Existem livros inteiros falando de Cinema Novo, e de como Gláuber foi importante para este movimento e para a história do cinema brasileiro. Eu não discordo disso, mas já estava tão acostumado a colocá-lo entre os meus cineastas favoritos, que sou obrigado a questionar-me de vez em quando sobre quanto desta iração é sincera e quanto é acomodação; falar que aprecia porque todo mundo, entre os que se declaram intelectuais, apreciam. Eu acho que este exercício é sempre muito proveitoso, desde que não se torne uma paranoia.
Acontece que eu, até certo período de minha “vida cinéfila”, acreditei que só o cinema europeu era cinema de verdade, e por isso seria natural que eu intitulasse o Gláuber como meu diretor brasileiro favorito (ele sofreu bastante influência de cinema europeu). Já tinha na ponta da língua a minha lista de diretores favoritos, que incluía nomes como Godard, Bergman, Luchino Visconti, Tarkovsky, Fassbinder e Fellini. Mas de uns dois ou três anos pra cá, tenho estado muito mais próximo do cinema americano, do cinema de gênero, dos filmes policiais dos anos 70, dos exploitations italianos, dos westerns, dos noir, dos melodramas protagonizados por Joan Crawnford, Bette Davis e Barbara Stanwick.
E quanto ao cinema brasileiro, eu descobri o cinema da Boca do Lixo e o cinema da década de 70 em geral, amparado por alguns blogs que fizeram o resgate destes filmes tão ridicularizados ou simplesmente ignorados no ado, e pelo Canal Brasil, é claro, já que grande parte destes filmes não tem lançamento em DVD. Mas a minha influência maior neste processo foi, sem duvida, o blog de Andrea Ormond, Estranho Encontro. Eu me sentia incentivado a perseguir os filmes que ela comentava, encontrando alguns deles na internet, e aguardando ansiosamente por exibições de alguns deles nas madrugadas do Canal Brasil.
Depois de descobrir que o cinema ia muito além do que eu imaginava, que o cinema americano não tem interesses apenas comerciais, que o cinema brasileiro teve na década de 70 seu período de atividade mais intensa, que o cinema de gênero pode ser muito interessante, e que os recursos utilizados pelos diretores vinculados ao cinema de arte não são infalíveis; eu fiquei com uma grande indagação: e agora?
O que fazer com os Pasolinis, com os Antonionis, com os Bergmans, e com os Tarkovskys? Trocar todos estes por aqueles seria muito óbvio, e muito hipócrita. Idolatrar tudo que é popular e condenar o erudito, é uma atitude tão burra, como idolatrar o erudito e condenar o pop (essa discussão é interminável). Mas eu aprendi que não existe uma forma certa de fazer cinema. Se existisse não teria graça. Eu me impressionei bastante com algumas produções da Boca, e acho um absurdo que algumas destas não encabecem listas de melhores filmes brasileiros. Contudo já revi filmes do Gláuber mais recentemente e não posso deixar de irá-los.
Então, depois dessa longa introdução falemos de Gláuber. Eu revi “Deus e O Diabo na Terra no Sol’’ e a primeira coisa que me saltou aos olhos foi que não se pode analisar o diretor apenas em termos de sua contribuição para o Cinema Novo. Os cinemanovistas eram parceiros, intelectuais de esquerda que tinham muitas referências em comum, e que tinham como objetivo principal criar uma forma de expressão legitimamente brasileira, calcado principalmente nas referências ao neorrealismo e à nouvelle vague, e no repudio às chanchadas da Atlântida, e às imitações da Vera Cruz das produções hollywoodianas.
Antes de mais nada, poderíamos questionar esse posicionamento do Cinema Novo, em relação ao cinema que se fazia no nosso país até então. Acho louvável que eles quisessem implantar suas influências de cinema europeu em suas produções, e que tenham intencionado criar algo novo, mas é no mínimo estranho que um movimento que pretendia desvendar a cultura brasileira, recusasse, por exemplo, as chanchadas protagonizadas por Grande Otelo e Oscarito. E esse discurso antiamericano é extremamente desgastante. O fato é que Gláuber Rocha compartilhava destes posicionamentos que, como eu já disse, considero questionáveis, mas em sua forma de fazer cinema, não ficava às lições do Cinema Novo.
Em “Deus e o Diabo…’’ temos um diretor que, apesar de adotar algumas medidas que se associem facilmente ao neorrealismo, no engajamento social e na denuncia das mazelas de seu país, e à nouvelle vague, no trabalho de câmera ousado, como no belíssimo travelling, já tão famoso, e no uso de câmera na mão; vai muito além disso. Talvez nesse aspecto Glauber seja muito associado à Godard: os dois não conseguiram restringir-se aos movimentos que encabeçaram, pois tinham ideias maiores.
E isso talvez explique a iração mútua entre os dois cineastas. No filme de 1964 vemos o uso frequente de teatralidade, que não ia de encontro aos ideais neorrealistas, e que salvo engano, não foi utilizado pelos outros cinemanovistas. Temos um rigor estético, que também não foi visto em outros filmes brasileiros da época. Em alguns enquadramentos a posição dos personagens no espaço filmado é muito marcada, e a movimentação é meticulosamente ensaiada, o que o diferenciaria, creio eu, dos filmes da nouvelle vague.
Eu já li que Gláuber Rocha sofreu influência de Kurosawa, e acho que não seria errado associar esta meticulosidade ao diretor japonês: as atuações que vemos em filmes como Rashomon e Trono Manchado de Sangue são bastante teatrais, e viscerais, com um posicionamento dos personagens muito bem calculado. A identificação da influência do teatro de Brecht também seria cabível, mas minhas limitações intelectuais impedem-me de aprofundar-me nesta questão.
