lhe deu o nome: cheio de tabocas, ou seja, renques de bambu grossos, em linhas sucessivas, com agens limitadas para o prosseguimento rumo ao topo (Jesus, 1679). A primeira linha de tabocas então distaria cerca de 1.000 metros do curso do rio Tapacurá, após uma campina, e, segundo Santiago, acompanharia a trilha em aclive para o alto do monte (Santiago, 1984).

Vista recente do Rio Tapacurá, a montante do local de travessia holandês, onde hoje existe um pequeno açude. Fonte: Instituto Histórico e Geográfico de Vitória de Santo Antão.

ado este primeiro tabocal, depois de um descampado de menor extensão, haveria um segundo renque que ascendia quase ao topo do monte. Por sinal, o cimo, à época estava com densa cobertura de árvores e, em sua orla, mais um renque dos já citados tabocais (Jesus, 1679).

No caminho para a presa, que julgavam certa, os holandeses avançaram meio que temerariamente, tendo, ao cruzar o rio caudaloso, provavelmente diminuído consideravelmente (por ação da umidade) sua pretensa superioridade de fogos. Além disso, com fardas e apetrechos molhados, o solo úmido e barrento (pesado), deve ter atritado bastante a necessária coesão das linhas batavas.

Tanto Santiago como Jesus apontaram que os patriotas fizeram uma emboscada inicial na transposição do curso d´água, o que só tornou mais instintiva a reação dos holandeses ao que se mostrou ser uma isca para as emboscadas principais que transcorreram mais adiante (Santiago, 1984).

Primeiras emboscadas da Batalha do Monte das Tabocas. Ilustração de Alcebíades Miranda Júnior.
Fonte: História do Exército Brasileiro, Estado-Maior do Exército Brasileiro, 1ª edição, 1972.

Com isso, após o rio, e depois de um provável dificultoso avanço pela campina barrenta, quase na primeira linha de tabocas, os atacantes foram acometidos por sucessivas emboscadas, de variados pontos (provavelmente por uma mescla de fogos, flechas e mesmo pedras). Tendo então reduzida a capacidade de fogos, após uma provável pausa para reajuste de seus dispositivos, os homens de Van Haus avançaram pelas poucas agens disponíveis na primeira linha de tabocais, rumo ao segundo descampado, já diante de aclive considerável.

Esquema da Batalha do dia 3 de agosto de 1645, no Monte das Tabocas, onde se destaca: o avanço holandês (vermelho), as emboscadas portuguesas e o contra-ataque de João Fernades Vieira (azul). No canto superior direito, detalhe com a visão do monte a partir do leste.
Fonte: Google Earth, com esquemas esboçados pelo autor.

A partir daí, os holandeses sofreram novas emboscadas de desarticulação, persistindo na subida monte acima, com suas linhas bastante desarticuladas, quando então foram contra-atacados pelos defensores, provenientes do alto do monte. Estes se lançaram num decidido combate corpo-a-corpo com a tropa holandesa, já desequilibrada, que acabou por recuar.

É narrado que o destemido coronel Van Haus repetiu por mais três vezes o assalto inicial. Na quarta, e última, tentativa, já no lusco-fusco (e tendo sido o tempo inteiro fustigado por novas emboscadas), mesmo assim, quase tomou o cume. Contudo, nessa altura, a tropa estrangeira, com o moral abalado por insucessos contínuos ao longo da jornada, se desmoralizou, e começou a abandonar o campo de batalha, cruzando de volta o rio para longe dos resolutos defensores (Daróz, 2016).

Quando a noite caiu, os defensores mantiveram, e melhoraram, suas posições no campo de batalha, se preparando para os eventuais novos ataques que poderiam vir no dia seguinte. Nesse ponto, João Fernandes Vieira, mandou patrulhas percorrerem os arredores de onde transcorrera o centro da batalha, tendo os portugueses “achado 50 olandeses, que davão guarda a mais de quatrocentos feridos, que desmayados pella falta de sangue, & pello trabalho da marcha, não poderão ar avante na conserva dos seus” (Jesus, 1679, p. 305-306).

Com o raiar do dia e com a confirmação do abandono do campo pelos holandeses, ficou patente a vitória dos locais (Ibid.), com o que, com o sucesso confirmado, os patriotas, senhores do campo de batalha, capturaram grandes quantidades de mosquetes, arcabuzes, espadas, outros armamentos e, sobretudo, pólvoras e munições (Daróz, 2016).

A partir deste e de outros reveses inesperados (com destaque para o combate da Casa Forte de Rita Gomes), e até as batalhas dos Guararapes, os holandeses praticamente deixaram de atuar no interior do Nordeste brasileiro, tendo ficado s a algumas cidades e fortes litorâneos, com destaque para as localidades de Olinda, Recife e Itamaracá.

Após as batalhas dos Guararapes, entre 1649 e 1654, as forças patriotas sitiaram o centro de gravidade político holandês na região, ou seja, o binômio Olinda-Recife, sufocando essas de serem reabastecidas de víveres e outros insumos, salvo pelo mar.

Desse modo, surgiu um ime, pois graças à hegemonia naval holandesa no mesmo período e sem artilharia de sítio (pesada), não havia como as forças patriotas, sem armamentos e equipamentos adequados, investirem essas cidades fortificadas. Segundo Castro (2022), isso perdurou até que uma frota portuguesa conseguiu cortar as comunicações holandesas, levando à rendição do esquema defensivo montado pela Companhia das Índias Ocidentais, na Campina do Taborda, em 1654.

Vista aérea recente, de norte para sul, do cume do Monte das Tabocas. Fonte: Imagem aérea de Djalma Andrade.

Voltando ao Monte das Tabocas, no que tange às inovações táticas apresentadas pelos patriotas no episódio, pode-se dizer que elas surgiram tanto das circunstâncias (exército de patriotas sem recursos) quanto da natureza do ambiente operacional (clima quente, úmido e coberto de florestas, campinas e zonas alagadiças) que os envolvia. Além disso, aquele núcleo inicial de combatentes aproveitou o melhor conhecimento geográfico e a maior resistência de seus integrantes a um clima tropical do que seu inimigo europeu, apesar do apoio prestado por índios tapuias e potiguaras ao holandês.

Vista aérea do Monte das Tabocas, com a seta indicando a direção do ataque principal holandês, sobre a várzea do Rio Tapacurá, em 3 de agosto de 1645. Fonte: Imagem aérea de Djalma Andrade.

Enquanto os holandeses, mais por hábito do que por adestramento, combatiam, quase que atavicamente emassados no seu típico batalhão seiscentista, os luso-brasileiros, até por conta da carência de armamentos de ponta, foram forçados a combater em ordem aberta. Era observação comum pelos holandeses que a tática patriota era romper os “quadrados” holandeses e, a partir daí, partir para a luta corpo-a-corpo na qual a tropa local tinha grande vantagem, até mesmo pelo pouco equipamento em face das agruras do clima (Rosty, 2002).

Outra observação holandesa reveladora é que a artilharia holandesa quase sempre era inútil nas refregas, em menor ou maior escala (tornado-se assim um estorvo), haja visto que as peças visavam molestar linhas de soldados em ordem cerrada, coisa que raramente viam os patriotas perfazer em campo aberto (Netscher, 1942).

Mais uma vez é razoável presumir que tal superioridade organizacional, em que pese a penúria dos patriotas, possa ter prestado um desserviço ao invasor, ao menos naquele momento. Senão vejamos: segundo Jesus (1679), o tempo na época da batalha estava muito instável e chuvoso, com o que o caudal do rio Tapacurá, normalmente vadeável, estava bastante forte e elevado. Segundo consta, a tropa holandesa provinha da vila de São Lourenço, distante pelo menos 20 quilômetros à nordeste do Monte das Tabocas, tendo avançado, decididamente, para esmagar os patriotas, cujas posições estimavam estar no chamado Engenho do Covas. Não os encontrando ali, foram atraídos para a nova posição, distante cerca de 15 km mais adiante (Jesus, 1679).

Vista recente da várzea entre o Rio Tapacurá e o sopé do Monte das Tabocas, palco principal dos combates de 03 de agosto de 1645. Fonte: Foto de Jones Pinheiro

Dos variados relatos dessa batalha, podemos destacar alguns princípios da guerra ali utilizados que, com ligeiras variações, também estarão presentes, igualmente, nas 1ª e 2ª batalhas dos Guararapes, como por exemplo: surpresa, ofensiva, segurança e unidade de comando. Além disso, os patriotas empregaram um judicioso uso do terreno (para forçar o combate), agressividade nas ações ofensivas, amplo emprego de operações de inteligência e psicológicas, exploração das agruras do clima local, sem esquecer a notável ação de comando e capacidade de liderança evidenciadas pelos comandantes, em todos os níveis (Rosty, 2002).

Em face do acima exposto, de forma bem resumida, cabendo até maiores aprofundamentos, é lícito dizer que foi no Monte das Tabocas o ponto de partida para o processo que culminou nas chamadas batalhas dos Guararapes (já no contexto do comando militar vitorioso de Francisco Barreto de Menezes, o Conde do Rio Grande).

É certo que a formação dessa força militar efetiva, cujo cerne surgiu no Monte das Tabocas, baseou-se em um longo processo de aclimatação local de uma estratégia tão antiga como a guerra: a aproximação indireta. Esta, como bem é sabido da história militar, quase sempre foi o padrão histórico de resposta a agressores externos com grande capacidade militar frente a defensores menos preparados.

Vista da capela de Nossa Senhora de Nazaré, erguida nos anos 1960, conforme desejo nunca realizado de João Fernandes Vieira, líder da Insurreição Pernambucana (1645-1654).
Fonte: Instituto Histórico e Geográfico de Vitória de Santo Antão.

Logo, nos Guararapes consolidou-se uma doutrina autóctone, que traduziu para a geografia o clima e a personalidade dos locais, os grandes avanços doutrinários da chamada Guerra dos 30 Anos, na Europa. Por outro lado, podemos dizer que nas Tabocas, por sua vez, é que teria surgido o primeiro esboço dessa futura reação militar.

É que, como vimos, foi lá que o grande artífice do chamado “Exército Libertador”, o mestre de campo Antônio Dias Cardoso, testemunhou suas tropas improvisadas aplicarem, vitoriosamente, as técnicas de emboscada, guerrilha e “de matar”, que treinaram por meses, sob toda a sorte de dificuldades, homiziados contra a repressão holandesa nas chamadas matas do “pau brasil” (Bento, 2018).

Nessas verdadeiras oficinas doutrinárias naturais, Dias Cardoso trouxe para o aprendizado inicial das táticas, técnicas e procedimentos necessários para a vitória: capatazes, ferreiros, mascates, comerciantes, escravos libertos, índios, além de um bom número de milicianos portugueses.

Tal núcleo de insurgentes, aliás, que foi fundamental para a vitória no Monte das Tabocas, é considerado, igualmente, hoje em dia, pelos historiadores militares brasileiros, como “a célula mater do Exército Brasileiro, no solo hoje defendido pelo moderno Comando Militar do Nordeste” (Bento, 2013).

Hoje, ados quase quatro séculos daquelas históricas jornadas militares, o Exército Brasileiro, além de outros vultos históricos daquele período, vem buscando homenagear o heroísmo, a coragem, a abnegação e o conhecimento profissional, demonstrados pelo mestre de campo Antônio Dias Cardoso. Isto vem sendo executado por modos diversos, mas inclusive pela atribuição do nome, e da memória, desse personagem histórico como patrono do 1º Batalhão de Forças Especiais – “Batalhão Antônio Dias Cardoso” –, atualmente sediado em Goiânia, capital do estado brasileiro de Goiás.

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VARNHAGEN. Francisco Adolpho. Historia das lutas com os hollandezes no Brazil: desde 1624 a 1654. Lisboa: Typographia de Castro Irmão. 1872. Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/518737. o em 06 jun. 2023.

VIANNA, Helio. Estudos de História Colonial. São Paulo: Companhia Editora Nacional,1948.

*Hermes Leôneo Menna Barreto Laranja Gonçalves é coronel de Engenharia do Exército Brasileiro. Formado na Academia Militar das Agulhas Negras, cursou a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, onde concluiu o Curso de Comando e Estado-Maior, e, em paralelo, o Mestrado Acadêmico em Ciências Militares, este pelo Instituto Meira Mattos. Atuou como Oficial de Ligação para Assuntos Culturais e Doutrinários junto ao Exército Português entre julho de 2022 e junho de 2024. Atualmente exerce o cargo de chefe do Gabinete da Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural do Exército.