A questão é: o segundo longa de Gláuber tem imagens maravilhosas, atuações impressionantes, a música de Villa Lobos no momento que talvez seja o mais emblemático do filme, e diálogos poéticos, muito bem escritos. Mas em relação ao conteúdo do filme? A crítica às alegorias de Gláuber, ao seu excesso de hermetismo, e de discursos políticos e sociais, procede? Essa é uma questão complicada. “Deus e o Diabo…” não é meu filme favorito do Gláuber (eu prefiro Terra em Transe), mas revendo o filme pela quarta ou quinta vez, eu tenho que afirmar: Gláuber é cinema! Eu reconheço que ele andou se confundindo na década de 70, mas se “Deus e o Diabo…’’ e “Terra em Transe” não são cinema, eu realmente não sei o que é cinema.
Eu já citei em outra postagem uma frase do Kurosawa, em que ele afirma que os grandes filmes tem no máximo uns 5 minutos de puro cinema, e que os filmes dele também tem essa quantidade, e ele se sente satisfeito com isso. E Gláuber consegue no filme de 64 vários momentos de puro cinema: bem mais do que outros diretores consagrados. Um amigo meu, que me acompanhou na exibição me falou que tem a impressão de que o Gláuber está dizendo: “olha só o que sei fazer com a minha câmera”. Eu não vejo problema algum nisso. A arte não está livre do ego do artista. Fazer arte não deixa de ser o ato de se gabar das influências que tenha, ou das influências que se é capaz de superar, criando algo novo. Acho que Gláuber cria, constrói e desconstrói neste filme.
O roteiro de “Deus e o Diabo…” realmente não chega ao nível de genialidade da direção do cineasta baiano. Os que já estão familiarizados com os romances regionalistas não verão novidades no drama do sertanejo Manoel. Gláuber não optou por uma humanização do personagem , a exemplo do que fez Graciliano Ramos, no clássico da literatura “Vidas Secas”, ao falar da vida no sertão.
A universalização do sertão de Guimarães Rosa, com o sertanejo questionando o seu mundo, mesmo recluso nos limites de terra delimitados por uma cerca, também não dá as caras por aqui. Manuel é só mais um sertanejo pobre, que poderia ser José, João ou Joaquim. Não há desenvolvimento do personagem; ele é só mais um dentre muitos que são ludibriados pela religião, e que entram para o cangaço por não ter nenhuma perspectiva de vida. A mulher de Manoel, Rosa, me chamou mais atenção desta vez, do que nas outras vezes em que eu vi no filme.
Ela é submissa, não tem voz no contexto onde está inserida, e por isso tem pouquíssimas falas ao longo do filme. Mas Gláuber a coloca em uma posição de observadora e de julgadora das ações do marido. Yoná Magalhães, em interpretação espetacular, fala com seu olhar inquisidor, o que não tem chance de falar com palavras. Ela tem uma visão muito lúcida e racional, não se deixa ludibriar pelas promessas de um paraíso vindouro feitas por São Sebastião, enquanto seu marido é cegado pela fé.
O que ocorre, porém, é que essas características não são próprias da personagem; estão muito mais ligadas a uma concepção da mulher como voz da razão da família, que embora não possa seguir o papel de chefe, está sempre apta a aconselhar o marido, com argumentos sensatos. A figura feminina, nestes termos, já foi usada no cinema e na literatura inúmeras vezes, e faz parte do senso comum. Rosa não a, portanto, de uma alegoria. Uma alegoria bem feita, mas ainda assim, uma alegoria. A crítica à religião, visto como um instrumento alienante, que parece ser o mote do filme, e que já havia sido tratado no primeiro longa de Gláuber, Barravento, também não é muito aprofundada, embora gere algumas cenas de grande impacto visual e cênico.
Concluindo, eu digo novamente que eu ainda considero “Deus e o Diabo…’’ uma obra-prima, mas que existem algumas ressalvas que podem ser feitas a respeito do filme, e algumas limitações em seu discurso. A revolução e a fúria da imagem de Gláuber não são acompanhadas por um roteiro muito bem desenvolvido. Já em “Terra em Transe’’ Gláuber encontraria seu lugar. Abraçaria o caos. Em Terra em Transe, além de imagens delirantes, temos os delírios do personagem. Nesse filme, a fúria, a ambição revolucionária e o desespero do personagem, a “fome do absoluto”, do protagonista Paulo Martins, formam um encaixe perfeito com as alucinações do próprio Gláuber e com a revolução cinematográfica que o diretor queria implantar aqui no país.
Terra em Transe é um filme grande em todos os aspectos, e as limitações de roteiro do filme de 1964, são superadas neste filme de 1967. Aqui os discursos esquerdistas e populistas, que seduziam tão facilmente os intelectuais da época, inclusive os cinemanovistas, dão lugar a uma postura mais crítica e desconfiada. A reprodução de estereótipos da vida sertaneja daria lugar a uma revisão complexa das correntes políticas que surgiram no Brasil a partir da década de 30.
E o diretor se permitiria usar do humor e do deboche para retratar o conservadorismo e o populismo e as falhas de discurso de ambas as correntes, de uma forma que com certeza ganharia a aprovação de Sganzerla. Terra em Transe ainda é meu filme brasileiro favorito. Nele Gláuber Rocha está em seu ápice de loucura e de criatividade, arriscando como sempre e acertando mais do que jamais fizera em qualquer outro filme seu.
AUTOR – LUÍS ANTÔNIO DE SÁ
FONTE DO TEXTO E DAS FOTOS – BLOG MARAVILHAS CONTEMPORÂNEAS –