HENRY FONDA EM NATAL – O DIA EM QUE O ASTRO DO CINEMA NORTE-AMERICANO, PAI DE PETER E JANE FONDA, OU PELA CAPITAL DO RN

HENRY FONDA EM NATAL

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Na metade do século XX, o ator norte-americano Henry Fonda (1905-1982) era um dos maiores astros de cidema dos Estados Unidos, intérprete de heróis inesquecíveis. E no auge dessa carreira estrelada em Hollywood, ele resolveu aliviar o clima de estresse que aumentava de acordo com a tensão que rondava a China e a Europa, com o seu país sempre em alerta. Decidiu, então, desembarcar em um local interessante e calmo, algo como o exótico Brasil. E foi nesse percurso que Natal, capital do Rio Grande do Norte, entrou no seu roteiro.

Esse texto foi originalmente publicado na Revista BZZZ, número 107, edição de nov. 2023 a jan. de 2024.

Esse momento a pelo período de janeiro a abril de 1939, quando o ator tinha concluído três filmes e estava bastante cansado, somado aos conflitos que cobravam um alto preço em sangue na China, nuvens negras da guerra se aproximavam cada vez mais da Europa e ameaçavam englobar o Velho Mundo em um grande entrevero.

Aderbal de França e a Melhor Notícia

A sede do jornal natalense “A República” estava bastante agitada na manhã do do dia 13 de maio de 1939, devido à inauguração das obras de saneamento de Natal, que iriam acontecer às oito horas na Praça 7 de Setembro, em frente ao Palácio do Governo. Para o interventor federal Rafael Fernandes Gurjão aquela era uma das principais obras da sua gestão e custou a fortuna de quase cinco milhões e meio de contos de réis.

Aderbal de França.

A movimentação entre autoridades e políticos foi muito intensa e todo mundo que “era gente” em Natal se fez presente. Veio até o interventor da Paraíba, Argemiro de Figueiredo, e entre os que estavam lá, encontrava-se o muito satisfeito Francisco Saturnino de Britto Filho, cujo Escritório de Engenharia Civil e Sanitária Francisco Saturnino de Britto, com sede no Rio de Janeiro, foi o responsável pelo planejamento e execução da obra.

Entretanto, um dos mais importantes jornalistas de “A República” parece que pouco se importou com toda aquela movimentação política e tudo indica que ele nem sequer esteve naquele evento, pois não escreveu uma só linha sobre a festa. Mas isso não era problema, pois Aderbal de França, depois de quase onze anos publicando a mais importante e lida coluna social do principal jornal do Rio Grande do Norte, tinha cacife e prestígio suficientes para faltar ao evento na Praça 7 de Setembro.

O Sikorsky S-43 Baby Clipper.

E tudo indica que Aderbal estava naquele sábado com sua atenção voltada para o terminal de ageiros da empresa aérea Panair, uma subsidiária no Brasil da empresa de aviação norte-americana Pan American World Airways, uma das maiores do mundo naqueles tempos.

No dia anterior, Aderbal havia recebido um telefonema de Arlindo Moura, o agente da Panair em Natal, cujo escritório ficava no primeiro andar de um edifício na ladeira da Rua Sachet, 79, na Ribeira. Arlindo lhe informou que no dia seguinte, por volta das duas da tarde, chegaria uma aeronave do tipo “Baby Clipper” procedente dos Estados Unidos, trazendo a bordo o ator de cinema Henry Fonda e ele desembarcaria em Natal.

Realmente aquela notícia era bem mais interessante que a inauguração das obras de saneamento.

Em Natal

Aderbal de França, que assinava sua coluna com o pseudônimo de Danilo, escreveu que foi para o terminal de ageiros da Panair e ficou “com os olhos pregados no horizonte” esperando a aeronave. Essa havia partido de Miami, Flórida, tinha atravessado o Mar do Caribe, parou em Belém do Pará para pernoite e seguiu sem escalas para Natal. Essa ideia de pernoite era porque o bimotor “Baby Clipper” nem chegava a 300km/h de velocidade máxima.

Enfim, a aeronave anfíbia prateada surgiu no horizonte. Sobrevoou os sítios e fazendas onde atualmente existem os bairros da Zona Norte de Natal e ou sobre a ponte metálica de Igapó, que ainda estava completa. Fez uma volta sobre as poucas residências na região das Quintas, depois sobre o proletário bairro do Alecrim, e começou a diminuir de altitude. Voou sobre a igreja de São Pedro, o velho Cemitério do Alecrim, e logo amerissou no calmo Rio Potengi. De forma lenta e tranquila, o piloto se dirigiu até o flutuante da Panair, onde os hidroaviões dessa empresa atracavam.

Em 1939 Natal recebia uma média de três voos semanais de empresas aéreas alemãs, italianas, sas e norte-americanas, que utilizavam ou o campo de pouso em Parnamirim, ou as águas do Potengi, mas mesmo esse terminal da Panair estando às margens do rio ele era chamado de “aeroporto”. E lá já se concentrava um certo número de fãs para olhar o astro de Hollywood e tentar conseguir um autógrafo.

Fonda desceu da aeronave por último, acompanhado de sua segunda esposa, a loiríssima s Ford Seymour, uma socialite canadense, oriunda de uma família de classe média alta e mãe do casal Jane e Peter Fonda, futuros astros de Hollywood. Eles caminharam com calma e tranquilos pela arela de o ao terminal de ageiros e pareciam cansados. Fonda acendeu um cigarro para sua esposa, comentou alguma coisa sobre a paisagem e o fotógrafo João Alves de Melo começou a clicar o casal.

Após algum tempo, Aderbal começou um diálogo com Fonda e sua esposa, sendo traduzido por Franklin Willian Knabb, de 18 anos, um natalense filho de um casal de americanos que há anos viviam na cidade. Ao jornalista de “A República”, o casal comentou que a viagem estava sendo “Magnífica”, principalmente naquele sábado, onde tudo seguia corretamente. Disseram que “Gostaram imensamente desse aeroporto”, com seu calmo rio e a pequena cidade de casinhas claras.

Houve um momento de descontração quando Aderbal informou que no Cinema Royal, na Cidade Alta, estava reprisando naquele dia o filme “Idílio Cigano”, que Fonda havia rodado na Inglaterra no final de 1936 e atuou com a atriz sa Annabella. Vale ressaltar que naquele mês de maio de 1939, acabava de estrear no Brasil o faroeste “Jesse James”, que demoraria um tempo para chegar nos cinemas da capital potiguar. Nesse filme Henry Fonda contracenou ao lado de Tyrone Power, que anos depois também aria por Natal.

Apesar de Aderbal de França não comentar em sua coluna, os fãs e jornalistas de Belém, Recife e Rio de Janeiro se impressionaram com a altura do ator, o fato dele estar com cabelos considerados grandes, desalinhados e a barba por fazer. O que eles não sabiam era que Fonda estava se preparando para seu próximo filme – “O Jovem Abraham Lincoln” – e até penteava o cabelo da mesma maneira como fazia o antigo presidente dos Estados Unidos.

Foto da época que Henry Fonda veio ao Brasil.

Todos observaram a forma displicente do ator hollywoodiano se vestir. Numa época onde as roupas masculinas eram basicamente monocromáticas, ele andava “com excesso de cores”. Ao ponto de um jornal do Rio de Janeiro comentar que ele desembarcou no Brasil “Colorido e descabelado, com paletó cor de palha, gravata cinzenta, calça marrom, mulher loira…”

Ao final, Aderbal de França perguntou a s Seymour se ela era também atriz em Hollywood. Espontaneamente e com um sorriso no rosto de satisfação, ela respondeu:

– Apenas Mrs. Fonda.

Grandes Mudanças

O casal Fonda pernoitou naquele mesmo dia em Recife e logo pela manhã seguiu para o Rio de Janeiro.

Na então Capital Federal, o ator Henry Fonda chamou atenção pelo jeito sincero, desleixado e tranquilo. Nem parecia os outros artistas de Hollywood que haviam ado pela cidade e deixado uma péssima recordação com suas afetações e chiliques.

Foto autografada de Henry Fonda, entregue para uma sortuda fã no Rio de Janeiro.

eou pela cidade, deu autógrafos, falou no programa radiofônico “A Voz do Brasil” em cadeia nacional e até arriscou enviar uma mensagem aos ouvintes em português. Depois ou alguns dias na bela e então pouco habitada Ilha de Paquetá, na Baía da Guanabara, a convite do empresário Darke Bhering de Oliveira Mattos, e depois partiu para Buenos Aires.

A história de Henry

Nascido em 16 de maio de 1905, na pequena cidade de Grand Island, estado norte-americano de Nebraska, Henry Fonda era filho do impressor William Brace Fonda e Henryne Jaynes. Os biógrafos apontam que a sua família era muito unida e que o apoiou muito durante sua vida.

Na escola, Henry se mostrou um menino tímido, reservado, que tendia a evitar as meninas, exceto suas irmãs. Mas era tido como um bom patinador, nadador e corredor. Tempos depois, o jovem ou a trabalhar meio período na gráfica de seu pai e desde cedo manifestou o interesse em ser jornalista. Anos depois conseguiu até frequentar o curso de jornalismo na Universidade de Minnesota, mas por razões financeiras desistiu. Em 1925, conseguiu um emprego temporário em um teatro comunitário chamado “Omaha Community Playhouse”.

Henry Fonda, um dos maiores astros da História de Hollywood – Fonte – Wikipédia.

Trabalhava como assistente de direção e pintor de palco, mas Dorothy Brando, diretora do teatro e mãe do futuro ator Marlon Brando, reconheceu imediatamente o seu talento e trouxe Henry Fonda para o palco. O jovem percebeu a beleza de atuar nessa profissão e pelos três anos seguintes desempenhou pequenos papéis e tudo mudou em sua vida. Em 1928, Fonda decidiu ir para o leste dos Estados Unidos em busca de fortuna. 

Acabou em Nova York, onde conseguiu seus primeiros papéis na Broadway e dividiu um quarto barato com seu colega James Stewart, onde formaram uma amizade para toda a vida. Henry se juntou aos “University Players”, um grupo de jovens atores que incluía Margaret Sullivan, sua primeira esposa de um casamento de curta duração.

Durante os anos na Broadway ele se manteve à tona com pequenos papéis e como cenógrafo, antes de ser descoberto e conseguir em 1935 a sua primeira chance em Hollywood. Foi protagonista de uma comédia romântica intitulada no Brasil de “Amor Singelo”, uma adaptação cinematográfica da 20th Century Fox para a peça de teatro “The Farmer Takes a Wife”, onde atuou ao lado da atriz Janet Gaynor. 

Fonda impressionou imediatamente a crítica e o público. De repente estava convivendo com as grandes estrelas de Hollywood, atuando com diretores renomados, ganhando cerca de 12.000 dólares por mês e nos anos seguintes seria guindado ao patamar de estrela global. 

Nenhum outro ator personificava o tipo de americano honesto, tão direto e carismático quanto Henry Fonda. Isso se devia ao seu físico especial: 1,85 m de altura e olhos azuis. Mas havia também o andar ligeiramente cambaleante e o leve cansaço. Parece que, mesmo no início dos seus filmes, seus personagens estão exaustos pelas justas lutas que os aguardam.

Henry Fonda interpretando o pistoleiro Frank James, no filme “Jesse James”, de 1939

Da sua estreia até os primeiros meses de 1939, Henry Fonda protagonizou dezoito filmes, entre eles “Eu Sonho Demais” (1935), onde fez par romântico com Carole Lombard. Esteve no faroeste “A Trilha do Pinheiro Solitário” (1936), trabalhando com o ator Fredy MacMurray. Depois veio “Você Só Vive Uma Vez” (1937), cuja direção ficou a cargo do alemão Fritz Lang. Houve também o clássico “Jezebel” (1938), onde contracenou ao lado da grande atriz Bette Davis. Fonda considerou esse filme um dos mais importantes que até então ele tinha realizado e Davis a sua companheira de atuação mais profissional e preparada.

Em 1940, Henry Fonda conseguiu o papel no filme “As Vinhas da Ira”, de John Ford, sendo considerado por muitos como seu melhor papel, que fez dele um dos grandes atores de sua geração e lhe rendeu uma indicação ao Oscar. Mas logo a Segunda Guerra Mundial fez tudo mudar.

Fonda se alistou aos 37 anos na Marinha dos Estados Unidos e entre 1942 e 45 interrompeu sua proeminente carreira como ator de cinema para servir ao seu país. Inicialmente esteve a bordo do destróier USS Satterlee como um simples marujo intendente de 3ª classe, cuidando do estoque de materiais do navio.

Tenente Henry Fonda– Foto US Navy.

Mais tarde foi comissionado como tenente na Inteligência de Combate Aéreo no Pacífico Central, a bordo do navio de apoio de hidroaviões USS Curttis, na área do Atol de Kwajalein. As funções de Fonda centravam-se nas operações aéreas, especificamente na interpretação e avaliação de grande quantidade de material fotográfico e outros materiais de inteligência necessários para levar adiante a invasão do Arquipélago das Marianas e mais tarde da Ilha de Iwo Jima.

Em dezembro de 1944, o USS Curttis estava na Ilha de Saipan, quando a rádio japonesa transmitiu abertamente que sabia onde estava o navio, que o ator de cinema Henry Fonda estava a bordo e que a Marinha Japonesa iria afundá-lo. Por essa razão a nave foi retirada da área.

USS Curttis – Foto – US Navy

Por seu trabalho, Fonda recebeu a Medalha Estrela de Bronze e a Menção de Unidade Presidencial da Marinha.

Oscar no Último Filme

Com sua aura de compostura e incorruptibilidade, ele também interpretou advogados, senadores, governadores – e um total de cinco personagens presidenciais. Fonda também realizou quase vinte faroestes e foi em um filme com essa temática que sua personalidade na tela foi quebrada pela primeira vez.

Os filmes de faroeste produzidos nos Estados Unidos já haviam ultraado o seu apogeu na década de 1960, quando a Europa foi inundada pelos chamados “Westerns Spaghetti”, a maioria produzidos por italianos, a baixo custo e quase todos rodados na ensolarada região de Almeria, sul da Espanha. Apenas alguns se destacaram na produção em massa e “Era Uma Vez no Oeste” se tornou um clássico do gênero. A questão é que nesse filme Fonda interpreta um frio assassino e ele lembraria mais tarde – “Na minha primeira cena eu e meus comparsas assassinamos toda uma família de fazendeiros a sangue frio, mas a câmara só mostrou meu rosto e meus olhos azuis de bebê depois do massacre. O diretor Sergio Leone queria que as pessoas dissessem: Meu Deus, esse é Henry Fonda!”

Henry Fonda na película de Sergio Leone “Era Uma Vez no Oeste”.

O único prêmio Oscar que recebeu por atuação em toda a sua longa carreira foi pelo seu último filme – “Num Lago Dourado”. Lançado no final de 1981, ele atuou ao lado de Katharine Hepburn e de sua filha Jane Fonda, sendo um sucesso. O filme recebeu outros dois Oscars, sendo um para Hepburn como melhor atriz e outro para melhor roteiro adaptado.

Enfermo e com insuficiência cardíaca, Henry Fonda não pôde receber a honraria mais que merecida e poucos meses depois, em 12 de agosto de 1982, faleceu aos 77 anos, em um hospital de Los Angeles.

A INCRÍVEL HISTÓRIA DE THOR HEYERDAHL E A EXPEDIÇÃO KON-TIKI

Kon Tki, o barco da expedição de Thor Heyerdahl em 1947 - Fonte - httpkickasstrips.com
Kon Tiki, o barco da expedição de Thor Heyerdahl em 1947 – Fonte – httpkickasstrips.com – CLIQUE NAS FOTOS PARA AMPLIAR

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Muitos são os exploradores e pesquisadores que perderam a vida durante o curso de suas pesquisas ou explorações geográficas. Thor Heyerdahl é um desses bravos, e um tanto loucos, estudiosos que arriscam a vida para defender suas teorias. Thor Heyerdahl provou que as ilhas do Pacífico poderiam ter sido povoadas a partir da América do Sul. Para tanto, construiu no Peru uma jangada feita de pau de balsa (madeira mais leve que a cortiça), na qual cruzou o Oceano Pacífico desde o Peru até a Polinésia, em uma expedição conhecida como Kon-tiki. A história dessa incrível expedição poderia ser o enredo fantástico de um filme de aventura, mas foi um evento real.

Os primeiros estudos na Polinésia

Thor Heyerdahl nasceu em 6 de outubro de 1914 em Larvik, Noruega, foi um explorador e arqueólogo de renome mundial. Muito cedo se tornou um entusiasta da natureza, inspirado por sua mãe, diretora do museu local, a tomar interesse em zoologia e ciências naturais. Ainda durante a escola primária, criou um pequeno museu zoológico em sua casa. Muito cedo também ingressou na prestigiosa Universidade de Oslo, onde se especializou em zoologia e geografia até pouco antes de sua primeira expedição à Polinésia em 1937.

Thor Heyerdahl  - Fonte -  www.snipview.com
Thor Heyerdahl – Fonte – http://www.snipview.com

Chegando a Polinésia, o jovem estudante Heyerdahl e sua esposa Liv foram adotados pelo chefe da ilha de Taiti, chamado Teriieroo. Depois de estudar o modo de vida e os costumes polinésios, o casal Heyerdahl se estabeleceu por um ano inteiro na isolada e solitária ilha de Fatuhiva pertencente ao grupo das ilhas Marquesas. Enquanto fazia trabalhos de investigação sobre as origens transoceânicas dos animais da ilha, se dedicou profundamente a conhecer as tradições da vida polinésia. Neste período tomou conhecimento das diversas lendas que contavam que homens vindos de além-mar haviam chegado às ilhas da Polinésia levados por Tiki, a quem os nativos consideravam ao mesmo tempo como deus, chefe e filho do sol.

O explorador e sua esposa Liv na Polinésia - Fonte - www.aftenposten.no
O explorador e sua esposa Liv na Polinésia – Fonte – http://www.aftenposten.no

“Quando os primeiros europeus se aventuraram afinal a atravessar o maior dos oceanos, descobriram com espanto que, exatamente no meio dele, existiam ilhotas montanhosas e recifes de coral liso, em geral, segregados uns dos outros e do mundo por vastas áreas de mar. Cada uma destas ilhas já era habitada por povos que aí haviam aportado antes dos europeus. Gente alta e esbelta que veio ao encontro deles, na praia, trazendo cães, porcos e aves domésticas. Donde teriam vindo? Falavam uma língua que nenhum outro povo compreendia. E os homens da nossa raça, que orgulhosamente se intitulavam descobridores das ilhas, encontraram campos cultivados e aldeias com templos e choupanas em cada ilha habitada. Em algumas acharam até velhas pirâmides, ruas calçadas e estátuas de pedra da altura de uma casa europeia de quatro andares. Que povo era aquele e de onde tinha vindo?”.

A polêmica teoria de Heyerdahl

Fazendo uma análise e estudo das correntes marítimas e ventos dominantes na região, Heyerdahl começou a questionar a teoria clássica sobre o povoamento da Polinésia.

Ilha da polinésia, neste caso em Tuvalu - Fonte - hqwallbase.com
Ilha da polinésia, neste caso em Tuvalu – Fonte – hqwallbase.com

Essa teoria clássica afirma que a Polinésia havia sido povoada por grupos vindos do sul da Ásia, porém para que esses grupos atingissem a Polinésia seria necessário que viajassem 5000 milhas (8.046 km) contra a corrente. Heyerdahl acreditava que esse fator tornaria tal possibilidade pouco provável. Em contrapartida, Heyerdahl se convenceu que os homens haviam vindo do Leste assim como a fauna e flora dessas ilhas.

“Recordo-me como espantei meu pai e assombrei minha mãe e meus amigos quando, de regresso à Noruega, entreguei ao Museu Zoológico da universidade os meus frascos de vidro com escaravelhos e peixes de Fatuhiva. Eu queria dizer adeus à zoologia e dedicar-me ao estudo dos povos primitivos. Haviam-me fascinado os mistérios ainda não decifrados dos mares do sul. Devia haver uma solução racional para eles, e era objetivo meu identificar o lendário herói Tiki”.

Deixando de lado seus estudos sobre zoologia, Heyerdahl começou um estudo intensivo para por à prova sua nova teoria sobre as origens da raça e cultura polinésias. Sugeriu que a migração à Polinésia havia seguido a corrente natural do Pacífico Norte e, portanto, direcionou suas investigações para a costa da Columbia Britânica e Peru.

Enquanto trabalhava no Museu da Columbia Britânica, Heyerdahl publicou pela primeira vez sua teoria (International Science, New York, 1941) que sustentava que a Polinésia havia sido povoada por duas orlas sucessivas de imigrantes. Sua teoria sugeria que a primeira orla chegou proveniente do Peru usando balsas de madeira. Centenas de anos depois, um segundo grupo étnico chegou ao Hawaii em canoas duplas provenientes da Columbia Britânica.

Rota imaginada e cumprida pela expedição Kon Tiki, provando que Thor Heyerdahl estava certo na sua teoria - Fonte -  ngyimhontom.wordpress.com
Rota imaginada e cumprida pela expedição Kon Tiki, provando que Thor Heyerdahl estava certo na sua teoria – Fonte – ngyimhontom.wordpress.com

Os resultados dos estudos de Heyerdahl foram logo publicados em uma edição de 800 páginas com o título de “Índios Americanos no Pacífico” (Estocolmo, Londres, Chicago, 1952).

“Assim, não somente minhas suspeitas, mas também minha atenção se afastou cada vez mais do Velho Mundo, onde tantos haviam procurado e nenhum havia encontrado nada, e se voltaram para as civilizações indígenas da América, tanto as conhecidas como as desconhecidas, as quais ninguém até então tinha levado em conta. E na costa leste mais próxima, onde hoje a república sul-americana do Peru se estende do Pacífico até as montanhas, não havia falta de vestígios, desde que alguém os procurasse. Ali vivera outrora um povo desconhecido que havia fundado uma das mais estranhas civilizações do mundo, até que, subitamente, há muito, esse povo desaparecera como que varrido da face da terra. Deixou após si enormes estátuas de pedra semelhando seres humanos, que faziam lembrar as de Pitcairn, as ilhas Marquesas e de Páscoa, e imensas pirâmides construídas em degraus como as de Taiti e Samoa. Extraíam das montanhas, com machados de pedra, blocos de tamanho descomunal que transportavam pelo campo, quilômetros a fio, punham em pé ou colocavam uns em cima dos outros formando portões, paredões e terraplanos, exatamente como os vamos encontrar em algumas ilhas do Pacífico”.

Representação das roupas do casal real Ynca e Coya. Suas coroas ostentam o emblema do sol, a quem eles adoravam como um deus. (Hulton Archive / Getty Images) - Fonte - httphistory.howstuffworks.com
Representação das roupas do casal real Ynca e Coya. Suas coroas ostentam o emblema do sol, a quem eles adoravam como um deus. (Hulton Archive / Getty Images) – Fonte – httphistory.howstuffworks.com

“Os incas tinham um grande império nessa região montanhosa quando os primeiros espanhóis chegaram ao Peru. Disseram aos espanhóis que os colossais monumentos abandonados lá no meio da paisagem foram erigidos por uma raça de deuses que ali tinham vivido antes dos incas. Esses arquitetos desaparecidos eram, segundo a descrição que deles faziam, mestres sábios, pacatos, oriundos do norte, de onde tinham vindo ainda na aurora dos tempos e que ensinaram aos anteados dos incas a arquitetura e a agricultura e também os bons costumes e as boas maneiras. Eram diferentes dos indígenas, tendo a pele branca e usando longas barbas; eram também mais altos que os incas. Afinal saíram do Peru tão subitamente quanto haviam chegado; os incas, por seu turno, assenhorearam-se do país, e os mestres brancos desapareceram para sempre da costa sul-americana e fugiram para oeste, atravessando o Pacífico”.

“Ora, aconteceu que, quando os europeus chegaram às ilhas do Pacífico, se espantaram de ver que muitos dos nativos tinham a pele branca e eram barbados. Em muitas ilhas havia famílias inteiras notáveis pela palidez da pele, com o cabelo variando entre o avermelhado e o louro, olhos azul-cinzentos e os rostos quase semíticos, de nariz aquilino. Por sua parte, os polinésios tinham a pele bronzeada, cabelo muito preto e nariz chato e carnudo. Os de cabelo vermelho denominavam-se urukehu e se diziam descendentes diretos dos primeiros chefes das ilhas, que eram deuses brancos, tais como Tangaroa, Kane e Tiki. Lendas em torno de brancos misteriosos, dos quais os ilhéus descendiam, eram correntes em toda a Polinésia”.

Viracocha, de Tiahuanaco, Bolivia - Fonte - www.flick.com
Viracocha, de Tiahuanaco, Bolivia – Fonte – http://www.flick.com

Prosseguindo com suas pesquisas, Heyerdahl encontrou surpreendentes vestígios na cultura, na mitologia e na língua do Peru, que o incentivaram a pesquisar mais profundamente essas lendas, até identificar o lugar e a origem do deus polinésio Tiki quando lia sobre as lendas incas do rei sol Viracocha, que foi o chefe supremo do desaparecido povo branco do Peru.

“Viracocha é um nome inca (quéchua) e, por conseguinte de data bastante recente. O nome original do deus-sol Viracocha, que parece ter sido mais usado no Peru em tempos idos, era Kon-Tiki ou Illa-Tiki, que significa Sol-Tiki ou Fogo-Tiki. Kon-Tiki era um sumo sacerdote e rei sol dos lendários “homens brancos” dos incas que tinham deixado as enormes ruínas nas margens do lago Titicaca. Reza a lenda que Kon-Tiki foi atacado por um chefe chamado Cari que veio do vale Coquinho. Numa batalha travada numa ilha do lago Titicaca, os misteriosos brancos barbados foram trucidados, mas Kon-Tiki e seus companheiros mais chegados escaparam e, mais tarde, aportaram à costa do Pacífico, de onde finalmente desapareceram sobre o mar para as bandas do ocidente”.

Máscara de Kon Tiki - Fonte - murtsm.tripod.com
Máscara de Kon Tiki – Fonte – murtsm.tripod.com

“Mas por toda a Polinésia encontrei indicações de que a pacífica raça de Kon-Tiki não logrou conservar as ilhas só para si por muito tempo. Consoante essas indicações, barcaças guerreiras do tamanho dos navios dos vikings, e amarradas duas a duas, haviam transportado por mar indígenas do nordeste para o Hawaii e mais ao sul para todas as demais ilhas. Estes misturaram seus sangue com o da raça de Kon-Tiki, trazendo nova civilização à ilha de regime monárquico. Foi este o segundo povo da idade da pedra talhada, que veio para a Polinésia em 1100, ignorando a cerâmica, a existência dos metais, e sem rodas, nem teares, nem qualquer cultivo de cereais”.

Os estudos de Thor foram interrompidos com o início da Segunda Guerra Mundial e Heyerdahl regressou a Noruega como voluntário nas Forças Armadas Norueguesas, eventualmente servindo como paraquedista em uma unidade de Finmark.

A Expedição Kon-Tiki (1947)

Com o fim da guerra, Heyerdahl retomou suas investigações, mas encontrou uma sólida parede de resistência à suas teorias por parte dos cientistas tradicionais. Para poder dar maior credibilidade aos seus argumentos, Heyerdahl decidiu obter financiamento para a memorável expedição Kon-Tiki, que, usando uma jangada feita de pau de balsa (madeira mais leve que a cortiça), tentaria atravessar o imenso Oceano Pacífico desde o Peru até a Polinésia. Muitos o chamaram de louco, e afirmaram que ele e seus colaboradores morreriam durante a travessia, em vista a “precária” embarcação que eles pretendiam usar para tal feito.

Kon Tiki navegando - Fonte - www.wired.com
Kon Tiki navegando – Fonte – http://www.wired.com

Depois de certo tempo Heyerdahl e seus colaboradores finalmente conseguiram as toras de balsa, que necessitavam para a construção da memorável Kon-Tiki, nas selvas do Equador, e transportaram todo o material para os estaleiros do porto de Callao no Peru onde receberam o apoio da Marinha peruana sob as ordens do presidente peruano na época para construir a jangada.

Em 1947, Heyerdahl e mais cinco tripulantes zarparam de Callao, cruzando 8.000 Km de mar que separam a América do Sul da Polinésia e depois de 101 dias chegaram ao atol de Raroia no Arquipélago das ilhas Tuamotu. Com isso provou que os antigos americanos podiam ter desenvolvido habilidades muito avançadas para a navegação em alto mar e, portanto, podiam ter chegado à Polinésia desta maneira.

Kon Tiki na vela do barco de toras de madeira - Fonte - www.espiraldotempo.com
Kon Tiki na vela do barco de toras de madeira – Fonte – http://www.espiraldotempo.com

Esta espetacular aventura foi relatada em detalhes no seu mais famoso livro “A Expedição Kon-Tiki“, publicado em mais de 60 países, em vários idiomas e que vendeu mais de 25 milhões de exemplares.

“Costumávamos sentar-nos no convés sob o céu estrelado e recordar a estranha história da ilha de Páscoa, muito embora a jangada nos estivesse levando diretamente para o coração da Polinésia, de maneira que dessa ilha longínqua nada veríamos, a não ser o seu nome no mapa. Mas a ilha de Páscoa tem tantos traços do oriente que até o seu nome pode servir de indicador”.

Fonte - imgsoup.com
Fonte – imgsoup.com

“No mapa aparece esse nome “Ilha de Páscoa” porque um holandês a “descobriu” num domingo de Páscoa. E nos esquecemos de que os próprios nativos que já viviam lá tinham para a sua terra nomes mais instrutivos e significativos. Esta ilha tem nada menos que três nomes em polinésio”.

“Um deles é Te-Pito-te-Henua, que significa “umbigo das ilhas”. Este nome poético coloca claramente a ilha de Páscoa numa posição especial em relação às outras ilhas situadas mais para o oeste, sendo, consoante aos próprios polinésios, a mais antiga designação da ilha de Páscoa. Sabemos que a tradição polinésia se refere ao descobrimento das ilhas como o “nascimento” da ilhas, com isto claramente se sugere que, dentre os demais lugares, a ilha de Páscoa era considerada como o símbolo do nascimento das outras ilhas e o traço de união com a mãe pátria original”.

O alimento - Fonte - www.smh.com.au
O alimento – Fonte – http://www.smh.com.au

“O segundo nome da ilha de Páscoa é Rapa-nui e significa “Grande Rapa”, enquanto “Rapa-iti ou “Pequena rapa”” é outra ilha do mesmo tamanho, situada a grande distância a oeste da ilha de Páscoa. É prática natural de todos os povos chamarem sua primeira pátria, por exemplo, Grande Rapa, e ao o que a seguinte é chamada Nova Rapa ou Pequena Rapa, ainda que os lugares sejam do mesmo tamanho”.

“O terceiro e último nome desta ilha-chave é Mata-Kite-Rani e quer dizer “o olho (que) olha (para) o céu”. Rani tinha para os polinésios duplo significado. Era também a pátria de origem de seus avós, a terra santa do deus-sol, o montanhoso reino abandonado de Tiki. E é muito expressivo o fato de terem dado precisamente ao posto-avançado que é a ilha de Páscoa, dentre milhares de ilhas do oceano, o nome de olho que olha para o céu. Mais notável é ainda a circunstância de que o nome afim Mata-Rani, que em polinésio significa “o olho do céu”, é um velho nome local do Peru, o de um lugar na costa peruana do Pacífico defronte da ilha de Páscoa, e logo abaixo da vetusta cidade em ruínas de Kon-Tiki, nos Andes”.

Uma recente película cinematográfica reproduziu a história da expedição Kon Tiki - Fonte -  httpwww.showfilmfirst.com
Uma recente película cinematográfica reproduziu a história da expedição Kon Tiki – Fonte – httpwww.showfilmfirst.com

“A ilha de Páscoa, sozinha, nos dava assunto de sobra para conversação enquanto estávamos sentados no convés sob o céu estrelado, sentindo-nos participantes de toda a aventura pré-histórica. Quase nos vinha a impressão de que não fizéramos outra coisa, desde os tempos de Tiki, senão correr o mar sob o sol e as estrelas em busca de terra”.

Expedição a ilha de Páscoa

Continuando suas pesquisas, Heyerdahl idealizou uma expedição arqueológica de grande envergadura à ilha mais distante do Pacífico, a ilha de Páscoa. Um grupo de 23 pessoas chegou à ilha e começou a fazer estudos arqueológicos no subsolo. Rapidamente descobriram que a ilha de Páscoa teve no ado uma grande quantidade de bosques que fora derrubado pelos moradores nativos e que estes também cultivavam muitas plantas oriundas da América do Sul.

Thor Heyerdahl  - Uma vida em busca de realizar seus sonhos
Thor Heyerdahl – Uma vida em busca de realizar seus sonhos

Datações através de Carbono-14 mostraram que a ilha havia sido ocupada desde aproximadamente o ano 380 D.C., cerca de 1.000 anos mais cedo do que se acreditava. Escavações indicaram também que muitas obras feitas de pedra eram muito semelhantes às construídas pelas antigas civilizações peruanas. Alguns moradores da ilha contaram que de acordo com suas lendas eles originalmente chegaram provenientes de ilhas do Leste. Os resultados das pesquisas de Heyerdahl foram amplamente discutidos ao serem apresentados no 10º Congresso do Pacífico, em Honolulu (1961), onde diante de todas as provas, as teorias migratórias de Heyerdahl adquiriram grande importância e influência.

“E onde parou a ciência principiou a imaginação. Os misteriosos monólitos da ilha de Páscoa e todas as outras relíquias de origem desconhecida existentes nessa ilha pouco exposta, a qual fica em completa solidão a meio caminho entre as ilhas mais próximas e a costa sul-americana, deram ensejo a todo gênero de especulações. Muitos repararam que os achados da ilha de Páscoa faziam lembrar de muitas maneiras as relíquias das civilizações pré-históricas da América do Sul. Teria existido outrora uma porte de terra sobre o mar, e esta haveria submergido? Não seria a ilha de Páscoa, e todas as demais ilhas do Mar do Sul que tinham monumentos da mesma espécie, restos que um continente submerso deixara em relevo na superfície do oceano?”

Entre as muitas homenagens que seu país natal lhe concedeu, está nomear uma fragata da Marinha da Noruega com seu nome - Este é o HNoMS THOR HEYERDAHL (F314)
Entre as muitas homenagens que seu país natal lhe concedeu, está nomear uma fragata da marinha com seu nome – Este é o HNoMS THOR HEYERDAHL (F314)

“Tem sido esta entre leigos uma teoria popular e uma explicação plausível, mas os geólogos e outros investigadores não lhe dão importância. Demais, os zoólogos provam facilmente, pelo estudo de insetos e caracóis das ilhas dos mares do Sul, que, durante toda a história da humanidade, essas ilhas estiveram isoladas umas das outras e dos continentes que as rodeiam tão completamente como o estão hoje.”

“Sabemos, portanto, com absoluta certeza, que a primitiva raça polinésia deve ter vindo em alguma época, espontaneamente ou não, ao sabor das águas ou com a força das velas de uma embarcação qualquer, até essas ilhas longínquas.”

Prêmios concedidos

Thor Heyerdahl recebeu várias medalhas, prêmios e condecorações. Foi membro regular de vários congressos científicos, membro de honra do Congresso Internacional de Americanistas, Congresso de Ciências do Pacífico e do Congresso internacional de Antropologia e Etnologia.

Últimos dias no Peru

Heyerdahl ou os últimos anos de sua vida de intensa atividade no Peru, principalmente em Chiclayo e Motupe onde continuou com suas investigações, muitas vezes superando as poderosas superstições da região. Graças aos seus estudos foi possível demonstrar que os antigos povos que habitavam a costa oeste da América do Sul, especialmente no Peru, possuíam grande habilidade no campo da navegação e, sobretudo, muita força e coragem.

A Kon Tiki em um museu na cidade de Oslo, Noruega - Fonte - www.virtualtourist.com
A Kon Tiki em um museu na cidade de Oslo, Noruega – Fonte – http://www.virtualtourist.com

Thor Heyerdahl morreu em 18 de abril de 2002 em sua casa na Itália depois de 87 anos dedicando sua vida às descobertas dos enigmas da humanidade.

O pesquisador e aventureiro tem parte de sua família no Brasil, a qual veio para cá há quatro gerações, antes de 1920. O pai de Thor, Bertrand, teve mais três filhos além dele. Um dos filhos também se chamava Bertrand. Bertrand 2º veio para o Brasil, onde teve uma filha, Shirley que seguiu com a família no Brasil.